1 Antonio Carlos Frizzo A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná TESE DE DOUTORADO DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de pós-graduação em Teologia Rio de Janeiro Agosto de 2009 2 Antonio Carlos Frizzo A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia. Orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima Rio de Janeiro, agosto de 2009 3 Antonio Carlos Frizzo A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Profa Maria de Lourdes Corrêa Lima Orientadora Departamento de Teologia – PUC-Rio Prof. Isidoro Mazzarolo Departamento de Teologia – PUC-Rio Prof. Ludovico Garmus Departamento de Teologia – PUC-Rio Prof. Vicente Artuso PUC-PR Prof. Paulo Severino da Silva Filho Seminário Teológico Presbiteriano Simonton Prof. Paulo Fernando Carneiro da Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio Rio de Janeiro, 9 de agosto de 2009 4 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da orientadora. Antonio Carlos Frizzo Graduou-se em Teologia na Faculdade Nossa Senhora da Assunção de São Paulo em 1984. Defendeu a tese de mestrado em 1999, pelo Instituto Católico de Paris, resultado dos estudos sobre a relação entre judaísmo e cristianismo, no Instituto Pontifício Ratisbonne de Jerusalém. Leciona teologia bíblica (Antigo e Novo Testamento), é responsável pelo curso de línguas bíblicas (hebraico e grego) na Faculdade Dehoniana, Taubaté e no ITEFIST (Instituto de Teologia e Filosofia Santa Terezinha), São José dos Campos, São Paulo. É padre na diocese de Guarulhos, São Paulo. Ficha Catalográfica Frizzo, Antonio Carlos A trilogia social : estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná / Antonio Carlos Frizzo; orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima. – 2009. 235 f.; 30 cm Tese (Doutorado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Trilogia social. 3. Estrangeiro. 4. Órfão. 5. Viúva. 6. Mishná. 7. Deuteronômio. 8. Defesa da vida. I. Lima, Maria de Lourdes Corrêa. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título. CDD: 200 5 Ao meu pai, Antonio Frizzo (in memoriam), com quem aprendi a sonhar e trabalhar por um mundo justo e solidário. À professora Ana Flora Anderson, mestra nos primeiros passos no estudo das Escrituras; Ao professor e amigo, Dr. Pe. Emanuel Bouzon (in memoriam), pela confiança e por ter acenado os primeiros passos desse trabalho. 6 Agradecimentos Ao Deus Um, pela saúde e por tantas bênçãos recebidas no dia-a-dia. À minha mãe Isabel dos Santos Frizzo que, no silêncio e na atitude de atenta observadora, colaborou, em muito, na elaboração deste trabalho. À Maria de Lourdes Corrêa Lima, minha orientadora, conhecedora, como poucos, da ciência bíblica, exigente e transbordante de simplicidade e amizade. À Igreja Particular de Guarulhos, na pessoa do nosso Bispo Luiz Gonzaga Bergonzini, onde por mais de trinta anos vivo e celebro o dinamismo da fé e missão, por ter-me possibilitado tempo e apoio integral no desenvolvimento da pesquisa. Ao meu pároco, Savério Lípori e agentes de pastoral da Igreja Santa Cruz, Jd. Presidente Dutra, pelas inúmeras vezes em que assumiram minhas tarefas cotidianas, possibilitando-me mais tempo para as pesquisas. Ao Centro Bíblico Verbo, onde pensamos as Escrituras na vida de nossa gente. Lembro a amiga Cecília Toseli, os professores Ademar Kaefer, Shigeyuki Nakanoso, às professoras Maristela Tezza e Maria Antônia Marques. Essa última foi uma constante assessora. 7 À Faculdade Dehoniana, em Taubaté e ao ITEFIST de São José dos Campos, espaços de amizade, reflexão e debate em torno das Escrituras. À professora Deucélia Adegas Pêra, quanto tenho a agradecer! Ela, embora travando uma luta contra um câncer, sempre suplantou as dores ou desânimo e fez uma revisão impecável deste trabalho. Ao aluno Messias Rochinski pela ajuda no acerto do software. Ao professor Élio Passeto, do Centro de Estudos Judaico-Cristão Ratisbonne, em Jerusalém, pelos conselhos, leitura e revisão dos capítulos envolvendo a tradição judaica. À Irmã Maria do Rosário, bibliotecária da École Biblique de Jerusalém, pelas constantes dicas bibliográficas. Ao Prof. Ludovico Garmus, funcionárias e funcionários da Biblioteca do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis, RJ, pela amizade solidificada ao longo do trabalho. 8 Resumo Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa. A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A presente tese aborda uma reflexão bíblico-teológica sobre a trilogia social – “ גֵּרestrangeiro”, “ י ָתוֹםórfão” e “ אַ ְל ָמנָהviúva” no Dt e sua recepção da Mishná. No livro encontramos seis explícitas referências à trilogia: 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. A presença dessas categorias acena para um significativo conjunto de normas jurídicas no Antigo Israel. As leis foram praticadas para defender os direitos de grupos socialmente vulneráveis, diante de um determinado contexto político e social, como é possível verificar no embate com o projeto beligerante do império assírio (722 a.C.) e, mais tarde, com a experiência da comunidade religiosa pós-exílica (537 a.C.), após confrontos com as tropas babilônicas. As narrativas, além desse aspecto, revelam o nível de intimidade envolvendo YHWH e a comunidade religiosa, que deve engajar-se para fazer prevalecer a prática do direito e da justiça aos grupos socialmente desfavorecidos, como prova de sua interação com YHWH. Num contexto social completamente adverso às comunidades judaítas, nos dois primeiros séculos da nossa era, a Mishná baliza os esforços dos sábios fariseus ao colocarem em prática os preceitos, sempre atuais, da Torá. Ler os dois universos literários – Dt e Mishná - a partir da ótica dos grupos socialmente frágeis, é um desafio para se compreender o valor significativo que teve a tradição judaica na compreensão do conceito “Palavra de YHWH”. Palavras-chave Trilogia social, estrangeiro, órfão, viúva, Mishná, Deuteronômio, defesa da vida. 9 Resumen Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Orientadora). Social Trilogia: El extranjero, el huérfano y la viuda en el Deuteronomio y su recepción en la Mishna. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Tesis Doctoral – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. El objetivo es abordar una reflexión bíblico-teológica sobre la trilogía social: “גֵּרextranjero”, “ י ָתוֺםhuérfano” y “ אַ ְל ָמנָהviuda” en el Dt. En tal libro encontramos seis referencias explícitas a esta trilogía: 10,12-22; 14,28-29; 16,912; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. La presencia de estas categorías nos remite para un conjunto significativo de normas jurídicas en la antigua Israel. Las leyes se hicieron para la defensa de los derechos de los grupos socialmente vulnerables, dado a un determinado contexto sociopolítico, como se puede ver en el enfrentamiento con el proyecto beligerante del imperio Asirio (722 a.C.) y posteriormente con la experiencia de las comunidades religiosas del pos exilio (537 a.C.), y tras los enfrentamientos con las tropas Babilónicas. Tales descripciones; y más allá de estos puntos; indican el nivel de intimidad que envuelve a YHWH y a las comunidades religiosas, las cuales deben dedicarse para hacer prevalecer la práctica de la ley y la justicia en los grupos socialmente desfavorecidos, como prueba de su intimidad con YHWH. En un contexto social totalmente adverso para las comunidades judaicas en los primeros siglos de nuestra era, la Mishna es señal de los esfuerzos por parte de los sabios fariseos para poner en práctica los preceptos, siempre vigente del Torá. Leer los dos mundos literarios – del Mishna y el Dt – desde la perspectiva de los grupos socialmente vulnerables, es un reto importante para comprender el valor que tenía la tradición judaica en la comprensión del concepto de “la palabra de YHWH”. Palabras claves Trilogía social, extranjero, huérfano, viuda, Mishna, Deuteronomio, defensa de la vida. 10 Résumé Frizzo,Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Orientatrice). La trilogie sociale dans livre de Deutéronome: exotique, orphelin et veuve et sa réception dans le Mishna. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Thèse de Doctorat - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. La thèse traite d’une réflexion biblico-théologique sur la trilogie sociale: “גֵּרétranger’’, “ י ָתוֺםorphelin’’ et “ אַ ְל ָמנָהveuve” en Deutéronome. Plus précisement dans ses chapitres 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21;26,12-15; 27,11-26. La présence de ces catégories fait appel à une importante série de règles de droits dans l’ancien Israel. Ces lois sont faites pour défendre les droits des groupes socialement vulnérables, compte tenu d’un certain contexte politique et social, comme vous pouvez le voir dans l’affrontement avec la conception des bélligerents de l’empire de syrie (722 Après Jésus Christ) et plus tard, avec l’expérience de la communauté religieuse post-Exil (537Avant Jésus Christ), après des affrontements avec les troupes Babyloniennes. Les récits, au-delà de ce point, l’intimité de Yahvé et la communauté religieuse qui doit s’enganger à la pratique du droit et de justice en faveur des groupes socialement défavorisés, comme preuve de interaction avec Yahvé. Dans un contexte social totalment néfaste pour les communautés Juives dans les deux premiers siècles de notre ère, la Mishna, phare de sages pharisiens, les efforts visant à mettre en pratique les préceptes, le cas échéant de la Torah. Lire les deux mondes littéraires - Mishna e Dt - du point de vue des groupes socialement vulnérables est um défi de comprendre la valeur qui a la tradition juive dans la compréhension de la notion du mot “Yahvé’’. Mots-clés Trilogie social, étranger, orphelin, veuve, Mishna, Deutéronome, défense de la vie. 11 Abstract Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Advisor). Social Trilogy: foreign, orphan and widow in Deuteronomy and its reception in Mishná. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Doctoral Thesis– Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. The aim is to discuss the biblical-theological reflection on the social trilogy - “ גֵּרforeign, “ י ָתוֺםorphan” and “ אַ ְל ָמנָהwidow” in Dt. In this biblical book are six explicit references to this trilogy: 10, 12-22, 14, 28-29, 16, 9-12, 24, 17-21, 26, 12-15, 27, 11-26. The presence of these categories points out the significant set of legal rules in Ancient Israel. The laws were made in order to defend the rights of socially vulnerable groups, in a certain political and social context, as you can find out from the clash with the design of the belligerent Assyrian Empire (722 BC) and later, with the experience of religious post-exile community (537 BC), after clashes with the troops of Babylon. The narratives, beyond this point, show the level of intimacy involving YHWH. In a social context, completely adverse to the Jewish communities in the first two centuries of our area, the Mishná points out the wise Pharisees efforts to put into practice the precepts always present of the Torah. To read the two literary worlds – Dt and Mishná – from the perspective of socially vulnerable groups, is a challenge to understand the significant value that the Jewish tradition has had about the understanding of the concept “Word of YHWH”. Keywords Social Trilogy, Foreign, Orphan, Widow, Deuteronomy, Defense of Life 12 Sumário 1. Introdução geral 18 2. Sinalizando os rumos da pesquisa 30 2.1. O estrangeiro, o órfão e a viúva na categoria dos pobres 34 2.1.1. O “ ֵגּרestrangeiro” 35 2.1.2. A pessoa do " י ָתוֹםórfão”. 39 2.1.3. A pessoa da “ אַ ְל ָמנָהviúva” 42 2.2. Conclusão 49 PARTE I: COMENTÁRIO DOS TEXTOS ONDE É CITADA A TRILOGIA SOCIAL – “ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA” NO DEUTERONÔMIO 51 3. Apresentação do conjunto das perícopes do Dt relacionadas com a trilogia social 52 3.1. A historicidade divina reside na realização da justiça: Dt 10,12-22 52 3.1.1. Dt 10,12-22: tradução e aspectos filológicos 53 3.1.2. Delimitação do texto, composição e estrutura 56 3.1.3. Comentário e análise semântica 62 3.2. Há um tempo determinado para a justiça: Dt 14,28-29 74 3.2.1. Dt 14,28-29: tradução, aspectos filológicos e variantes 76 3.2.2. Delimitação do texto, composição e estrutura 77 3.2.3. Comentário e análise semântica 79 3.3. Os produtos da terra utilizados na equidade social: Dt 16,9-12 87 3.3.1. Dt 16,9-12: tradução, aspectos filológicos e variantes 87 3.3.2. Delimitação, composição e estrutura 89 3.3.3. Comentário e análise semântica 92 3.4. Os pobres são lembrados durante a colheita: Dt 24,17-22 96 3.4.1. Dt 24,17-22: tradução, aspectos filológicos e variantes 97 3.4.2. Delimitação, composição e estrutura 101 3.4.3. Comentário e análise semântica 102 13 3.5. A não transgressão é o meio para um mundo estável: Dt 26,12-15 107 3.5.1. Dt 26,12-15: tradução, aspectos filológicos e variantes 108 3.5.2. Delimitação, composição e estrutura 111 3.5.3. Comentário e análise semântica 114 3.6. O senso cúltico contra atos que impossibilitam a realização do projeto da bênção: Dt 27,11-26 122 3.6.1. Dt 27,11-26: tradução, aspectos filológicos e variantes 122 3.6.2. Delimitação, composição e estrutura 127 3.6.3. Comentário e análise semântica 130 3.7. Conclusão: uma prática jurídica que agrada a Deus 136 PARTE II: COMENTÁRIO DOS TEXTOS DA MISHNÁ E SUA INTERPRETAÇÃO DO DT 139 4. Trilogia social nos textos da Mishná 140 4.1. A importância da Mishná na formação do judaísmo 140 4.1.1. A tradição judaica em meio à experiência da גּוֹ ָלה, "desterro" 140 4.1.2. A autoridade hermenêutica de Hillel 144 4.2." סדר זרעיםSeder Zeraim 149 4.2.1.“ פֵּﬡָ הPe’ah” (córner, limite, divisa) 4,3 149 4.2.2.“ פֵּﬡָ הPe’ah” 6,4 152 4.2.3.“ פאהPe’ah” 7,7 154 4.2.4.“ דמאיDemay” 1,2 156 4.2.5.“ שביעיתShebiit” 7,1 159 4.2.6.“ מעשר שניMaaser Shení” 5,10 162 4.3.“ סדר מועדSeder Mo´ed” 164 4.4.“ מגילהMegillah” 2,5 164 4.5.“ סדר נשיםSeder Nashim” 166 4.5.1.“ נדריםNedarim” 11,3 166 4.5.2.“ גיטיןGittin” 5,8 168 4.5.3. סוטהSotah 9,10 171 4.6.“ סדר נזיקיןSeder Neziqin” 173 4.6.1.“ בבא מציעהBava Metzia” 9,13 173 4.6.2.“ אבותAvot”, 5,9 177 14 4.7. Conclusão 180 5. A trilogia social nos textos deuteronômicos e mishnáicos 183 5.1. O dever de disponibilizar os dízimos 183 5.1.1. Produtos disponibilizados no sétimo ano. 186 5.1.2. O dízimo dos pobres e a declaração no dia festivo, por excelência 189 5.1.3. O dízimo lembrado nas ocasiões festivas 191 5.1.4. A confissão do dízimo abolida pelo Sumo Sacerdote 193 5.2. O dever de garantir aos pobres o direito da respiga 197 5.2.1. O recolhimento do Pea não é ocasião de roubar o proprietário 197 5.2.2. A radicalidade da lei do “não voltar atrás” 199 5.2.3. Em qualquer situação os pobres serão lembrados 200 5.2.4. Não há meios de revogar o direito da Torá 201 5.2.5. Esforços voltados para a manutenção da paz 202 5.2.6. Relações comerciais sem usuras 204 5.3. A violação do direito dos pobres 206 5.4. Conclusão 207 6. Conclusão final 208 7. Referências bibliográficas 218 15 Abreviaturas e siglas Ab Abot AtTeo Atualidade Teológica BA Bible Atlas BAC Biblioteca de Autores Cristianos BHS Bíblia Hebraica Stuttgartensia Bi Biblica BJ Bíblia de Jerusalém BM Babá mĕṣi´á CA Código da Aliança Cadmo Revista do Instituto Oriental de Universidade de Lisboa CBSJ Comentario Biblico San Jeronimo CD Código Deuteronômico CBQ Catholic Biblical Quarterly CS Código de Santidade CSac Código Sacerdotal DBHP Dicionário Bíblico Hebraico-Português DBSup Dictionnaire de la Bible, Suplément DDD Dictionary of Deities and Demons in the Bible Dt Dictionary of the Talmud DEdJ Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme Dem Dĕmay DITAT Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento Dt Deuteronômio EB Estudios Bíblicos EsBi Estudos Bíblicos Git Gittín JBL Journal of Biblical Literature JBT Journal of Bible and Theology 16 JNES Journal of Near Eastern Studies JSOT Journal for the Study of the Old Testament LD Lectio Divina LMB Le Monde de la Bible M Mishná Meg Mĕgil.lá MSh Ma´ăśer šení NCBSJ Novo Comentário Bíblico São Jerônimo Ned Nĕdarim NRT Nouvelle Revue Théologique PT Perspectiva Teológica OBO Orbis Biblicus et Orientalis Pea Pe’á RAAO Revue d`Assyriologie et d`Archéologie Orientale RB Revue Biblique RdCT Revista de Cultura Teológica ReBi Recherches Bibliques REJ Revue des Études Juives RIBLA Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana Shebi Šĕbi´it Sot Sotá TBT The Bible Today TDOT Theological Dictionary of the Old Testament TM Texto Massorético WBC Word Biblical Commentary 17 ,דבר אחד יי אלהינו עלינו יי אחד על כל באי העולם יי אלהינו בעולם הזה יי אחד לעולם הבא וכן הוא אומר והיה למלך על כל הארץ ביום .ההוא יהיה יי אחד ושמו אחד ע``נד, פיסקא לא,ספרי דברים Outra interpretação de Yhwh nosso Deus: sobre nós. Yhwh é um: sobre todos os que veem ao mundo. Yhwh nosso Deus: neste mundo. Yhwh é um: para o mundo futuro. E assim se diz: “Yhwh se converterá em rei sobre toda a terra; e naquele dia, Yhwh será um e seu nome um”. Sifre Dt 31, 44. 18 1 Introdução geral Em meados de 2005, durante a etapa de cumprimento dos créditos na pósgraduação, junto ao Departamento de Teologia, PUC-Rio, li uma breve resenha sobre o Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, elaborada pelo professor Emanuel Bouzon1. A narrativa de Bouzon versa sobre o encontro da “Society of Biblical Literatur”, ocorrido na cidade de Münster, entre os dias 28 e 27 de julho de 1993. “A leitura deste volume trará, certamente, novos impulsos e novos pontos de discussão para todo aquele que se propuser a estudar Dt 12-26”, era a frase final da resenha. Confesso que fiquei inquieto diante dos possíveis “novos impulsos”, como afirmava o eminente historiador, ao concluir o artigo. A partir desse momento, comecei a aproximar-me, de modo mais crítico, dessa obra que é um divisor de águas no conjunto do Antigo Testamento. Mas como dar sequência às borbulhantes idéias? Em nova conversa com o professor Emanuel Bouzon, com o objetivo de colher as primeiras propostas de tema para um trabalho de doutoramento, tive conhecimento da obra A Torá: Teologia e História Social da lei do Antigo Testamento, do exegeta alemão Frank Crüsemann. Como sempre, muito fiel à sua área de pesquisa, de exegeta e historiador do Antigo Oriente, Bouzon acenou para a possibilidade de pesquisar um determinado conjunto de leis no Antigo Testamento, sem deixar de lado seus aspectos históricos, sociais e teológicos. Abracei a proposta. Terminada a leitura da obra de Crüsemann, surgiram os primeiros rabiscos sobre a possibilidade de concentrar esforços em torno do livro do Deuteronômio. Mas como subtrair um determinado tema num dos livros bíblicos mais estudados nas ultimas décadas, por diferentes abordagens e escolas exegéticas? Sobravam questões, diante da urgência de escolher um viés de análise. 1 BOUZON, M., Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, In: AtTeo, 3, 1998, pp. 99-103. 19 No início de 2006, é publicado o livro de Pedro Kramer, Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. O texto é uma síntese de sua tese doutoral, elaborada a partir dos escritos de dois dos mais relevantes estudiosos do Deuteronômio: N. Lohfink e G. Braulik. Ao debruçar-me sobre essas páginas, descobri a existência de um grupo social formado pelo estrangeiro, órfão e viúva, citada não mais do que seis vezes ao longo do livro do Deuteronômio. Pronto! Acabava de encontrar parte do sujeito da tese, num conjunto de leis bem especificadas no corpo jurídico do Antigo Testamento: a defesa de grupos violados em seus direitos e justiça. A parte complementar do tema busquei na tradição judaica. Não queria negligenciar anos de estudos vividos em Israel. Desejava, caso fosse possível, conciliar, os textos deuteronômicos com algum período relevante do judaísmo. Numa nova rodada de conversas, veio a idéia de relacionar o conjunto de leis em defesa do estrangeiro, órfão e viúva com a época dos Tanaítas. Na oportunidade, indagávamos, entre outras coisas: as reflexões presentes na obra deuteronômica foram consideradas pelas comunidades israelitas? Os sábios judaicos debruçaram-se sobre tais normas? As leis em defesa dos pobres foram observadas na prática do dia-a-dia das comunidades do II século, após a guerra de 135 d.C.? Tais questões deveriam acenar para uma determinada época. Escolhemos os anos vividos por dois brilhantes sábios e fundadores de duas distintas escolas rabínicas. Shamai e Hilel representam as duas tendências do movimento farisaico do I século, época do movimento literário erigido em torno do centro cultural de Yabneh, quando as controvérsias legais começaram a adquirir um conjunto redacional e, considerando as vicissitudes históricas, estava em formatação a Mishná . Da Bíblia não foi difícil selecionar o material. Bastou uma apurada leitura, com o apoio da concordância de Lisowsky, para selecioná-lo os textos desejados. Encontrei seis grupos de textos: 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. A pesquisa tem como eixo as análises das perícopes voltadas para a defesa do direito dos grupos desfavorecidos, personificados no que é chamado Trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva. Separadas as perícopes bíblicas, surgiu uma dificuldade maior: quais os textos a serem priorizados, provenientes da tradição judaica, e qual o critério para selecioná-los. De posse da concordância הכתובה והמסורה:תורה, “Tora: Haketuvah 20 Vehamasorah”, do professor Aharon Hymin, o critério foi destacar todos os textos da época dos Tanaítas, que fazem referências à trilogia social apresentada pelo Deuteronômio. Chegamos à soma de setenta textos provenientes da Mishná, dos Midrashin e dos respectivos Talmudes: Jerusalém e Babel. A conclusão não poderia ser outra. Diante de um cenário literário gigantesco, é salutar, não somente diminuir a área da pesquisa, mas, também, redefinir o número de textos. Alia-se a esta dificuldade, meu caráter de neófito – no senso comum da palavra – diante do vasto e qualificado universo literário de tradição judaica. Diante dos textos judaicos, optamos por realçar os textos da Mishná, tendo como período histórico a época dos Tanaítas, estabelecida cronologicamente entre dois períodos pré-tanaítico – conhecido como período dos zugot “pares” – 200 a.C a 20 d.C., e a época tanaítica, somando as seis gerações, 20 d.C a 200 a.C. São analisados os respectivos tratados em seus versículos: 1) Seder Zeraim: Pe`ah 4,3; 6,4; 7,7; Demay 1,2; Shebiit 7,1; MSh 5,10. 2) Seder Mo`ed: Meg 2,5. 3) Seder Nashim: Ned 11,3; Git, 5,8; Sot 9,10. 4) Seder Neziqin: BM 9,13 e Ab 5,9. Mas por que estes e não outros versículos? A escolha recai sobre este conjunto de versículos exatamente por que eles justificam a aplicação de uma “ ֲה ָל ָכהhalachá” – norma de conduta, regra de como agir – nos textos do Dt, onde é citada a trilogia social. Assim, buscamos comprovar se a defesa incondicional do estrangeiro, órfão e viúva, em realce no conjunto da obra, foi ou não evidenciada, posta em prática pelas comunidades judaicas em meados dos anos em que é composta a Mishná. Sinalizando os caminhos percorridos Ao tratar do tema Trilogia Social – estrangeiro, órfão e viúva, grafado no Deuteronômio, a pesquisa volta-se, no primeiro momento, para uma análise literária em torno dos textos selecionados, com a finalidade de compreender o contexto redacional em que a Trilogia se insere. Pensa-se que, por meio deste termo técnico - Trilogia Social – seja possível compreender, não apenas o contexto literário das perícopes, mas também, o seu sentido originário e os 21 motivos de incluí-la em diferentes narrativas, partindo sempre do contexto literário, onde encontramos as referidas citações. Foi com espírito de busca e entendimento que nos propusemos a realizar este trabalho, considerando a especificidade de um determinado grupo de textos jurídicos, realçando normas legais em defesa de uma categoria social e sua recepção nos textos da Mishná. Diante dos novos conceitos impostos ao grupo dos livros que compõem o Pentateuco2, o livro do Deuteronômio não poderia, em hipótese alguma, passar incólume nas recentes pesquisas exegéticas e descobertas arqueológicas. No universo da ciência bíblica, são inúmeras as pesquisas e resultados apresentando verdadeiras avalanches de variedades e resultados3. O Dt é uma obra literária de inúmeras facetas. Um livro que, uma vez visto a partir de sua redação final, está repleto de inúmeras outras redações e fases literárias. Não há possibilidade de se imaginar que o texto encontrado e utilizado por Josias, em sua reforma religiosa e política, é o mesmo Dt manuseado em nossos dias4. As opiniões sobre a formação do Dt se dividem em diferentes escolas, quando o esforço é dirigido à compreensão das diversas fases redacionais5. Primeiramente, como já era possível imaginar, com base na fala de Moisés, inserida no conjunto do livro do Dt, uma leitura mais minuciosa se depara com uma variedade de teorias e escolas que, nas últimas décadas, revolucionaram 2 Sobre os acalorados debates em torno das origens e composição do Pentateuco conferir algumas introduções aos cinco primeiros livros. NARDONI, E., Normas de justicia en las leyes de la alianza. In: Revista Bíblica, 58, pp. 81-118; DE PURY, A., O Pentateuco em Questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, Petrópolis, Vozes, 2002; BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999; SKA, J. L., Introdução à Leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia, São Paulo, Loyola, 2003. 3 KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 11: ˝A pesquisa atual sobre o Deuteronômio revela que não há consenso, entre os seus peritos, sequer quanto aos pontos básicos, como sua origem, formação e composição˝. 4 Cf. McConville, J. G., Singular Address in the Deuteronomio Law and the Politics of Legal Administration. In: JSOT 97, 2002, 19-36. A simples alternância entre a primeira pessoa do singular e a segunda do plural, legitima as inúmeras redações e camadas literárias presentes ao longo do livro (Dt 6,1-2; 4, 1; 5,1; 6.3, 4; 9,1; 10.12; 27.9). 5 Entre os autores há relativo equilíbrio na percepção estrutural do livro, um eixo central no formato de uma estrutura concêntrica, originária dos capítulos 12-26. Cf. SCHMIDT, W. H., Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994, p. 120; BLENKINSOPP, J., Deuteronomio. In: BROWN, R. E., FITZMYER, J. A., MURPHY, R. E. (Eds.), NCBSJ, São Paulo, Academia Cristã/Paulus, 2007, pp. 225-226; BRAULIK, G., Deuteronomium II, 16,1834,12, Echter Verlag, 1980, p. 98; SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 45-46; NAKANOSE, S., Para entender o livro do Deuteronômio. Uma lei a favor da vida?. In: RIBLA, 23, pp. 186-187. 22 o estudo do Pentateuco e, consequentemente do livro do Dt. No capítulo II, sobre o Status Quaestionis, apresento, de modo sintético, os caminhos pelos que seguem as recentes pesquisas no Dt, tendo como eixo a trilogia social. Preferimos dividir esse parágrafo em temas que julgamos ser relevantes na compreensão do livro, descobertos durante o estudo da bibliografia e que, sem dúvida alguma, utilizamos como princípios norteadores ao longo de todo trabalho. Com base em diferentes escolas de exegese e teologia bíblica, chegamos a um consenso de que os grupos sociais desfavorecidos jamais foram, em momento algum da história de Israel, negligenciados. Pelo contrário, encontra-se em qualquer período da existência de Israel uma clarividente defesa dos pobres em diferentes conjuntos jurídicos. A proteção, por parte da administração da justiça, implica em que a comunidade religiosa de Israel defenda e garanta a prática dos direitos desses grupos. A defesa desses grupos é apresentada, numa espécie de redoma jurídica, capaz de garantir o sucesso ou o infortúnio ao conjunto da sociedade que está por detrás da elaboração do texto. Em outras palavras, é dada tanta ênfase a este grupo que o leitor há de se perguntar: a sociedade, ou grupo social que produziu tal conjunto de normas chegou, de fato, à vivência plena, radiante do javismo defendido nas páginas do Dt? Os grupos em relevo, historicamente, viram seus direitos defendidos, ou o que temos, como redação final, não passa de um forte ensinamento ideológico forjado por um grupo de sacerdotes ou escribas, na Jerusalém dos séculos VI e V a.C.? No capitulo III, segue a análise exegética das seis perícopes. Buscamos compreender o Gênero Literário (Forma e Estrutura), antes de tudo, percebendo os recursos retóricos, os estilos utilizados pelo escritor bíblico, e só depois debruçamo-nos na Análise Semântica. O conjunto de textos ai selecionados é compreendido considerando o que inúmeros estudiosos intitulam uma releitura teológica e histórica do Israel conhecido até então, por parte dos sacerdotes e sábios instalados em Jerusalém, provavelmente, no período pós-exílico, isto é, uma espécie de aprimoramento de antigas leis, em vigor em Israel, então, melhor compreendidas ou completadas nas palavras que falou Moisés (cf. Dt. 1,1), num contexto de uma literatura não acabada, mas pedagógica. Em todo o conjunto do livro, o primado é dado a Moisés. O narrador prioriza a pessoa do profeta, tomando o lugar de YHWH, como bem apresenta o Código da Aliança: E disse YHWH a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel (cf. Ex 20, 22). Na pessoa de 23 Moisés, a lei se torna mais atual. Os discursos são para o presente, nunca reminiscência de um passado, onde Deus, um dia, dirigiu sua fala à nação escolhida. Visto sob a ótica da religião de Israel, o cumprimento do suporte legal adquire o desejo de garantir o projeto do Criador. Os suportes legais recebem uma nova compreensão, quando vistos na hermenêutica religiosa do Antigo Israel. A prática do Direito e da justiça, após longo processo no interior da sociedade, é compreendida como um forte apelo ideológico, quando considerada como desejo d`Aquele que nos libertou da terra da escravidão. Tornaram-se leis sagradas que, uma vez observadas, aproximam a sociedade dos ideais divinos. Os textos bíblicos exaltam a divindade de um javismo, cuja personificação não está na pessoa do rei, mas este se vê implicado no cumprimento da vontade do Criador6. Há possibilidade de levantar os seguintes princípios na pesquisa: • Perceber a natureza e contexto histórico da lei: Sabemos, e são facilmente comprovados a influência e o intercâmbio cultural entre Israel e os povos vizinhos, sobretudo a Babilônia e o Egito. Diante de tal consideração, julgamos ser útil realçar, ainda que de modo tangencial, a ressonância de certos textos jurídicos presentes nas narrativas bíblicas. Quais seriam as semelhanças entre as leis contidas no Dt quando comparadas com textos legais provenientes do Antigo Oriente? Considerando-se a praticidade da lei, os conceitos utilizados são idênticos nos dois universos literários? O que se pode notar, logo num primeiro momento, é que no Dt a pessoa, o grupo familiar está sempre em evidência. A defesa incondicional da pessoa está sobre os valores materiais. Seria esta uma novidade introduzida no livro pelos sábios judeus ao apresentarem a fala de Deus intermediada por seu representante Moisés?, 6 GONÇALVES, F. J., A Bíblia na História do Povo de Deus, Bíblica (série científica), 13, 2004, pp. 34-35: ˝Nesta concepção de realeza, o rei invocava a autoridade de um deus criador. A título de seu representante, o rei recebia desse deus a missão de manter a ordem do mundo por ele instaurada com a sua vitória contra o Caos. O rei exercia essa missão assegurando o culto do seu deus e fazendo reinar a justiça entre os seus súditos˝. 24 • O século VIII é tido como um período áureo para a política expansionista do rei assírio Teglat-Falasar III (745- 727a.C.): a dominação imposta aos países vizinhos não tardou a atingir as fronteiras de Israel. É imposto o regime político de vassalagem aos reinos conquistados. Como compreender neste contexto, as estratégias e resultados da reforma promovida no reinado de Ezequias ao opor-se contra os assírios? Não estaria neste período a perda do direito da posse da terra e, consequentemente, no agravamento da crise que se abateu sobre os pobres. Em outras palavras, os que antes possuíam a terra, agora tem, como garantia de sobrevivência, parte do dízimo, das festas e das colheitas. Diante de tais considerações, as leis expressas no Deuteronômio foram elaboradas com finalidade de equacionar o fosso social criado no interior da sociedade israelita, mas não de devolver a terra aos seus antigos e legítimos proprietários. • Para alguns exegetas, o conjunto dos textos selecionados, no livro do Dt, são de um período recente. Os destaques dados aos estrangeiros, órfãos e viúvas datam do período exílico, momento em que a comunidade religiosa busca entender as vicissitudes históricas, sobretudo a destruição física do Templo, somada à destruição das tradições religiosas, projetando-se no passado. Como transmitir a história às futuras gerações? Com entender a relação Deus e Comunidade a partir da calamidade exílica? Neste ambiente de releituras, o Dt é uma ocasião de procurar relativa compreensão da estrutura literária no conjunto geral do pósexílio. • Por qual motivo não encontramos o termo (( ָענ ִיpobre) ou ( ֲענִיּ ִיםpobres) tão freqüentes no livro do Deuteronômio (Dt 15,11; 24,12.14.15; 16,3), e de suma importância na pregação profética (Am 2,7; 8,4; Is 32,7; 49,13; 58,7; Ez 25 18,12; 22,19), junto à trilogia estrangeiro, órfão e viúva, no conjunto dos textos escolhidos? Seria a categoria ָענִי diferente do termo י ָתוֺםna época da redação do texto? Pensamos que o Dt, por constituir-se num livro de princípios legais, volta a essas categorias os olhares divinos. Possibilitar segurança, justiça e acesso ao direito é sinônimo de agradar a YHWH. A autoridade máxima é a “ תּוֺ ַרת י ְה ָוהLei de YHWH”. A ela estão submetidas todas as autoridades e instituições. Tem-se a impressão de que coube ao redator final da obra, no período pós-exílico, enaltecer a Lei, como elemento catalisador da comunidade religiosa. Não é em vão que o livro retoma a proposta da felicidade ou da desgraça completa, compreendida no modo como a comunidade religiosa cumpre ou não os preceitos nela estampados (cf. Dt 6,25). O Deuteronômio é o livro escrito essencialmente para ensinar crianças e jovens, reis e servos (Dt 4,9-10; 6,7, 20-25; 11, 19; 31,13). Sua teologia tem como idéia central a fidelidade absoluta a YHWH e a prática da justiça e do direito7. Tal fidelidade teve seu pleno significado na experiência do êxodo e da aliança. Seguindo o projeto de um deus oposto às demais divindades, Israel descobre, na história, o conceito de um deus incapaz de compactuar com a vontade humana. A comunidade se depara com uma divindade que existe por si mesmo, sem nenhum mérito humano (cf. Ex 3,7), e a bondade deste Deus é pensada a partir da experiência do êxodo, onde viram a ação preferencial por Israel. A idéia da aliança8 surge e é transmitida às futuras gerações como força divina capaz de garantir a coesão e identidade da comunidade religiosa ao longo de sua história. No capítulo IV são apresentados doze textos da Mishná. As leis consideram as diferentes realidades, nas quais se inseriam as comunidades. Todas 7 Cf. SÁNCHEZ. E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 35. 8 RENDTORFF, R., A fórmula da aliança, São Paulo, Loyola, 2004, p. 75: ˝As grandes primeiras seções da história de Israel residem no passado: a geração dos pais, a quem foi prometida a terra, lembrada pelas primeiras frases da fala de Moisés no Deuteronômio (1,8); a saída do Egito, que tem, em vários aspectos, uma função constitutiva para a situação atual e auto-imagem de Israel (4,20; 7,8)...o caminho através do deserto, a tentativa frustrada de conquistar a terra a partir do Qadesh, a perambulação por quarenta anos no deserto, o triunfo sobre os reis do Jordão Oriental e a tomada de sua terra (1,19-3,17) até o ponto além do Jordão, na terra de Moab˝ (1,5), onde Moisés começa a expor a Lei. Tudo o que é anterior a esse período é objeto de reflexão retrospectiva˝. 26 as normas são fundamentadas nos princípios provenientes da Torá. Isso revela o desejo que os sábios fariseus tinham em levar uma vida social em conformidade com as tradições transmitidas pelas Escrituras. Afinal, o Senhor não doou a Israel normas temporais, passageiras a serem praticadas por uma determinada realeza. São palavras eternas. Uma leitura da Mishná revela o grau de sensibilidade social. Os pobres, nas comunidades judaítas, nos primeiros séculos d. C., não assistem, de modo passivo, a negligência de seus direitos. Ocorrida a violação do Direito, a convivência social fica ameaçada. Há riscos de desintegração e desequilíbrio da “harmonia” social. As normas jurídicas buscam meios para superar os conflitos. Há uma urgência em recorrer ao suporte da jurisprudência, no desejo de equalizar e projetar relativa sensação de harmonia entre interesses antagônicos. Os sábios tanaítas não leram de modo aleatório as Escrituras. As normas, no estudo da Torá, foram forjadas pelos tanaítas. Hilel é citado no desejo de verificar o grau de comprometimento e seriedade diante das tradições orais e escritas. As regras citadas comprovam tal seriedade. As regras exegéticas não se furtam em comprovar o nível do amor a Deus que envolve todo o coração. A Escritura, a Lei, não é entendida de modo individualista, repleta de conceitos genéricos, sem destinatários. A disponibilidade na realização do projeto divino está no ensinamento e transmissão da Torá, fazendo com que, de geração em geração, seja conhecido o nome do Senhor. No capítulo V, ocorre a interação entre os textos do Dt e a Mishná. Procuramos compreender o grau dessa interação. A comparação expõe três práticas muito comuns nos anos que se seguiram após a destruição do segundo Templo. São elas: 1) O dever de disponibilizar os dízimos; 2) O direito dos pobres pela respiga; 3) A violação do direito dos pobres. Não oferecer comodidade frente às normas provenientes da Torá pode ser uma justa equação levada adiante pela tradição judaica na época Tanaítica. A ortopraxis é justificada pelos textos bíblicos. Neste sentido, cabe, no desenvolvimento da pesquisa, identificar quais realidades sociais, os diferentes casos, que são normatizados na Mishná considerando sempre as perícopes em que ocorre nítida referência à trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva. A análise está centrada em 12 diferentes capítulos da Mishná. Vale realçar que a sequência à trilogia social ( ֵגּר, י ָתוֹםe ) אַ ְל ָמנ ָהcomum no livro do Dt (10,18- 27 19; 14,29; 16,11; 24,17.19.20.21; 26,12.13; 27,19) não é encontrada nas páginas da Mishná. Na pesquisa, o critério de escolha dos textos considerou, especificamente, textos do Deuteronômio que oferecem suporte a uma determinada halakhah. Por esse critério, são relacionados as seguintes perícopes: 14,28-29; 16,9-12; 24,17.18.19.21; 26,13-15 que fundamentam, diante de uma determinada realidade social os desafiu imposto à comunidade, a preocupação com o direito social de grupos desfavorecidos ou que estão disputando a defesa de seus direitos expressos na Torá. Foram selecionados apenas os textos em que, explicitamente, é citada a trilogia social, como critério argumentativo na justificação de uma determinada pratica adotada pela comunidade9. Relevância do tema e contribuição à ciência bíblica O método histórico-crítico, levado adiante nos últimos dois séculos, por diferentes escolas exegéticas, tem possibilitado um conhecimento, cada vez mais real, da gênese de um determinado texto, bem como o seu processo redacional quando somado aos demais livros que compõem a Bíblia. O uso do nome Bíblia faz jus a esta série de leituras e releituras. O avanço da ciência bíblica, somado às áreas da teologia, parece ter recuperado o pleno sentido santo da Escritura e das demais esferas da ciência teológica10. Existe um considerável número de trabalhos no mundo da exegese moderna que acena, cada vez mais, para um constante diálogo com narrativas históricas ou jurídicas provenientes do universo mesopotâmico e egípcio. A comunidade religiosa israelita foi de, um modo direto, influenciada por pensadores, culturas e regimes que a circundavam. Tal influência foi determinante na redação dos textos bíblicos. O que pretendemos verificar é que, a partir de 9 “A Mishná cita, relativamente, poucos versículos bíblicos, e estes em partes foram acrescentados posteriormente. Inclusive uma prova do tipo bíblico (“como está escrito”) é rara. Em geral, a Mishná dá a impressão de um cuidado consciente em manter-se independente da Bíblia. Porém uma consideração mais atenta de alguns tratados deixa ver uma distinta relação com a Bíblia”. STRACK, H. L., e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica,Valencia, Instituición S. Jerónimo para la Investigación Bíbica, 1998, p. 192. 10 O que outrora causou estranheza e mal-estar no seio da Igreja Católica é, hoje, visto com bons olhos. Recupera-se o sentido original do sensus bíblico no interior da comunidade de fé. Não é em vão que o Concílio Vaticano II foi, não um ponto de chegada, mas uma legítima base de lançamento para a ciência bíblica. Presenciamos nos últimos anos não uma revolução, mas uma volta às origens no estudo das Sagradas Escrituras. Cf. DV. n. 6.8. 28 normas jurídicas de relatos históricos e de convivência social, há séculos em voga no Oriente antigo, e expostas entre grandes impérios e inúmeras culturas que se sobrepuseram a Israel, é inconcebível não perceber a herança herdada destas experiências, mesmo aquelas de aparência contraditória como o imposto exílio babilônico, nos relatos bíblicos. De posse de um conjunto de textos considerados como ˝vontade divina, palavra inspirada pelo Criador˝, buscamos, na fase conclusiva, perceber como os sábios judeus, do final do primeiro século, leram tais normas jurídicas em defesa dos pobres. As leis em defesa dos fracos, dos menos favorecidos, das vítimas do processo escravagista foram colocadas em prática ou foram manuseadas como mero discurso ideológico? As escolhas feitas pelas escolas de Hillel e Shammai são exemplares para compreender o grau da interpretação e praticidade dada à Escritura. Julgamos tal período essencial para compreender, não somente o judaísmo na época tanaítica, como também o cristianismo do primeiro século. Ciente do risco de ampliar demasiadamente o campo de pesquisa, não me debruçarei sobre o cristianismo do século I e II, porém, delinear o movimento dos sábios judeus deste período será uma relevante ajuda à ciência teológica, sobretudo, considerando que este é um dos temas inquietantes e desafiadores na exegese bíblica contemporânea. Afinal, a comunidade judaico-cristã, ao redor da pessoa de Jesus Cristo e a sua primeira geração de discípulos, inquieta, interessa e incomoda gerações de pesquisadores, que demonstram como a literatura bíblica foi construída paulatinamente ao longo de sua história. Para os leitores creio necessária e inovadora abordagem inter-cultural e, ao mesmo tempo histórica, a fim de ajudá-los na compreensão, quer da história da comunidade, quer na formação do que hoje chamamos tranquilamente de Cânon. Coube a uma determinada comunidade religiosa encontrar soluções frente às vicissitudes históricas, nas quais o caminhar, nas ordens do Criador, foi sempre uma máxima, garantindo coesão e identidade à comunidade religiosa de Israel. Consideram-se, de modo fundamental, os inúmeros esforços realizados, desde a publicação do documento Nostra Aetate11, no diálogo entre a teologia e exegese cristã e a tradição judaica. 11 Após 40 anos da declaração Nostra Aetate há muito que se fazer para que desejos, muitos deles, suspirados nos bastidores ou penumbras da sociedade, nãos destruam o caminho percorrido. 29 A tese se desenvolve segundo a seguinte estrutura, exposta em duas partes, que se desdobram em mais subdivisões: Introdução 1- O estado atual da pesquisa, considerando a trilogia social 2- Apresentação da perícopes do Dt relacionadas com a trilogia 3- Percepção da trilogia nos textos da Mishná 4- Relação entre os textos do Dt e sua ressonância na Mishná 5- Conclusão 30 2 Sinalizando os rumos da pesquisa A 1 análise da “Sozialtrias” – tríade social1 – formada pelo “ גֵּרestrangeiro”, “ י ָתוֹםórfão” e ” אַ ְל ָמנָהviúva”, procura realçar, de sobremaneira, os aspectos econômico-sociais, evidenciando o grau de importância exercido por esses grupos humanos, profundamente atrelados ao modo de produção agro-pastoril, predominante nas sociedades antigas. Considerase grupos de “ ִמשְׁ ָפּ ִטיםleis” ou “normas” bíblicas2 como sendo parte de um arcabouço jurídico que procura soluções e garantias aos grupos sociais em processo de pauperismo ou morte iminente. As pesquisas inserem essa tríade num contexto eminentemente social3. Grupos sociais desempenhando, se não um papel relevante na esfera do controle ou determinações do poder, uma reivindicação de seus direitos essenciais, como trabalho, alimentação, justiça, terra e liberdade. São compreendidos como um grupo sociológico com papéis bem definidos nas diferentes épocas e sociedades bíblicas. No desejo de compreender as abordagens de nossos autores, num primeiro momento, evidenciamos a importância dos grupos sociais para, em seguida, identificar tais grupos e suas características. Em meio ao “redemoinho da derrocada social”4, responsável pelas contradições sociais existentes em Israel e ecoando em Judá, presencia-se a 1 O termo é cunhado por Braulik em seu comentário ao livro do Deuteronômio. Cf. BRAULIK, G., Deuteronomium II, 16,18-34,12, Echter, Verlag, 1980, p. 184. 2 Cf. Dt 16,19; Ex 23,6.9. 3 Nossos autores abordam tal tríade num conjunto de outras preocupações com o andamento da sociedade ou grupo social. LEVINSON, B. M., The Reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the Deuteronomistic History’s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, p. 515. GLASS, Z. G., Land, Slave Labor and Law: Engaging Ancient Israel’s economy. In: JSOT, 91, 2000, p. 27-39. CARRIÈRE, J. M., Le cadre ou se forme la décision politique. Lecture de Deutéronome 16,18-18,22. In: NRT, n. 121, 1999, p. 529-542. 4 Um dos termos utilizados por Crüsemann na descrição do processo de pauperização iniciado o ano 722, e que se agrava no decorrer dos dois séculos seguintes. Cf. CRÜSEMANN. F., A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 323. 31 atuação de tais grupos ou categorias sociais agindo numa objetividade voltada para a superação da violação da " ְצדָ ָקהjustiça". Uma análise de certas normas jurídicas é capaz de perceber e expôr o alto grau de violência ou violação dos direitos impostos por grupos ligados ao controle político-econômico da sociedade, contra setores reconhecidos em nossa pesquisa como marginalizados, como demonstra Jean-Marie Carrière5. As leis acenam para a superação da violência. O “igualitarismo” jamais deixou de ser almejado, quando consideramos as leis em defesa dos marginalizados no conjunto do livro do Deuteronômio. Pelo contrário, deixam transparecer o forte sistema de violência praticado contra esses setores sociais ligados ao trabalho manual, seja esse na cidade ou no campo, dando a entender que os interesses ideológicos, grafados em Leis, caminham na direção da suplantação do regime da violência. אַ ְל ָמנָה, י ָתוֹם,“ ֵגּרestrangeiro, órfão e viúva” são compreendidos como um grupo merecedor das atenções nos afazeres da realeza6. É função do rei governar tendo como princípio norteador a prática da justiça a esses grupos, bem como facilitar e dar relativa garantia de que seus direitos serão praticados. Com base na ideologia deuteronomista, Levinson acena sete diferentes aspectos na função do rei em gerenciar a justiça. 1) No mundo antigo, a figura do rei é compreendida como o filho adotivo, por meio do qual se realiza a perpetuação de uma nova geração. Davi, visto como ( ְבּכוֺר ֶא ְתּנֵהוּmeu primogênito), nos Salmos da Realeza (Sl 89,28; 2,7), é conclamado a administrar a prática da justiça. 2) O estreitamento entre a divindade e a realeza era comum no Antigo Oriente. No Código de Hammurabi, o rei apresentado possui uma filiação divina. É seu supremo herdeiro. “Eu sou Hammurabi, o rei da justiça, a quem Šamaš deu a verdade” (XLVII, 90). Sob o título de herdeiro divino os reis de Israel também compartilharão desta nobre missão de administrar a justiça e o direito (Sl 72, 2). Deus promete dar a Salomão o que procura, no desejo de que este faça reluzir a prática da justiça e direito ao longo de seus dias (1Rs 3,11-13. 5 Estamos diante de tratados extremamente políticos. Tais leis acenando, ora para a defesa do pobre, órfão e viúva, ora denunciando algum grau de violação dos direitos. Pode-se perceber que algo maior está em jogo. Alguém teme ou não quer perder privilégios. Tais leis, quando praticadas, podem redefinir os rumos da sociedade. Se não fosse assim, tais apelos – gritos – poderiam, muito bem, se perder ou ser totalmente ignorados ou jamais registrados nos textos da Escritura. Cf. CARRIÈRE, J. M., Le cadre où se forme la décision politique, op. cit., pp. 529-542. 6 BRAULIK, G. Deuteronomium II, 16,18 – 34,12, 1980, p. 184. 32 28). 3) A positiva obrigação de garantir aos marginalizados o direito e a justiça. Assegurar aos pobres a proteção necessária. 4) A remissão das dívidas foi usada como meio de reconhecer ou não a sabedoria divina presente nos atos do monarca. O binômio ֺ“ ִמשְׁ ָפּט וּ ְצדָ קָ ה ְל ָכל ַעמּוdireito e justiça a todo o seu povo” (2Sm 8,15; Jr 22,3) reproduz um termo técnico utilizado na qualificação de um rei. 5) Instância responsável por fazer “dilatar em todo o reino o direito”. 6) A relação entre rei e templo ecoa nos mais diferentes reinados. Construir um templo, com a finalidade de abrigar as leis divinas, será uma das medidas do recém empossado rei Davi (2Sm 7). Seja em Israel, ou em Judá, rei e templo se identificam (2Rs 18, 1-8; 2Rs 22-23). 7) O rei está diretamente implicado com seu poderio militar, a exemplo do sucedido ao rei Hammurabi. (II, 32-36). A tarefa de passar em revista e animar seu exército para o combate, foi um dos atributos da realeza (1Sm 10,27; 2Sm 11, 1-2)7. No livro do Deuteronômio, os textos onde encontramos uma referência explícita ao conjunto social formado pelo estrangeiro, órfão e viúva (10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26) enaltecem, de modo incondicional, a pessoa, conforme G. Braulik descreve em seu comentário ao Deuteronômio8. A primazia da pessoa sobre qualquer tipo de bem material visa impedir certo processo de exclusão de modo mais abrupto. Em outras palavras, o não pagamento de um empréstimo não pode ser ocasião de violação à casa ou ao patrimônio do devedor (Dt 24,10). O salário do pobre trabalhador não pode ser retido (Dt 24, 14). Fica intransferível a dívida dos pais para os filhos (Dt 24,16). Estamos diante de um claro exemplo e funcionalidade do termo técnico ְצדָ ָקה, “justiça”9. Estes grupos são apresentados nos textos do Deuteronômio de modo bem definido. Aparecem sempre ligados ou relacionados às suas realidades materiais. Surgem como aqueles que não tem, ou se viram diante da experiência da 7 Cf. LEVINSON, B. M., The reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the Duteronomistic History`s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, 2001, pp. 511-534. 8 Cf. BRAULIK, G. Deuteronomium II, 16,18-34,12, 1980, p. 184. 9 A tradução empreendida ao termo ְצדָ קָ ה, “justiça, retidão, andar retamente” considera as definições oferecidas por alguns estudiosos. “A profecia na época babilônica, frente ao desaparecimento da ְצדָ קָ הem Israel, no horizonte histórico resulta num pecado maior do que os praticados anteriormente no reino do norte de Israel”. Cf. KOCH, K., ְצדָ קָ ה. In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.) Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, v. II, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1985, p. 667; ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, São Paulo, Paulus, 1997, p. 556; BROWN, F., Hebrew and English Lexicon, Massachusetts, USA, 1996, p. 842. 33 expropriação, como resultado de relações injustas, impostas por um regime de violação de direitos. A pobreza ou a condição de pobre não é algo natural, mas entendida como resultado da situação de violência e da injustiça10. O grupo dos ֶא ְביוֹנִים, “pobres”11 é encontrado em oposição aos grupos formados por pessoas ricas, perversas ou opressoras. Trata-se de um termo utilizado com a finalidade de evidenciar a prática de uma injustiça, de um delito, cometido por outros setores ou grupos da sociedade que gozam de um relativo prestígio ou almejam uma ascensão ou manutenção de um privilégio social12. Uma segunda característica exercida pelo grupo dos pobres refere-se ao dinamismo atuante no interior da história. Este aspecto foi bem elucidado por Jean-Marie Carrière ao comentar as leis expressas no livro do Deuteronômio. Para ele, o poder está em jogo nas entremeadas leis expostas no livro. Estamos diante de tratados, de temas essencialmente políticos. O poder é o tema central e crucial posto à prova: “Deuteronômio 12-26 é um código de leis onde o estatuto é geralmente reconhecido como sendo aquele de uma constituição política no senso moderno do termo. Sua característica específica provém sobretudo da parte central do código, que trata das instituições. O código se abre sobre uma lei dita de centralização, oferecendo movimento à sua primeira parte e termina por um encontro aparentemente discordante das leis que encobrem as principais prescrições do código da Aliança segundo um princípio antropológico e político”13. A esfera primordial da inserção dos pobres na história pode ser encontrada na experiência do Êxodo. A teologia do Antigo Testamento está firmada nesta 10 O projeto de que não deve haver pobres em Israel é estampado logo nos primeiros capítulos do livro do Deuteronômio. Iahweh entrega a Israel uma “terra boa” (Dt 8,7) e dotada de inúmeros recursos (Dt 8, 7-10), para que não venham a existir pobres no meio de Israel. אֶ ֶפס ִכּי לֺא י ִ ְהי ֶה ְבָּך " אֶ ְביוֺן ִכּי ָב ֵרְך י ְ ָב ֶר ְכָך י ְה ָוה ָבּאָ ֶרץEis que não haverá pobre em teu meio, pois YHWH te abençoará na terra” (Dt 15, 4). 11 Conforme tradução oferecida por Schökel, usaremos a terminologia pobre como tradução do termo hebraico “ אביוןpobre” entre tantos outros termos sugeridos. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 23. Vale ressaltar que sobre esse verbete אביוןocorre inúmeras impresições. Sobre isso oportunas as observações elencadas por Botterweck. O grupos dos אֶ ְביוֺנִיםsurgem em paralelo ao grupo formado pela trilogia formada por י ָתוֺם, אַ ְלמָ נָה, ֵגּרsobretudo, junto à literatura sapiencial. Cf. Botterweck. In: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Orgs.) Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, V. I, Madrid, Cristiandad, 1978, p. 43. 12 Uma das premissas elencadas por Glass é a de que parte do livro do Dt “teria emergido no norte de Israel durante o oitavo século a.C., onde os privilégios econômicos serviram como pano de fundo para o desenvolvimento de parte do livro”. Estamos diante de uma agressiva transformação das relações de trabalhos no campo, responsável pelo aumento da riqueza nas mãos de pequenos grupos familiares, em detrimento da pauperização e desagregação familiar. Cf. GLASS, Z. G., Land, Slave Labor and Law: Engaging Ancient Israel’s Economy. In: JSOT, n. 91, 2000, p. 27-39. Argumento defendido por outros inúmeros estudiosos, conforme nota 17. 13 Cf. CARRIÈRE, J. M., Le Cadre ou se Forme la Décision Politique, op. cit., p. 532. 34 experiência, independente de qual seja a corrente ou hermenêutica exegética que a analise14. 2.1. O estrangeiro, o órfão e a viúva na categoria dos pobres Nas análises das “leis”, são inevitáveis certas comparações. Por exemplo: uma vez que os pobres estão sempre em oposição aos grupos ligados aos proprietários de terras e de pastagens ou a aristocracia ligada aos templos religiosos, pode-se levantar a questão procurando responder quais são as características relevantes desses grupos sociais merecedores de certa jurisprudência constituídos pelo “ ֵגּרestrangeiro”, “ י ָתוֹםorfão” e “ אַ ְלמָ נָהviúva”. Fala-se desses grupos sociais num sentido sempre restrito, definido e inserido numa determinada situação de demanda, de pessoas que se vêem envolvidas numa esfera de violação de seus direitos e, ao mesmo tempo, têm consciência de que, sem a proteção legal, se encontram à mercê da própria sorte, isto é, correm o risco de morte. Ao referir-se aos grupos socialmente empobrecidos - constituídos por camponeses, trabalhadores em obras públicas e famílias de estrangeiros - nota-se que tais grupos experimentam um rápido processo de empobrecimento15. Em outras palavras, vê-se sempre determinados grupos de homens e mulheres que recorrem à prática da justiça na שַׁ עַר, “porta”, como único recurso para garantir sua subsistência ou seus direitos. Somente as pessoas livres tinham o direito e garantia à jurisprudência na שׁעַר ַ “porta”. A ênfase dada ao termo ‘à 14 Ex 6, 6-7. Esta experiência é posteriormente referendada no livro do Dt como um verdadeiro paradigma histórico e teológico, soando como uma espécie de refrão no texto (15,15; 16,12; 24,18.22). 15 São vários os sinônimos utilizados na tradução do termo técnico “ אֶ ְבי ֺוןpobre”. Por detrás da palavra ָענִיcomumente empregada para definir uma pessoa portadora de deficiência física ou algum tipo de distúrbio psíquico (Dt 15,11; 24,12; 24,15), identificamos uma pessoa despossuída de qualquer tipo de bem material e, por isso, se vê obrigada a trabalhar para os outros. O ָענִיvive do seu dia após dia, e que socialmente é indefeso e sujeito à opressão. Está, na maioria das vezes, em sintonia com o conceito de אֶ ְבי ֺון. Não é por menos que a expressão ָענִי ְואֶ ְבי ֺוןsurge por 15 vezes no AT. Cf. Martin-Achard, R. In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico manual del Antigo Testamento, V. II, p. 439. Um outro termo, comumente usado para definir algum tipo de pessoa em desvantagem social é o “ דַּ לdal”. Trata-se de alguém que passa por necessidade material ou carente de um certo poder social (Pr 10,15. 21,13. 22,9; Am 2,7; Zc 3,12), em contraste com o rico, o grande, o opressor. Na categoria social dos אֶ ְביוֺנִים, “pobres”, consideram-se outros grupos sociais. “Ao dar primazia ao termo “ אֶ ְבי ֺוןpobre”, o próprio visionário opta pelo conceito que também abarca os demais: ‘fracos/magros’, ‘oprimidos’, ‘justos’, ‘escravos’, ‘lavradores’”. Cf. SCHWANTES, M., A Terra não pode Suportar suas Palavras, São Paulo, Paulinas, 2004, p. 89-95. 35 Porta’ destaca a importância do lugar nas transações econômicas, nas publicações dos oráculos proféticos e nas deliberações das sentenças sociais, definidas pelos anciãos da cidade. Caberá ao rei administrar com proeza a justiça (1Sm 8,5; 2Sm 8,15; 2Sm 15,1-6). Os pobres, não raramente, buscam a proteção e suporte legal de suas reivindicações recorrendo ao monarca16. Os grupos menos favorecidos não tinham nenhuma restrição em apelar ao monarca para ver garantidos seus direitos e assim meios básicos para sua existência. 2.1.1. O “ ֵגּרestrangeiro” A defesa do estrangeiro deve ter sua origem no país do Norte. O século VIII pode servir de fonte para o fornecimento de inúmeros elementos históricos na compreensão do surgimento dos grupos sociais desfavorecidos e, mais tarde, merecedores da atenção das normas humanitárias17. Leis expressas no CA, em defesa do ֵגּר, “estrangeiro”18, são retomadas pelos escribas do Deuteronômio, 16 Cf. LEVINSON, B. M. The Reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the Deuteronomistic History`s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, p. 519. 17 Após a queda do Reino do Norte houve um autêntico processo de migração rumo às cidades do sul, sobretudo à capital Jerusalém, após a queda ocorrida em 722. Este inchaço urbano, resultado das políticas econômicas e sociais no século VIII, iniciadas no governo de Jeroboão II (787-746) e, posteriormente, implementadas por seus filhos, encontra pleno consenso entre inúmeras análises. CRÜSEMANN, F., A Tora. Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 360: “A política assíria deve ter contribuído para a dissolução das formas e dos costumes sociais tradicionais. O que contribuiu mais, talvez, tenham sido as multidões de refugiados, depois da queda do Reino do Norte”; NAKANOSE, S., Para entender o livro do Deuteronômio. Uma lei a favor da vida?. In: RIBLA, 23, p. 180: “Cresce a classe urbana e rica às custas do empobrecimento de grande parte da população, sobretudo a do campo, maior vítima da injustiça e exploração”; BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, p. 279: “Sabemos que a pregação de Miquéias teve um efeito direto nas reformas de Ezequias (Jr 26,1619) e há muitos pontos de contatos entre as denúncias e o programa social do livro da lei”; KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 80: “Uma primeira tentativa de centralizar o culto na capital é atestada no tempo do rei Ezequias (725-696 a.C.). A política desse rei visava proteger e defender a população rural diante de uma esperada guerra do rei assírio Senaquerib (704-681 a.C.). O rei Ezequias forçou a população a um grande êxodo para cidades fortificadas por muro”. Sabe-se que após a queda da Samaria os limites da cidade de Jerusalém cresceram de modo desproporcional. A era de isolamento acabou. A cidade cresceu de 5 para 60 hectares. De uma população de 1000 para 15 mil habitantes. Os dados são resultados da resenha da obra de FINKELSTEIN, I. e SILBERMAN, N. A., The Bible Unearthed: Arqueology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York, The Free Press, 2001, disponíveis em <http://www.airtonjo.com/resenhas5a.htm>. Acesso em 10 de jun. 2009. 18 Não são poucas as grafias atribuídas à condição de estrangeiro: מְ גוּ ִרים, גֵּרוּת, ֵגּר. O termo recebe várias interpretações nas diferentes culturas. Por meio da raízes grm e klbm são encontrados conceitos idênticos que acentuam a condição de um homem ou mulher que vive tendo amparo, ajuda daquele que lhe dá estadia, guarita, segurança. No mundo fenício trata-se de alguém que se encontra na condição de refugiado, hóspede de uma divindade. O termo é bem documentado em aramaico, identificado na raiz gwr sinalizando o conceito angustiado, temente. No AT, 36 onde encontra uma forte argumentação nas tentativas de justificar o trato social oferecido a esse grupo social. No código os cuidados são justificados pela mesma condição em que passou Israel em terras egípcias: ~yIr"cm . i #r<a,B. ~t,yyIh/ ~yrIgE-yKi( WNc,x'l.ti al{w> hn<At-al{ rgEw> “Não afligiras o estrangeiro nem o oprimirás, pois vós mesmo fostes estrangeiros no país do Egito” (Ex 22,20). Tal adendo não é visto como a única motivação para justificar tais cuidados no CD, onde encontram-se diferentes matizes. Não se trata apenas de amparar o estrangeiro somente por ter vivenciado a mesma condição de estrangeiro no Egito, mas outras diferentes realidades são apresentadas na defesa do estrangeiro próprias do livro Deuteronômio. Este grupo social, embora reconhecido como sendo parte dos grupos desfavorecidos, vivendo no interior da comunidade israelita e merecedor de algum tipo de proteção, sofria um processo de opressão, tirania ou marginalização, segundo acusam as leis deuteronômicas. O estrangeiro faz parte dos grupos socialmente fracos e tradicionalmente sem bens – terra, animais, herança – e, embora sendo homem livre, está à mercê da colaboração da comunidade de Israel19. Trata-se de alguém desprovido de qualquer sistema jurídico que possa defendê-lo, facilitando, assim, a exploração de seu trabalho e contribuindo para uma situação de extrema pobreza. Para de Vaux, formavam o grupo dos “ ֵגּ ִריםestrangeiros”, pessoas oriundas de outras comunidades ou países e que, após um certo período de tempo, passaram a viver e a desfrutar da proteção a eles oferecida20. De Vaux insiste no ponto de partida está em perceber a fase nômade, isto é, o período de ֵגּר vivenciado pelo patriarca Abraão em Hebron: ~k,_M'[i ykinOa' bv'Atw>-rGE “estrangeiro e residente no meio de vós, eu sou” (Gn 23,4). Moisés, nos dias vividos em Madiã: ַותֵּ ֶלד ֵבּן ַויּ ִקְ ָרא ֶאת ־שְׁ מוֹ ֵגּ ְרשׁ ֹם ִכּי אָמַ ר ֵגּר ָהי ִיתִ י ְבּאֶ ֶרץ נ ָ ְכ ִרי ָה, “Ela deu à luz um filho, ele enfatizando o conceito corrente no Dt, como alguém sem pátria, não pertencente à comunidade. Fala-se que na época da reforma empreendida por Josias (622 a.C) foi um grupo social que recebeu destaque nas normas sociais. Um grupo que está em contrastes com aqueles que possuem direitos adquiridos. Cf. Kellerman, D., In: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento,V. I., pp. 1000-1012. Muitas vezes é visto como alguém ou grupo social sem patria e em circunstância social que põem em risco sua integridade física. Cf. Martin-Achard, R., in: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, V. I, p. 585. 19 O termo gēr refere-se ao estrangeiro, que entre as tribos árabes buscava refúgio e proteção em uma tribo distinta da sua. O estrangeiro instalado em Israel goza de razoável estabilidade, embora sem direitos garantidos. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, p. 117. 20 Cf. Ibidem, pp. 117-119. 37 chamou de Gersam, pois disse: `Sou um imigrante em terra estrangeira`” (Ex 2,22). Os israelitas viveram longos anos no país do Egito como ֵגּ ִרים “estrangeiros” (Ex 22,20; 23,9; Deuteronômio 10,19; 23,8). Após a posse das terras de Canaã, os antigos habitantes passaram a ser vistos como estrangeiros (Jz 19,16). Por vezes, o termo ֵגּרequivale ao תּוֹשָׁ ב, “hóspede”, conforme a junção encontrada em Lv 25,23: “A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes”. Na interpretação de Bennett, o conceito de estrangeiro, em parte, sintoniza-se com a argumentação apresentada por de Vaux. Porém, a base para a compreensão não pode apenas considerar o fenômeno migratório ocorrido no interior de uma sociedade para outra. Nem somente há de se procurar uma definição do termo com base no grau de parentesco ou algum resquício de consanguinidade. A consanguinidade e o local de nascimento podem ser duas outras características indicadas para definir o “ ֵגּרestrangeiro”, no CD, segundo argumenta Bennett. Embora não seja fácil encontrar uma única marca capaz de definir o perfil do estrangeiro nas leis, Bennett sublinha outras experiências vivenciadas por homens ou mulheres que passam a residir no interior das comunidades israelitas. Somado à experiência da imigração, como destaca de Vaux, está a ausência por completo de qualquer laço de parentesco ou vínculo familiar, imposta ao recém-chegado em Israel. Ele não possui bens capazes que lhe garantam a sua própria subsistência. Um outro fator tão importante como o de laços de parentescos, é a diferença cultural-religiosa sentida pelo homem ou mulher que venha residir nos fronteiras de Israel. Queira ou não, o homem ou mulher que viesse a residir no interior das comunidades de Israel, se deparou com práticas culturais e religiosas completamente diversas das vivenciadas em seu país de origem. Defender a idéia de que o termo estrangeiro utilizado no livro do Deuteronômio refere-se a um sujeito, seja ele homem ou mulher, que tenha saído do meio de uma determinada sociedade para se estabelecer em terra de Israel, pode, sim, ajudar em partes na compreensão do estrangeiro no CD21. É possível compreender o estrangeiro como alguém que migrou de um território para alguma área israelita, mas que levou consigo hábitos culturais e 21 Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 45. 38 práticas religiosas que o distinguem quando em contato com grupos atrelados à tradição judaica. Bennett recorre a dois textos do Deuteronômio. O primeiro afirma22: “Não podereis comer de nenhum animal que tenha morrido por si. Tu o darás ao forasteiro que vive em tua cidade para que ele o coma, ou vendê-lo-ás a um estrangeiro. Porque tu és um povo consagrado a Iahweh teu Deus. Não cozerás um cabrito no leite de sua mãe” (Dt 14,21). Nesta citação realça-se a presença de três significativos termos: ֵגּר “estrangeiro”, נ ֵ ָכר, “forasteiro”,23 e o conceito diferenciador ^yh,l{a/ hw"hyl; hT'a; vAdq' ~[; yKi “Porque tu és um povo consagrado para Iahweh teu Deus”. Nota-se que, com base na égide de ser um “povo consagrado”, um “povo santo”, os israelitas encontram uma justificativa diante de um gesto de comer carne de animais mortos, prática usual levada adiante pelos estrangeiros e forasteiros. O texto é elucidativo, justamente por facilitar e, até certo ponto realçar a idéia de que o etnocentrismo é um fenômeno diferenciador entre os subgrupos sociais no CD, e pode ser utilizado na definição de quem é estrangeiro, seja no interior do território israelita ou fora dele. Um segundo texto realça, não somente o aspecto étnico, bem como um relativo grau de conivência dos “estrangeiros” na vida religiosa israelita: “Não abomines o edomita, pois ele é teu irmão. Não abomines o egípcio, porque foste um estrangeiro em sua terra” (Dt 23,8). O versículo contrapõe duas realidades distintas vivenciadas pela comunidade israelita: sua condição de estrangeiro no Egito e o tratamento dispensado ao estrangeiro, quando de posse da terra. Na primeira ressalva, notamos que, durante os anos vividos na qualidade de “ גֵּרestrangeiro”, Israel preservou sua identidade em terras egípcias, não sendo obrigado a submeter-se ao processo de assimilação, isto é, à perda de sua identidade. O mesmo tratamento, agora, é dispensado ao ֵגּר, “estrangeiro” que passa a viver nos limites da comunidade israelita. Com base nestes dois textos, pode-se evidenciar que a diferença étnica foi também um aspecto preponderante na definição, não somente dos conceito de ֵגּר, “estrangeiro”, como na aplicação das normas legais existentes nos textos do CD. 22 Cf. Ibidem, p.38-48. As palavras referentes ao estrangeiro, em muitos dicionários, são apresentadas como sinônimos. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 436. 23 39 O processo de assimilação ou não foi preponderante na migração ocorrida nas sociedades do Antigo Oriente24. As diferenças culturais e religiosas somaram-se ao fator da imigração, na definição do estrangeiro, nas comunidades bíblicas, quer antes do final da monarquia - antes do exílio de 587 - e, de modo mais plausível, na época pós-exílica, como testemunham as narrações proféticas e históricas. Há de se destacar as reformas religiosas empreendidas por Esdras e Neemias que não só redesenharam novos paradigmas sociais como estabeleceram o critério literário da genealogia na tentativa de justificar, a quém de direito, sua pertença à comunidade de Israel. 2.1.2. A pessoa do " י ָתוֹםórfão”. O termo “ י ָתוֹםórfãoʼʼ,ocorre 41 vezes no AT. Segundo Bennett, ele está diluído, ao longo da BHS, e não facilita uma exata compreensão e definição do conceito de orfandade, no interior das comunidades israelitas. Tem-se a impressão de que o termo foi incluído no rol dos “ ֲענ ִי ִיםpobres”, no processo de elaboração da literatura deuteronomista25. No livro do Deuteronômio, o termo é apresentado 12 vezes, como sendo um subgrupo social a quem se deve amparar; um grupo, entre tantos outros, a quem se deve fazer vigorar seus direitos essenciais: ~Aty" jP;vm . i hf,[o “faz direito ao órfão” (10,18; 24,17; 27,19). É citado como um grupo merecedor da partilha do . i “Cada três anos separarás a dizimo trienal: rf;[.m;-lK'-ta, ayciAT ~ynIv' vl{v' hceqm décima parte da colheita” (14,28; 26,12.13). Gozar da convivência social, nos momentos das grandes festas, era um direito garantido aos órfãos: ^yh,l{a/ hw"hy> ynEp.li T'x.m;f'w> “e te alegrarás diante do YHWH teu Deus” (16,11.14)26. Citado entre os demais subgrupos, a quem é garantido o direito de respigar os frutos – trigo, uva, azeitona – durante a ocasião das colheitas: ^d<f'b. ^r>yciq. rcoq.ti yKi “Quando 24 Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 48. 25 Cf. Ibidem, p. 53. 26 Sobre a transliteração do nome divino, expresso no uso do tetragrama, evitar-se-a sua pronunciação. O tetragrama será mantido somente quando se trata de uma citação presente na própria escritura. Opta-se pelos termos: Senhor, Adonai, Ele, o Todo Poderoso, Deus. Essa sensibilidade se faz necessária diante das conclusões do Sínodo sobre a Palavra. Conforme publicação da Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. “Para não dizer “Yavhe” : o sínodo adota esta disposição. Cf. <http://www.zenit.org/article-19440?l>. Acesso em 21 de fev. de 2009. 40 estiveres fazendo a colheita no teu campo” (24,19.20.21). Nota-se a preocupação humanitária com esses grupos sociais, mas, com base nos textos do livro do Deuteronômio, não encontramos elementos capazes de estabelecer um perfil de quem seria, de fato, considerado órfão. O grupo social órfão é sempre citado como alguém merecedor de atenção e que não deve ver seu direito violado, mas não se vê nenhuma característica capaz de desenhar situações do que venha ser um órfão. Por outro lado, os textos sapienciais oferecem esses elementos, possibilitando uma definição, compreensão e manuseio do termo. Em Lm 5,3 lemos: “Somos órfãos ()י ְתוֹמִ ים, já não temos pai ( ;)אָבnossos mães ( ) ִאמּ ֹתֵ ינוּsão como viúva (” ) ְכּאַ ְל ָמנוֹת. O termo “ י ְתוֹמִ יםórfãos”, surge bem definido no texto. São apresentados como aqueles – homens ou mulheres – que não têm mais a proteção ou segurança do אָב, “pai”, em paralelo com a condição de “ אַ ְל ָמנוֹתviúvas”. O uso da partícula comparativa “ ְכּcomo, semelhante”, nos dá uma clara definição do termo. O órfão é visto como um jovem que não conta mais com a presença e proteção paterna. “Pelo estudo da palavra yatom como aparece em quarenta e dois textos do Antigo Testamento, como por exemplo em: Ex 22,21; Dt 24, 19; Is 10,2; Jr 5,28; Zc 7,10; Lm 5,3; Jó 24,2.3; 29,12; Sl, 82,3, pode-se deduzir que órfão/órfã era uma pessoa solitária, sem pai ou mãe, portanto, sem protetor, desamparado, sem segurança. O yatom, bem como a viúva, é o lado frágil e vulnerável da sociedade”27. Um segundo texto da literatura sapiencial, ao realçar a pessoa do órfão, pode ser encontrado em Jó 24,928. Nele encontramos a seguinte definição: “ O órfão, “ ”י ָתוֹםé arrancado do seio materno e a criança pobre, “” ָענִי, é penhorada”. Na opinião de Grenzer e Ternay, o texto realça o grau máximo de violência imposta aos grupos mais fracos no interior da sociedade israelita29. Trata-se de uma condição social insuportável empreendida por grupos dominantes contra o órfão, isto é, quanto à criança separada, à força, de sua mãe, roubada para servir de escrava ou para ser vendida a terceiros. A mesma definição é compreendida por Ternay que, ao comentar Jó 24,9, realça a “dura condição da classe dos pobres”. Neste capítulo, vemos um 27 Cf. SBRANA, L. Y., “Ensaio sobre a palavra “Órfão”. In: RdCT, 22, Jan/Mar, 1998, pp.77-92. Significativa a tradução e comentário ao versículo feita por Grenzer: “Roubam, do peito materno, o órfão, e penhoram a criancinha do oprimido”. “Deve-se notar que os dois delitos mencionados no v. 9 levam ao auge da descrição da violência. Trata-se, agora, do roubo e da penhora de seres humanos. Nos dois casos, o objetivo é, fundamentalmente, a exploração da força do trabalho e de pessoas dependentes”. Cf. GRENZER, M., Análise Poética da sociedade. Um estudo de Jó 24, São Paulo, Paulinas, 2005, p. 34-48. 29 Cf. Ibidem, p. 47. 28 41 verdadeiro “catálogo de violência” imposto aos grupos menos favorecidos. Uma clara violação aos códigos legais de Israel30. Podemos considerar o órfão como aquele sobre o qual pesa uma espécie de roteiro, um sistema de violência arbitrária31. A perspectiva da vigência de um sistema opressor pode ser comprovada em outra passagem de Jó: 29,12: “Porque eu livrava o pobre, “” ָענ ִי, que pedia socorro, E o órfão, “”י ָתוֹם, que não tinha auxílio”. Uma vez associado às demais pessoas protegidas pela jurisprudência, como o estrangeiro, o levita e a viúva, o órfão é apresentado envolto numa realidade de total abandono: ְוֹלא ע ֹז ֵר לוֹ, “e não o socorre”. A força poética imposta na narrativa realça o aparato da violência. Não são em vão os inúmeros apelos encontrados na “Tora do Deuteronômio”32, em favor desses grupos. Em outras palavras, as descrições da violação contra o órfão, bem feitas nos textos sapienciais, recebem total destaque nas leis deuteronômicas, onde ocorre um constante apelo em favor do gerenciamento da justiça, aos grupos socialmente necessitados. Duas outras distintas situações são encontradas no livro dos Salmos. O Sl 68,5 realça a falta da presença paterna na compreensão na definição de orfandade: “Pai dos órfãos ( )י ְתוֹ ִמיםe justiceiro das viúvas ()אַ ְל ָמנוֹת. Assim é Deus em sua morada santa”. O texto mostra uma disponibilidade em cuidar das pessoas desvalidas e revela dois aspectos para qualificar o grau de orfandade. Num primeiro plano, é notória a ausência paterna, o que evidencia a orfandade. Mas, podemos supor, também, a incapacidade de dar segurança às crianças. Nota-se um total silêncio em torno da figura materna. O Sl 109,8-9 ecoa contra o caluniador. Um, entre tantos outros infortúnios, que pesam sobre ele é a possibilidade da orfandade: “Que seus dias fiquem reduzidos e outro tome o seu encargo. Que seus filhos fiquem órfãos ()י ְתוֹמִ ים e sua mulher se torne viúva ()אַ ְל ָמנָה 30 TERNAY, de H., O livro de Jó. Da Provação à Conversão, um longo Processo. Rio de Janeiro, Vozes, 2001. pp. 164-165. 31 Cf. GRENZER, M., Análise Poética da sociedade: um estudo de Jó 24, São Paulo, Paulinas, 2005, p. 73. 32 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá: Teologia e História Social da Lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 352. 42 Verifica-se, mais uma vez, que a realidade utilizada para definir se alguém é ou não órfão é a ausência paterna, sem nenhuma referência à presença ou ausência materna, mostrando, deste modo, que nos textos da BHS a orfandade é definida pela ausência da proteção e segurança paternas. 2.1.3. A pessoa da “ אַ ְל ָמנָהviúva” São semelhantes as definições do termo “ אַ ְל ָמנָהviúva”33 oferecidas por de Vaux, Leon Epstein, Pedro Kramer, Paula S. Hiebert e Hennie J. Marsman. Para esse grupo de estudiosos, trata-se da mulher que passou a viver sem a proteção do marido, após a sua morte, tenha filhos ou não34, e se vê diante de um desafio de procurar a proteção familiar sob as condições patriarcais35. A perda do marido colocava-a numa situação de debilidade. A viuvez impunha, sobre a mulher, no Antigo Israel, um período de falta de proteção e segurança, quer em seu aspecto físico, quer diante da possibilidade da perda de suas posses patrimoniais. Trata-se de um subgrupo, comum também na sociedade egípcia e mesopotâmica36. Nesses universos, segundo Epstein, as viúvas gozavam de um status social mais elevado, quando comparado a Israel37. A viuvez de uma israelita 33 A tradução permanece um pouco incerta embora o termo seja corrente no Oriente Antigo. Segundo Hiebert encontramos no Acádico o termo almattu, no Ugarítico ̓lmnt, no Fenício ̓lmt, no Aramaico ̓armaltā ̓ e no Árabe ̓armalat. Cf. HIEBERT, P. S. Whence Shall Help Come to me?: The Biblical Widow. In: PEGGY, L. D., (ed.), Gender and Difference in Ancient Israel, p. 127. Na definição encontrada em Hoffner o termo é demasiadamente corrente em todos os centros culturais da antiguidade. Em documentos hititas, faraônicos, mesopotâmicos e, no universo bíblico não poderia ser diferente, a pessoa ou grupo de viúvas aparece revestida de plenos direitos que lhe favorecem subsistência e garantia de vida. Cf. Hoffner, in: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 305-309. 34 2Sm 14,5-7: וּ ְלשִׁ ְפ ָחתְ ָך שְׁ נֵי ָבנִים.“ אִ שָׁ ה אַ ְלמָ נָה אָנִי ַויָּמָ ת אִ ישִׁ יEu sou uma mulher viúva. Meu marido morreu. E para tua serva há dois filhos”. 35 Com base em inúmeras citações, pode-se estabelecer uma definição ao termo “ אלמנהviúva”. Os autores identificam a viúva como sendo uma mulher que passou a viver sem qualquer tutela ou aparato social familiar, antes garantida em companhia do marido (Nm 30,10; Rt 1,9; Gn 38,11; 2Sm 14,2; Jd 8,4). Cf. DE VAUX, Instituciones del Antiguo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, p. 75-76; EPSZTEIN, L., A justiça social no Antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, São Paulo, Paulinas, 1990, p. 137-138; MARSMAN, H. J., Women in Ugarit and Israel. Their Social and Religious Position in the Context of the Ancient near East, Boston, Brill, 2003, p. 291-320; KRAMER, P., Origem e legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos. São Paulo, Paulinas, 2006, p.174-175. 36 “Na Mesopotâmia, o status da mulher casada torna-se outro após a morte de seu marido”. EPSZTEIN, L., op.cit, p. 291. 37 “Em Babilônia, ela tinha direito a determinada parte da herança do marido. A viúva ou a mulher repudiada podia até, em certos casos, beneficiar-se com parte da herança igual à do filho e reencontrar a plena disposição de seus bens dotais”. Cf. Ibidem, p. 139. Na concepção de Bouzon, vê-se com clareza que a lei hammurábica é clara em defender o sistema de propriedade ou bens da 43 não lhe assegurava quase nenhum direito. Tal contraste é proveniente da própria situação da mulher, compreendida como uma propriedade a mais do marido em Israel38. Ela é contada entre os pertences do marido e classificada, em meio aos animais, escravos, arados e escravas na condição de propriedade do varão (Ex 20,17). Ao marido, cabe o direito amplo de repudiá-la. Direito, este, em hipótese alguma facultado às mulheres (Dt 24,1). A princípio, todo e qualquer tipo de נֶדֶ ר “voto” ou שׁבוּ ָעה ְ “juramento”, que venha a implicar na vida ou comportamento da mulher Hv'yai vp,n" tNO[;l. rS"ai “compromisso que venha subjugar a pessoa da mulher”, deverá receber aprovação ou negação da parte do marido (Nm 30,14). Por outro lado, verifica-se em certo grupo de textos, relativo prestígio dado à mulher quando esta exerce funções no interior da casa, no cuidado com os animais, na educação dos filhos, na administração das coisas existentes na esfera familiar (Dt 21, 18-21; Pr 19, 26. 31,10-31; Ecl 3,1-6)39. Bennett analisa as características marcantes da viuvez, dividindo as referências bíblicas em quatro conjuntos de textos40. 2.1.3.1. Textos legais O conjunto das Normas Legais (Ex 20,22-24) realça a injustiça como uma prática inaceitável. Por ser uma sociedade agrária em seu ambiente originário, as leis do CA parecem querer interferir nos comportamentos sociais e, consequentemente, econômicos no período monárquico de Israel. A viúva, uma mulher em caso de viuvez ou separação do marido. “A lei protegia a esposa, que tivesse gerado filhos no casamento, da arbitrariedade de seu marido. Se este quisesse divorciar-se dela, perdia, como determinava o § 59, o direito a todos os seus bens”. BOUZON, E., Uma coleção de direito babilônico pré-hammurabiano. Leis do reino de Ešnunna, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 45. 38 Cf. DE VAUX, Instituciones del Antiguo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, p. 75. 39 Diante de um vasto arcabouço jurídico, como percebemos nos textos referentes às viúvas na BHS, corre-se um perigo: deduzir a figura da mulher como um ser inferior ao marido. Nossa referência leva em conta uma sociedade patriarcal na qual os papéis da mulher casada acontecem e estão legalmente definidos. É por demais ingênuo pensar a posição da mulher casada numa situação de vassalagem frente ao homem da casa. “As leis deuteronomistas definem o status legal de uma mulher – seus direitos sociais e posição econômica – sempre nos termos de sua relação com o homem. Queira ou não, ela está casada e nesta condição encontra ela direitos, obrigações e penas capitais”. PRESSLER, C., The View of Women found in the Deuteronomic Family Laws, New York, Walter de Gruyter, 1993, p. 82. 40 Bennett divide em quatro grupos os textos da BHS, ao analisar o estado da viuvez: a) Textos legais: Ex 22,22. 22,24; Lv 22,13 e Nm 30,10; b) Textos narrativos: Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7. 20,3; Rt 2,1-23; 1Rs 7,13-14. 11,26; 17,8-16; c) Literatura profética: Jr 7,6. 22,3; Ez 22,7. 44,22; Zc 7,10; d) Literatura sapiencial e lamentações: Jó 24,21. 29,13; Sl 68,5. 78,64; 94,6. 109, 9; 146,9. Pr 15,25; Lm 5,3. Cf. BENNETT. H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, pp. 31-37. 44 vez já se encontrando numa condição desfavorável, não poderia sofrer, agora, ultraje imposto por nenhum “ אָדוֺןsenhor”41. Ela não pode sofrer nenhum tipo de violência física ou qualquer ação na esfera do comércio que venha a prejudicá-la na manutenção e usufruto patrimonial. Por se tratar de uma norma de santidade, a violação da prática do direito feita contra o órfão e a viúva passa a ser punida por vontade de Deus. Essa atitude, executada pelo אָד ֺון, “senhor”, deveria receber uma sanção imposta pelos homens responsáveis em gerenciar a justiça na porta da cidade42. O CA realça que diante do estado de viuvez deve ocorrer explícitos gestos de solidariedade à mulher. Seus direitos naturais devem ser garantidos. São os meios disponíveis para sua sobrevivência futura. No Código de Santidade (CS)43 refere-se duas vezes à categoria da viúva (Lv 21,14; 22,13), contra uma vez (Nm 30,9-10) no Código Sacerdotal (CSac). Estudos recentes apontam ser o Código de Santidade parte integrante do Documento Sacerdotal. É necessário fazer uma distinção: No CSac são indicados dois tipos de homens deparando-se diante da realidade matrimonial. No tocante ao ַהכּ ֹהֵן ַה ָגּדוֹל, "sumo sacerdote", (Lv 21,10) paira o interdito, sobre qualquer hipótese, de receber uma viúva ou prostituta como esposa: xQ"yI h'yl,Wtb.bi hV'îai aWhw> “Ele tomará uma mulher na sua virgindade” (Lv 21,13). Não cabe ao sumo sacerdote a união matrimonial com uma viúva ou uma mulher que tenha praticado “infame prostituição” (Lv 21,14). Tais alertas são justificáveis no tocante à manutenção do regime de pureza consanguínea. Com respeito à “ ַבּת כּ ֹ ֶהןfilha do sacerdote”, essa poderia voltar para a casa paterna, uma vez viúva. O pai, nesse caso, teria a obrigação de recebê-la de volta em total clima de comunhão, cumprindo, desta maneira, um princípio social e jurídico estabelecido em Israel (Lv 22,13). Entretanto, encontramos uma ressalva no texto ְוז ֶ ַרע ֵאין ָלהּ, “ela não tem filhos”. A presença dos filhos impõe relativa preocupação econômica. Compete à família prover alimentação e segurança. Neste caso, a mulher pertenceria, em caráter definitivo, à família de seu marido, passando a gozar do 41 A palavra faz referência à pessoa do patriarca familiar, ao marido, ao homem casado (Gn 19, 2; Jz 19,26; Rt 2,13). 42 São os anciãos os responsáveis de julgar e estabelecer tais sanções divinas. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 273. 43 Cf. Ibidem, p. 383. 45 direito imprescindível de mãe44. A mulher, cujo marido havia morrido, ao voltar para a casa dos pais, qualifica-se na sua condição de “ אַ ְל ָמנָהviúva”. A referência ao ato de fazer um “ נֶדֶ רvoto”, por uma viúva, encontra total aceitação e validade no interior da sociedade (Nm 30,10). Embora considerandose a submissão institucionalizada da mulher frente ao homem, o voto feito pela mulher viúva ou repudiada é válido somente para ela. O texto pode bem demonstrar a possibilidade de uma mulher viúva preservar seus bens, uma vez que esta se encontre desprovida da tutela de um varão. O reconhecimento de seus votos implica na legitimação de sua segurança. Daí, serem válidos e reconhecidos por todos. 2.1.3.2. Textos narrativos O conjunto formado pelos textos narrativos que mencionam a categoria da viúva (Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7; 2Sm 20,3; Rt 2,1-23; 1Rs 7,13-14. 11,26; 17,816) oferece alguns exemplos de comportamentos ou interesses do cotidiano. Podemos notar duas maneiras de referir-se à viúva: 1) A lei do Levirato45 oferece um suporte legal aos episódios presentes em Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7 e Rt 2,1-23. É emblemática a saga envolvendo Tamar e seu sogro Jacó. O que numa primeira leitura pode parecer uma condenação do ato idealizado pela jovem esposa, pode bem ser compreendido como uma demonstração da alta aceitação, da praticidade e da eficiência da lei na defesa dos direitos das viúvas. Sua estratégia de coabitar com seu sogro registra um gesto feito em sua defesa e referendado legalmente no Antigo Israel. Na narrativa, nenhuma censura lhe é imposta, pois está em jogo a manutenção da hereditariedade de seu primeiro marido (Gn 38,7) e foi este, e não outro, o desejo pelo qual uniu-se aos seus cunhados (Gn 38,6-9); 2) O regresso para a casa de seu pai é um principio legal. Ninguém pode ser exposto às situações de inseguranças. A viúva, legalmente, encontra algum tipo de proteção ao permanecer na casa do sogro ou na casa paterna. A narrativa mostra os direitos de Tamar que se encontra numa situação de total desamparo familiar: sem marido e sem filhos. 44 Cf. BENNETT. H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 32. O direito de mãe é assegurado em Israel: Lv 21,4; Ex 20,12. 21,15.17. 45 Cf. Dt 25,5-10. 46 Outra característica da viúva pode ser definida considerando os textos de 2Sm 14,5-7 e pelo episódio envolvendo Rute e Booz (Rt 2, G 1-3. 4). Na primeira narrativa, a própria mulher se declara, ao rei Davi46, uma viúva: “de verdade eu sou uma mulher viúva e meu marido morreu” (2Sm 14,5-7). Entre os dois filhos ocorreu um fratricídio, e caso venha a perder o outro filho, agora acusado pelo crime do irmão, a mãe passaria privações. Ela não tem marido e agora se encontra sem nenhum sistema de segurança e bem-estar. Ao rei compete o gerenciamento da justiça. Uma clara compreensão dos problemas enfrentados pelas mulheres viúvas, na sociedade israelita, é encontrada na história de Noemi e suas duas noras, Rute e Orfa47. Os três homens, os ex-maridos, estão mortos e as três mulheres, agora viúvas, se encontram em estado de miséria correndo o risco de morrer de fome e sede (Rt 2,1-23). Com base na lei do Levirato48, Noemi insiste no retorno das noras às casas de seus pais. Uma delas, após rejeitar o pedido, consente voltar à casa de seu ancestral, mas Rute insiste em ficar. É-lhe dado o direito de respigar o campo durante a colheita (Lv 19, 9-10; 23,22). Nas tarefas no campo, Rute encontra Booz, parente de seu sogro, que tomando por base os costumes legais, a toma por esposa. Após retirá-la das terras de Elimelec, Booz a recebe em sua propriedade garantindo-lhes comida, proteção e uma descendência: “E disse Booz aos anciãos e a todo o povo: Sois testemunhas que eu comprei tudo o que pertencia a Elimelec, a Maalon e a Quelion das mãos de Noemi” (Rt 4,9). De certo modo um aspecto depreciativo no uso do termo viúva pode ser encontrado nos demais textos narrativos (2Sm 20,3; 1Rs 7,13-14; 11,26; 17, 816). As concubinas de Davi passaram a viver na condição de viúvas: אַ ְל ְמנוּת ַחיּוּת, “viveram como viúvas” (2Sm 20,3), recebendo, ao longo dos anos vividos na corte, por parte do rei, comida e segurança. Nos outros três textos do livro dos Reis a referência ao termo “ אַ ְל ָמנָהviúva” é revestida de um profundo senso de 46 Ao monarca compete gerenciar a prática de todo o sistema necessário para colocar em prática suas atribuições de administrador do reinado e gerenciador da prática do direto (Dt 17,14-20; Sb 1,1; Sl 34,7.18; 35, 1-3). Ao rei era necessário um aparato burocrático que fosse capaz de proporcionar condições para administrar as inúmeras demandas (1Rs 7,7). 47 O termo técnico “ אַ ְלמָ נָהviúva” não é encontrado na história de Rute. Vemos o texto da BHS apresentar um outro termo correlato: “ אֵ שֶׁ ת ַהמֵּ תmulher daquele que morreu” (Rt 4,5). 48 O nome é proveniente da palavra latina levir – do latim – cunhado. Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 174. 47 negatividade49, na medida em que são desqualificados por conviverem com a realidade da viuvez. O sustento dado ao profeta Elias provém de um gesto de uma viúva em condições de miserabilidade (1Rs 17,12)50. 2.1.3.3. Textos proféticos Das narrativas proféticas, percebem-se inúmeras referências ao termo “ אַ ְל ָמנָהviúva”, mas sem fornecer elementos que facilitem identificar aspectos relevantes na condição de viuvez, conforme encontra-se nos textos históricos e narrativos. A referência aos grupos desfavorecidos é uma constante nos relatos de Is (1,23; 10,2; 47,8), Jr (7,6; 22,3 e 49,11), Ez (22,7; 44,22), Zc 7,10 e Ml 3,5. Os oráculos proféticos formam um grupo de narrativas com uma marca essencialmente reivindicatória. Com base nesse termo técnico os grupos proféticos edificaram um verdadeiro acervo literário na defesa inconteste desse determinado grupo social. Nota-se uma forte sensibilidade no gesto de denunciar a falta de normas éticas, capazes de garantir a justiça e o direito a esses grupos, tidos como sem importância em suas respectivas épocas. Os oráculos proféticos favorecem a percepção do alto grau de opressão e flagelo imposto a esses grupos desamparados e do dilema vivenciado pela mulher casada que venha a ser reconhecida como uma viúva. 2.1.3.4. Textos sapienciais e poéticos Distante do senso reivindicativo impregnado nos textos proféticos está o conjunto formado pelas narrativas de cunho sapiencial (Jó 24,9; 29,12-13; Sl 68,6; 78,64; 94,6; 109,9; 146,9; Pr 15,25), onde predomina um discurso que realça a preferência divina na defesa dos grupos que sofrem violência, entre os quais a viúva: Avd>q' !A[ïm.Bi ~yhiªl{a/ tAnm'l.a; !Y:d:w> ~ymiAty> ybia] “Pai dos pobres e juiz das 49 O artesão Hiram, embora com sua habilidade na metalurgia, é reconhecido como filho de uma viúva da tribo de Neftali (1Rs 7,13). Um dos oponentes a Davi foi Jeroboão, filho de uma viúva de nome Sarva (1Rs 11,26). 50 A descrição oferecida pela narrativa é própria para ajudar a compreender os inúmeros apelos legais feitos com a finalidade de amparar este subgrupo. “As viúvas viveram sob uma especial proteção dos deuses”. MARSMAN, H. J., Women in Ugarit and Israel. Their Social and Religious Position in the Context of the Ancient near East, Boston, Brill, 2003, p. 295. 48 viúvas, assim é Deus na sua santa morada” (Sl 68,6). Defendê-la, oferecer-lhe proteção e garantir seus direitos são ações realçando a exclusividade divina. Hiebert, seguindo o termo אַ ְלמָ נָה, indica cinco referências no livro dos Salmos, em torno dos gêneros literários de lamentações, de hinos e de cantos de agradecimentos provenientes do período davídico ao pós-exílio: Sl 94,4-7; 146,9; 68,6; 78,63-64 e 109,951. A violação do direito merece realce nos Salmos 94,4-7 e 146,9, uma vez que ambos citam a trilogia social formada pelo estrangeiro, órfão e viúva. No Sl 94,6 o realce pode ser percebido no emprego dos verbos gr;h' “matar” e xc;r' “assassinar”. Práticas atribuídas aos ~yai(GE “soberbos” (v.2) e aos ~y[iv'r> “ímpios” (v.3), contra os grupos merecedores dos benefícios divinos. Os gestos de YHWH, a saber, um Deus que age com justiça, tornam-se o eixo interpretativo na identificação do Deus de Israel, oferecendo conteúdo aos atributos divinos nos louvores expressos no Sl 146. Nota-se a ampliação dos grupos beneficiados. A proteção recai, agora, sob outros grupos sociais diante do perigo da dizimação. . i hf,[o “faz direito”; aos famintos, ~x,l, !tEnO “dá Aos que estão oprimidos, jP'vm pão”; aos prisioneiros, ryTim; “faz soltar”; os cegos, x;qEPo “abre a vista” e aos curvados, @qEzO “endireita” (vv.7-8). O Sl 68,6, como um hino de exaltação à vitória, destaca a providência divina nutrindo de pão a viúva e o órfão. O contrário é verificado nas inúmeras fases históricas de Israel apresentadas numa narrativa, por meio de uma meditação, presentes no Sl 78,64. O sofrimento atinge as viúvas que não encontram tempo para lamentações. Já num estilo de súplica individual, no Sl 109,9, a viúva é apresentada numa situação possível de uma mulher que venha a perder a companhia do seu senhor, passando a receber o título de viúva. Diferenças de estilos e conteúdos à parte, constata-se uma preocupação com esse grupo social formado pelas viúvas. Assim, também, Jó se refere à realidade de sofrimento envolvendo a pessoa da mulher viúva: “ ְואַ ְל ָמנָה ֹלא י ְי ֵ ִטיבe à viúva não fez o bem” (Jó 24,21). Em outro texto, ele refere-se à viúva como um dos meios para agradar a Deus e gozar de suas bênçãos: “ ְולֵב אַ ְל ָמנָה אַ ְרנ ִןe o coração da viúva enchia de alegria” (Jó 51 Embora não considerando o trabalho em torno da datação e classificação dos Salmos é notório o fato de recorrer ao termo אַ ְלמָ נָה. Cf. HIEBERT, P. S., Whence shall Help come to Me?: the biblical widow. In: DAY, P. L.; (Org.), Gender and Difference in Ancient Israel. Minneapolis, Augsburg Fortress, 1989, pp. 126-127. 49 29,13). Essa mesma proteção realizada por Jó passa a ser efetuada pelo próprio Deus como meio de manifestar sua presença. Vale destacar a total ausência da figura do homem – do patriarca – em relação à mulher viúva. Na literatura sapiencial o subgrupo da mulher viúva é apresentado como merecedor do socorro do Senhor. A autoridade de Deus toca diretamente este grupo social, determinando o ponto de partida para se efetuar um sistema onde triunfe a justiça. A condição de superar a violência pela prática da justiça ao estrangeiro, órfão e viúva soa como um princípio básico para provar a eficácia e veracidade da Lei. 2.2. Conclusão Pelos textos selecionados concluem-se aspectos consensuais referentes aos grupos sociais marginalizados. Tais grupos recebem uma relativa atenção, não somente nos textos do Deuteronômio, como em todo o conjunto das Escrituras. Não é difícil afirmar que as situações de opressão e violência estão sempre em evidência, seja qual for a fase histórica, quando são citados nos textos bíblicos. Percebemos um apelo permanente e renovado na defesa dos grupos sociais fracos e indefesos. O conjunto de um forte arcabouço jurídico persistiu nas mais diferentes épocas históricas da comunidade religiosa de Israel. Os apelos estão presentes em todos os Códigos Legais da BH52. Os legisladores deuteronômicos realçam uma total dependência dos grupos desfavorecidos (15,4). As leis estão sempre alertando, em tom apodítico, a defesa de setores pobres da comunidade israelita (15,18). As normas apelam para a sensibilidade dos proprietários de terras em facultar-lhes o direito de respigar na época da colheita. O direito não pode ser-lhes negado. O monarca deve considerálos em suas aflições, e as leis litúrgicas têm como eixo Deus, o Doador da terra Prometida, em torno do qual forma-se todo o arcabouço jurídico (19,14)53. Pelos textos do Deuteronômio, percebe-se a existência de um sistema tradicional voltado para garantir os aspectos físicos e sociais do estrangeiro, órfão 52 Código da Aliança (CA), Código Deuteronômico (CD) e no Documento Sacerdotal (DSac). O caráter das leis em defesa dos grupos pobres apresenta uma conotação altamente humanitária. Pode-se verificar uma perspectiva de edificar um projeto de fraternidade/irmandade visando um total equilíbrio social. Arcabouço jurídico surgido durante a experiência histórica do exílio. Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 35. 53 50 e viúva. Essa trilogia social se vê inserida num determinado momento histórico no qual a falta de proteção e bem-estar são essenciais na definição dos grupos. Diante dessas considerações destaca-se: a) o ֵגּר, “estrangeiro”, ele ou ela, seria uma pessoa que teria imigrado de um outro local e se estabelecido junto à outra comunidade israelita. Τrata-se de uma pessoa obrigada a passar por um processo de inculturação, no interior de um determinado grupo social, onde passaria a fixar residência; b) o י ָתוֹם, “órfão”, no conjunto do Deuteronômio, refere-se a uma menina ou menino, que venha a perder a proteção paterna, passando a vivenciar um período de total incerteza; c) a אַ ְל ָמנָה, “viúva” refere-se a uma mulher que tenha passado um período de sua vida sob a proteção de um homem, legitimado pelo vínculo matrimonial, e que se encontra, após a morte do homem, indefesa e sem proteção. A falta de proteção, isto é, segurança, expunha esses grupos a uma situação de exploração por parte de outros grupos sociais, como bem realçam inúmeros oráculos proféticos, ainda mais no contexto de uma sociedade agropastoril, movida por uma mão-de-obra pautada pelo sistema escravagista. 51 PARTE I COMENTÁRIO DOS TEXTOS ONDE É CITADA A TRILOGIA SOCIAL – “ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA” NO DEUTERONÔMIO 52 3 Apresentação do conjunto das perícopes do Dt relacionadas com a trilogia social A trilogia social – estrangeiro, órfão e viúva – por seis vezes encontrada no livro do Deuteronômio deixa transparecer um forte desejo de defender grupos sociais ameaçados. Quem se debruçar sobre essas perícopes, no desejo de conhecer a sociedade, perceberá que se trata de uma produção em etapas históricas. Sabe-se que são normas jurídicas que surgiram num determinado contexto social e, por este motivo, propõem a superação de uma violência ou sonegação de direitos a esses grupos. Neste capítulo serão analisados os respectivos textos. Nota-se um conjunto formado por seis perícopes e serão analisadas, seguindo os respectivos processos: 1) delimitação do texto; 2) crítica textual das variantes; 3) composição e estrutura do texto; 4) análise semântica; 5) gênero literário; 6) estudo da tradição e redação; 7) significado do texto. A ordem poderá sofrer ligeiras modificações considerando-se o conteúdo e a estrutura de uma determinada perícope. 3.1. A historicidade divina reside na realização da justiça: Dt 10,12-22 Dt 10,12-22 não se encontra no corpus, assim conhecido, como a parte mais 1 antiga do Dt, formado pelos capítulos 12-261, intitulado de Código Deuteronômico. O capítulo 10 seria um acréscimo ao livro ocorrido ao longo dos anos que sucederam a morte do rei Josias (609 a.C). A 1 Não são poucos os estudos que apresentam as inúmeras edições empreendidas ao livro do Dt. Os estudos, realçando as introduções existentes, as inúmeras repetições, as sucessivas interrupções que chegam a mudar até mesmo os sujeitos ao longo das frases, bem como a troca de orador principal evidenciam as inúmeras etapas literárias impostas ao livro do Dt. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, Paris, Beauchesne, 1969, pp. 16-28; VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia, Paidéia Editrice, 1979, pp. 30-39; CHOURAQUI, A., A Bíblia – Palavras (Deuteronômio, São Paulo, Imago, 1997, pp. 19-24; CRAIGIE, P. C, The Book of Deuteronomy, Michigan, William B. Eeardmans Publishing, 1976, pp. 30-45; CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1-11, Texas: Word Books, 1991, (WBC) pp. 12-25; BLENKINSOPP, J., Deuteronômio, In: NCBSJ, São Paulo, Editora Academia Cristã e Paulus, 2007, pp. 223-225; NELSON, R. D, Deuteronomy – A Commentary, London, Westminster John Knox, 2004, pp. 1-13. Sugestivo o título “A invenção do Deuteronômio”, dado por Carrière ao propor uma gênese e estrutura ao conjunto da obra 53 reforma de cunho deuteromista, desenvolvida entre os anos 630-609, teve amplo apoio de toda a sociedade de Judá, e demais setores que se uniram ao redor desse evento de autêntica reorganização nacional2. Neste período, o livro teria recebido os capítulos referentes ao Decálogo (Dt 5), e mais tarde, outros dois grupos de textos: os relatos oriundos da chegada na terra (Dt 1-3), e as tradições vinda do Sinai (Dt 9-10). Nesta época, o Deuteronômio, como é hoje conhecido, não passava de um conjunto de Leis3. Buis4, baseando-se nas inúmeras fases redacionais, verifica que em 10,12 começa uma “certa conclusão à primeira parte do livro”, predominando estilos de exaltações plenamente independentes uma das outras. Nos estudos de Blenkinsopp, esses acréscimos teriam ocorrido num “período final ao reino de Judá” como resultado de mais um estágio redacional imposto ao livro. Neste período teriam sido adicionados os capítulos “5-11 e 28 como uma estruturação para as leis”5. 3.1.1. Dt 10,12-22: tradução e aspectos filológicos E agora Israel, o que YHWH teu Deus, 12a tem perguntado a ti? ְועַתָּ ה יִשׂ ְָראֵל מָה י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך שׁ ֹ ֵאל ֵמעִמָּ ְך Se não temer a YHWH, teu Deus 12b כִּי אִ ם־ ְלי ְִראָה אֶת־י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך Andar em todos os seus caminhos, 12c ָל ֶלכֶת ְבּכָל־דְּ ָרכָיו e amá-lo 12d וּלְאַ ֲהבָה א ֹתוֹ E servir a YHWH, teu Deus com todo o 12e ְו ַלעֲב ֹד אֶ ת־י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך ְבּכָל־ ְל ָבבְָך teu coração e com toda tua alma. Observar os mandamentos de YHWH e וּ ְבכָל נַ ְפשֶָׁך׃ a ִלשְׁמ ֹר אֶ ת־מִ צְוֹת י ְהוָה וְאֶ ת־חֻקּ ֹתָ יו 13b ֲאשֶׁ ר אָנֹכִי ְמ ַצ ְוָּך הַיּוֹם לְטוֹב לְָך׃ 13 os seus preceitos que eu te ordeno hoje, para o teu bem. deuteronômica. Na sua opinião, que não difere de outros estudos, um processo redacional, ocorrido entre o reinado de Josias (640-609), passando pela destruição do primeiro templo e o exílio, findando no período persa (540 aC), seria o período histórico no qual teria ocorrido a redação do Dt. Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio: Escolher a vida. São Paulo, Loyola, 2005, pp. 13-34. 2 Os dados cronológicos são apresentados seguindo as informações de Lamadrid, em todo o trabalho. Cf. GONZÁLEZ LAMADRID, A., As tradições históricas de Israel: Introdução à história do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 1999, pp. 219-225. 3 Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio-Escolher a Vida. São Paulo, Loyola, 2005, pp. 31-35. 4 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome. Paris, Beauchesne, 1969, p. 177. 5 Cf. BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, p. 224. 54 Note bem, a YHWH, teu Deus 14a pertencem os céus e os céus dos céus, a ַשׁמָ י ִם ָ ּ שׁמֵי ה ְ ַשׁמַ י ִם וּ ָ ּ הֵן לַיהוָה ֱאֹלהֶיָך ה ָאָרץ ְוכָל־ ֲאשֶׁ ר־בָּהּ׃ ֶ ה terra e tudo que nela existe. Somente por teus pais se dispôs YHWH a 15a שׁק י ְהוָה לְאַ ֲהבָה אוֹתָ ם ַ ַרק ַבּאֲב ֹתֶ י ִָך ָח amá-los. Escolheu-os como descendência, depois 15b deles, a vós mesmos, dentre todos os ַויּ ִ ְבחַר ְבּז ְַרעָם אַח ֲֵריהֶם ָבּכֶם ִמכָּל־ ָה ַעמִּים כַּיּוֹם ַהזּ ֶה׃ povos, como acontece neste dia de hoje. 16a וּמַ ְלתֶּם אֵת ע ְָרלַת ְל ַב ְבכֶם e vossas nucas não endureceis mais. 16b ְוע ְָר ְפּכֶם ֹלא ַת ְקשׁוּ עוֹד׃ Pois YHWH, vosso Deus, ele é Deus dos 17a כִּי י ְהוָה ֱאֹלהֵיכֶם הוּא ֱאֹלהֵי ָהאֱֹלהִים Circuncideis os prepúcios dos vossos corações, deuses e Senhor dos senhores: o Deus, o ַנּוֹרא ָ וַאֲדֹנֵי ָהאֲדֹנִים ָה ֵאל ַהגָּד ֹל ַהגִּבּ ֹר ְוה Grande, o Forte e o terrível, 17b ֲאשֶׁ ר ֹלא־י ִָשּ ֹא ָפנִים c וְֹלא יִקַּח שֹׁחַד׃ a ע ֶֹש ֹה מִ שְׁ פַּט י ָתוֹם וְאַ ְל ָמנָה e ama o estrangeiro b 18 וְאֹהֵב גֵּר para dar a ele pão e roupa. 18c ְש ֹ ְמלָה׃ ִ לָתֶ ת לוֹ ֶלחֶם ו Vós amareis o estrangeiro, 19a וַאֲ ַהבְתֶּם אֶ ת־ ַהגֵּר porque estrangeiros fostes na terra do 19b ְאֶרץ מִ צ ְָרי ִם׃ ֶ כִּי־ג ִֵרים ֱהי ִיתֶ ם בּ 20a ירא א ֹתוֹ ָ ִאֶת־י ְהוָה אֱ ֹלהֶיָך תּ b תַ עֲב ֹד וּבוֹ a ele te apegarás c 20 תִ דְ בָּק e em seu nome jurarás. 20d תִּשׁ ֵבעַ׃ ָ ּ וּ ִבשְׁמוֹ Ele é teu louvor 21a הוּא תְ ִהלָּתְ ָך e ele é o teu Deus, 21b וְהוּא אֱ ֹלהֶיָך que te realizou estas grandes e terríveis 21c ָש ֹה אִתְּ ָך אֶת־ ַהגְּדֹֹלת ָ ֲאשֶׁ ר־ע que não favorece pessoas e não aceita presente. Faz direito ao órfão e à viúva, 17 18 Egito. A YHWH, teu Deus temerás, a ele servirás, 20 coisas, que viram teus olhos. Com setenta pessoas, teus pais desceram ao Egito ַנּוֹרא ֹת ָה ֵאלֶּה ָ וְאֶ ת־ה d ֲאשֶׁ ר ָראוּ עֵינ ֶיָך׃ a בְּשִׁ ְבעִים נֶפֶשׁ י ְָרדוּ אֲב ֹתֶ יָך ִמצ ְָריְמָה 21 22 55 e agora dispôs-te YHWH, teu Deus, 22c ש ֹמְָך י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך כְּכוֹ ְכבֵי ָ ְועַתָּ ה como estrelas numerosas dos céus. ה ַּשָׁמַ י ִם לָר ֹב׃ - v. 12: O verbo “ שָׁאַלperguntar, inquerir”, no particípio qal, é significativo ao proporcionar coesão ao longo de toda a frase, juntamente com outros verbos, onde estão presentes as atitudes comportamentais exclusivas de arey", “temer”, (v. 12b), %l;h', “andar”, (v. 12c), bh;a', “amar”, (v. 12d) e db;[', “servir”, (v. 12e) seu Deus pessoal: o Senhor. O sentido inquisitorial imposto por Deus aproxima-se a Mq 6,8, considerando atitudes semelhantes ao acolher os mandamentos e praticar a justiça. Constata-se uma única ligeira alteração de grafia anotada no Códice Vaticano (minúsculos), Siríaca e na Vulgata, quando comparada ao TM no versículo 12. Trata-se do prefixo “ ולe para” antecede o verbo ָל ֶלכֶת, “andar em”, (v. 12c), mas que não marca qualquer alteração de sentido expresso na frase. - v. 13: Ocorre uma pequena diferença em alguns manuscritos no tocante à grafia do nome divino. Os manuscritos de Qumran, Pentateuco Samaritano e LXX grafam a fórmula ֱאֹלהֶיָך, “teu Deus”, diferenciando do TM que opta pelo uso do tetragrama יהוה. Adota-se a grafia presente na versão do TM. - v. 15: Uma ligeira mudança se verifica no texto de Qumram ao grafar על כן “sendo assim, posto isso” e não “ ַרקsomente, só” como é encontrado no TM. Tal exclusividade exige uma explicação. Emprega-se um advérbio, de interpretação inalterada “somente”, aqui utilizada, com a finalidade de realçar a escolha, preferência divina. - v. 17: São três as diferenças textuais encontradas no v. 17. A primeira refere-se ao trecho do v. 17a-a encontrado nos targumim de Ônquelos e Pseudo-Jônatas. Em substituição à expressão ~ynIdoa]h' ynEdoa]w: são grafadas as expressões wmrj mlkjn. A segunda, faz referência ao nome atribuído a Deus. Na diferença encontrada no Pentateuco Samaritano e na tradução Siríaca, grafa-se o sufixo וןao termo ואדני, “e senhor”, como apresenta a versão do TM. A terceira diferença está na forma 56 adjetivada de Deus: ַה ִגּבּ ֹר, “o forte”. Nos manuscritos de Qumran, Pentateuco Samaritano, LXX, Siríaco e Vulgata registram-se a expressão והגיברque recebe diferentes traduções: “e o forte Um, o poderoso Um”. -v. 20-21 No v. 20a uma ligeira diferença surge no uso da conjunção “ וe”, prefixando a partícula do complemento do objeto (e temê-lo). A diferença está na versão de Qumran como no Targum Pseudo-Jônatas, conforme 6,13, utilizando ואתוe não אתוcomo faz o TM. Outra pequena diferença é verificada nos manuscritos de Qumran nos targumim Ônquelos e Pseudo-Jônatas, onde se utiliza a forma תקרבe não תדבק, como no TM. O pronome demonstrativo ָהאֵ ֶלּה, “coisas” (v.21d), é omitido nos textos de Qumran e Pentateuco Samaritano. Em resumo, notam-se pequenas diferenças de grafia, mas que não propõem nenhuma variante aos versículos 20 e 21. - v. 22 O termo ^yt,Þboa] “teus pais” diferencia-se nos manuscritos de Qumran e no Pentateuco Samaritano, onde se recorre ao termo אָבוֹת, “pais”. Somada a essa falta do pronome possessivo da terceira pessoa, ocorrem outras breves nuâncias relacionadas ao uso das conjunções, artigos, sufixos e partículas possessivas de ordem gráficas. Os verbos e seus respectivos casos não sofrem qualquer alteração. O texto TM permanece inalterado. 3.1.2. Delimitação do texto, composição e estrutura A delimitação estrutural da perícope6, é demarcada pelo uso da partícula adverbial temporal ַעתָּ ה, “agora mesmo, no presente, agora” precedida pela partícula conjuntiva “ וe” (v. 12). O termo hT'[;w> “e agora” é utilizado para introduzir a frase de abertura (v. 12) contendo uma seqüência de declarações enaltecendo a fidelidade e o amor incondicional a YHWH, buscando colocar Israel em diálogo sobre a maneira de proceder diante de seu Deus e, ao mesmo 6 Para um estudo sobre os inúmeros métodos exegéticos, seguem-se as referidas obras: SIMIANYOFRE, H., Metodologia do Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2000, p. 199; GUARDINI, R. et al. Exegese Cristã Hoje. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 326; BENOIT, P., Exegese et Théologie, Paris, Cerf, 1961, p. 416. 57 tempo, marca a transição de uma fase redacional (9,7-10,11), para o conjunto da perícope (10,12-22)7. O verso, provavelmente adicional e utilizado para concluir a narrativa, é o v. 22, que cita dois aspectos quantitativos, no desejo de exaltar o crescimento numérico da comunidade israelita: ^yt,boa] Wdr>y" vp,n< ~y[ib.viB. “com setenta homens desceram vossos pais”, (v. 22a) e brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “numeroso como estrelas dos céus” (v. 22b). Esse verso realça o aspecto quantitativo presente em Gn 46,27, Ex 1,5 e Dt 1,10 e mais adiante, citado em Dt 26,5. Trata-se de um verso adicional, utilizado na conclusão da narrativa, diante do desafio em ocupar a terra prometida8. Considerando o termo “ אֱ ֹל ֶהיָךteu Deus”, na segunda pessoa do singular, pode-se afirmar que o tema da identidade divina e seu relacionamento exclusivo com Israel é desenvolvido em três blocos que compõem essa unidade literária: vv. 12-15, 16-19, 20-22: o primeiro, apresenta uma coesão e forte unidade verificadas ao usar, por quatro vezes, o conceito “ ֱאֹל ֶהיָךteu Deus”, (v. 12 e 14), além do uso dos pronomes possessivos sempre na segunda pessoa do singular. “com todo o teu coração” e “com toda a tua alma” (v. 12); “te ordeno” e “para teu bem” (v.13); “com teus pais” (v. 15); no segundo bloco (v. 16-19), a diferença verifica-se na mudança abrupta inserida na redação acentua-se não mais a forma singular, mas o plural da segunda pessoa: ~k,_b.b;l,. “vossos corações”, ~k,P.r>['w> “e vossas nucas”, (v. 16); ~k,yhel{a/ hw"hy> “YHWH vosso Deus”, (v. 17) e ~T,b.h;a]w: “amareis”, (v. 19). Por essas observações, percebe-se uma mudança de estilo imposto ao texto que, depois, no terceiro bloco, retoma o uso da segunda pessoa do singular; nesse bloco conclusivo (vv. 20-22), o estilo assemelha-se ao primeiro, não somente pela retomada do termo “ אֱ ֹל ֶהיָךteu Deus”, três vezes citado (v. 20, 21, 22) mas, no tocante ao estilo teológico, ao conclamar Israel a cultuar a YHWH, considerando os grandes fatos realizados em prol de Israel. Entre os vv. 12-15, são encontradas várias menções exaltando o ser de YHWH e favorecendo a compreensão da estrutura literária. O texto inicia-se conclamando à observância das leis: amá-lo e observar (v.12) todos os seus 7 Cf. WEINFELD, M., Deuteronomy 1-11. In: The Anchor Bible. New York: Doubleday, vol. 5, 1991, p. 435. 8 Cf. Ibidem, p. 205. 58 preceitos (v. 13), para, depois, apresentar a identificação de Deus (v. 14) e, encerrando com o gesto singular da escolha divina por Israel (v. 15), que confirma, assim, a primeira parte do texto (vv. 12-15). No v. 13, nota-se a reutilização de um vocabulário correspondente ao Shema Israel (Dt 6,4-9). Ocorre uma nítida referência na afirmação: ^b<b'l.-l[; ~AYh; ^W>c;m. ykinOa' rv,a] hL,aeh' ~yrIb'D>h; Wyh'w> “estarão estas palavras que hoje eu te ordeno sobre o teu coração” (Dt 6,6). São utilizados dois outros elementos substituindo a . i "mandamentos de expressão “essas palavras”. O Dt 10,13 apresenta hw"hy> twOcm YHWH”, e wyt'Qoxu “preceitos”, com o termo hL,aeh' ~yrIb'D>h; “essas palavras”, que não mais residem no coração, mas são, agora, compreendidas como regras doadas por Deus para a felicidade de Israel9. Com base na observância desses dois versículos, nota-se uma influência do conceito da unicidade do Deus de Israel, expressa no Shema Israel e que é agora retomada, em afirmações, no corpo dos vv. 12-13, elucidando um desenvolvimento redacional presente nos versículos 10,12-22, referentes ao ser de Deus, aos mandamentos e preceitos doados por YHWH. O termo mandamento expressa aquilo que a comunidade israelita deve fazer10. O antigo vínculo usado para identificar as tribos de Israel e servir de sinal de pertença a YHWH é, agora, retomado numa dimensão espiritual. O apelo a um ritual religioso, como a circuncisão, abre a segunda parte da narrativa (v.16-22), 9 O conhecimento de YHWH, por parte de Israel, não se faz de modo quieto, passivo, meramente confessional. Esse conhecimento ocorre na luta idolátrica envolvendo povos cananeus e a comunidade israelita. Sabemos da existência de inúmeros santuários dedicados ao deus Baal onde esse, como é declarado YHWH (Dt 6,4; 10,14-22) era também adorado como sendo a única divindade: Baal Peor, o Baal de Hebron, Baal Berit de Siquem, o Baal da Samaria, o Baal do Carmelo. Cf. GARCIA LÓPEZ, F., Deut. VI et la Tradition-rédaction du Deutéronome. In: RB, n. 86, 1979, pp. 59-91. 10 Não somente nesta parte, mas em todo o livro (4,1; 4,45; 6,1.20; 12,1), os autores deuteronomistas cunham o binômio “as leis e os preceitos” como sendo uma marca característica do livro. “O fato de que os dois termos não estejam nunca dissociados indica que a lei deuteronômica, na época de Josias, resulta de uma fusão de dois tipos de direito: aquele mencionado por uma autoridade (o rei e os funcionários de Jerusalém, sobretudo) e aquele em curso nas cidades de Israel. O Deuteronômio opera uma síntese jurídica, de maneira nova, em relação ao Código da Aliança; a ele, pertencem à mesma categoria tanto as “leis” como os “costumes” (a jurisprudência). Um dos grandes projetos do Deuteronômio é realizar uma unificação do direito”. Cf. CARRIÈRE, J. M., O livro do Deuteronômio. Escolher a vida. São Paulo, Loyola, 2005, p. 28. Vale realçar a distinção entre preceitos/estatutos/decretos do termo mandamento. A primeira provém da raiz ָחקַ ק, compreendida pelo ato de inscrever, entalhar originando o conceito de escrever, gestos típicos do ambiente da jurisprudência ou da tradição de compilar leis, costumes ou comportamentos. Já o termo מִ ְצ ָוהdenota a instrução passada do mestre ao aluno (Pr 2,1; Jr 32,11), tratando-se de um termo de uso específico ao universo da Aliança firmado entre Deus e seu povo Israel (Ex 24,12; Dt 30,11). 59 apelando para a prática de marcar o “ ע ְָרלַת ְל ַב ְבכֶםprepúcio do coração”, e evitar qualquer tipo de dA[) Wvq.t; al{ “endurecimento”, mental, para que todos se façam responsáveis na adesão e disponibilidade aos mandamentos divinos (v. 16). O espírito indócil deve se render diante dos planos de YHWH. Eis a tônica do apelo à prática da circuncisão. O v. 16 abre esta parte da perícope, conclamando à circuncisão. O v. 17 apresenta, com realce, sete atribuições do Deus de Israel (v. 17)11. A fórmula hl'm.fiw> ~x,l, Al tt,l' rGE bheaow> hn"m'l.a;w> ~Aty" jP;vm . i hf,[o “Faz o direito ao órfão, à viúva e que ama o estrangeiro, a quem ele dá pão e roupa”, serve para apresentar o conteúdo, bem como as bases da ação de YHWH. Ele ש ֹה ֶ ֹ ע, “faz” e ָלתֶ ת, “dá” sustentação aos humildes (v. 18). YHWH é descrito como um soberano juiz, ao utilizar um processo jurídico, no desejo de compreender e oferecer um veredicto em prol dos desvalidos12. Sua ação se compara à prática imparcial e reta de um juiz (Dt 16,19). A frase, apresentando a Trilogia Social, realça o modo da ação divina que prefere os grupos socialmente vulneráveis denunciando, também, a violação e a negligência da prática do direito a eles negada ou, até mesmo, desvirtuada. Com base no termo “ גֵּרestrangeiro”, que une os dois versos, podese estruturar os versículos no seguinte esquema: a) v. 18a: YHWH faz direito ao órfão e viúva. b) v. 18b: [YHWH] ama o estrangeiro. c) v. 18c: [YHWH] dá [ao estrangeiro] pão e água. d) v. 19a: vós amareis o estrangeiro. e) v. 19b: vós fostes estrangeiros no Egito. Não é impossível perceber a justaposição textual entre Deus e o ֵגּר, “estrangeiroʼʼ. Por meio das ações direcionadas a este grupo social, ocorre uma sucessão de gestos visando o restabelecimento da justiça, capaz de diferenciar a divindade dos israelitas. O termo estrangeiro, além de se referir aos anos em que Israel esteve em terras egípcias na condição de escravo, é utilizado para canalizar uma ordem expressa de Deus: amar o estrangeiro. Vê-se um harmonioso 11 As mudanças de estilos e de formas num determinado corpo redacional colaboram na sua datação. As formulas primitivas foram redigidas no singular, ao passo que, nos textos tardios, predonimam uma redação feita no plural. Cf. GARCIA LÓPEZ, F., Analyse Littéraire de Deutéronome, V-XI. In: RB, n. 85, 1978, p. 9. 12 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco II, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1970, p. 305. 60 entrelaçamento. Assim como o Senhor age para instaurar a justiça, Israel deve imitar seu Deus no amor ao estrangeiro. O gesto do amor divino ao estrangeiro, exemplificado na providência do pão e das vestimentas, deve ser imitado pela comunidade religiosa, tendo por base a recordação dos fatos grandiosos na libertação do Egito. O amor ao estrangeiro se justifica pelos anos vividos outrora, na condição de estrangeiros, nessas terras (v. 19). O Deus de Israel exige uma entrega total. O convite à fidelidade continua ao longo da primeira parte do v. 22, desta vez, apresentando duas atribuições divinas e uma recordação dos feitos em prol de Israel. A primeira atribuição acena para a prática cultual: o conceito de “Ele é teu louvor” (v. 21). Outra atribuição retoma o caráter da unicidade divina, conclamando a exclusividade de YHWH: “ele é teu Deus” (v. 21). O versículo 22, conclusivo na perícope, pode ser dividido em duas partes. A primeira, considera a intenção dos autores em unir a fase dos patriarcas no Egito e uma segunda, reafirma a realização das promessas feitas a Abraão, na primeira bênção (Gn 12,1-3). Considerando-se as inúmeras repetições presentes no texto, o estilo narrativo oscilando entre a segunda pessoa do singular e do plural, e o esforço em ter YHWH como sujeito central no texto, pode-se dividir Dt10, 12-22 em três seções, divididas entre discursos e narrativas13. a) Pedidos feitos por YHWH a Israel: segunda pessoa singular Dt 10,12-15 a) Amar e servir ao Senhor com toda força b) Guardar os mandamentos para o bem de Israel c) YHWH é um deus onipresente d) O amor exclusivo de YHWH 10,12 10,13 10,14 10,15a b) O discurso apresenta a Aliança e atributos de YHWH: segunda pessoa do plural Dt 10,15d-19 b a) Preferência entre os povos 10,15 b) Fazer circuncisão e não endurecer a cabeça 13 10,16 Niccacci define um texto entre narrativo e discurso. Considera o uso da terceira pessoa uma característica da narrativa. O discurso utiliza, preponderantemente, a segunda pessoas, numa forma direta ao ouvinte. Cf. NICCACCI, A., Sintassi del verbo ebraico nella prosa biblica classica. Jerusalem, Franciscan Printing, 1984, p. 18. 61 c) YHWH é um Deus forte d) YHWH faz justiça aos fracos e) Amar os estrangeiros 10,17 10,18 10,19 c) O discurso exalta o temor a YHWH: segunda pessoa do singular Dt 10,20-22 a) Caminhar com YHWH b) Louvar a YHWH c) Promessas realizadas 10,20 10,21 10,22 Os quatro primeiros versículos 12-15a oferecem uma clara exigência imposta a Israel, por parte de YHWH. Verifica-se a força de uma novidade, comparada ao primeiro mandamento e uma adesão total ao Senhor. A insistência em colocar Israel diante de YHWH, pode ser facilmente sentida pela utilização de inúmeros verbos, muitos deles sinônimos, relacionando Israel e a exclusividade diante de YHWH. Constata-se essa exigência ao recorrer aos verbos “temer”, “seguir”, “amar”, “servir” (v.12), “guardar” (v.13) todos grafados na segunda pessoa do singular. Os vv. 14 e 15a parecem justificar a ênfase dada aos versículos precedentes ao apresentar YHWH como Senhor absoluto nos céus e na terra, que manifestou um amor exclusivo ao seu povo eleito: hw"hy> qv;x' ^yt,boa]B; qr: “Somente por teus pais se dispôs YHWH” (v. 15a). A segunda unidade é formada pelos vv. 15b-19. A separação pode ser legitimada pela mudança gramatical, empreendida da segunda pessoa do singular para o plural e pela ordem que impõe a prática da circuncisão14. Há uma nova maneira de vivenciar a pertença a Deus. A utilização da metáfora ~k,b.b;l. tl;är>[' “Circuncideis os prepúcios dos vossos corações” (v. 16a), acena para uma entrega interior ao projeto inaugurado e que ultrapassa os limites da primeira aliança outrora estabelecida (Gn 17). Entre os vv. 17-19 encontra-se uma resposta ao gesto da circuncisão do coração. Sete atributos e duas características - não faz distinção de pessoas e não aceita presente – são destacadas na tentativa de encontrar uma definição do ser de YHWH. Tudo procura exaltar a magnificência 14 Tillesse, considerando as diferenças redacionais no uso do Tu e do Vós, propõe repensar as camadas literárias presentes no Dt. Para ele, “certa discriminação entre o Dt primitivo (seção Tu) e o quadro redacional Dtr, que o envolve, permite datar com precisão as seções Vós e, sobretudo, de desprender o documento Dt primitivo, primeira etapa indispensável de todo estudo crítico”. Cf. TILESSE, G. M., Section “Tu”et sections “Vous”dans le Deuteronom”. In: VT, n. 12, 1962, p.33. 62 de YHWH. A transcendência divina, tão elucidada no v. 17, traduz-se na vigência da justiça aos setores sociais desfavorecidos, que se encontram num contexto incapaz de garantir qualquer tipo de jurisprudência, que lhes dê sentido e garantia de seus direitos. O amor de Deus ao estrangeiro (v. 18b) deve ser agora imitado por Israel: rGEh;-ta, ~T,b.h;a]w:, “Amareis o estrangeiro”, (v. 19). O texto faz uma nítida referência aos anos em que Israel esteve na situação de estrangeiro quando da sua permanência em terras egípcias. Na terceira unidade (vv. 20-22) o narrador volta a utilizar os termos na segunda pessoa do singular. Os verbos destacam um estilo confessional, um amor exclusivo dado a YHWH no intuito de denunciar qualquer tipo de prática de idolatria ao elucidar que só em nome do Deus de Israel pode-se fazer um juramento. YHWH é um Deus pessoal, íntimo da vida de seu povo, Israel. A narrativa parece feita exclusivamente para descrever a parceria envolvendo Israel e YHWH. Ele, YHWH, é o “Deus de Israel” (v. 20, 21). Esta exclusividade, já apresentada na primeira estrofe (vv. 12-15) é, agora, retomada evidenciando Israel como testemunha dos grandes feitos realizados por YHWH em prol de seu povo eleito. Nesses atos repousa o sentido único de encontrar só em YHWH o significado de louvá-lo. As palavras hL,aeh' taor"ANh;-ta,w> tl{doG>h;-ta, ^T.ai hf'[', “fez a teu favor essas coisas grandes e terríveis”, (v. 21c) procuram resumir, de certa forma, os grandes feitos não apenas no Egito, como a realização das promessas de Israel se tornar um grande povo. O recurso de um paralelismo sinonímico, assinalado em vp,n< ~y[ib.viB, “setentas pessoas”, e brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK “como estrelas numerosas nos céus”, (v. 22), oferecem certeza ao ser divino, diante dos grandes feitos realizados em favor de Israel. 3.1.3. Comentário e análise semântica Dt 10,12-22 revela a existência de uma divindade que se relalciona com o povo escolhido (vv. 10-15). Por meio dos atributos, pode-se compreender outras duas unidades: vv. 16-19 e 20-22, tendo como sujeito o ser de Deus na compreensão das unidades. Há uma conjugação de princípios, isto é, na mesma intensidade em que se afirma a exclusividade de YHWH, ocorre o desejo de instaurar a igualdade entre todos os membros da comunidade de Israel. 63 O versículo 12 abre a perícope que apresenta, num tom questionador, o diálogo entre Deus e seu povo, Israel. O uso da conjunção “ וe” unida à partícula adverbial hT'[;, “agora”, oferece um caráter de exaltação ao diálogo envolvendo uma divindade – Deus - e seu súdito – Israel, já citada em Dt 4,1. O realce oferecido pela expressão adverbial une-se às conseqüências da demanda imposta pelo Senhor. Nos dois capítulos (10,12 e 4,1), Israel é exortado a obedecer os decretos apresentados por um Deus que lhe é exclusivo e único. Trata-se de uma fórmula genuína de estilo que não deixa de evidenciar certa solenidade, uma vez inserida logo na abertura da narrativa. Israel é o sujeito principal com quem Deus dialoga. Os vv. 12-15 buscam motivações com a finalidade de inculcar a certeza da particularidade e exclusividade de Israel diante de seu Deus. Verifica-se forte interatividade entre Israel e YHWH, duas realidades distintas. Com base na frase adverbial da perícope: “E agora, Israel, o que YHWH, teu Deus, tem perguntado a ti” (v. 12), fica evidente o destaque ao conteúdo empreendido ao longo do texto. A conjunção yKi oferece importância à prática fundamental a ser vivida por Israel. Não é em vão que a frase impõe um certo equilíbrio e realce ao colocar, em primeira ordem, na missão de Israel, uma atitude capaz de garantir ou não a felicidade da comunidade religiosa. O paralelo entre Dt 10,12-15 e parte do primeiro mandamento, expressa no Decálogo Dt 5,2-7, exaltando a exclusividade de YHWH, justifica-se diante dos inúmeros verbos e repetições que visam convocar Israel à frente de uma divindade que não é a única mas Um. YHWH tem a primazia e exclusividade diante das demais divindades. Trata-se do comportamento de ^yh,l{a/ hwhy>-ta, ha'r>yIl.-~ai “ ִכּיexeto temer a YHWH, o teu Deus”, (v. 12b), apresentada na forma qal do verbo arey" grafado no infinito, destacando um comportamento essencial. A ação não se encontra numa esfera de aspecto emocional, mas numa conduta comportamental, com a finalidade de garantir as promessas de YHWH à comunidade de Israel e, consequentemente, a realização das promessas firmadas. Na atitude de temer o seu Deus está ou não garantida a segurança à comunidade religiosa. 64 Na sequência do verbo “temer” unem-se outras importantes práticas já expressas nas primeiras páginas do Dt15. O substantivo lK,o expressando totalidade, é exageradamente utilizado na tentativa de não somente provocar uma atitude, como evidenciar a ação de Israel diante de seu Deus. Trata-se de ações intimamente ligadas à vida da comunidade implicada nas ordens ditas por YHWH. Os verbos, todos, são grafados na forma infinitiva: “andar”, “amar” e “servir” (v. 12b-e). Toda ação está direcionada a Deus. Com ele, Israel deve relacionar-se ^b.b'l.-lk'B, “com todo o teu coração”, ^v<p.n:-lk'b.W “e com toda a tua alma”. Busca-se evidenciar a fé em um Deus único. A atitude de temor a Deus envolve duas dimensões humanas expressas três vezes ao longo do versículo 12: em todo o caminhar, com todo o teu coração e com toda a tua alma. É a insistência do amor total e sem reservas a Deus. Os dois elementos “coração” e “alma” indicam a possibilidade de toda uma vida estar direcionada a YHWH, Deus de Israel. A palavra hw"c.mi “ordem, mandamento”, é compreendida de modo inequívoco, envolvendo as realidades humana e divina. O formato apresentado em Dt 10,13 hw"hy> twOc.mi “mandamentos de YHWH”, quando comparado a outros termos sinônimos - rb'D', “palavra”, hr'AT “Lei”, e qxo “ordem, preceito”, - é um tanto recente, não sendo utilizado pela literatura profética pré-exílica16. Dt apresenta que a ordem proveniente de YHWH direcionada a Israel revela um caráter único em comparação aos textos do Antigo Oriente. “Uma relação de autoridade envolvendo um contexto humano e divino”17. Apenas um critério será determinante para garantir a felicidade ou não de Israel: o seu modo de colocar em prática todos esses preceitos. 15 Notam-se inúmeras repetições que são retomadas nas mais diferentes formas, ao longo dos diferentes temas apresentados pelo Dt. Segundo Kramer, essa retomada de temas, parecendo meras repetições aleatórias, formam, sim, o estilo narrativo de “modelo de blocos” empreendido pelos sábios na composição da obra. Esse apelo a amar o Deus ao qual pertence Israel assemelha-se às fórmulas já encontradas em Dt: 4,9-10.39-40; 6,4-9; 8,11. Cf. KRAMER, P. Origem e legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. In: AT, n. 27, 2007, pp. 428-433. 16 Cf. Cf. LEVINE, B., ִמ ְצ ָוה. Oráculos de Am 2,12; 6,11; 9,9; Is 5,6; 10,6 optam pelo uso do verbo “ ָצ ָוהordenar”. In: BOTTERWECK, J. G., RINGGREN, H., FABRY, H-JOSEF. (Orgs.), Theological Dictionary of the Old Testament, v. 8, Michigan, William B. Eerdmans Publishing Company, 1983-1984, p. 509. 17 Cf. Ibidem, pp. 509-511. 65 O convite à fidelidade se expressa, ao longo do versículo 12, no uso dos verbos “caminhar”, “amar”, “servir”, que parecem adquirir sentido no momento em que Israel recebe a ordem de hw"hy> twOcm . i-ta, rmov.li “guardar os mandamentos de YHWH”, (v.13). Os mandamentos visam mediatizar a vontade divina e ser uma constante presença, todos os dias, na vida da comunidade, isto é, proporcionar meios para que, durante todo o dia, ocorra um encontro com Deus que está acima de tudo e, por consequência, norteia toda a atividade da comunidade. Todos os empenhos no cumprimento dos twOc.mi, “mandamentos”, estão na disposição da comunidade em cumprir a vontade do Criador18. Neste sentido, o conceito envolto no testemunho dos twOc.mi não pode, de modo algum, ser compreendido como uma ação puramente mecanicista. Salientase que, no relacionamento entre criador e criatura, corre-se o risco de haver um comportamento de vassalagem, “senhor e servo”, sendo o ser humano visto como um mero serviçal envolto em um processo de total alienação que nada acrescenta ao desenvolvimento da sua personalidade. Enfim, algo totalmente contrário à realização pessoal. Todos os empenhos no cumprimento dos mandamentos são pensados em plena sintonia e interação com Deus. Em outras palavras, a comunidade guarda os mandamentos, mas sem jamais se sentir esmagada, atemorizada ou plena de pavor diante da presença divina e, sim, pelo fato de saber que a presença divina está implicada nas ordens expressas da hw"c.mi. Nestes versículos, se encontra uma alusão direta, embora um tanto reduzida, às declarações contra o politeísmo presentes em Dt 6,4-9, que oferecem conteúdo e formato à oração do שׁ ַמע י ְִש ֹ ָראֵל ְ “Shema Israel”19, que pode ser verificado na utilização da frase “amar e servir a YHWH, teu Deus, com todo o teu coração e com toda tua alma” (v. 12e), além de recorrer ao sentido de “caminhar com Ele ao longo de todos os teus caminhos” (v. 12c). O uso do infinitivo dos verbos “ אָ ֵהבamar”, e “ ָע ַבדservir”, expressam um determinado 18 A narrativa hebraica utiliza o termo שׁמֺר אֶ ת מִ ְצוֺת י ְה ָוה ְ “ ִלGuardar os mandamentos de YHWH” (Dt 10,13). Embora não sendo encontrados os três elementos, típicos de um mandamento: o pronome pessoal “tu” mais a partícula negativa “não”, seguida do verbo no futuro, definida por Carrière, na diferenciação de mandamento e estatuto, mantém-se o conceito de mandamento. Cf. CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio. Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 92. 19 Trata-se de uma camada literária compreendida como protodeteronômica e sendo parte da mesma camada literária de Dt 6,4-9. Demonstra a preocupação contra as atitudes idolátricas empreendidas no reino do Norte e fortemente denunciadas pelas correntes proféticas de Elias, Eliseu, Amós e Oséias, que estiveram em curso entre os séculos IX – VIII. CF. GARCIA LÓPEZ, F., Deut. VI et la Tradition-rédaction du Deutéronome. In: RB, n. 86, 1979, pp. 59-91. 66 comportamento por parte de Israel: exclusividade a YHWH e separação de tudo o que implica contato com os demais deuses e divindades cananéias. As atitudes de amar e servir envolvem duas dimensões humanas realçadas no texto: “com todo o teu coração” e “com toda a tua alma”. - v. 13: Há uma relação entre מִ ְצוָה, “mandamento”, e %l" bAjl, “para teu bem”. O versículo retoma outras partes do livro ao afirmar que todos os preceitos provenientes da parte do Deus de Israel (5,31; 6,1; 7,11) têm como finalidade a garantia de dias felizes para Israel (5,33; 6,24; 19,13). - v. 14: O superlativo presente em ~yIm"V'h; ymeäv.W ~yIm:V'h;, “os céus e os céus dos céus”, 1Rs 8,27 e no Sl 148,4 é um recurso a mais na exaltação dos atributos de Adonai. A exaltação vem reforçada pelo uso da partícula demonstrativa “ הֵןpreste atenção, vê bem, tem presente que”20. O texto conclama a comunidade israelita a não titubear diante de outras divindades. Ter presente que seu Deus, muita acima dos demais, reina de modo ilimitado. A expressão HB'-rv,a]- lk'w> “e tudo que nela existe”, é uma diminuição das forças contrárias a Israel para exaltar, de modo incomensurável, Adonai, um Deus tão distante e forte, que não se nega a ter uma preferência pelos israelitas (v. 15). O tema da crença num Deus diferente dos deuses circunvizinhos a Israel, pode ser evidenciado no uso do superlativo ~yIm"+V'h; ymev.W ~yIm:V'h; “os céus e os céus dos céus”, (v. 14). Verifica-se aí um elemento utilizado para realçar a fidelidade ao Criador, uma exaltação ao ser divino que não habita numa casa construída por mãos humanas (1Rs 8,27) por ser o Criador do universo (Sl 148,4a). Desse Deus exaltado, acima dos demais deuses, provém um amor exclusivo a Israel: hb'h]a;l. hw"hy> qv;x' ^yt,boa]B; qr:ó “somente com teus pais quis YHWH amar”, (v.15). O v. 15 expressa um gesto de amor firmado por iniciativa própria do Criador. Uma escolha feita para sempre e que perpassa gerações. Uma escolha firmada, primeiramente, com os patriarcas e que se atualiza - hZ<h; ~AYK;, “como neste dia” (v. 15b) - de geração em geração na história da comunidade, até os nossos dias. - v. 15: 20 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 182. 67 A preferência de Deus por Israel é um ato de sua livre escolha, expresso pelo uso da partícula restritiva e adversativa ַרק, “unicamente, exclusivamente, exceto (que)”. Uma ligeira mudança se verifica no texto de Qumram ao grafar על “ כןsendo assim, posto isso” e não “ ַרקsomente, só” como é encontrado no TM. Tal exclusividade exige uma explicação apresentada logo em seguida. Num esforço de oferecer significado à história da formação de Israel, o texto apresenta o termo “ ַבּאֲב ֹתֶ י ִָךpor teus pais” como início da eleição por Israel. Há, de modo proposital, uma referência explicita em que Israel não passava de uma junção de clãs. Ocorre uma retomada, ainda que de modo mais reduzido, das explicações firmadas em Dt 7,7. Deus não escolheu um povo numeroso capaz de atemorizar nações. A eleição acontece como um ato impar de amor por um grupo de pessoas. O termo visa relacionar o hoje da ação divina com a geração passada. Não se trata de uma simples citação à dimensão familiar. A afeição do Senhor por Israel, parte de uma esfera familiar, passa pelos patriarcas, pela história dos antepassados, e chega ao conceito do hoje de Israel, referência última no Dt. A presença de Deus, no hoje de Israel, tem início junto ao período dos “ אָבוֹתpais”, no passado. Um entendimento histórico e não fruto do acaso. Ocorre uma nítida intenção retrospectiva unindo o conceito de “ ַבּאֲב ֹ ֶתי ִָךpor teus pais”, e ~k,B', “vós mesmos”, apesar da mudança redacional para a segunda pessoa do plural21. A escolha, feita no passado, a uma descendência é a mesma. Esta continuidade está no uso da preposição que reforça o aspecto temporal ~h,yrEx]a;, “depois deles”, unindo as duas realidades – “por teus pais” e “vós mesmos”, concluindo com a idéia presencial da ação divina: “como acontece neste dia de hoje” (v. 15b). No v. 16, em continuação a segunda parte do v.15b, segue com o uso da segunda pessoa do plural ao apresentar o ritual da circuncisão. Trata-se de não suplantar o antigo gesto ritual que marcava a união entre Deus e a descendência de Abraão, firmada como um pacto eterno (Gn 17). A narrativa deixa de lado os vínculos de sangue, mas reutiliza o antigo conceito da aliança de sangue compreendida como meio capaz de selar o relacionamento mútuo - para demonstrar uma união que compromete Israel no cumprimento a tudo aquilo que se escuta. 21 Cf. TILLESSE, G. M., Sections “Tu”et sections “Vous” dans le Deuteronome. In: VT, n. 12, 1962, p. 37. 68 Deuteronômio oferece a nova concepção, ao realçar uma aliança espiritual mediante uma circuncisão capaz de marcar o coração, na linha apresentada pelo profeta Jeremias (Jr 4,4; Dt 30,6). Não se trata mais de um sinal capaz de definir os limites familiares ou o grau de união a uma determinada genealogia, mas o grau de escutar e a capacidade de praticar as palavras ditas por YHWH. Ao apresentar a circuncisão do coração, o texto não deixa de apelar para a disposição de escutar e praticar os mandamentos. Alerta para o perigo do endurecimento dos sentidos. Há uma insistência que coloca Israel diante dos mandamentos de Deus. É o Deus de Israel que circuncida, no desejo de que seu povo escolhido seja capaz de agir e seja capaz de temê-lo, amá-lo e servi-lo. Israel é escolhido para transformar e renovar a ação de YHWH no mundo. A aliança tem um valor definitivo e permanente (Dt 30,6-7)22. O termo jP;îv.mi, “direito”, (v.18), encontrado 422 vezes nos textos do Antigo Testamento, recebe inúmeros significados23. No contexto de Dt 10,18-19 é nítido que o termo jP;îv.mi é antecedido do verbo hf'[', “agir, atuar, fazer com”, sublinhando que Deus atua, age para restabelecer a justiça, atua para estabelecer certa equidade. Aqui se trata de um aspecto positivo de uma ação em favor da pessoa ou grupo que se encontram envolvidos em atitudes que o levam a negligenciar seus direitos. Não é por acaso o uso da fórmula [YHWH] rGE bheaow> hn"m'l.a;w> ~Aty" jP;v.mi hf,ֹ[ “faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro”. No contexto de Dt 10,18, vale elucidar que o uso do termo jP;îvm . i “direito” está em oposição aos inúmeros delitos realizados contra àqueles que deviam ver garantidos, no interior da sociedade, suas condições elementares de sobrevivência. 22 Carrière chama a atenção para o fato de que a aliança representa um outro viés. Aqui se trata de uma metáfora que intima Israel a buscar sempre uma renovação, como solicita o salmista (Sl 51,12). A aliança busca dar condições para que Israel tenha um promissor futuro. Tudo acontece por iniciativa de YHWH. Ele não deve ser negligenciado. Para o redator do Deuteronômio, a experiência da Aliança foi aprofundada ao longo das vicissitudes históricas de Israel. Aliança compreendida como experiência e prática de igualdade em relação a um Deus parceiro de Israel. Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio. Escolher a vida, São Paulo. Loyola, 2005, p. 115. 23 Cf. Johson realça os diferentes conceitos que o termo recebe: jurisprudência, oráculos e adivinhações, direito legal, mandamentos e hábitos. Comparando com outros textos, o aspecto do hábito pela justiça fica mais elucidativo. YHWH “ama” a justiça: Is 61,8; Sl 33,5; 99,4; a justiça pode também ser observada: Mq 3,1; Ecl 8,5; deve se ter conhecimento para exercê-la: 1Rs 3,11; é possível estabelecê-la: Am 5,15; Is 42,4. Procura-se compreender o termo justiça no contexto de Dt 10,18. Cf. JOHNSON, B., שׁפַּט ְ ִמ. In: BOTTERWECK, J. G., RINGGREN, H., FABRY, HJOSEF. (Orgs.). In: Theological Dictionary of the Old Testament, v. 9, Michigan, William B. Eerdmans Publishing Company, 1983, pp. 86-98. 69 Recorre-se a YHWH na certeza de que ele é capaz de realizar gestos objetivando erigir a justiça,24e por isso a referência a YHWH, responsável pela superação do litígio. A equação essencial é a de saber que YHWH age com justiça25. As normas expressas no livro são preceitos que enfatizam as relações sociais de aproximação. O próximo é seu irmão e os grupos socialmente desfavorecidos representam simbolicamente o estado do povo quando YHWH o libertou da situação de exploração e servidão26. “O que funda o povo é o fato de YHWH tê-lo feito sair do Egito, tê-lo libertado da servidão na qual vivia no Egito. Se o acontecimento fundador de Israel é um ato de libertação, então a atitude fundamental que mantém a identidade e a singularidade do povo, ao longo das circunstâncias de sua história, deve ser da mesma ordem: um ato de libertação, concretamente mediatizado nas situações encontradas”27. - v. 16: Os dois verbos - ~T,lm . ;W “circuncidareis”, e Wvq.t; “endurecereis” não deixam de exortar Israel a evitar todo e qualquer tipo de comportamento que seja capaz de impedir a praticidade das leis ordenadas por Deus. ~k,b.b;l. tl;r>[' tae ~T,l.m;W “circuncideis os prepúcios dos vossos corações”, é uma nítida retomada da antiga aliança selada com os patriarcas (cf. Gn 17,9-12). Agora, se trata de marcar o coração em vez da carne. É no coração que se assenta o juízo de todas as “atividades intelectuais e volitivas do ser humano”28. Complementando a 24 Weinfeld não apenas anota que o termo justiça aparece como um conceito inserido num contexto de justiça social, e por isso forma um binômio juntamente com o conceito ְצדָ קָ ה “equidade”. Os “termos מִ שְׁ ָפּט וּ ְצדָ קָ הforam considerados um ideal sublime, e por isso divino no salmo 33,5: Ele ama a justiça e o direito, a terra está cheia do amor de YHWH”. ִמשְׁ ָפּט וּ ְצדָ ָקהfoi amplamente utilizado na literatura do Antigo Oriente e, mais tarde, veio influenciar toda a literatura sapiencial e profética em Israel. No Código de Hammurabi encontra-se a afirmação positiva de que Shamash, ele mesmo, dá a verdade (kinātum) e kittum u mīšarum são seus presentes. Cf. WEINFELD, M., Justice and Righteousness – – מִ שִׁ ָפּט וּ ְצדָ קָ הthe Expression and its Meaning. In: JSOT.S. 137, 1992, pp. 228-246. Buis relaciona os grandes feitos narrados nas epopéias ugaríticas como uma ação imitada, agora, pela divindade absoluta israelita. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, Paris, Beauchesne, 1969, p. 180. 25 Deve-se ter alguma cautela diante das traduções encontradas em várias versões bíblicas, conforme as ressalvas feitas por Krašovec. Na BHS é ampla e variada a utilização do termo justiça () ְצ ָדקָ ה. Nosso texto realça a maneira e a vontade de YHWH no agir diante de uma real situação. Cf. KRAŠOVEC, J., La Justice (ṣdq) de Dieu dans la Bible Hébraïque et L´interprétation Juive et Chrétienne, Freiburg Schweiz, Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1988, pp. 181-209. 26 Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 64. 27 Cf. Ibidem, p. 63. 28 Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 40. Sobre o significado metafórico da circuncisão do coração ver também CHRISTENSEN, L. D., 70 fidelidade diante do Senhor, a narrativa retoma a formula dA[) Wvq.t; al{ ~k,P.r>['w> “e vossas nucas não endurecereis mais”, um tema caro ao profeta Jeremias (cf. Jr 7,26; 17,23; 19,15; 32,33 e 48,39). Uma possível teimosia da parte de Israel, diante do não cumprimento dos mandamentos, recebe, assim, essas duas observações que recaem sobre o coração e a dura cerviz, antigas metáforas utilizadas para demonstrar um coração fechado ao projeto de Deus. - v. 17: Os atributos de Deus, iniciados no versículo 14, são retomados nesta parte do texto. Os domínios do Deus de Israel são incomensuráveis. No formato da narrativa, pode-se destacar o grau de interação entre transcendência e imanência. Isto é, o Deus, senhor dos céus atua também no universo humano não diferenciando pessoas. Por meio de inúmeros atributos, percebe-se que ele é o único Deus e os demais deuses são meros subalternos. A Ele a suprema divindade. O Senhor está muito mais acima de qualquer outra divindade existente entre os cananeus ou mesopotâmicos. Buscam-se gestos que enaltecem os atributos e feições do ~k,yhel{a/, “vosso Deus”, por outro, as características não deixam de fazer um forte apelo contra a idolatria, como bem ressaltam os atributos que lhe fazem menção: a) ~yhil{a/h' yhel{a/ aWh “ele é o Deus dos deuses”. Considerando que os deuses legitimavam um determinado regime político e seu poderio militar, YHWH é apresentado estando acima de todos os deuses; b) ~ynIdoa]h' ynEdoa]w: “e o Senhor dos Senhores”. O superlativo está na base dos atributos divinos, utilizados como meios para exaltar a unicidade de YHWH; c) laeh' “o Deus”. O termo é proveniente do universo ugarítico e não se trata, aqui, de um termo genérico proferido a uma divindade qualquer, alheia às vicissitudes do povo. A recorrência ao uso do artigo definido הaponta para uma exaltação e identificação do ser e entendimento de Deus; d) ldoÜG"h; “o Grande”. A presença do artigo definido qualifica e diferencia o Deus de Israel. Oferece a YHWH grande importância, além de acenar para a eternidade. e) rBoGIh; “o Valente”. O epíteto descreve outro atributo do Salvador de Israel; f) ar"ANh;w> “e o Terrível”: uma exaltação para confiar no poderio salvífico de YHWH (Dt 7,21-22); g) ~ynIp' aF'yI-al{ “não faz favoritismo”: indica uma explícita referência à onipresença de YHWH. Deuteroonomy 1-11. In: WBC, p. 206; NELSON, D. R., Deuteronomy:a commentary, London, Westminster John Knox, 2004, p. 137. 71 Literalmente traduzido como sendo um Deus “que não considera a face”, isto é, não faz distinção de pessoas. O texto considera as relações humanas que sempre se fundamentam nos interesses para sublinhar o modo de agir de YHWH; h) dx;v)o xQ:yI al{w “e não aceita presente”: a sinceridade divina se estende compreendendo seu modo de agir: um juízo que não se deixa corromper (Dt 16,19; 27,25). Seu ser divino é justo em sua essência. Desta essência divina provêm a capacidade e atributos capazes de exercer seu papel de juiz, que, em seu modo de agir, prioriza a prática da justiça ao órfão, à viúva e ao estrangeiro (v. 18). Não é por um acaso que se incia a frase recorrendo à partícula de cunho explicativo yKi, “pois, porque”, ao discorrer sobre os atributos divinos29. O recurso é utilizado para as ações divinas. Após a citação do nome de Deus, seguem sete atribuições, considerando o uso implícito do verbo “ הָיהser, estar” seguido das cinco atribuições, com seus respectivos verbos: aF'äyI-al{ “não favorece”, xQ:yI al{w> “e não pega”, jP;v.mi hf,[ “faz justiça”, bheaow> “e ama” e tt,l', “e dá”. - v. 18-19: No vv. 18 e 19 ocorrem, pela primeira vez no livro, a referência à Trilogia Social apresentada na seguinte ordem: órfão, viúva e estrangeiro. A ordem difere das outras seis citações encontradas no livro que usam a seguinte ordem: estrangeiro, órfão e viúva. A consequência de um Deus incapaz de aceitar presente e, que por isso, não faz diferença de pessoas, agora, vê sua imparcialidade e imanência em realce. Adonai atua no interior das relações sociais e econômicas, no desejo de impedir a “vulnerabilidade humana nos negócios”30. O status social das três categorias assemelha-se à figura de pessoas não contadas em Israel. Atingem um determinado grau de pauperização que chega a identificarse com os grupos das viúvas, órfãos e estrangeiros. Encontram-se numa situação, por demais adversa, das condições mínimas capazes de garantir sua sobrevivência31. Nesta situação, Deus é apresentado como instaurador do direito. 29 A partícula explicativa ִכּיse explica em referência às sete atribuições (v. 17): 1) vosso Deus, 2) Deus dos deuses, 3) Senhor dos senhores, 4) o Deus, 5) o Grande, 6) o Forte, 7) o Terrível e não ao uso do verbo circuncideis (v. 16a), como analisa Nelson, ao comentar a narrativa. Cf. NELSON, D, R., Deuteronomy:a commentary, London, Westminster John Knox, 2004,p. 137. 30 Cf. CHRISTENSEN, L. D., Deuteronomy 1-11. In: WBC, Vol VI, Texas, Word Books, 1991, p. 207. 31 NELSON, D. R., Deuteronomy: a commentary, op. cit., p. 137. Ver as análises comparativas ao termo estrangeiro feita por Bertrand, para quem ocorre uma associação proposital, nos textos bíblicos. Das dezesseis vezes em que o termo “ אזרחnativo, autóctone” é citado na BHS, quinze vezes surge associado ao termo “ גרestrangeiro”. “Uma só legislação utilizada para o nativo como 72 Uma divindade que produz, realiza, a exemplo do verbo “ בּ ָָראcriar, fazer” denota uma ação, um gesto divino em prol dos violados em seus direitos, ou vítimas de um processo ou acontecimento social, que os qualifica nesses grupos desfavorecidos. Realizar o direito é prova da imanência divina. O termo técnico jP;v.mi “direito”, é apresentado como uma ação divina em vista do bem-estar do órfão e da viúva, gesto inserido numa realidade social, segundo deixa transparecer a afirmação de que Deus jP;vm . i hf,[ “faz direito”, rGE bheaow> “ama o estrangeiro” e hl'm.fiw> ~x,l, Al tt,l' “dá para ele pão e roupa”. As ações do Todo-Poderoso se traduzem em restabelecer o direito aos grupos negligenciados. Um gesto feito em meio às contradições históricas. Como outrora, na escolha de Deus por seu povo (Dt 7,8), Adonai age somente por bh;a', “amar”. No texto, o gesto de amor vem explicitado: Ele garante - !t;n" “dar” pão ao estrangeiro. A referência ao Egito (v. 22) é evidenciada por meio de uma equação expressando duas realidades quantitativas distintas. A primeira, apresenta a unidade vp,n< ~y[ib.viB, “setenta pessoas”, citada em outros textos, com a finalidade de realçar aspectos da origem de Israel, ligada historicamente ao Egito, espaço reconhecido como local de servitude e exploração (Gn 46,27; Ex 1,5). As origens de Israel entrelaçam-se com o interior deste poderosíssimo império, responsável por séculos de dominação (Ex 6,2-9). Uma segunda realidade certifica o cumprimento das promessas feitas por YHWH. Recorrendo também à fração quantitativa brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “como estrelas numerosas nos céus”, o crescimento de Israel ocorre por meio de sua união a YHWH. Israel tem a sua frente uma nova realidade diferenciada de séculos atrás (Dt 10,10-18). Nota-se que essas duas realidades podem, muito bem, ser relacionadas pelo uso da partícula adverbial hT'[;w> “e agora”. O jogo de contrastes opondo “setenta pessoas” a “estrelas numerosas nos céus” é utilizado para certificar que Israel não para o estrangeiro”. Cf. BERTRAND, M., BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques. In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, p. 57. A imanência do Deus de Israel pode ser constatada na defesa do estrangeiro e dos grupos sociais desfavorecidos. Eis uma real e contundente maneira de apresentar as nações circunvizinhas a Israel, YHWH. Cf. BRIEND, J., Le Dieu d’Israël reconnu par des étrangers signe de l’universalisme du salut. In: BOVATI, P., MEYNET, R., (Orgs.), Ouvrir les Écritures, Paris, Cerf, 1995, pp. 65-76. 73 vive por si mesmo, mas tem sua prosperidade somente na relação com seu Deus, que perpassa toda sua história. Embora sempre tenha havido, ao longo de toda história de Israel, uma relação com o país vizinho, a citação ao hm'y>r"cm . i “Egito”, (v. 22) acompanha um conceito ideológico32. Não se trata de evidenciar a segurança e refúgio encontrado em tempos de estiagens ou guerras (Gn 12,10; 13,8; 45,6-8; 50,25). O país é compreendido como terra da servidão, época do não ser, e, também da dominação espiritual, quando das idolatrias vividas pela comunidade dos hebreus. Desta total realidade do não ser, fez YHWH sair das terras da escravidão. É neste sentido que os apelos feitos pelo narrador nos versículos 20-21 adquirem pleno entendimento. A um Deus que garante a vida deve-se temer, servir, apegar, louvar diante das grandes obras realizadas em benefício de seu povo. No contexto da narrativa o versículo 22 não se entende sem a constatação da ação javista em favor de Israel: “estas grandes e terríveis coisas que viram os teus olhos” (v.21). Israel não ama uma divindade amorfa, sem interesses por sua vida e história. Pelo contrário, verifica-se uma intimidade, uma onipresença e uma gratuidade envolvendo Israel e seu Deus. A fidelidade a YHWH volta a ser conclamada, agora, de modo solene nos vv. 20 e 21, que usam os quatro verbos: “temer”, “servir”, “apegar” e “jurar”. Busca impedir o risco da comunidade ceder aos outros deuses, cultos e práticas de sacrifícios, sempre condenados pelos profetas. A frase [;be(V'Ti Amv.biW dbo[]t; Ataow> ar"yTi ^yh,l{a/ hw"hy>-ta,, “a YHWH, teu Deus, temerás e só a ele servirás, só em seu nome jurarás”, presente em Dt 6,13 é retomada com o acréscimo de qB'd>ti AbW “a ele te apegarás” (v. 20c). Nos vv. 20-21, Deus volta a ocupar a centralidade na narrativa. Desta vez, a partícula אתintroduz o complemento direto que é Deus merecedor do temor, do serviço, do apego e do ato de jurar. Em outras palavras, a vida deve tê-lo como eixo. Aqui, acontece uma repetição das ordens grafadas nos vv. 12 e 13, com o acréscimo ao uso do verbo qb;D' “apegar”. O v. 21 parece estar respondendo os motivos de ter Deus como senhor de tudo. A resposta implica na retomada de um dos atributos divinos presentes no v. 17 - ar"ANh;w> “e o terrível” – juntamente com 32 O realce é estabelecido pelo uso do sufixo he-locale que ofere realce ao substantivo Egito. A tradução poderia ser: para o Egito. Cf. KELLEY, P. H., Hebraico Bíblico: uma gramática introdutória. São Leopoldo, Sinodal, 2002, pp. 179-180. 74 outras duas indicações de cunho litúrgico, segundo a utilização dos substantivos: ^t.L'hit. “teu louvor”, e ^yh,l{a/ “teu Deus”. Tal apelo se justifica na fórmula hL,aeh' taor"ANh;-ta,w> tl{doG>h;-ta, “estas grandes e terríveis coisas”, (v. 21) soam como uma espécie de resumo do que aconteceu durante a saída da terra da escravidão, vividos pela comunidade, na expressão conclusiva do versículo: ^yn<y[e War" rv<a], “que viram teus olhos”, (v. 21). - v. 22 A declaração hm'y>r"c.mi ^yt,boa] Wdr>y" vp,n< ~y[ib.viB. “com setenta pessoas teus pais desceram ao Egito” (v. 22a), é uma retomada das promessas, feitas em torno do pacto da aliança e presentes em outros textos (Cf. Gn 46,27; Ex 1,5; Dt 1,10). O prometido é realizado. A promessa se realizou. Concretizou-se, segundo a frase utilizada no fechamento da pericope: ַשׁ ַמי ִם לָר ֹב ָ ּ “ כְּכוֹ ְכבֵי הcomo estrelas numerosas nos céus”. O Senhor cumpriu sua promessa e, por este motivo, ocupa o centro das atividades de Israel. Ocorre a citação de duas referências numéricas que não se contrapõem, mas se completam, no desejo de mostrar o crescimento, diante da cifra vp,n<ë ~y[ib.viB., “com setenta pessoas”, (v. 22a) lembra a vivência dos patriarcas em terras do Egito, de onde os fez sair YHWH (Gn 46,27b; Ex 1,4-5). A descendência de Abraão se une ao agora, ao presente, à atualidade da comunidade israelita como meio de legitimação das promessas de YHWH em prol de Israel. Uma outra verificação acontece na cifra brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “como estrelas numerosas nos céus”. O contexto de Dt 10 prova o crescimento incalculável da comunidade, o que não deixa de ser uma realização da promessa divina. Há uma particularidade por parte do próprio YHWH, ao se identificar com os patriarcas nas terras do Egito e com o presente vivenciado pela comunidade: ^yh,l{a/ hw"hy> ^m.f' hT'[;w> “e agora dispôs-te YHWH, teu Deus” (v. 22b). 3.2. Há um tempo determinado para a justiça: Dt 14,28-29 O capítulo 14 insere-se entre os capítulos 12-26, reconhecidos como a parte primitiva do livro ou proto-deuteronômio33. Quatro grandes grupos de 33 Os comentários sobre os inúmeros círculos redacionais imposto ao livro do Dt são convergentes. Desde os estudos publicados por Martin Noth, a crítica vétero-testamentário indica um processo redacional responsável “pela construção do livro do Deuterônomio”. O livro é resultado da soma 75 normas podem ser encontradas ao longo desses capítulos e divididas nos seguintes estilos narrativos: leis sobre o culto (12,2-16,17), leis sobre o modo de vida no interior das cidades (16,18-20; 20), leis comportamentais destinadas à vida familiar (21,1-23) concluindo com leis de pureza social e ritual (23,2-25; 26,115)34. Entre os capítulos 14-15,23 podem-se constituir certas unidades literárias35 subdivididas em seis diferentes blocos narrativos: a) Alerta contra práticas idolátricas (Dt 14,1-3); b) Determinação das práticas alimentares definidas como puro e impuro (Dt, 14,4-21); c) Alerta sobre a prática do dízimo, dividida em duas unidades: dízimo anual proveniente do resultado da colheita e entregue num santuário determinado por vontade de YHWH (Dt 14,22-27) e dízimo trienal, também resultado da colheita, mas entregue para o consumo do levita, estrangeiro, órfão e viúva (Dt 14,28-29); d) Determinação do ano sabático e as obrigações sociais a serem praticadas (Dt 15,1-11); e) Normas de comportamento entre escravos e proprietários na chegada do ano sabático (Dt 15,12-28); f) Obrigatoriedade na consagração dos animais primogênitos, num lugar determinado por YHWH (Dt 15,19-23). Tais leis, quando subdivididas, formam a estrutura, descrita a seguir, tendo como tema central leis voltadas às necessidades dos grupos socialmente pobres: a) Dt 14,1-3 Apelos contra a idolatria de inúmeros círculos literários, divididos entre as épocas pré e pós-exílica, constituindo os respectivos códigos: D (Proto-Deuteronômio), “encontrado” no interior do templo, na época do rei Josias (622), tendo suas tradições oriundas do Reino do Norte; dtn (deteronômico) referindo-se à época pré-exílica que de certa forma trabalhou sobre as antigas fontes D; dtr (deuteronomista) elaboração feita no pós-exílio e DtrG (Obra histórica deuteronomista) responsável pelos livros de Js-2Rs. No trabalho da tradição deuteronomista pode-se, ainda, constatar outras três tradições: DtrH (Deuteronomista historiador), DtrP (Deuteronomista Profético) e por último a presença de uma tradição de cunho DtrN (Deuteronomista Nomista). Cf. GRADL, F.; STENDEBACH, F. J., Israel e seu deus - Guia de leitura para o Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2001, pp. 48-75. Ver a síntese exposta por Carrièrre. Cf. CARRIÈRRE, J-M., O livro do Deuteronômio:Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 34. As recentes pesquisas, bem como seus resultados consensuais e divergentes, sobre a obra Deuteronomista, vêm sendo acompanhada, no Brasil, pelo professor Airton José da Silva. Em artigo publicado com base nos últimos simpósios internacionais o autor apresenta os resultados mais recentes das pesquisas que estão longe de atingir um patamar consensual. SILVA, J. A., O contexto da obra histórica deuteronomista. In: EsBi. 88, 2005, pp. 11-27. 34 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome. Paris, Beauchesne, 1969, p. 219. 35 Ao considerar a realidade agro-pastoril refletida nos princípios legais, pode-se determinar um corpo literário estabelecido nos capítulos 14,1-15,23. Tal divisão não é consensual entre nos estudos do Dt. Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio – Introducción y comentário, op. cit. p. 252; NELSON, R.D., Deuteronomy – a commentary, op. cit. p. 182; Christensen opta pela mesma divisão apresentada por Buis. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised. In: WBC, vol. 6a, Texas, Thomas Nelson, 2001, p. 295. 76 b) Dt, 14,4-21 Determinação do puro e do impuro c) Dt 14,22-27 Prática do dízimo anual entregue no santuário d) Dt 14,28-29 Obrigatoriedade do dízimo trienal entregue aos grupos desfavorecidos e) Dt 15,1-11 Determinação e periodicidade do ano sabático f) 15,12-28 Obrigatoriedades sociais no ano sabático diante do escravo compatriota g) Dt 15,19-23 Obrigatoriedade dos animais primogênitos O legislador do Deuteronômio se apóia em referências temporais para expressar o caráter humanitário das normas apresentadas. O legislador deuteronômico não se deixa dividir entre o utópico e o universo real, após realçar a unicidade e a relação singular entre Israel e seu Deus (14,1-21). Há um tempo bem fixado para se cumprir a oferenda do dízimo anual e trienal, a remissão das dívidas e a libertação dos escravos somados à lei da primogenitura (14,22-15,20). Percebe-se a junção entre o comportamento ético e religioso. 3.2.1. Dt 14,28-29: tradução, aspectos filológicos e variantes Ao final de três anos, tu tirarás 28a a décima parte de toda a tua rf;[m. ;-lK'-ta, ayciAT ~ynIv' vl{v' hceqm. i awhih; hn"V'B; ^t.a'WbT. colheita desse ano e disponibilizarás nos teus 28b `^yr<['v.Bi T'x.N:hiw> 29a ywILeh; ab'W %M'[i hl'x]n:w> ql,xe Al-!yae yKi portões. Virá o levita, Porque ele não tem parte e nem 29b herança contigo, o estrangeiro, o órfão e a viúva, 29c que vivem nas tuas vizinhanças, rv<a] hn"m'l.a;h'w> ~AtY"h;w> rGEh;w> W[bef'w> Wlk.a'w> ^yr<['v.Bi comerão e se satisfarão. A fim de que, te abençoará 29d YHWH, teu Deus ^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> ![;mÛ;l. 77 em toda a obra que tua mão 29e fará. rv<a] ^d>y" hfe[]m;-lk'B. `hf,[]T; Duas variantes são apresentadas no v. 28. Em 28b o verbo xwn “depositar, colocar, descansar”, na segunda pessoa do singular, no hifʻil, descreve a simples ação de entregar parte da colheita em um lugar determinado: T'x.N:hiw>, “e depositarás, colocarás à disposição”. Uma alteração gráfica ocorre no Pentateuco Samaritano e na LXX, grafada também no hifʻil com o sufixo da terceira pessoa ATx.N:hiw>, “e as depositará”. A LXX utiliza qh,seij auvto., “deposita-la-á”, usando o pronome pessoal acusativo neutro da terceira pessoa, seguido do verbo no futuro, como faz o TM. Uma segunda alteração está registrada no v. 28, refere-se ao termo ^yr<['v.Bi, “nos teus portões”. Alteração encontrada na Gueniza do Cairo, grafada na forma בשערךe no Targum encontrada com o sufixo da segunda pessoa plural בשעריכם, podendo ser traduzida como “em vossos portões”. No v. 29, considerando a grafia hfe[m ] ;-lk'B. “em todo o trabalho, tarefa”, presente no TM, encontramos as seguintes variantes: 1) o texto grego da LXX na edição tardia em contrastes com as revisões posteriores grafa sou evn pa/sin toi/j e;rgoij, “em todos os seus trabalhos”, sendo equivalente à שֺיָך ֶ בכל מעconforme 15,10. 2) Outras inúmeras variantes são encontradas nos códices dos manuscritos hebraicos 1.9. No texto da LXX, segundo recensão de Luciano, nos minúsculos códices ou em alguns textos da LXX, segundo Orígenes de Alexandria, verificamse alguns asterísticos. A versão Siríaca/Peshitta e a Vulgata utilizam a forma בכל מעשה י ָדֶ יָך, contrastando com o Targum Yerushalmi I que a utiliza בכל מעשי ידיכם, “em todos os feitos de vossas mãos”. Outros códices cursivos (minúsculos) da LXX omitem hf,([]T; rv<a] “que fará, que irá realizar”. Com base no uso feito por alguns manuscritos na utilização da segunda pessoa do plural, em tradições mais recentes, não ocorre nenhuma variante ao TM. 3.2.2. Delimitação do texto, composição e estrutura A delimitação da perícope (Dt 14,28-29) se faz considerando a apresentação das leis religiosas e os deveres com o pagamento dos respectivos 78 dízimos. São encontradas duas leis sobre o dízimo: a primeira elucida o dízimo anual (vv. 22-27) e a segunda, o trienal (vv. 28-29). As duas são distintas. Guiando-se pelos textos, a evidência recai, sim, sobre a dimensão social do dízimo, mas as narrativas são distintas. Se, na primeira – dízimo anual – prevalece a oferta feita a YHWH, num santuário determinado (vv. 22-27), a segunda evidencia, como principal destinatário, não mais o templo ou a manutenção dos serviços realizados em seu interior, mas um grupo social formado por pessoas desfavorecidas bem delineadas: o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (vv. 2829). A delimitação do texto ocorre ao considerar a nomeação do dízimo anual (14,22-27), trienal (14,28-29) e pela legislação do ano sabático (15,1-11). As leis destacam o universo cultual, disponibilizando os bens a dois destinatários: YHWH e grupos sociais formados pelo levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva. Uma outra observação favorável a essa divisão das narrativas em dois blocos – a) vv. 22-27, b) vv. 28-29 – são as três referências temporais citadas em diferentes épocas relacionando, também, diferentes dízimos: hn"v' hn"v' “a cada ano”, (14,22), ~ynI©v' vl{åv' “a cada três anos”, (14,28), ~ynIv'-[b;v, “a cada sete anos”, (15,1). Nota-se a insistência em precisar o tempo de pôr em prática as leis. Embora se trate de um outro tema, a libertação dos escravos, bem como a remissão das dívidas e a oferenda do primogênito, são, também, fixadas num determinado tempo36. Trata-se de uma lei apresentando um enunciado. A intenção da lei é elucidar a importância do dízimo oferecido no seu devido tempo: a cada três anos. A preposição מן, compreendida como “a partir de, desde, depois de”, oferece um caráter enfático ao substantivo hc,q', “fim, extremidade”, dando à narrativa um tom fortemente imperativo. Não se trata de qualquer época. Nada acontece à revelia ou por vontade própria. O ciclo, a temporalidade para dispor do dízimo é bem definida: “ao final de três anos”. Num segundo momento é apresentado o material sobre o qual vigora a lei. Neste caso é notório que está em questão certa quantia proveniente de parte do resultado da colheita (v.28a). Como não poderia deixar de ser, a lei apresenta aqueles que têm o direito ao beneficio por ela estipulado (v.29a-c). Os portões das cidades são os lugares onde devem acontecer, como sinal de prova do 36 Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 30. 79 cumprimento legal (v.28b). Há, enfim, a finalidade de praticar a lei, ou seja, aparece um arcabouço ideológico que justifica: a prosperidade diante de YHWH (v.29d). Pode-se realçar o seguinte delineamento à narrativa: v. 28a periodicidade a cada três anos da lei b v. 28 elucidação todo o dízimo da colheita dispô-lo nas portas das cidades v. 29a Beneficiários levita, estrangeiro, órfão e viúva v. 29b Motivação não tem parte na herança lugar comerão nas portas até ficarem v. 29c determinado saciados v. 29d conclusão benção de YHWH em todos os trabalhos 3.2.3. Comentário e análise semântica A origem dessa rf;[m . ;, “décima parte”, a ser separada, também é determinada no texto. Verifica-se ser a parte correspondente de toda a quantia produzida ao longo do ano: rf;[m . ;-lK'-ta,, “e toda décima parte”, do produto da terra ou da colheita. O resultado da separação deve ser colocado à disposição dos necessitados, segundo o sentido do verbo יצאno hif`il, junto às portas das cidades. Trata-se de uma quantia vista como abundante, e disposta junto à porta da cidade, produtos animais e vegetais colhidos em Israel, considerados suficientes para suplantar os limites da pobreza37. Os beneficiados são bem definidos no texto: o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (v. 29). O objetivo é de receber, por parte de YHWH, a bênção em todas as ações empreendidas. Tratase da afirmação renovada diante de YHWH e o ofertante. Estar diante de YHWH é renegar qualquer dependência aos deuses cananeus38. 37 Cf. SÁNCHEZ, E., SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 301. 38 Cf. ZABATIERO, J. P. T., “Em busca de uma economia solidária: Dt 14,22-15,23, resistência popular e identidade social”. In: EsBi, 84, 2004, p 14. 80 Uma legislação sobre o modo de dividir o dízimo foi fundamental para poder medir o grau de liberdade e solidariedade existentes, já, na época em que Israel esteve sob o regime de dominação Assíria39. Não se sabe se o dízimo trienal somava-se ou não ao dízimo anual citado nos versículos 22-2740. A décima parte da colheita pertence às classes desfavorecidas e aqui determinadas na pessoa do levita, do estrangeiro, do órfão e da viúva e será disponibilizada nas portas das cidades41. “Nenhum código anterior ao Deuteronômio regulamenta o dízimo. Sabemos de sua existência anterior em Israel e Judá através de textos como Am 4,4 e das narrativas do Gênesis e na “lei do rei” em 1Sm 8 (texto deuteronomista). É sabido também que em vários outros países do antigo Oriente o dízimo era praticado. Provavelmente, em Judá e Israel, o dízimo fosse praticado como tributo pago à casa real e não como uma oferta cúltica, uma vez que na chamada Privilegrechte Jahwes e no Código da Aliança somente se mencionam as primícias e os primogênitos”42. Fruto da convergência de inúmeras tradições literárias, o Dt não poderia deixar de apresentar diversos enfoques. Constata-se que duas diferentes finalidades na coleta do dízimo foram estabelecidas, recebendo um viés que as diferenciam das práticas estabelecidas nos principais santuários dos reinos de Israel. As leis de centralização do culto modificaram tremendamente um grande número de costumes religiosos, em particular as ofertas dos dízimos43. O dízimo não está centralizado num determinado santuário, mas determinado para ser consumido nas portas das cidades, por grupos socialmente fracos, como sinal eficaz na busca de equilíbrio social. 39 Segundo o conteúdo encontrado em Am 4,4 e sobre a importância do santuário como local de administração das finanças do reino (1Rs 12,26-28), pode-se, com grande clareza, perceber a origem e importância do sistema do dízimo na manutenção das províncias de Judá e Israel, já na época do império Assírio. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 305. 40 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco, Madrid, Cristiandad, 1970, p. 322. O mesmo pode ser notado nas considerações de Crüsemann ao procurar elucidar a importância do dízimo, já na época dos dois reinos em Israel. O dízimo tornou-se um imposto obrigatório instaurado pela própria realeza do país (1Sm 8, 15-17; Am 4,4; Gn 28,22). Cf. CRÜSEMANN, F., op. cit. pp. 304-307. 41 Nota-se certa insistência, quase uma obrigatoridedade por parte dos autores frente ao ato de disponibilizar o dízimo. Embora esquivando-se da noção de retribuição, Zabatiero afirma certa “coerção” religiosa, foi um gesto plausível de certa pecaminosidade humana percebida pelos autores do Deuterônomio. Cf. ZABATIERO, J. P. T., op. cit., p.13. 42 Ibidem, p. 185. 43 Não é sem sentido a argumentação de Abba de que os deuteromistas harmonizaram antigas tradições com as funções sacerdotais vinda da tribo de Levi e as de Arão. “Ambos, padres e levitas, recebem igual menção no Deuteronômio, cada qual mencionado quatorze vezes, e suas respectivas funções são claramente descritas”. Cf. ABBA, R., Priests and Levites in Deuteronomy. In: VT, n. 27, 1977, p. 258. 81 Comparado aos demais textos do livro, onde somente são citados, na trilogia, o estrangeiro, o órfão e a viúva, o grupo dos levitas é acrescentado como beneficiário dos bens produzidos pela comunidade. O levita é uma figura emblemática por estar ligada às antigas tradições sociais e redacionais vindas do Reino do Norte44. Sua figura representa alguém merecedor de solidariedade, por isso, a novidade do autor Deuteronomista de colocá-lo ao lado de outros grupos, reconhecidos como pobres. “Os levitas e os sacerdotes levitas fazem parte de Israel, sem dúvida e de modo inquestionável. Mesmo assim, eles devem ser diferenciados claramente, às vezes explicitamente, das pessoas a quem o texto se dirige. Eles não possuem terras (Dt 14,27; 18,1). O Dt não contém regras para sacerdotes”45. Aqui, nota-se um tom elucidativo ao afirmar sua precária situação e os motivos de ser um beneficiário: %M'[i hl'x]n:w> ql,xe Al-!yae( yKi ywILeh; “o levita, porque ele não tem parte da herança contigo”, (v. 29). Não é difícil provar que, mesmo diante dos movimentos reformistas ocorridos nos reinados de Ezequias e Josias46, essa instituição, ao lado da função da realeza e do movimento profético47, manteve seu prestígio ao longo das diversas fases históricas de Israel48. Para alguns autores, a citação dos levitas, como beneficiários, liga-se às redações tardias igualando a figura do levita à do sacerdote. Não é difícil imaginar 44 O livro do Deuteronômio não deixa de ser uma etapa importante na compreensão do sacerdócio. A união entre sacerdócio e levita apresentada ao longo do Código Deuteronômico considera diferentes momentos da história social e religiosa de Israel. Sabe-se que, após a queda da Samaria, os grupos de levitas se encontram em condições de decadência social e são apresentados, juntamente com o grupo do estrangeiro, merecedores da proteção legal. Pode-se admitir a existência de dois grupos: os responsáveis diretos pelo culto e outro, como os levitas, diretamente ligados à prática do ensino. Os sacerdotes levitas e recebem como função estabelecida em lei num período recente. Cf. AUNEAU, J., Sacerdote. In: GAZELLES, H.; FEUILLET, A., (Orgs.), Dictionnaire de la Bible, supplément, vol. 10, Paris, Letouzey & Ané, pp. -1170-1254. Os sacerdotes levitas e recebem como função estabelecida em lei uma exclusividade sacerdotal 45 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 309. 46 Sobre a questão sacerdotal, no tocante à sua origem, ao grau de importância e influências sentidas diante das reformas históricas há inúmeras controvérsias. Verifica-se que a crítica literária dos textos com referência aos levitas é um tanto complexa. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, pp. 439-443; 462-478; CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, pp. 66-74; EPSZTEIN, L., A justiça social no Antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, São Paulo, Paulinas, 1990, pp. 75-76; 89-90; 143-144. Não é difícil perceber alguma consequência da reforma empreendida por Josias (621), estritamente focada na centralização do culto a YHWH, em Jerusalém, visto como o santuário único, uma vez que sua implementação impulsionou a destruição dos santuários altos e baixos (II Rs 23,5-7.15.19-20), contribuindo, de modo vertiginoso, na mudança e na distinção de funções e status entre os sacerdotes. Cf. CRÜSSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 297. Talvez o final da monarquia condicionasse a equiparação social do levita na condição idêntica a do estrangeiro. 47 Três grupos considerados como líderes do povo e da aliança. Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 294. 48 Cf. CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio, São Paulo, Loyola. 2005, p. 70. 82 que as reformas de caráter centralizador causaram um grave problema às pessoas ligadas aos santuários locais, seja sacerdote ou levita. De Vaux argumenta a possibilidade de antigas tradições sob o controle de grupos sacerdotais ligados ao santuário de Siquém, cujos líderes queriam transformá-lo em um “único local de culto”, preservou antigos hábitos existentes no Reino do Norte, berço redacional das tradições proto-deuteronômicas, entre as quais a proteção perpétua ao grupo dos levitas. Diferenciação estabelecida por um decreto positivo da parte do próprio Deus49. O aspecto tardio de citar o sacerdócio levita também é reafirmado por López, para quem os versos, muitas vezes, no livro do Deuteronȏmio se interompem sofrendo uma espécie de junção50. Para Sánchez, a ressalva está em perceber, ao longo das leis expostas em Dt 14,22-16,17, a afirmação da divindade exclusiva de YHWH, expressa por meio das atividades cultuais e que se estendem às outras esferas da vida: festas, alegrias, propriedades, bens, liberdades. São momentos que edificam o projeto de igualdade entre todos os membros da 51 comunidade . Num outro momento, a norma legal exposta em Dt 14,29 enfatiza o grau com que a prescrição jurídica deve acontecer. A insistência pode ser verificada no uso dos verbos W[bef'w> Wlk.a'w>, “comerão e satisfarão”, (v. 29c). Na importância da função verbal fica evidente que o gesto de disponibilizar 10% de todo o produto da terra dá a certeza de aquisição de uma excelente quantidade de viveres (azeite, carne, trigo e vinho) e do alto teor humanitário a ser vivido no interior da comunidade. O consumo do dízimo no santuário é um aspecto do sistema de arrecadação; outro, é a consideração com as pessoas que não eram proprietárias de terras. Eis uma temática inovadora dos estatutos deuteronômicos. “O que o texto reflete e legisla é um processo de empobrecimento de israelitas livres, o qual culmina em geral na servidão voluntária ou forçada das pessoas empobrecidas e/ou endividadas. Tal processo de empobrecimento, na Antiguidade, está relacionado sobretudo com a prática de fazer dívidas. Camponeses que, por motivo de força maior (seca, pragas de gafanhotos, doença, etc), não conseguem colher o suficiente em 49 Cf. DE VAUX, R., Instituciones del Antiguo Testamento, op. cit., pp. 465-476. Cf. LÓPEZ, G. F., Analyse Littéraier de Deutéronome, V-XI. In: RB, 87, 1978, pp. 5-49. 51 Cf. SÁNCHEZ, E., op. cit., 2002, p. 279. 50 83 sua roça para sobreviver durante o ano, recorrem a empréstimos junto a outros israelitas ou junto a instituições como o próprio templo”52. As duas ações verbais no v. 28, ayciAT, “tirarás”, e T'x.N:hiw>, “disponibilizarás”, grafados na forma hif`il, oferecem coesão e sentido na narrativa. Trata-se de uma ação feita pelo proprietário da terra ou por ele encomendada para cumprir a lei. A lei fixa um período determinado, bem como a quantia a ser disponibilizada nos portões da cidade. Nota-se, considerando alguns termos, que o universo social contemplado pela lei do dízimo trienal é de uma realidade agro-pastoril: ~ynIv' vl{v' hceqm . i “ao final de três anos”, (v.28a); ש ֹה ַ “ מַ ְעdécima parte”, (v.28a); ^yr<['v.Bi, “nos teus portões”, (v.28b) ; “ ַה ֵלּוִיo levita”, (v.29a) e ^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> “YHWH, teu Deus te abençoará”, (v.29d). No interior dessa sociedade deve surgir um equilíbrio social. As normas (vv.28-29) em torno do dízimo realçam o equilíbrio social, no interior da própria cidade53. O período determinado para efetuar o pagamento dos bens adquiridos no ano pode servir de fio condutor na compreensão do dízimo e de sua finalidade. A prática do dízimo recebe leis determinantes. Nada ocorre ao bel prazer do proprietário que controla sua arrecadação. O substantivo ַמעֲשֶֹהda raiz aramaica שר ַֺ ָע, implica o conceito de grupo, divisão, coleção, originando o entendimento de dízimo como parte de um todo54. Trata-se de uma prática comum nas antigas civilizações do Antigo Oriente55, que já era praticada no Antigo Israel e que, devido à sua importância, recebe, no 52 Cf. REIMER, H., Um tempo de graça para recomeçar: o ano sabático em Êxodo 21,2-11 e Deuteronômio 15,1-18, In: RIBLA, 33, 1999, p. 37. Análise consensual faz Wandermuren na abordagem sobre as exigências a serem praticadas com o advento do ano jubilar. Ocorre uma reinterpretação da antiga lei da terra, imprimindo um prisma mais social. “O ano de repouso do campo é transformado em ano de remissão das dívidas”. Cf. WANDERMUREN, M., A lei do ano sabático – para que pobres achem o que comer: um estudo sobre Êxodo 23,10-11. In: RIBLA, 33, 1999, p. 54. 53 A prática do dízimo constitui uma espécie de sacrifício entregue regularmente num único santuário. A relação santuário e dízimo é muito antiga (Gn 28,22; Lv 27,30; Am 4,4). Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia, Paideia Editrice, 1979, p. 114. Craigie, considerando o ciclo sabático de sete anos, argumenta a possibilidade de o dízimo trienal sofrer destinos diferentes. Uma vez para o santuário, outra para os grupos socialmente necessitados. Cf. CRAIGIE, P. C., The Book of Deuteronomy, Michigan, William B. Eeardmans, 1976, p. 234. 54 Cf. HARRIS, R. L. – GLEASON, L. A. – WALTKE, B. K., DITAT, p. 1182. BROWN, F. – DRIVER, S. – BRIGGS, C. – The Brown-Driver-Briggs. Hebrew and English Lexicon, Massachusetts, Hendrickson, 1996, pp. 798-799. Na LXX usa-se o δεκάτε, δέκατον. 55 Verifica-se que a prática do dízimo está intimamente ligada ao ato de agradar certa divindade, no Egito, já na época dos antigos faraós. Os patriarcas fazem uso de uma prática muito comum (Gn 41,34; 14,20). Cf. LESÉTRE, H., Dime. In: DBS, vol. 2, 1926, pp. 1431-1425. 84 Deuteronômio, uma lei determinando quando pagar, quanto pagar, a quem pagar, onde pagar e por quê pagar. Compreende-se que esses cinco quesitos são respondidos, de modo evidente, nesses dois versículos: 1) ~ynI©v' vl{åv' hceq.mi, “ao final de três anos” (v. 28a), é o tempo determinado para se efetuar o pagamento do produto a ser disponibilizado aos setores pobres da comunidade. A referência ao termo “final de três anos” realça a diferença no tipo de dízimo a ser oferecido. Com base nas declarações de Dt 14,22-2756, não é difícil verificar a existência de um outro estilo de dízimo oferecido no santuário e marcado com um ritual de peregrinação e comunhão entre os membros da família. Trata-se de um dízimo anual, direcionado ao santuário e marcado como banquete sagrado, do qual, nenhum dos filhos de Israel deve se furtar nem medir esforços para oferecê-lo (14,24-25). 2) rf;[.m;, “décima parte” (v. 28a), é a quantia que foi sendo determinada como medida nas ofertas provenientes de todos os esforços empreendidos. O termo não é por demais fluente nos textos do AT57, mas adquire um papel relevante na manutenção das atividades e dos grupos que circulam na esfera do santuário (Cf. 2Cr 31,5; Am 4,4), e no entendimento do desejo de partilhar, prover víveres aos grupos pobres da sociedade, além de ser uma obrigatoriedade pública no gesto de exigir a divisão de riquezas acumuladas58. 3) ^yr<(['v.Bi, “nos teus portões” (v. 28b), assegura a antiga tradição de ser a r[;v;, “porta”, o lugar escolhido por excelência para dirimir qualquer assunto relacionado à prática da justiça (Cf. Am 5,15; Dt 5,14). No contexto social do v. 28, foi o local destinado para reunir o povo (Cf. 2Rs 7,1), com a assembléia dos anciãos, responsável pelo sistema de jurisprudência (Cf. Dt 21,19; Am 5,10), testemunho das vitórias no campo de batalha (Cf. Js 8,29; 2Rs 7,17), local 56 A quantidade de dízimos coletados e oferecidos, seja aos santuários ou aos grupos socialmente necessitados, não encontra consenso em grupos de autores. Defende-se a existência de dois ou três dízimos coletados ao longo de um período de um ano. Seja qual for o número de vezes em que ocorre a coleta, constata-se uma dimensão essencialmente social, voltada para o estabelecimento da justiça entre os filhos de Israel. O Código Deuteronômico evidencia dois tipos de dízimo: anual e trienal (Dt 14,22-27; 26,12-15). Outros autores defendem três tipos de dízimos comparando Lv 27 e Nm 18: dízimo dado aos levitas (Dt 14,27; Nm 18); o dízimo destinado ao santuário, celebrado como um banquete sagrado de comunhão (Dt 14,22-26); e um terceiro, disponibilizado a cada triênio aos pobres (Dt 14,28-29). Cf. HARRIS, R. L. – GLEASON, L. A. – WALTKE, B. K., DITAT, p. 1183. 57 Cf.LISOWSKY, G., Konkordanz zum Hebräischen Alten Testamment, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1981, pp. 844-845. 58 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 302. 85 essencial nas transações comerciais e preferido pelos profetas no anúncio de suas mensagens (Cf. Jr 7,2; 15,7). Interessa o local destinado para dispensar o dízimo de toda a colheita: um lugar público59, onde serão disponibilizados os produtos para serem consumidos por grupos de levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas - os socialmente fracos60 - e ser, deste modo, capaz de ser comprovado e controlado, possibilitando aos grupos socialmente fracos adquirirem uma base sólida suprindo suas necessidades básicas. 4) ywILeh;, “o levita” (v. 29a), a esse grupo juntam-se os pobres, destinatários exclusivos para consumir os bens disponibilizados à porta. O levita é, aqui, apresentado juntamente com os desfavorecidos. Sua sobrevivência depende de seus irmãos e, por estar ligado ao ato de ensinar a lei, sem a garantia de herança e manter as atividades cultuais e religiosas na esfera dos santuários, é merecedor de certa parcela do dízimo trienal. 5) ^yh,l{a/ hw"åhy> ^k.r<b'y> ![;mÛ;l. “deste modo, YHWH, teu Deus, te abençoará” (v. 29d). Trata-se de uma decisão que se projeta para o futuro. Este é o motivo de todo o conjunto de normas, provenientes da vontade de YHWH, capaz de ser praticada por toda a comunidade de Israel. Não há como pensar uma sociedade teocrática fora desse parâmetro. Verifica-se, por outro ângulo, o estilo por demais utópico, de plenitude, ao deduzir a finalidade de praticar todos os mandamentos: cumpri-los é a garantia de ser bem sucedido. “A inclusão solidária dos fracos na riqueza da produção proporciona a bênção para o trabalho que torna isto possível. E as formulações estão relacionadas às leis sobre como isso deve acontecer. Elas mesmas são novas formulações de antigas tradições de culto, especialmente referentes aos tempos sagrados. A bênção que, provavelmente já era esperada na entrada do ritmo do tempo sagrado, no Deuteronômio, é assim relacionada com o cumprimento das leis sociais”61. O estilo, na forma de abertura do v. 29, ab'W “virá”, especifica quatro grupos, aos quais são destinados a décima parte de todos os produtos do campo. Os verbos são, nesta primeira parte do versículo, usados na forma qal. Há uma forma clara ao descrever os grupos e as ações de vir, comer e saciar. A forma conclusiva ![;mÛ;l. “e assim, de modo que, correspondendo a”, aqui prefixada com a preposição ל, oferece um caráter de conseqUência, diante dos 59 Cf. Ibidem, p. 303. Cf. Ibidem, p. 305. 61 Cf. Ibidem, p. 316. 60 86 preceitos divinos que Israel deve pôr em prática. O enfoque conclusivo do texto, na forma Piʿel dada ao ָבּ ַרְך, “abençoar”, evidencia a relação de Deus para com o homem, demonstra elevado grau de favorecimento, gratuidade, acúmulo de bens provenientes da parte divina. O uso na forma Piʿel é a mais corrente nos textos do AT62, e compreende uma relação direta e interativa entre pessoas ou grupos envolvidos. A equação seguinte pode sintetizar a compreensão do verbo do Pi´el: A abençoa B com. Fórmula encontrada no versículo. No texto, YHWH cumulará infinitamente todos os trabalhos empreendidos por Israel. Trata-se de uma ação estendida, não somente aos bens, mas a toda forma de empreitada levada adiante, pelas mãos de Israel. O sujeito aqui é Israel convocado a instaurar, diante de um velho sistema de arrecadação de imposto, aqui compreendido como dízimo, uma contribuição regular devida aos pobres. Verifica-se uma obrigatoriedade, seja na oferenda do dízimo, seja na libertação dos escravos. Gestos cultuais e práticas de justiças se entrelaçam. A lei do dízimo é compreendida como uma expressão direta da teologia deuteronômica da liberdade63. A observação da lei e, por sua vez, seu cumprimento são capazes de garantir a sobrevivência dos grupos socialmente desfavoráveis, gerando um equilíbrio social e, por acréscimo, pode demonstrar o ideal de sociedade apontado pelo próprio YHWH. A observância da lei e a garantia do direito à vida do povo é a âncora de todo um princípio legal, podendo, desta maneira, ver, no equilíbrio social, a demonstração real das bênçãos com generosidade doadas por YHWH. 62 Nas seis ocasiões em que a forma Piʿel é analisada por Scharbert prevalece a relação de poder. Os exemplos são inúmeros. 1) O poder do rei sobre seus súditos (2Sm 6,18;1Rs 8,14); 2) Uma pessoa em posição privilegiada se opõe em relação à outra (Js 14,13); 3) Determinada liderança carismática impõe-se diante do povo (Lv 9,23); 4) Um patriarca abençoa e, com a bênção segue certa ordem a ser cumprida (Gn 28,1-6); 5). A bênção pode trazer infortúnios, como é o caso de Balac, rei dos moabitas em ação contra o povo que saiu do Egito (Nm 22, 6). As inúmeras ocasiões em que sacerdotes, em pleno ofício abençoam (1Sm 2,20; Lv 9,22; Sl 118,26; Dt 10,8; 27). Cf. SCHARBERT, J., ברך. In: TDOT, op.cit. pp. 288-290. 63 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 310. 87 3.3. Os produtos da terra utilizados na equidade social: Dt 16,9-12 Não são poucos os estudos que optam por um bloco literário entre os capítulos 14,22-16,1764, no qual uma variedade de temas, ligados aos produtos da agricultura, formam unidades literárias apresentando diferentes momentos da vida humana: o preceito do pagamento do dízimo das primícias (14,22-29); a restauração da igualdade a ser restabelecida com a chegada do ano sabático (15,118) e a consagração dos animais primogênitos (15,19-23). No capítulo 16, são apresentadas três das chamadas festas de peregrinação: a celebração da festa da Páscoa (16,1-8), a comemoração da festa das Semanas (16,9-12), a festa das Tendas (16,13-15), bem como um cronograma que estabelece o comparecimento diante de YHWH (16,16-17). Esta grande unidade pode ser compreendida por meio da expressão ^yh,l{a/ hw"hy> rx;b.yI rv<a] ~AqM'B “no lugar que escolherá YHWH, teu Deus”, que perpassa todos os capítulos (14,22.24.25; 15,19; 16,2.6.11.15). A vida religiosa do povo é refletida em importantes festas. No Código Deuteronômico encontra-se uma verdadeira síntese65 reunindo inúmeras outras tradições, tendo o templo como local por excelência de concentração e entendimento da vida religiosa e social de Israel. 3.3.1. Dt 16,9-12: tradução, aspectos filológicos e variantes Sete semanas tu contarás, para ti 9a %l"-rP's.Ti t[obuv' h['b.vi mesmo, 64 Cf. BLENKINSOPP, J., Deuteronômio. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Orgs.), NCBSJ, São Paulo, Paulus e Academia Cristã, 2007, p. 238.. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio. Introdução e Comentário, Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 276-279. Em outras análises prevalece a divisão considerando os diferentes temas. São elas: 14,22-29; 15,1-11; 15,1218; 15,19-26; 16,1-8; 16,9-12; 16,13-17. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised. In: METZGER, B. M.; HUBBARD, D. A.; BARKER, G. W. (Orgs.), WBC, Texas, Nelson Reference & Electronic, 2001, p.295-352. NELSON, R. D., Deuteronomy – a commentary, London, Westminster John Knox, 2004, pp. 182-210. CRAIGIE, P. C., The Book of Deuteronomy, Michigan, William B. Eerdmans Publishing, 1981, pp. 228-248. 65 Não é impossível, com base nas afirmações de De Vaux, perceber o grau de ressonância que o movimento de centralização em torno do santuário inaugurado no tempo de Ezequias e, mais tarde, retomado por Josias, acabou impondo-se às antigas tradições religiosas. Cf. DE VAUX, R., Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, p. 613-614. Sobre o resultado centralizador da reforma de Josias, Nakanose declara que “os reformistas josiânicos usaram de muita violência para eliminar tudo o que era contrário à centralização no Templo”. NAKANOSE, S., Uma história pra contar: a páscoa de Josias. Metodologia do Antigo Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30, São Paulo, Paulinas, 2000, pp. 111-114. 88 9b lxeT' hm'Q'B; vmer>x, lxehm' e tu começarás a contar sete semanas. 9c `tA[buv' h['b.vi rPos.li Tu farás a festa das Semanas para 10a ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; t'yfi['w> 10b !TETi rv<a] ^d>y" tb;îd>nI tS;mi 10c `^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> rv<a]K; 11a ^yh,l{a/ hw"hy> ynEp.li T'xm. ;f'w> desde o momento em que a foice começar a cortar a espiga, YHWH, teu Deus. Parte da oferta voluntária de tua mão, que darás conforme te houver abençoado YHWH, teu Deus. Te alegrarás diante de YHWH, teu Deus, tu, teu filho, tua filha, teu t,m'a]w: ^D>b.[;w> ^T,biW ^n>biW hT'a; escravo, tua escrava 11b ^yr<['v.Bi rv<a] ywILeh;w> 11c ^B<r>qiB. rv<a] hn"m'l.a;h'w> ~AtY"h;w> rGEh;w> 11d ^yh,l{a/ hw"hy> rx;b.yI rv<a] ~AqM'B; para estabelecer lá seu nome. 11e `~v' Amv. !KEv;l. Tu recordarás que escravo tu 12a ~yIr"+cm. iB. t'yyIh' db,[,-yKi T'r>k;z"w> 12b `hL,aeh' ~yQIxuh;-ta, t'yfi['w> T"rm> ;v'w> o levita que está dentro de suas portas, e o estrangeiro, o órfão e a viúva que habitam contigo, no lugar que escolherá YHWH, teu Deus estiveste no Egito, observarás e executarás esses decretos. Nas variantes do aparato crítico da BHS, encontram-se matizes referentes aos vv. 9,10,11 e 12. O v. 9 possui uma variante seguindo a tradição do texto apresentado pela LXX, correspondente ao Siríaco e referente ao uso do verbo חלל “começar”. Escreve-se “ מֵ ַה ִח ְלָּךcomeçar para ti”, juntamente com o sufixo da segunda pessoa masculina do singular. Variante também presente na Vulgata. Opta-se em manter o TM diante da brevíssima variação. No v. 10 são registradas quatro matizes: a) uma mudança é proposta ao termo ִמ ַסּת, “medida/quantidade/proporção”, no estado construto, alterado para כמתנת, “conforme presente/doação de”, encontrado no v. 17. Registro esse também presente na LXX, na forma de kaqo,ti ... ivscu,e, “conforme ...é capaz”. 89 A LXX, no v. 17, registra kata. du,namin, “segundo a capacidade”. Pode-se, de alguma maneira, verificar que o TM não é seguido em algumas traduções. As propostas, porém, acenam para diversas alterações poucos substanciais; b) uma outra leitura surge no códice manuscrito hebraico 69, no Pentateuco Samaritano e na versão siríaca ao termo “ ידיךtuas mãos”. O termo no TM usa o singular: ;ידך c) Correspondendo ao verbo נתן, “dar”, ocorre uma retroversão, na LXX, grafando-o no subjuntivo aoristo na 3a pessoa singular dw/| “der você”, correspondente à grafia hebraica “ יתןdarás”; outros manuscritos da LXX adicionam o pronome pessoal da 2a pessoa singular soi; d) alguns manuscritos da LXX e da Vetus Latina grafam כאשר ֵבּ ַר ְכָך, “conforme tem te abençoado”, mantem a intensividade da forma piʿel. Fato, também, verificável na versão do Códice Vaticano, correspondendo ao texto de Dt 15,14 e 16,15: כאשר ֵבּ ַר ְכךe כִּי י ְב ֶָר ְכָך. Embora ocorra essa série de matizes, elas não chegam a apresentar uma variante sustentável a uma mudança ao TM. No v. 11, ocorre uma diferença, embora curta, no tocante à grafia da palavra ^D>b.[;w>, “e o teu escravo”. Nos códices cursivos da LXX e na Vulgata encontra-se a grafia עבדך, grafada sem a conjunção. O TM parece estar mais coeso, ao verificar a métrica delineada com o uso da conjunção ו, que une a série de oito substantivos: , ַו ֲאמָתֶ ָך, ְו ַהיּ ָתוֹם, ְו ַהגֵּר, ְו ַה ֵלּוִי, ְוהָאַ ְל ָמנָה, ְו ַע ְבדְּ ָך, וּבִתֶּ ָך,וּ ִבנ ְָך. No v. 12, o TM apresenta uma variante ao omitir o substantivo “ בארץna terra”, como é encontrado no códice manuscrito hebraico 69 e em poucos manuscritos hebraicos medievais, ponderando as recensões da LXX anotadas por Orígenes de Alexandria. Uma vez que está presente em Dt 5,15 a fórmula ְבּא ֶֶרץ מִ ְצ ַרי ִם, “na terra do Egito”, e retomada em 24,18, idêntica expressão, opta-se utilizar, na versão do TM, a grafia: “ ִכּי־ ֶעבֶד ָהי ִיתָ ] ְבּא ֶֶרץ[ ְבּמִ ְצ ָרי ִםpois escravo foste [na terra] do Egito. 3.3.2. Delimitação, composição e estrutura A perícope é intercalada pelos relatos de duas festas e atividades sociais. A legislação sobre a festa das Semanas (vv. 9-12) se encontra entre duas outras referências celebrativas: festa da Páscoa (vv. 1-8) e a festa das Tendas (vv. 13-15). Trata-se de uma legislação que tem em vista datar os aspectos festivos que devem 90 acontecer após a Páscoa. Dt 16,9-12 forma um bloco bem distinto. Pois, a perícope se insere entre a descrição da festa da Páscoa e das Tendas. Ocorre uma harmonização clara, o que oferece um aspecto um tanto tardio à narrativa. Nota-se uma coerência de estilo narrativo, conteúdo e uniformidade de vozes. Há um período para a realização da festa, um nome, bem como um local determinado para sua celebração. Logo após a indicação de comer pães ázimos, por um período de seis dias e, no sétimo, fazer uma grande assembléia em louvor a YHWH (v. 8), há a indicação de um novo cronograma, referindo-se, inevitavelmente, a uma outra festa. Agora, deve-se contar sete semanas, a partir do inicio da colheita, para ter um tempo favorável para a celebração da Festa das Semanas. O v. 9a abre a narrativa realçando um convite: %l"-rP's.Ti t[obuv' h['îb.vi “Sete semanas tu contarás”. Eis um tempo determinado para dar início à contagem das setes semanas66. Após o convite para contar sete semanas, o texto apresenta, de maneira clara, o nome da festa a ser comemorada: ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; t'yfi['w> “farás a festa das Semanas para YHWH, teu Deus” (v. 10a). Embora o texto apresente o verbo hf'[', “fazer”, está implícito o caráter festivo (v. 15) dado à peregrinação empreendida em honra a YHWH67 e acompanhada com uma determinada parte, chamada de “oferta voluntária”, como prova dos bons empreendimentos, ocorridos nos campos e, em sinal das bênçãos recebidas ao longo do ano. Juntamente com a expressão tA[bv' h['b.vi, “sete semanas”, utilizada para abrir e concluir o v.9, o verbo rPes;, utilizado duas vezes, impondo à narrativa um caráter de obrigatoriedade e periodicidade a uma festa que tem um determinado tempo para começar. Não é por acaso que os termos sete semanas e contar se repetem: AB ˂ ˃ AB, grafados paralelamente ao longo do versículo (v.9a + 9c), dando unidade e coesão ao texto. Há um insistência em marcar o ciclo para iniciar as festividades: sete semanas após o início da colheita das primeiras espigas. Encontra-se uma compilação de exigências bem definidas: “tu contarás, desde o começar [a meter] a foice no trigo” (v. 9); “tu farás a festa das Semanas” (v. 10); “te alegrarás” (v.11), que envolve Israel em torno do preceito divino e, 66 Constata-se que o Código Deuteronômico apresenta as mesmas festas realçadas no Código da Aliança (Ex 23,14-17) e Ex 34,18.22-24. Salvo os detalhes acrescidos em Lv 23, os textos, uma vez cruzados, referendam as três importantes festas religiosas: Páscoa, Colheitas ou Semanas e a festa das Tendas. 67 Ex 34,22 realça o aspecto festivo () ְו ַחג שָׁ ֻב ֺעת. 91 com o recurso dos verbos, quase todos no imperfeito. Termina com a promessa de bênção e prosperidade, seguindo o que fala o Senhor. Exigências e motivações se intercalam: Exigências Motivações v. 9a – sete semanas tu contarás v.9b - tua foice começar a cortar v. 9c – tu começarás a contar v. 9c – sete semanas v. 10a – tu farás a festa das Semanas v. 10a – para YHWH teu Deus v. 10b - parte da oferta voluntária de tua v. 10c - te acumulou de bênçãos mão, que tu darás YHWH, teu Deus v. 11a - te alegrarás v. 11a - diante de YHWH, teu Deus v. 11e - fazer residir lá seu Nome v. 11d - lugar que escolheu YHWH, teu Deus v.12a - recordarás que escravo tu v. 12b - observarás e executarás esses estiveste no Egito decretos Nota-se que o eixo central é a identificação e atributos de YHWH, intercalados por dois acontecimentos registrando, respectivamente, o tempo de celebrar a festa das Semanas (v.9) e a experiência de escravo de Israel durante os anos vividos no Egito (v.12). O tom convidativo à observância da norma conclui a narrativa. As exigências são apresentadas por meio de vários verbos indicando uma determinada relação com YHWH. O destaque fica para o verbo “ ָספַרcontar”, citado duas vezes, em relação à festa das semanas. Os verbos, compondo as exigências, estão todos relacionados a uma motivação central: י ְהוָה אֱ ֹלהֶיָך “YHWH, teu Deus”. O conceito dessa divindade pessoal e exclusiva é realce na narrativa. Não é por acaso que é citada quatro vezes (vv. 10a, 10c, 11a, 11d). As motivações, por seu lado, afirmam quem é este Deus de Israel. Ocorre uma ênfase na identificação de YHWH como Deus de Israel, elemento fundamental na fé israelita. 92 3.3.3. Comentário e análise semântica Trata-se de definir a época em que a festa tem seu início. Chouraqui a explica, apoiando-se na narrativa de Levítico: “Contai para vós, no dia seguinte ao shabat, do dia em que conduzis o feixe do balanço, sete shabats. Contareis cinqüenta dias até o dia seguinte ao sétimo shabat e oferecereis, então, a YHWH uma nova oblação” (Lv 23,15-16). Trata-se da festa de Pentecostes - cinqüenta dias + um dia, período entre as comemorações da Páscoa, celebrada no dia 15 do primeiro mês e Pentecostes, celebrado no terceiro mês68. A harmonia impregnada nos textos de Dt 16,9-12 visa uma combinação de datas unindo as três importantes festas religiosas celebradas em Israel. Os eventos festivos tornaram-se ocasiões de rompimento com o cotidiano. . ;f'w> “e te alegrarás Neste sentido, não é em vão o convite: ^yh,ªl{a/ hw"hy> ynEp.li T'xm diante de YHWH, teu Deus” (v.11a). A festa é nada mais do que uma ocasião de desestruturar o cotidiano de modo controlado, com a finalidade de reconstruí-lo69. No desejo de construir o novo, entrelaçam-se realidades religiosas e sociais. O verso 11 é um destaque significativo, ao acentuar certa interação, envolvendo YHWH, a família e demais grupos sociais. Apresenta uma interação entre o ser divino e demais setores sociais. Na esfera familiar: tu, teu filho, tua filha; na esfera social: teu servo, tua serva e o levita que vive entre tuas portas. Tal analogia, envolvendo relações feitas na esfera do culto e do social, assinala que, diante de Deus, prevalece o vínculo de irmandade70. Há consenso entre os estudos que em época pos-exílica, a escola deuteronomista71 teria concluída a redação de Dt 16,9-12. Possivelmente, na 68 Seguindo a narrativa de Ex 19,1 ocorre uma coincidência com a celebração da Aliança, quando do recebimento das normas devidas a Moisés. 69 Trata-se da correlação entre dois mundos distintos. É errôneo dizer que o rito religioso é algo que paira acima do universo social, de uma metalinguagem intocável. O sentido de criatividade busca uma reestruturação entre o divino, o indivíduo e sociedade. Cf. MARTINI, A., Rito e Crise da Modernidade, Mestrado no Departamento de Ciências da Religião, PUC-SP, 1995, pp.61-64. A palavra “ חגfesta” aparece quatro vezes ao longo dessa unidade: 16,10.13.15.16. 70 Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 297. 71 A referência às três grandes festividades: Páscoa, Semanas ou Pentecostes e Cabanas ou Tabernáculos são festas relacionadas ao estilo nômade e agropastoril vivido por povos no Antigo Oriente. Não é difícil imaginar que a vida religiosa dos países limítrofes tenha influenciado calendários e ritos em Israel. De Vaux analisa rituais de sacrifícios mesopotâmicos, árabes e cananeus que, cedo, teriam influenciado ritos incorporados pela comunidade de Israel. Na comunidade de Qumran, a festa teve um momento de relativo sentido, sendo uma ocasião de celebrar a renovação da aliança. Já no judaísmo ortodoxo a festa das Semanas não se manteve como uma festa importante no calendário litúrgico. Não se encontra na Mishna nenhum tratado 93 época do primeiro século a.C., há uma compreensão tardia, afirmando que a festa das Semanas se identifica com a festa do dom da Tora72. Considerando a tradição oral, que em nada diminui o seu significado festivo, após a comemoração da saída do Egito, lembrada com a festa da Páscoa, momento em que Israel celebra seu final histórico vivido sob o domínio egípcio, a festa das Semanas marca a entrada de Israel sob o jugo divino, compreendido pelo dom da Torá, o livro por excelência entregue a Moisés. A festa das Semanas é a segunda do calendário, segundo Dt 1673. De Vaux a considera a segunda festa de maior importância no calendário judaico74. Trata-se de uma comemoração ligada ao universo agrícola, onde há um convite para apresentar durante a festa uma oferta de caráter voluntário, conforme a quantidade colhida, oriunda dos frutos provenientes da terra, a ser compartilhada no local de culto escolhido em honra do nome de YHWH. Diferentemente do que ocorria na festa da Páscoa, era ocasião de comer pães fermentados com trigos vindos da primeira colheita na época. Ao longo da narrativa de Dt 16,9-12, não há oponente. É um monólogo, de cunho normativo, construído, tendo a palavra de YHWH como ponto central. YHWH é identificado como um Deus pessoal da comunidade de Israel ^yh,(l{a/, “teu Deus”, especificando um determinado tempo para que seu nome venha a ser celebrado. O substantivo ַחג, “festa”, em referência à festa das Cabanas, é utilizado uma vez para descrever a segunda festa mais importante do calendário, celebrada após as comemorações da Páscoa ou festa dos ַמצּוֹת, “pães ázimos”, (Nm 28,1617). A festa das Semanas, também celebrada em nome de YHWH, segue um tempo fixado, após sete semanas depois do corte das primeiras espigas. Há um consenso datando-a em meados do fim do mês de maio, começo de junho, marcando o fim da colheita dos cereais. que lhe faça referência. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, pp. 549-557. 72 CF. AVRIL, A.C.; La MAISONNEUVE, D., Les Fêtes Juives, Paris, Cerf, pp. 40-41. 73 A forma atual é o resultado de uma intensa elaboração envolvendo diferentes tradições e fases redacionais. Pode-se pensar que, no começo, havia um complexo legislativo profano (a atual secção casuística de Ex 21,12-22,6) e, mais tarde, o redator proto-deuteronomista elaborou pequenas unidades literárias, de conteúdo social e cultual, e as juntou às compilações profanas formando a estrutura básica do “código da aliança”. Cf. VICENT, R., La Fiesta Judía de las Cabañas (Sukkot), Interpretaciones midrásicas en la Bíblia y en el judaísmo antiguo, Navarra, Espana, 1995, p. 37. 74 Cf. DE VAUX, R, op. cit., p. 620. 94 A determinação de ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; fazer uma “festa das semanas para YHWH, teu Deus” (v.10a) é apresentada de modo muito claro e conciso, passível de concluir que “o Código oferece a esta festa um significado histórico”75. Ressalta-se ainda o uso do “hapax legomenon” ִמ ַסת 76 certificando 77 que se trata de um ato de plena generosidade . A festa tinha como meta, utilizando parte de uma oferta voluntária, agradecer as bênçãos recebidas de YHWH (v. 10b). Não é por menos que se encontra, por quatro vezes, referências à expressão ^yh,l{a/ hw"hy> “YHWH, teu Deus”, (vv. 10a, 10b, 11a e 11d). De Vaux afirma que a característica da festa constituía-se na oferta dos pães preparados com farinha nova e fermentados, distinguindo-se, dessa forma, da festa da Páscoa que a antecedia78. A festividade é motivo de alegria para todos os membros da comunidade. Dela ninguém pode se esquivar. Aqui, a narrativa retoma o ideal de se alegrar diante de YHWH, num local determinado com o propósito de fixar para sempre o nome do Deus de Israel. O versículo retoma o ideal de se celebrar com toda a família, já citado em outra parte do livro (12,7.12.18). Mais do que uma lembrança dos anos vividos como escravos, a narrativa faz uma comparação entre os v.11 e o v.12. Os grupos sociais formados pelos escravos, servas, órfãos, viúvas, estrangeiros refletem a antiga realidade, outrora vivenciada pela comunidade em terras egípcias. E, diante desta realidade, Israel é convidado a observar e praticar as ordens de YHWH. Realizada no interior de uma sociedade essencialmente agrícola, a festa era ocasião de promover uma forte interatividade social, considerando a ênfase na . ;f'w “E te alegrarás diante de narrativa no uso da expressão ^yh,ªl{a/ hw"hy> ynEp.li T'xm YHWH, teu Deus” (v. 11a). A época festiva era uma ocasião que extrapola a esfera familiar. Eis o lado humanitário dos preceitos a serem cumpridos (v.12b). Pela ocasião dos festejos, os grupos – por sinal, bem especificados na narrativa – que se encontram fora da esfera familiar (servo, serva, levita, estrangeiro, órfão e viúva) têm acesso garantido, pela ocasião da festa. Trata-se de saber onde estaria o motivo legitimador para tais grupos sociais participarem, em condições iguais, da 75 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, op. cit. p. 265. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised, op. cit. p. 342. 77 Cf. ZORELL, F., מִ ַסת. In: Lexicon Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti, Fasc. 1-9, Roma, Pontificium Institutum Biblicum, 1968, p. 451. 78 Cf. DE VAUX, R. Instituciones del Antigo Testamento, op. cit., p. 620. 76 95 festividade. Trata-se de uma festividade muito bem datada e realizada durante a colheita do trigo, como bem especificam os textos de Ex 34,22; Gn 30,14; Jz 15,1. Uma festa tipicamente agrícola, na qual a primeira colheita deve ser entregue num determinado local para, aí, ser celebrado o nome de YHWH, seguindo os costumes locais e, marcando o ritual, por meio de uma doação de caráter estritamente voluntário. O caráter social da festa das Semanas aparece no registro que considera o universo social representado pelo estrangeiro, o órfão e a viúva (v. 11), extrapolando, assim, o âmbito meramente familiar. As bênçãos recebidas devem ser partilhadas com os grupos sociais desfavorecidos que se assemelham à realidade vivenciada por Israel, em terra do Egito (v. 12a). A conclusão da unidade exige uma abordagem mais de cunho comparativo, uma vez que aí se encontra o uso do verbo “ ז ָ ַכרrecordar”79, no qal, remetendo à experiência vivida pelos antepassados em terras egípcias. O gesto de manter a memória é de intenso significado à comunidade religiosa. Aqui, compreendido em relação às três festas de peregrinação, a memória dos anos vividos como escravos no Egito, bem como os gestos maravilhosos feitos por YHWH em beneficio de Israel não devem passar ao esquecimento (Cf. Ex 15,15; 16,12; 24,18.22)”80. É um detalhe acentuado pelo uso da partícula explicativa yKi “pois, porque, de modo que”, seguida do substantivo db,[, “escravo, servo”, dando um caráter contemplativo ao texto. Contemplar o quê? Eis um apelo por demais > ;v'w> significativo para ter como respaldo a ordem de hL,aeh' ~yQIßxuh;-ta, t'yfiê['w> T"rm “observarás e executarás esses decretos”, (v. 12b). O termo hL,aeh' ~yQIxuh; “esses decretos”, referenda todo o conjunto de normas entregues por YHWH81. Eis o motivo da narrativa referir-se ao termo unindo as duas realidades. Israel não pode mais voltar à condição de escravo, porque já fora libertado por YHWH. Agora, a condição de liberdade inside numa praticidade evocada na lei: recordar os tempos vividos sob o regime escravagista, nas terras do Egito e viver o ideal de partilha entre todos, gesto por demais reforçado na narrativa: “tu, teu filho, tua filha, teu escravo, tua escrava, o levita...o estrangeiro, o órfão e a 79 Há uma considerável série de significados ao verbo זָ ַכר: recordar, trazer à mente, rememorar. Em Dt 16,12a, a modalidade, mediante a partícula explicativa כי, refere-se ao passado, aos anos vividos como escravo, servo no Egito.Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 192. 80 Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio – Introducción y comentario, op. cit., p. 280. 81 Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised, op. cit., p.343. 96 viúva” (v.11). O propósito principal referendado pela lei é o de assegurar à comunidade uma condição de equidade entre todos. Por este motivo, não é difícil justificar e associar os setores desvalidos da sociedade na participação das festividades. A ocasião de celebrar encontra seu sentido último, não no passado, mas no presente. 3.4. Os pobres são lembrados durante a colheita: Dt 24,17-22 Dt 24,17-21 se insere num contexto literário em que é possível verificar uma série de leis relativas às diferentes situações da vida e aspectos da ética cotidiana, vivenciados no interior da comunidade de Israel. Para Kramer82 os capítulos 21-25 são partes das leis complementares referentes aos seis últimos mandamentos, relacionados da seguinte forma: quinto (5,17 = 19,1-21,23), sexto (5,18 = 22,13-23,15), sétimo (5,19 = 23,16-24,7), oitavo (5,20 = 24,8-25,4), nono (5,21a = 25,5-12), décimo (5,21b- 25,13-16). Renunciando ao aspecto da complementaridade, outros estudos realçam um conjunto de inúmeras leis humanitárias, já, há muito, presentes no Antigo Oriente, retomadas pelos autores bíblicos, demonstrando o poderio do javismo e seu desejo por uma equidade social83. O processo redacional evidencia, a partir da redação final do livro, um Israel, numa época de plena ocupação da terra, tendo ao seu dispor um amplo e emaranhado arcabouço jurídico84, em que a defesa dos grupos desfavorecidos, 82 Cf. KRAMER, P. Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, op. cit., pp. 106-107. 83 Pode-se falar que houve por partes dos autores do Código Deuteronômico, uma “interpretação das antigas tradições” utilizadas para expressar o poderio e responsabilidade dos monarcas pela manutenção da igualdade social nos limites de sua autoridade legal. Em se tratando de Israel a supremacia será sempre de YHWH. Cf. BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques. In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, pp. 80-82; WEINFELD, M., The Origin of the humanism in Deuteronomy. In: JBL 80, 1962, pp. 241-247. Bouzon fala de uma “grande semelhança temática” entre direito antigo e os códigos bíblicos. Cf. BOUZON, E., Escravidão e dívidas na legislação cuneiforme e seus reflexos na legislação do Antigo Israel. In: CADMO 8/9, 1998-1999, pp. 29-48. 84 Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio,op. cit., pp. 327-328. O realce dado ao tema da “centralização do culto” reflete uma provável localização histórica, surgida durante a primeira reforma religiosa, de que se tem notícia no Antigo Israel com forte caráter centralizador na época de Ezequias (725697 a.C.). O aspecto de centralidade cultual é um tema caro ao Deuteronômio (14,22-27; 16,18.9;17,8-13) que, de certo modo, trouxe consigo outras leis, provenientes do ambiente tribal, como o cuidado dispensado ao estrangeiro, levita, órfão e a viúva. De Ezequias, passando pela reforma de Josias (622 a.C), o Código Deuteronômico foi relido diante dos acontecimentos históricos, no exílio e pós-exílio. Ao comentá-la, Braulik destaca sete fases históricas. BRAULIK, G. O livro do 97 citada quatro vezes na perícope (v. 17a-b, v.19e, 20d, 21d), encontra-se em evidência considerando os séculos vividos na condição de escravo no Egito e a primazia da Lei, como meio de identificação entre Israel e YHWH. realidades – ~yIr;c.mi, “Egito”, e As duas “ ִמ ְצ ָוהmandamento”, – foram preponderantes na função de fornecer critérios à vida social de Israel. O Egito será associado à terra da escravidão, recebendo forte e acentuada conotação ideológica (Ex 5,12-13; 12,17; 13,3. 20,2). Marca uma etapa histórica em que Israel viveu como estrangeiro, e por isso deve prestar solidariedade aos estrangeiros em meio à comunidade (vv. 18a. 22a). De Ezequias, passando pela reforma de Josias (622 a.C), o Código Deuteronômico foi sendo relido diante dos acontecimentos históricos, no exílio e pós-exílio85. O cumprimento da Lei, entendida pela fórmula hZ<h; rb"D"h;-ta, tAf[]l; “praticar esta palavra”, (v.18c.22b), é o meio pelo qual Israel encontra sua identidade e respaldo para manter a equidade social, apresentada como vontade divina. Assim, pode-se definir que a experiência do Êxodo somada à da aliança firmada com YHWH, formam uma unidade indissolúvel86. 3.4.1. Dt 24,17-22: tradução, aspectos filológicos e variantes Não farás desviar o direito do 17a ~Aty" rGE jP;vm. i hJ,t; al{ 17b `hn"m'l.a; dg<B< lbox]t; al{w> 18a ~yIr:cm. iB. t'yyIh' db,[, yKi T'r>k;z"w> 18b ~V'mi ^yh,Þl{a/ hw"hy> ^D>p.YIw: 18c `hZ<h; rb"D"h;-ta, tAfê[]l; ^W>cm; . ykinOa' !Ke-l[; 19a ^d<f'b. ^r>yci(q. rcoq.ti yKi estrangeiro [do] órfão e não tomarás como penhor a roupa da viúva. Tu te lembrarás que escravo foste no Egito e te libertou YHWH, teu Deus, de lá. Eis porque eu mesmo te ordeno praticar esta palavra. Quando colheres a tua colheita no teu campo Deuteronômio. In VV.AA., Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2003, pp.104107. 85 Cf. Ibidem. 86 Cf. SÁNCHEZ, E., op. cit., p. 349. 98 e esqueceres um feixe no campo não voltarás para pegá-lo. 19c hd<F'B; rm[o T'x.k;v'w> d ATêx.q;l. bWvt' al{Ü e 19 Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será. Deste modo, te abençoará YHWH, teu Deus, em toda obra de tuas mãos. 19 hy<+h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; 19f ![;mÛ;l. Quando varejares tua oliveira, 20a ^êt.yzE jBox.t; yKiÛ não repassarás [os ramos que ficaram] atrás de ti. Para o estrangeiro, para o órfão e 20c ^yr<x]a; raEp't. al{ 20d `hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; Quando colheres a tua vinha 21a ^êm.r>K; ‘rcob.ti yKiÛ não farás rebuscar [a vinha que ficou] atrás de ti. Para o estrangeiro, para o órfão e 21c ^yr<x]a; lleA[t. al{ 21d `hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; 22a ~yIr"cm. i #r<a,B. t'yyIh' db,[î,-yKi T'r>k;z"w> 22b `hZ<)h; rb"D"h;-ta, tAf[]l; ^W>cm; . ykinOa' !Ke-l[; `^yd<y" hfe[m] ; lkoB. ^yh,êl{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> para a viúva será. para a viúva será. Tu te lembrarás que escravo foste na terra do Egito. Eis porque, eu te ordeno praticar esta palavra. Duas observações são realces no v. 17. A primeira, trata de saber se somente a frase rGE jP;v.mi hJ,êt; al{ “Não farás violar o direito do estrangeiro”, (v. 17a), não seria a parte original do versículo, uma vez que o v. 17b, hn"m'l.a; dg<B< lbox]t; al{w> "e não tomará como penhor a roupa da viúva", foi retirado em outros manuscritos. Caso isto tenha ocorrido, estamos diante de uma variante. A correção se justifica mediante a comparação do TM com narrativas mais antigas87. Nota-se que, do ponto de vista gramatical, a frase se escreveria "estrangeiro órfão", (órfão com função de adjetivo). Desta forma, encontra-se um outro subgrupo, entre os demais, formado pela categoria "estrangeiro órfão". Algumas traduções adotam por variante o substantivo órfão, com o uso do wav coordenativo. O TM não apresenta o waw coordenativo - delendum fortasse – e não se encontram motivos 87 As diferenças, ainda que pequenas, são de grafias e incapazes de apresentar uma variante significativa. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 21,10-34,12. In: WBC, Vol. 6b, pp. 594595. 99 para propor uma alteração diferente das outras citações encontradas no livro. Assim, opta-se pela mesma ordem "estrangeiro, órfão e viúva". Uma segunda nuância imposta ao texto refere se à expressão ~Aty" “órfão”, prefixada com a conjunção ו, conforme se verifica na versão da LXX, na Versão Siríaca, nos manuscritos do Targum Pseudo-Jônatas e na Vulgata e, não simplesmente ~Aty", como grafa o TM. Em uma recensão da LXX, feita por Orígenes, pode-se verificar certo óbelo no uso do termo kai. ch,raj, “e da viúva”, como em 27,19. Tais observações se justificam ao verificar que, nas outras três citações à trilogia social, no TM, usa-se a preposição “ לpara”, identificando os respectivos substantivos, como se encontram nos versos 19e, 20d, 21d: hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; “para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva”, harmonizando a narrativa e comprovando a existência de diferença no aspecto da grafia, mas não uma variante. Opta-se por manter a narração do TM, considerando as pequenas omissões de estilo gráfico. No v.18a encontra-se uma especificação no tocante ao Egito, em alguns poucos manuscritos hebraicos, na recensão da LXX feita por Orígenes de Alexandria e no Targum Pseudo-Jônatas, como sendo "a terra" da servidão. Tais manuscritos grafam “ ְבּא ֶֶרץ ִמ ְצ ַרי ִםna terra do Egito”. Constata-se um acréscimo, por meio do uso da preposição, acompanhada pelo substantivo terra. A segunda observação é referente ao termo ~V'mi “de lá”. Ausência ocorrida no manuscrito hebraico e no Pentateuco Samaritano, mas mantida no TM. Pode-se bem verificar a compensação feita pelo TM ao acrescentar ~V'mi “de lá” omitido na LXX, em relação à especificação “terra do Egito”. O acréscimo ocorrido no TM corrige a ausência da expressão “ ְבּאֶ ֶרץna terra”. No versículo v.19 há quatro observações a serem consideradas: a primeira se refere ao uso da forma verbal ATx.q;l. “para pegá-lo”. Em seu lugar, usa-se o substantivo ָל ֶא ְביוֺן, “para o pobre”, semelhante ao termo grego: tw/| ptwcw/| kai. “e para o pobre”. Esta incidência é atestada pela tradição do texto grego da LXX – exceto para os cursivos do Códice Vaticano e, na recensão de Orígenes na LXX preferindo a eliminação do verbo pegar ao termo pobre. Na versão da LXX, surge um quarto grupo, pela ordem: tw/| ptwcw/| kai. tw/| proshlu,tw| kai. tw/| ovrfanw/| kai. th/| ch,ra| e;stai, "para o pobre, para o prosélito, para o órfão e para a 100 viúva será". Verifica-se que a diferença não ocorre em outros manuscritos, o que inviabiliza uma variante ao TM. Uma segunda observação refere-se ao uso da conjunção “ וe” antecedendo o termo ~AtïY"l;, “para o órfão”. O uso da conjunção ocorre em dois manuscritos hebraicos medievais, na Septuaginta, na versão Siríaca e na Vulgata. A terceira ocorrência aparece no uso da conjunção “ וe” omitida diante da preposição ל diante do termo hn"m'l.a;l'> “para a viúva”, como registra um manuscrito hebraico medieval e o códice da LXX. A omissão é encontrada também no v. 20. Essa diferença é encontrada em algumas leituras do códice manuscrito hebraico 9 e em muitos manuscritos hebraicos medievais. Um outro marco no texto, que não chega a propor divergências significativas ao conteúdo exposto na versão massorética, é a leitura do termo ידך, “tua mão”, no singular, contra a forma ידיך, “tuas mãos”, no plural, como usa o TM. No v. 20, três observações são registradas: a primeira refere-se ao uso do termo tw/| ptwcw/| kai., “e para o pobre”, encontrada no Códice Freer menor, do século V. Trata-se de uma retroversão do termo לאביון, “para o pobre”, conforme ocorre no v.19. Também poucos manuscritos da Septuaginta, da versão Siríaca e dos manuscritos da Vulgata registram a leitura “ ְו ַלי ָתוֹםe para o órfão”, variando no emprego da conjunção ו, ausente no TM. Uma última observação ocorre no v. 20 referindo-se, novamente, ao uso da preposição “ לpara”, omitindo a conjunção ו, como bem grafa o TM. Notam-se três diferentes grafias incapazes de sustentar uma variante e que, de modo algum, deixam transparecer mudanças significativas ou interpretações divergentes do TM. As variações do v. 21a assemelha-se à do v. 20a. Ambas omitem o termo ^yr<x]a;, “atrás de ti” e acrescentam tw/| ptwcw/| kai. “e para o pobre”, como registra o Códice Freer menor, ao utilizar-se de uma retroversão. A segunda variante consta da tradução do texto grego da LXX e do Siríaco, colocando, antes, a conjunção ו. Estas duas variantes ocorridas no v. 21 podem ser consideradas sem importância. Vê-se que a forma gramatical usada na versão massorética possibilitou mais clareza e objetividade ao texto. 101 3.4.2. Delimitação, composição e estrutura A delimitação do texto pode ser feita com base nas quatro passagens que mencionam a defesa do estrangeiro, do órfão e da viúva (vv. 17b, 19e, 20d, 21d). As repetições acenam para a unidade na narrativa em Dt 24,17-22. Tal círculo narrativo pode ser conferido por meio de costumes e hábitos referentes à prática do divórcio e medidas de proteção ao indivíduo (24,1-4. 8-9). Os apelos são apresentados com ênfase na manutenção da integridade física da pessoa e no desejo de praticar a justiça diante de YHWH. A defesa dos grupos desfavorecidos e dos fracos (Cf. Dt 14,29; 16,11.14) apresenta o papel do juiz, mediador de pequenos conflitos existentes nas relações internas dos grupos, sendo o grifo a relação com um ser divino. O corte delimitando o princípio e o fim da perícope é assinalado a partir do v. 17 ao v. 22. Neles, encontram-se três temas em questão: não perverter a prática do direito diante dos grupos socialmente frágeis (vv. 17.19.20); a lembrança dos anos vividos no Egito (vv. 18a.22a) e o convite para fazer cumprir a palavra ordenada por YHWH (vv. 18c. 22b). Nota-se a insistência para que a prática do direito seja mantida. Os grupos são utilizados como ícones na administração da justiça, por representarem as camadas mais pobres da vida social. As leis têm como objetivo último estabelecer a igualdade numa terra não pertencente a Israel, mas a YHWH e, em torno desses grupos, centra-se a narrativa. Escolhe-se a tradição do Egito (vv.17-22), para compreender a estrutura concêntrica na narrativa que retoma diretamente a defesa dos grupos marginais. Pode-se formar a seguinte estrutura: A Não desviar o direito (17a) B Tu te lembrarás que escravo foste no Egito (18a-18b) C Quando tu colheres a colheita no teu campo (19) ↔ hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; D Quando varejares tua colheita (20) ↔ hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; C` Quando colheres a tua vinha (21) ↔ hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; B` Tu te lembrarás que escravo foste no Egito (22) ` A Ordeno a praticar esta palava (22b) 102 A lembrança da experiência do Egito é emoldura pela ordem de não desviar o direito e praticar a palavra88. As referências ao tempo vivido no Egito emolduram as três distintas realidades sociais, e três ocasiões de garantir meios de vida para os pobres. Não ocorre nenhum desajuste na narrativa; pelo contrário, a norma jurídica é evidente, ao impor práticas voltadas à defesa dos grupos desfavorecidos, como base no estilo metafórico, evidenciando que o sofrimento vivido na terra do Egito – o sofrimento do passado – não pode ser imposto no momento presente. A estrutura concêntrica se forma citando os três mais importantes gêneros agrícolas responsáveis pela sustentação econômica de Israel: cereal, azeite e vinha. Os vv. 19-21 comportam um estilo redacional de cunho jurídico. Trata-se da forma evidente, comum no universo literário jurídico e, por este motivo, é de fácil e rápida compreensão. Observa-se, ainda, relativa importância no uso da partícula de negação לא, “não”, cinco vezes assinalada no texto (vv. 17, 17a. 18b. 20a. 21a); o uso dos verbos indicando o gesto a ser evitado, grafado sempre no imperfeito: “farás violar” (v. 17a), “tomarás o penhor” (v.17b), “voltarás para pegá-lo” (v. 19a), “repassarás os [ramos]” (v. 20a), “farás rebuscar” (v. 21a) e os substantivos acusativos indicados após os verbos que impõem uma relação de causa e efeito, isto é, uma determinada ação deve ser realizada em determinado contexto beneficiando um grupo específico. Tais elementos definem a existência de um mandamento formando este bloco temático, tendo como eixo a prática do não roubar ou violar bens pertencentes a outros. 3.4.3. Comentário e análise semântica Dt 24,17-22 constitui um texto de estilo legislativo. No interior desse conjunto de normas verificam-se duas grandes tradições que guardam meios para garantir a subsistência da família ligada aos trabalhos do campo. Na primeira, o texto retoma a antiga tradição oriunda da saída das terras egípcias: a experiência do êxodo. A outra se refere ao hábito de garantir os modos e os meios essenciais 88 Christensen opta pela centralidade priorizando os grupos sociais. Na centralidade da estrutura está o v. 19b: “Deste modo, YHWH, teu Deus, te abençoará em toda obra de tuas mãos”. Cf. CHRISTENSEN, Deuteronomy 21,10-34,12, op. cit., p. 596. 103 para a sobrevivência do outro: o tribalismo. Essas duas tradições, oriundas da origem do povo de Israel, vigoram em inúmeras narrativas bíblicas89. São, aqui, atualizadas e harmonizadas tradições num esforço de superação dos desafios sociais marcantes, como se pode perceber no uso das expressões "quando tu colheres......não.....para o estrangeiro.....". Ocorre uma relação de causa e efeito, para evitar que aconteça um possível desvio da prática do direito. Há como certificar-se dessas duas tradições presentes na narrativa90. Afinal, o êxodo tornou-se paradigmático no processo de redação dos textos bíblicos, chegando a estar no lugar de tantos outros êxodos. Embora antiquíssimas, elas continuam dando sentido às normas tardias da vida comunitária em Israel. Crê-se que não é à revelia que a tradição do êxodo forme a moldura estrutural na narrativa, como se nota nas duas citações diretas à tradição. A ênfase é dada por vontade do próprio YHWH: hZ<)h; rb"D"h;-ta, tAf[]l; ^W>c;m. ykinOa', “te ordeno agir conforme esta palavra” (vv. 18b. 22b). Esta ordem adquire sentido quando se considera o uso da partícula !Ke-l[;, “eis porque, por isso”, levando a agir conforme o proposto por YHWH. Existe uma relação de causa e efeito entre a lembrança do fato de ~yIr:cm . iB. t'yyIh' db,[,, “escravo foste no Egito”, (vv. 18a. 22a) e a ordem hZ<h; rb"D"h;-ta, tAf[]l;, “agir conforme esta palavra”, (vv. 18b. 22b). Não é difícil de perceber a presença de uma tradição tribal no conjunto dessas normas, e não é por acaso. Foi um projeto forjado em meio às vicissitudes de ocupação das terras de Canaã91. Neste ponto, é necessário buscar um motivo 89 Percebe-se que a defesa dos grupos desfavorecidos se faz considerando os grandes feitos de YHWH em prol de seu povo escolhido. Os episódios do êxodo, visto como fuga ou saída, é retomado ao longo de toda história de Israel. Do Egito para a terra prometida, a comunidade tem a oportunidade de criar novas relações sociais e novos vínculos éticos que defendem a sobrevivência dos clãs. Cf. GOTTWALD, N., As Tribos de YHWH. Uma sociologia da religião do Israel liberto 1250-1050 a.C., São Paulo, Paulinas, 1986, pp. 102-114. 90 Sobre a importância das tradições a literatura é vastíssima. Cf. BLENKINSOPP, J. El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, pp. 176-234. Estudos priorizam a experiência em terras egípcias de tal importância que chegam a migrar para textos litúrgicos. “A experiência do êxodo se confessa liturgicamente em um dos textos mais antigos das Escrituras: Dt 6,20-25. Cf. FERNÁNDES, P. J. T., “Un proyecto de solidaridad, justicia social y resistencia. Um estúdio a partir de Deuteronomio 15,1-18. In KAEFER, J. A. e JARSCHEL, H., (Orgs.), Dimensões Sociais da Fé do Antigo Israel, São Paulo, Paulinas, 2007, pp.53-67. 91 Este assunto é por demais caro nos estudos sobre a história da ocupação das terras de Canaã, independente do viés hermenêutico empreendido. Cf. BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques. In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, pp. 7880. Sabe-se que a redação do Código Deuteronômico ocorreu numa época em que Israel, reino rival de Judá, não existia como nação por mais de um século. Tais mudanças no cenário geopolítico serão amplamente compreendidas pelos autores. Perspectiva endossada por 104 para relacionar às épocas das colheitas, e o resultado das suas produções, com a sustentabilidade física das pessoas ou grupos desfavorecidos. Por qual motivo relacionar os bens da produção agrícola com grupos socialmente desfavorecidos, como estampam as leis deuteronômicas? A resposta não pode vir a não ser de algum fato histórico bem determinado. “Tudo isso mostra como o Código Deuteronômico está próximo da realidade agrícola da Idade do Ferro e, de certa forma, interpreta esta realidade. A riqueza da produção agrícola é uma expressão das experiências fundamentais com o Deus de Israel. O êxodo e a dádiva da terra, como experiências constitutivas da relação com Deus, manifestam-se na liberdade jurídica, política e social dos agricultores israelitas em suas terras”92. Neste aspecto, opta-se pelas experiências anteriormente vividas em terras de Canaã, no período pré-estatal, quando Israel buscava compor-se como uma nação independente. Israel não nasceu como uma cidade-estado, mas vivenciou um período tribal, em que a preocupação com a sustentação física de seus membros foi, frequentemente, uma meta. Kramer argumenta que tais leis foram criadas para fortalecer, intensificar e institucionalizar as relações de partilha, de solidariedade e fraternidade/irmandade, na realidade socioeconômica do povo israelita93. Nota-se que o teor das leis visa transformar “o povo de Israel numa sociedade de irmãos/irmãs ou no povo santo de YHWH”94. Pela partícula negativa al{ “não”, no v.17a, inaugura-se um aspecto imperativo diante do conjunto de leis em defesa da manutenção do direito aos grupos sociais desfavorecidos, representados pelos estrangeiro, o órfão e a viúva. Trata-se que, em hipótese alguma, deve acontecer a negação da prática do direito. Tal alerta é sustentado pela referência ao Egito e pela observância do mandamento. No conjunto da narrativa, nota-se a existência de um conjunto de leis voltado para garantir o jP;Þv.mi “direito”, dos grupos socialmente desprotegidos e dele merecedores. Verifica-se que o termo não é citado aleatoriamente. A Crüsemann: "O mais antigo indício de prescrições divinas, em forma escrita, encontra-se em Oséias, portanto no Reino do Norte em Israel, no séc. VIII aC. Os 8,12 é parte integrante da composição de Os 8,1-14, que inicia com o som da trombeta diante dos inimigos perigosos (8,13b). A clamorosa reação de Israel (8,2) é desmascarada como "enganosa". Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo Testamento,op. cit., p.36. 92 Cf. Ibidem, p. 316. 93 Cf. KRAMER, P. Origem e Legislação do Deuteronômio, p. 90. 94 Cf. Ibidem, p. 87. 105 evidência está no uso do verbo hj'n", "desviar, afastar, torcer"95. A forma da segunda pessoa do hifil, no imperfeito, coloca em observação um aspecto ético96 diante do não cumprimento da lei impondo parâmetros e limites durante a realização da colheita97. No Código da Aliança (Ex 23,2.6) a referência é explicita: não se deve ter a mínina intenção de "perverter, desviar" os rumos do direito dos pobres e operários. O ato de burlar o direito é violentamente condenado na pregação profética98 (Is 10,1-4; 5,25; 9,11.16.20; Am 2,7.8; 5.12). Em Dt 24,17-21 o modo insistente pela busca da prática do direito é apresentado de maneira entrelaçada às outras esferas da vida cotidiana. Agir com base na prática do direito implica a lembrança dos tempos vividos no Egito (v. 18a, 22a) e na disposição em agir conforme a palavra (vv. 18b, 22b). Fica evidente que agir com base no direito implica uma malha de outras atitudes a serem executadas, cujo fim último é agradar a YHWH e, consequentemente, os membros da comunidade. Os vv.19-22 retomam antigos costumes tribais, priorizando não a ética individual, mas os grupos familiares. As colheitas anuais são vistas como oportunidade no restabelecimento, não da igualdade, mas da garantia de que os produtos da terra, como vinho, azeite e cereais fossem fundamentais na sustentação dos grupos mais pobres. . i “direito”, Kramer destaca inúmeras semelhanças no uso do binômio jP;Þvm e ְצדָ קָ ה, “justiça retidão”, com os textos da profecia de Ezequiel. Para ele, ocorrem tantas similitudes que chega a propor total dependência literária de Dt 24,10-18 das afirmações expostas em Ez 18,5-2099. O binômio não se sustenta diante da argumentação de Krašovec100, para quem o termo ְצדָ קָ ה, "justiça", sempre teve, desde os antigos códigos até sua compreensão na Bíblia Hebraica, uma interpretação unilateral. 95 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 432. Cf. Ibidem. 97 No hifil o verbo ocorre 77 vezes no AT. Cf. LISOWSKY, G., Konkordanz zum Hebräischen Anten Testament, pp. 922-923. 98 "O 'ai' (hōy) típico dos rituais fúnebres normalmente é usado com relação às pessoas mortas. Aqui, no entanto, é entoado diante de pessoas que, através da escrita, causam desgraças com procedimentos legais". Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo, p. 40. 99 Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, op. cit. p. 171. 100 Cf. KRAŠOVEC, J., La justice (ṣdq) de Dieu dans la Bible Hébraïque et l`interprétation juive et chrétienne, Freiburg Scheweiz, Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1988, pp. 47-58. 96 106 Crê-se que o aspecto mais adequado no contexto de Dt 24,17-22 seja o uso desse termo técnico no cenário jurídico apresentando critérios balisadores nas relações pessoais. Este contexto facilita compreender a relação entre a prática da colheita e o ato de respigá-la, hábito garantido aos grupos socialmente desfavorecidos. Agir com base no direito é um atributo do ser divino e, consequentemente, implica o comportamento humano. Nesta interação entre o atributo divino, que age, tendo o direito como princípio, a instauração do direito passa necessariamente pelo processo de garantir a sustentabilidade dos pobres. No texto percebe-se tal prolongamento no critério que deve nortear as épocas da colheita. Estão presentes, também, no texto duas referências ao Egito. Há duas distintas citações: ~yIr:c.miB. t'yyIh' db,[, yKiä, “que escravo foste no Egito”, (v. 18a) e um acréscimo no v. 22a: ~yIr"c.mi #r<a,B. t'yyIh' db,[,-yKi T'êr>k;z"w>, “lembrarás que escravo foste na terra do Egito”, (v. 22a). Salvo o acréscimo do termo #r<a,B., “na terra”, o local de sofrimento é marcado, tendo como referência, o Egito101. Dessa realidade, Israel foi libertada pela mãos de YHWH. O verbo hd'P' "resgatar, redimir, libertar"102, no qal, realça a ação ativa da divindade. Considerando o contexto do uso desse verbo Nelson103 salienta que "a expressão 'te libertou (pādâ) YHWH, teu Deus, de lá' é, virtualmente uma pequena profissão de fé com as implicações do poder e justiça social". No livro do Dt há seis referências ao uso do verbo hd'P' (Dt 7,8; 9,26; 13,6; 15,15; 21,8; 24,18), sendo que, em todas elas, há uma explícita analogia envolvendo o gesto de YHWH em prol de Israel, e a terra da escravidão, o Egito. O narrador atualiza o sofrimento de épocas passadas com o momento histórico atual, vivenciado pela comunidade; daí se pode compreender a defesa dos grupos socialmente pobres com a condição dos filhos de Israel, outrora vivida no Egito. 101 “A intervenção de Yhwh na história é considerada – evitando-se ou reduzindo-se, em consequencia, outros modelos tradicionais – a partir de um único modelo, ou seja, o modelo do auxílio prestado em uma situação de calamidade em vista da lamentação cultual”. Cf. LOHFINK, N., Grandes manchetes de ontem e de hoje. São Paulo, Paulinas, 1984, p. 104. 102 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P. p. 529. 103 Cf. NELSON, R. D., Deuteronomy: a commentary, op. ct., p. 292. 107 O ~yIr"+c.mi, “Egito” evoca o local, por excelência, do êxodo104. Mas não é difícil afirmar também as múltiplas interpretações, ao se relacionar o país do Egito com os filhos dos hebreus. Já no II milênio a.C., durante a idade do ferro, os egípcios se vêem diante de um grupo de pessoas de característica nômade, formado por escravos sazonais e mercenários, provavelmente chamados Hapirus, participando das construções situadas na região leste do Delta do Nilo, onde são edificadas as pirâmides de Piton e Ramsés (Ex 1,11)105. Mais tarde, os patriarcas Abraão e José se vêem no Egito, como se fosse preciso que a afirmação de uma aliança divina devesse passar necessariamente pelo relacionamento com a figura emblemática do Faraó. A saga de Moisés irá imprimir um caráter definitivo aos egípcios como eternos inimigos dos hebreus. Neste contexto de violência e opressão, ocorre o conhecimento do Deus YHWH pelos hebreus. São leis oriundas dos mais diferentes espaços sociais e tradições literárias que as tornam impossíveis de serem fidedignamente identificadas, devido às inúmeras repetições e releituras feitas durante os séculos em que as tradições circularam, até o estágio final da redação do livro. Antigas tradições são reutilizadas pelo narrador de Dt 24,17-22, numa abordagem fortemente negativa servindo de motivação na aproximação entre os membros do povo de Israel. YHWH é entendido como um Deus pessoal dos hebreus, após a experiência de fuga do Egito. Não é difícil perceber que a consciência religiosa de pertença a uma experiência comunitária é força aglutinadora na identidade social, pela qual o dever de cuidar do irmão é retomado como lembrança dos tempos de penúria. 3.5. A não transgressão é o meio para um mundo estável: Dt 26,12-15 O capítulo 26 conclui o Código Deuteronômico. Este pode ser divido em três distintos grupos temáticos: a) a importância com as primícias colhidas (vv. 1104 Trata-se de um evento de dimensões incomparáveis na literatura do Antigo Testamento. Cf. ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p. 31. 105 Na opinião de Boyer, as narrativas bíblicas realçam um tempo de pleno intercâmbio entre egípcios e hebreus. Os hebreus chegam a ocupar lugares de relevo na sociedade egípcia, tornandose proprietários fecundos e merecedores de certa ascensão social. Cf. BOYER, F., Quand Israël rencontre Pharaon. In: LMB hors série, 2006, pp. 40-41. Ver também as afirmações de Bennett ao relacionar as teses de N. Gottwald e E. Tamez na identificação do período de opressão que antecedeu o movimento do êxodo. Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, op. cit., pp.108-110. 108 11); b) o destino do dízimo e seus aspectos religiosos e sociais (vv. 12-15); c) o desejo de realizar plenamente a aliança contraída com YHWH (vv. 16-19)106. A narrativa de cunho eminentemente litúrgico, retoma leis já apresentadas em outras partes do livro (Dt 18,4; 14,28-29), reafirmando os aspectos humanitários que devem ocorrer durante a ocasião da oferta do dízimo trienal. 3.5.1. Dt 26,12-15: tradução, aspectos filológicos e variantes 12a Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte de tua colheita, no rfe[.l; hL,k;t. ִכּי hn"V'B ^t.a'WbT .rf:[m. ;- lK'-ta,; terceiro ano, a décima parte, rfE[]M;h; tn:v. tviyliV.h 12b darás para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; 12c Eles comerão, em tuas portas, ywILel; hT'ät;n"w> fartar-se-ão. ^yr<Þ['v.bi Wlk.a'w> `W[be(f'w> Dirás diante de YHWH, teu Deus: 13a ^yh,l{a/ hw"hy> ynEp.li T'rm> ;a'w> separei o que é consagrado da minha casa 13b tyIB;ªh;-!mi vd<Qåoh; yTir>[ô:Bi e também 13c ~g:w> o dei para o levita e para o estrangeiro, ywILel; wyTit;n> para o órfão e para a viúva hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;w> 13d conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi ^t.w"cm. i-lk'K. ynIt"yWIci rv<a] nenhum dos teus 13e ^yt,wOc.Mmi i yTir>b:['-al{ mandamentos 106 Verifica-se a presença de antigas normas sociais recolhidas e que, uma vez agrupadas, oferecem estilo, ritmo e coesão à composição. Predomina um estilo de espiral ao compor a narrativa, onde temas citados anteriormente são retomados oferecendo um estilo original ao livro, como acontece no discurso de abertura: “Quando entrares na terra que YHWH, teu Deus te dará como herança” (v. 1), aqui, retomada, mas já citado em outras partes do livro (6,10; 7,1; 11,29; 17;14; 18,2). Verificam-se, ainda, antigos hábitos de cunho cultual e social, tais como: tradições cultuais destacando as funções sacerdotais no gesto de cuidar dos sacrifícios (vv.2-4); a fórmula utilizada durante o ato de ofertar a parte sagrada destinada aos grupos de necessitados (v.13); a referência a algum tipo de divindade ligada ao mundo vegetativo (v.14); uma possível forma de dedicação do santuário (.v15). Os vv. 16-19 formam a parte conclusiva do discurso recorrendo a solene referência ao termo técnico “hoje”, que dá um sentido sempre atual aos preceitos divinos. As camadas literárias, as inúmeras tradições juntaram-se na formatação do livro que possuímos hoje. Cf. KAEFER, J. A., Un pueblo livre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 en la composición del Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 2006, pp 237-238; ROFÉ, A., Deuteronomy: Issues and Interpretacion, London/New York, T&T Clark, 2002, pp. 205-219. 109 13f `yTix.k('v' al{ïw> a WNM,mi ynIaob. yTil.k;a'-al{ b amej'B. WNM,mi yTir>[:bi-al{w> e não dei dele [dízimo] para um morto. 14c tmel. WNM,mÞ i yTit;n"-al{w> Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus. 14d yh'l{a/ hw"hy> lAqB. yTi[m. ;v' Eu fiz conforme tudo o que me mandaste. 14e `ynIt"yWIci rv<a] lkoßK. ytiyfi§[' Dirige teu olhar desde tua santa morada 15a ^v.d>q' !A[M.mi hp'yqiv.h; e não esqueci deles Não comi disto [dízimo] no meu luto, e não separei dele [dízimo] em estado de 14 14 impureza, dos céus e abençoa o teu povo, ~yIm;ªV'h;-!mi 15b Israel, ^M.[;-ta, %rEb'W laer"f.yI-ta, e o solo que nos deste, 15c Wnl'_ hT't;n" rv<a] hm'd"a]h' taew> conforme prestaste juramento aos nossos 15d Wnyteêboa]l; T'[.B;v.nI rv<a]K; 15e `vb'd>W bl'x' tb;z" #r<a², pais, terra que destila leite e mel. O v. 12 recebe quatro alterações: a) a primeira refere-se à uma alteração de leitura. Deve-se evitar ler ש ֹיר ִ ְל ַה ְע, “separar”, na forma Hif’il. Prevalece uma das ִ ; ַל ְעb) a referência à frase hebraica hT'ät;n"w> formas verbais no infinitivo: שּ ֹר ֵ ַל ְעou ש ֹר rfE[]M;h;( tn:v. literalmente “ano do dízimo darás”, na LXX lê-se to. deu,teron evpide,katon dw,seij “e novamente a décima parte darás”, indicando uma retroversão relacionada à frase ֲש ֹר נָתַ תָּ ה ֵ ;שֵׁ נִת ַה ַמּעo Pentateuco Samaritano grafa “ וּנְתַ תּוֹdarás a ele”; c) em ְו ַלגֵּר, “e para o estrangeiro”, nota-se um acréscimo conjuntivo, em dois manuscritos do Targum, LXX, Siríaco e Vulgata; d) poucos manuscritos hebraicos medievais como no Targum, LXX, Siríaco e Vulgata utilizam o acréscimo conjuntivo ְו ַליּ ָתוֹם, “e para o órfão”. Verifica-se que tais variações, e não são poucas, caem sobre pequenas partículas: conjunções e artigos. Como tantas, até aqui, assinaladas, são insuficientes no tocante a mudança ao TM. No v. 13, cinco outras observações ocorrem, pela ordem: a) a LXX traz uma tradição textual nos códices cursivos em minúsculos. O mesmo acontece na Vulgata, referente ao uso da expressão evk th/j oivki,aj mou, “da minha casa”. As edições remanescentes da LXX usam a 2a pessoa do singular; b) em muitos manuscritos, como o Pentateuco Samaritano, LXX e Targum Pseudo-Jônatas 110 encontra-se a grafia לגרe não ְו ַלגֵּר, como se encontra na versão do TM, omitido junto ao códice Basiliano-Vaticano e no Códice Vêneto; c) uma ligeira alternância de leitura é encontrada na LXX, Siríaco e na Vulgata ao fazer uso do prefixo ;וליתוםd) a conjunção grafada no TM “ ְו ָלאַ ְל ָמנָהe para a viúva” é omitida no manuscrito da LXX; e) uma outra alternância de leitura surge no manuscrito 69 e nos manuscritos: Pentateuco Samaritano, Siríaco e LXX, ao grafarem מצוֺתֶ יך, “nenhum dos teus mandamentos”. As nove observações encontradas entre os vv. 12-13, apresentam, em sua maioria, correções ou pequenas harmonizações de ordem meramente gráfica não chegando a constituir uma variante. No v. 14, verificam-se quatro pequenas nuanças: a) poucos manuscritos hebraicos medievais e a tradição do texto grego da LXX, exceto para o códice Basiliano-Vaticano, mais os códices Vêneto, Freer, Siríaco utilizam a conjunção antes da partícula negativa לֺא, “não”, na forma ;ולאb) a conjução “ וe” é omitida na tradição do texto grego da LXX. É utilizada a partícula negativa לֺא, “não”; c) a omissão da conjunção ocorre também na tradição do texto grego da LXX, exceto na recensão de Luciano; d) o uso explícito de ככל אשׁר, “conforme o que”, na LXX e Siríaco corresponde à conjunção kaqa,, “assim como, conforme”, indicando uma retroversão de שׁר ֶ ֲ ַכּא, “segundo o que, de acordo com o que”, a Vulgata grafa omnia sicut como uma correção à expressão כל אשר, “tudo o que”. Nenhuma variante pode ser anotada, diante de pequenas variações inacapazes de sustentar uma variação ao sentido do texto. No v. 15, ocorre somente uma observação referente ao uso do verbo שקף, “dirigir o olhar”107. No Pentateuco Samaritano, utiliza-se a forma השקףe não no imperativo na forma hi’fil השקיפה, “lance teu olhar”, como no TM. Considerando todas as respectivas observações, nenhuma variante é registrada no conjunto de texto. As alterações ocorrem em um pequeno número de manuscritos. Se há algo na direção de uma nova redação, ao conjunto do texto, refere-se ao acréscimo do grupo levita à trilogia social, como apresenta Dt 14,28-29. 107 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L, Dicionário Bíblico, p. 691. 111 3.5.2. Delimitação, composição e estrutura Dt 26,12-15 apresenta-se como um texto bem conservado. No texto podese justificar a coerência, a lógica interna, ao relacioná-lo com o texto antecedente (vv. 5-10) e o texto posterior, formado pelos versículos 16-19. Nos vv. 5-10 encontra-se o que para muitos estudiosos é reconhecido como sendo o “pequeno credo histórico”108 oriundo de tradições pré-monárquicas, num envolvimento entre YHWH e os patriarcas, culminando com a saga dos hebreus na sua saída do Egito. Na opinião de Kramer, ao lado de Dt 26,1-11, esse conjunto de versículos (vv. 12-26) – “apêndices litúrgicos” - menciona as atividades no santuário “central de Jerusalém”, legitimando uma real ocupação da terra de Canaã, além de uma atividade religiosa condicionando a bênção de YHWH à pratica de disponibilizar o dízimo109. Após os vv. 12-15, surge outro breve discurso de exortação conclamando a comunidade a obedecer e praticar no “hoje” de sua existência (vv. 16, 17, 18) as ordens ditas por meio de Moisés. A utilização do termo “ ַהיּוֹםhoje” favorece a delimitação da narrativa. A insistência sobre essa partícula temporal “ ַהיּוֹםhoje”, evidencia que os fatos de outrora se atualizam na história presente. Ao longo de sua existência, a comunidade de Israel presenciou inúmeras situações de confrontos, diante de seus inimigos, mas também presenciou a ação protetora de seu Deus, cumprindo as promessas feitas a Moisés. A compreensão ao conceito de “ ַהיּוֹםhoje”, não realça a especificidade de um determinado dia. Busca-se compreendê-lo como conceito de atualidade histórica diante dos desafios impostos ( Dt 5,10; 6,1; 11,8; 12,1). Todos os mandamentos de Deus devem ser realizados. 108 Esta definição, até certo ponto, imposta à narrativa de Dt 26, 5-10, desde do trabalho de von Rad, não se sustenta diante dos recentes críticos. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia, Paidéia Editrice, 1979, p. 175; Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio, Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 358-360. Mas, num cenário de debates, que ainda carece de síntese, Dt 26,1-11 liga-se às antigas tradições cultuais destacando o direito e privilégio do Deus de Israel, constituindo normas e evidenciando o caráter centralizador do templo, como as encontradas em Ex 34. Nada mais evidente em declarar que o Dt passou a existir quando o direito de privilégio de Javé defendido nas leis cúlticas foi combinado com a exigência de restringir culto e sacrifício a Javé num único local: no lugar que Javé escolher. Critério este resultante de algo “reelaborado deuteronomisticamente”, mediante as tensões existentes na narrativa. 109 Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, op. cit., p.180. 112 Anotadas as três distintas narrativas, pode-se estabelecer a seguinte estrutura ao capítulo 26: a) vv. 1-11: as primícias; b) vv. 12-15: o dízimo trienal; c) vv. 16-19: discurso sobre o hoje de Israel. Os destinatários beneficiados com a partilha são formados pelos mesmos grupos sociais: “ ֵל ִויlevita, “ גֵּרestrangeiro, “ י ָתוֹםórfão” e אַ ְל ָמנָה, “viúva”. A diferença entre as duas perícopes recai sobre a intenção final de agir segundo as ordens divinas. Não se trata mais de agir na intenção de receber as bênçãos de YHWH, mas, sim, o desejo de cumprir integralmente os mandamentos, como meios de garantir a promessa divina de Israel habitar numa terra marcada infinitamente pela prosperidade. Nota-se a ênfase dada à prática de comer até ficar saciado (v. 12). O texto bíblico não estabelece critérios no modo de disponibilizar, distribuir e, quando necessário, armazenar a quantia de 10% de toda colheita aos grupos necessitados110. Eles recebem o direito, por vontade de YHWH, de comerem até ficarem satisfeitos111. Depara-se com uma máxima legal a ser colocada em prática, mas sem nenhuma clara indicação significativa sobre o modo de efetuar a partilha de uma porção considerada de suprimentos para um número grande de pessoas112. Uma primeira parte da perícope se forma diante das duas referências à prática do dízimo e outras duas determinando a partilha dos bens aos necessitados (vv. 12-13f). Com base na elaboração de dois paralelismos sinonímicos, ocorre uma divisão na narrativa, formada ao relacionar dízimo x grupo de necessitado, 110 Não se tem conhecimento de nenhum outro livro do Antigo Testamento que tenha estabelecido uma norma obrigando o pagamento de um imposto, no nível de 10%, como registram os dois textos do livro do Deuteronômio (14,22-29; 26,12-15). Sabe-se de tal prática coletora pela pregação do profeta Amós 4,4. Mas, este a descreve como sendo uma entre inúmeras práticas de sacrifícios realizadas nas dependências de Betel e Guilgal. Zabatiero coloca em dúvida a compreensão da quantidade estabelecida, de 10%, como o grande número de pessoas oriundas das camadas empobrecidas, dignas também de receber o básico para garantir sua subsistência. Cf. ZABATIERO, J. P. T., Tempo e Espaço Sagrados em Dt 12,1 – 17,13. Uma leitura sêmiodiscursiva, São Leopoldo, 2001, p. 140. 111 A raiz אכלadquire o mesmo sentido em todas as culturas antigas. A comida é compreendida como um dom supremo da divindade, sinal de pura bênção e prosperidade garantida. Adonai cumula seu povo de bens (Dt 12,15; Os 11,4; Ecl 2,24). Cf. Ottosson, in: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 251-256. Comer e beber são características marcantes da alegria pela vida. Oportuna recorrer ao senso pleno do hábito de comer, assinalada na epopéia de Gilgamesh: “Farta o teu corpo dia e noite! Sê alegre todo o dia! Salta e dança sempre!”. Comer juntamente com alguém sempre foi nas culturas antigas sinal supremo de estreita amizade. No AT e no NT o gesto realça confiança e plena comunhão diante dos desejos idealizados. Cf. Behn, J. in: KITTEL, G. e FRIEDRICH, G. (Orgs.), Grande Lessico del Nuovo Testamento, V. III, Brescia, Paideia, 1967, pp. 975-983. 112 Cf. Ibidem, p. 140. 113 por um lado, e por outro, parte consagrada x grupo de necessitado. O grau de importância no uso do paralelismo, ganha, ainda, mais força, com o uso dos verbos ש ֹר ַ ָע, “separar, tomar a décima parte” e נָ ַתן, “dar”, que se entrelaçam. Com base nessas observações, verifica-se a seguinte estrutura: A: separar a décima parte da colheita no campo (v. 12a). B: dar ao levita, estrangeiro, órfão e viúva (v.12b). A1: separar o que é consagrado de minha casa (v. 13b). B1: dar ao levita, estrangeiro, órfão e viúva (v. 13c). Considerando-se esta estrutura, há de se verificar dois importantes hábitos um tanto enraizados no universo religioso: a) o caráter obrigatório de uma norma legal exaltando a obrigatoriedade na separação da décima parte dos produtos colhidos; b) o gesto de disponibilizá-lo a um determinado grupo social provém da décima parte conhecida como tyIB;h;-!mi vd<Qoh; “o consagrado de minha casa” (v. 13b). Nos versículos 13e-f-14a-c, verifica-se uma segunda parte da mesma unidade. São citados antigos hábitos religiosos ligados às práticas do dia-a-dia, e aqui, relacionados à parte da colheita a ser entregue como suprimentos essenciais à sobrevivência dos grupos desfavorecidos, como: a não-transgressão dos mandamentos; o não-esquecimento; o não-consumir do dízimo em momentos fúnebres; o não-consumi-lo em estado de impureza; o não-subtrair parte do dízimo na oferenda a um morto. Após a quíntupla negação (v. 14c), ocorre uma dupla afirmação de retidão comportamental marcadas pelo uso dos verbos שׁ ַמע ָ “ouvir” e ש ֹה ַ “ ָעfazer” diante da “ קוֹלvoz” e “ ַצוmandamento” de YHWH (v. 14ae ). No v. 15 se encontra o desfecho, a conclusão dessa segunda parte da perícope. Trata-se da elevação de súplica, feita a YHWH, que habita num santuário – nada garante que este templo seja o de Jerusalém -, solicitando a bênção sobre o povo de Israel e a manutenção das promessas feitas aos patriarcas. Tais observações possibilitam a seguinte estrutura: A – Declaração de inocência diante dos mandamentos (v. 13e): • yTir>b:['-al{ “não transgredi” • yTix.k'(v' al{ “não esqueci” 114 B – Declaração de inocência diante do dízimo (v. 14a): • yTil.k;a'-al{ “não comi” • yTir>[:bi-al{ “não separei” • yTit;în"-al{ “não dei” A1 – Declaração de inocência diante de YHWH (v. 14d) • yTi[.m;v' “ouvi” • ytiyfi[' “fiz” B1 – Preces de solicitações (v. 15a-e) • hp'yqiv.h; “dirige teu olhar” • %rEb' “abençoa” • T'[.B;v.nI rv<a]K; “conforme prestaste juramento” Encontra-se semelhante estrutura paralela, presente nos vv. 12-13a nesta parte do texto ao relacionar A + A1, B + B1. A confirmação ética, diante dos mandamentos de YHWH, justifica o pedido feito na primeira pessoa: não transgredi, não esqueci (v. 13b). O mesmo se verifica na constatação da trilogia negativa de nada violar da décima parte oferecida, com as três solicitações de preces apresentadas a Deus. Não há como negar o caráter cultual utilizado no momento da oferenda da décima parte da colheita, disponibilizada para saciar e nutrir setores menos favorecidos da sociedade. 3.5.3. Comentário e análise semântica A obrigatoriedade do pagamento do imposto, oriundo da décima parte dos trabalhos realizados no campo, seja na produção agrícola ou pastoril, é o tema central nesta parte legislativa do Código Deuteronômico. Verifica-se claramente que a preocupação com o cumprimento da lei, fixando a quantia de 10%, perpassa todo este corpo redacional. Mas, nota-se que a prática de oferecer a quantia estabelecida ocorre, tendo uma atividade litúrgica como instrumento. Tais atitudes, de caráter litúrgico, acenam para a presença de antigas tradições literárias reeditadas na formação do texto. 115 A legislação é clara ao obrigar a disponibilidade da quantia de 10%. Tratase de uma reedição de Dt 14,28-29113 nesta parte do livro em que são retomados todos os elementos anteriormente citados, como demonstra o quadro sinótico: Dt 14, 28-29 Época Dt 26, 12-13a Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte de tua colheita no campo, no terceiro ano Ao final de três anos Quantidade tu farás tirar a décima parte a décima parte de toda a tua colheita no ano Modo e a colocarás à disposição nos teus portões. Destinatários Virá o levita, [em tuas portas] darás para o levita, pois ele não tem parte da herança contigo, Finalidade o estrangeiro, para o estrangeiro, o órfão para o órfão e a viúva e para a viúva e comerão até ficarem e eles comerão, em tuas portas, saciados e fartar-se-ão Com referência à narrativa de Dt 26,12-13, Buis ressalta que este dízimo “escapava ao controle do sacerdote, a partir do momento em que não havia mais do que um santuário e que desvios de bens eram possíveis”114. Crê-se que, pelo fato da oferta, correspondente a 10% dos produtos, não estar sob o controle do sacerdote, seja possível compreender as inúmeras referências rituais e as 113 Cf. Prevalece uma unanimidade ao notar nesta parte conclusiva do livro a relação entre gestos litúrgicos, tão evidenciados nesta parte do livro, e a ênfase social por meio de uma obrigatoriedade de dispornibilizar a décima parte de todos os produtos da terra aos pobres. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, p. 345; VON RAD, G., Deuteronomio,op. cit., p. 177-179; CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy, 21,10-34,1. Nashville, Thomas Nelson Publishers, 2002, pp. 639-642. 114 Cf. BUIS, P,. Le Deutéronome, Beauchense, Paris, 1969, p. 349. Esta mesma opinião tem ressonância nas afirmações de : CAZELLES, H. RB, LV, 1948, p. 54-71. JAGERSMA. H., “The Tithes in the Old Testament”, OTS, XXI, 1981, pp. 116-128. 116 declarações de inocência que acompanhavam, em forma de recitações e preces, o gesto de oferecer a quantia a ser utilizada para a manutenção dos grupos necessitados. Por outro lado, existe a possibilidade de pensar como de Vaux, para quem “apesar do silêncio dos textos, se deve supor que uma parte ficava reservada aos ministros”115. Detalhe compartilhado por Crüsemann, uma vez que os levitas e sacerdotes são considerados como grupos sociais que formam parte de Israel. “Mesmo assim, eles devem ser diferenciados claramente, às vezes explicitamente, das pessoas a quem o texto se dirige. Eles não possuem terras (hēleq, naḥalāh; por exemplo, 14,27; 18,1ss etc). O Deuteronômio não contém regras para sacerdotes”116. Os vv. 13a-15a apresentam, pela ordem, os seguintes elementos que compõem a cerimônia realizada durante o momento da apresentação do dízimo trienal: a) ritual feito diante da divindade; b) oferta disponibilizada aos pobres, segundo os mandamentos de YHWH; c) declaração de inocência diante das ofertas; d) declaração de inocência diante dos mandamentos de YHWH; e) pedidos de preces ao Deus de Israel. Percebe-se por meio dessas etapas, presentes no texto, que a oferta estabelecida de 10% foi considerada como algo sagrado, proveniente de parte de toda a colheita para ser oferecida “Diante de YHWH”, isto é, em um santuário estabelecido. A quantia estabelecida, na esfera de 10%, simbolizava algo razoavelmente elevado, uma quantidade exuberante, considerando que a lei vigorava em todo país de Israel. Eis um forte motivo para a possibilidade de ocorrerem frequentes fraudes, se se considerar o conteúdo das declarações de inocências (vv. 13b-f-14e) que antecedem a apresentação de súplicas a Deus presentes no versículo 15b-e. O v. 13b-c relata duas práticas passíveis de acontecer diante do mandamento: transgredi-lo ou esquecê-lo. Estas são as maiores de todas as faltas que podem ocorrer diante de YHWH. Afinal, uma vez violados os mandamentos tudo o mais é possível. Tal preocupação ocupa relativo destaque nas pregações dos profetas que atuaram, junto ao Reino do Norte, anterior à queda da Samaria, em 722 a.C.117. Feitas as declarações éticas diante das leis de YHWH, seguem outras três declarações de inocência, por meio das quais é possível determinar três 115 Cf. De Vaux, Instituciones del Antiguo Testamento, op. cit., p. 490. Cf. CRÜSEMANN, F., A Tora. Teologia e história social da lei do Antigo Testamento,op. cit., p. 309. 117 Cf. Os 2,15. 4,6. 6,7. 8,1. 8,14. 13,6; Am 4,1. 5,6-7,14. 116 117 diferentes tradições e possibilidades de desvios ocorridos diante da quantia destinada aos pobres. As três frases, embora por demais sintéticas, como as encontradas em Dt 26,14 oferecem elementos capazes de compreender a grandeza e a complexidade dos cultos às divindades nos reinos de Israel. Impõem também a possibilidade real de constatar que o javismo jamais foi uma unanimidade perene na comunidade religiosa: 1) WNM,mi ynIaob. yTil.k;a'-al “Não comi disto [dízimo] no meu luto, 2) amej'B. WNM,mi yTir>[:bi-al{w> e não queimei dele [dízimo] em estado de impureza, 3) tme_l. WNM,Þmi yTit;n"-al{w> e não dei dele [dízimo] para um morto . O primeiro risco (v. 14a) dá destaque ao desvio de utilizar parte do dízimo, ainda que seja pequena, em cerimônias fúnebres em que se comemoravam a morte de uma determinada divindade ligada ao mundo vegetal ou ao mundo animal, especialmente animais como os carneiros, os bodes e os bois. Almejava-se, por meio da intervenção divina, obter leite e carne com fartura118. Tais práticas idolátricas chegaram ao nível de anormalidade em Israel. Não são inócuas as denúncias proféticas de Oséias e Ezequiel. Embora façam parte de outro momento histórico, as críticas desses profetas podem bem exemplificar a declaração de pureza, esquivando-se de qualquer atividade religiosa capaz de identificar-se com Baal119 ou a outra de nome Tammuz120. Deuses a quem Israel recorria com frequência. 118 Segundo as denúncias anti-idolátricas proferidas pelo profeta, trata-se de uma prática cultual oferecida a Tammuz (Ez 8,14). “As mulheres sentadas, chorando”, junto à entrada, situada ao norte do Templo de Jerusalém, é referência a uma antiga prática encontrada num ritual acadiano onde menciona: “No mês de Tammuz, quando Ishtar faz com que a população toda chore o seu amante Tammuz, e a família se reúne ali, Ishtar está presente”. Cf. HARRIS, R. L., In: DITAT, p. 2519. Com base na comparação entre os textos acádicos, há diferentes abordagens, nos mais diferentes períodos históricos, ao culto prestado à divindade de Tammuz. Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W. (Eds.), In: DDD, pp. 828-834; 119 O nome “ ָבּ ַעלsenhor, marido, possuidor”, muitas vezes associado ao ambiente da casa, às relações familiares expressa também o nome de uma divindade que, em muito concorreu com a concepção javista. Uma vez que os ritos cananeus de fertilidade e prosperidade tinham Baal como defensor e provedor de tudo. Não há dúvidas de que este foi um forte concorrente ao conceito de unicidade vivenciado nos quatro séculos que antecedem a pregação de Amós, Oséias, Miquéias e Isaías. Cf. ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel em tempos del Antigo Testamento, Simancas, Valladolid, 1999, pp. 321-330. Israel pode até recorrer ao nome Baal como uma referência à supremacia de YHWH, mas análises da pregação de Oséias evidenciam relativa condenação ao recorrer a Baal. O javismo foi arduamente defendido por Oséias. Cf. LIMA, M. L. C., “A fidelidade de YHWH diante da infidelidade do povo: o anúncio de Os 2,18-25 no contexto de Os 1-3”. In: AT, n. 21, 2005, p.303. 118 Oséias descreve o perigo de desintegração ética da comunidade religiosa. Primeiramente, faz uma ameaça contra a quebra da aliança, simbolizada pela prática da prostituição, mostrando a adesão às divindades cultuadas no reino do Norte.121 A participação nos ritos de fertilidade cananeus faz com que YHWH rejeite seu povo ameaçado de ser definitivamente destruído e definitivamente ferido por outras nações (8,8; 9,3; 10,15). Somam-se ao baalismo as referências às práticas idolátricas apontadas por Ezequiel (8,14), onde é possível perceber o lastro cultual prestado às outras divindades que, se não chegaram a ter seus templos e cultos estabelecidos, adquiriram espaços ainda no interior do santuário nacional. Um segundo risco de desvio poderia ocorrer, em tempos de oferecer sacrifícios e holocaustos às divindades cananéias, utilizando, como oferta parte do dízimo separado para YHWH. As liturgias marcadas pelos sacrifícios e holocaustos foram demasiadamente denunciadas pelos profetas. Não foram poucas as vezes em que Israel se deparou com a prática da idolatria122, pois há harmonia entre textos bíblicos e extra-bíblicos que identificam uma divindade de nome “ ָבּ ַעלbaʿal” como sendo deus dos Cananeus123. Baal, identificado como 120 Tammuz, também conhecido como Dumuzi, já encontrado como uma divindade, na Suméria (a partir do 3o milênio a.C., tem seu culto ligado à fertilidade. “Tammuz morre no verão, na época da seca, descendo ao submundo. Em julho, no mês que leva seu nome, as mulheres choram a sua morte, com a finalidade de trazê-lo de volta, para garantir a fertilidade e a fartura, o que acontece no início da época das chuvas”. Cf. NEUENFELDT, E. G., Práticas e Experiências Religiosas de Mulheres no Antigo Israel. Um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-23. São Leopoldo, 2004, pp. 134-140. 121 A preocupação com os pobres não foi de modo algum negligenciada pelo profeta Oséias, como analisam alguns. Por ter exercido sua atividade profética num dos poucos períodos de equilíbrio social – reinado de Jeroboão II – Oséias deseja que sua sociedade seja “justa, adequando-se a algumas normas de convivência que podemos sintetizar no decálogo, animada por espírito de verdade, por afeto, por lealdade”. Cf. LUÍS SICRE, J., A Justiça social nos profetas. São Paulo, Paulinas, 1990, p. 224. 122 Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 132-139. Na pregação de Oséias há referências tanto no singular como no plural a esta divindade, com a qual Israel veio a se prostituir (Os 9,10) “ ַבּ ַעל ְפּעוֺרBaal Fegor”, certamente uma divindade relacionada à região montanhosa de Moab (Nm 23,28). 123 Os autores bíblicos não se debruçam no aspecto negativo sobre ָבּ ַעל. A falta de interesse pelo culto ao deus ָבּ ַעלassemelha-se ao desprezo à qualquer prática marcada por uma certa idolatria, segundo Mulder. Os profetas visam enaltecer o culto a YHWH, um deus identificado com Israel. Sabe-se que o culto sofreu inúmeras censuras. Cf. Mulder, in: BOTTERWECK, J. G. e RINGGREN, H. (Ogrs), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 730-739. Na relação entre Canaã e Israel há aspectos fundamentais que não podem estar à margem: a) Israel tem em sua origem a experiência do Egito; b) O culto cananeu sempre foi uma inversão do culto ao javismo; c) As inúmeras hostilidades denunciadas contra práticas cananéias, foram vivenciadas no interior das comunidades israelitas. Cf. CRÜSEMANN, F., “Imaginário de violência como parte da história das origens. A lei do anátema e ordem legal no Deuteronômio”. In: DREHER, C.A., MUGGE, E., HAUENSTEIN, I., DREHER, I. S. (Orgs.), Profecia e Esperança. Um tributo a Milton Schwantes. São Leopoldo, Oikos, 2006, pp. 218-238. 119 senhor da natureza, da boa colheita e das chuvas em tempo certo, estará sempre em contraponto com YHWH. Este último sempre o suplantará. O culto não excluía comer parte dos sacrifícios oferecidos ao deus Baal124. Um último desvio pode ocorrer no momento de prestar culto à morte125 de uma respectiva divindade. Sabe-se da existência de ָמוֶת, “morte”126, divindade com o poder de controlar o mundo dos mortos, “uma terra de lodo e imundícies”. Sua morada é conhecida como sendo שְׁ אוֹל, “sheol”127 (Jó 28,22; Am 9,2; Is 14,11). Pode-se ver também, na breve citação de Dt 26,14c, uma possível relação com os rituais fúnebres lembrando a morte do deus Baal, celebrada na época do verão, período em que a paisagem verde dos vales e montanhas seca, dando lugar ao desaparecimento por completo da vegetação. Baal é o deus das montanhas, e nelas-se localizam os inúmeros santuários edificados em seu nome128. As declarações de inocência, indicadas nos vv. 13b-14e encontram seus significados quando analisadas junto aos nós do sincretismo existente na vida religiosa israelita. Tal sincretismo indica que, nem sempre, o javismo foi uma unanimidade exclusiva. Ao seu lado, concorreram divindades como Baal, El, Ashera129, Mot, Shemesh130 e, para agradá-los, recorriam-se, com frequência, à profanação de partes do dízimo trienal. A oração conclusiva (v. 15) pedindo a bênção e a prosperidade numa terra boa e farta, tem por base as promessas seladas entre YHWH e os patriarcas (Gn 12, 2-3). Porém, a prosperidade não depende de um gesto unilateral de YHWH, 124 Cf. Sl 106, 28; Ez 20,30-43; Jr 2,23. Na corrente religiosa javista, os cultos aos mortos foi fortemente rejeitado, bem como todo tipo de necromancia. Cabe à comunidade lamentar, sim, seus mortos, mas sem referência alguma a um tipo de divindade. Cf. FOHRER, G., História da Religião de Israel, Paulinas, São Paulo, 1982, pp. 265-266. 126 Não há consenso sobre se a divindade “ מָ ֶותmorte” tem seu nome escrito nas páginas do Antigo Testamento. Para alguns, a divindade é textualmente comprovada nas duas citações de Os 13,14, onde a personificação é claramente identificada com um lugar, e também desafiada a se manifestar diante do poder absoluto de YHWH. A personificação da divindade da morte pode ser evidenciada em outros dois textos proféticos: Is 5,14, Hab 2,5. Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 598-603. 127 Ibidem. pp. 598-603. O termo שְׁ אוֺלé por demais incerta, que segundo Gerleman refere-se a um termo amplamente desenvolvido e, seu uso no AT, na maioria das vezes – sessenta e seis - ocorre em textos sapienciais. O termo induz à experiencia de dor, sofrimento, estado de angústia, desolação. Não são poucos os autores do AT a relacionar com o mundo dos mortos (Os13,14; Sl49,16;Jo 26,6.28,22). Cf. Gerleman שְׁ אוֺל. In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, V. II, pp. 1053-1057. 128 Cf. 2Rs 23,1-20. 129 Cf. NEUENFELDT, E. G., Práticas e Experiências Religiosas de Mulheres no Antigo Israel. Um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-2, op. cit., p. 43. 130 Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 764-768. 125 120 mas implica uma ação anterior que envolve a comunidade no gesto de שָׁ מַ ע, “ouvir” e ש ֹה ַ ָע, “agir” segundo a voz e os mandamentos de YHWH. A memória da libertação do Egito foi, sem dúvida, a motivação, se não a mais importante, pelo menos, uma grande força ideológica capaz de oferecer elementos de sustentação131 para Israel trilhar seus passos na história, como nação escolhida por YHWH e, deste modo, preservar a memória do javismo. Trata-se da consciência de ter um deus pessoal a seu lado. Foi com esta compreensão na divindade que as narrativas em torno da saída do Egito, foram preservadas. As três grandes festas populares132 são marcadas pela prática da peregrinação até o local escolhido por YHWH para ali fixar uma morada para sempre. Há um aspecto cúltico no momento da distribuição do dízimo e, esta deve ser marcada pelo ideal da partilha. Ao contrário, Israel não encontra meios para agradar a seu Deus O texto retoma, em sua primeira parte, temas já apresentados considerando a prática do dízimo (Dt 14,28-29). Na segunda parte da narrativa (vv. 13-14) adquirem realce as ações expressas pelos verbos xk;v' “esquecer” (v. 13f), e [m;v' “ouvir” (v. 14d), e duas outras expressões ligadas a um local e realidade semelhante: ^v.d>q' !A[M.mi, “desde tua morada santa”, mais a ação ^M.[;-ta,( %rEÜb'W, “abençoa o teu povo”. O verbo xk;v', “esquecer”, grafado na primeira pessoa do singular, adquire o sentido de destacar a relação entre o ֲאנִי, “eu”, (Israel) e o relacionamento com YHWH. Esta atitude de esquecer-se de Deus é não mais relacionar-se com ele. Entende-se a transferência de atitudes, agora direcionadas a uma outra divindade, 131 A páscoa e a experiência do êxodo não são duas realidades palpáveis e objetivas, impossíveis de serem analisadas como atos históricos. “Em termos teológicos, a relação entre o ato e interpretação ou evento e palavra, é algo que não pode ser separado. O escritor bíblico não concebe o fato de ser um evento primário ou ‘objetivo’ a partir de algo deduzível, dedução subjetiva de um significado desenhado. Trata-se de um acontecimento jamais interpretado”. Cf. CHILDS, B. S., The Book of Exodus. Louisville, The Westminster Press, 1974. p. 204. Vale ressaltar que o povo de Israel não tem “história até não se converter em povo de Deus, isto significa, até a revelação patriarcal e mosaica. Da época anterior, quando seus antepassados “habitavam do outro lado do Rio e adoravam outros deuses” (Js 24,2) há vagas recordações (Gn 11,27-32; 22,20-24)”. Cf. GRELOT, P., Sentido Cristiano del Antiguo Testamento. Bilbao, Desclée de Brouwer, 1995, p. 259. 132 Esta é a ótica expressa pelo legislador deuteronômico de que as festas devem envolver todos os membros da família (Dt 16,11.14). Cf. HAAG, H., De la Antigua a la Nueva Pascua. Historia y Teologia de la Fiesta Pascual, Sigueme, Salamanca, 1980, pp. 92-93. 121 que passou a ocupar o lugar de YHWH133. Eis o sentido que adquire a crítica proferida por Oséias: Israel esqueceu-se de seu Deus, passou a não mais conhecêlo. Mesmo que Israel siga minuciosamente as práticas religiosas estabelecidas ao cultuar seu Deus134, se não incentivar a partilha com os setores desfavorecidos, seus gestos serão vistos como alguém que se esqueceu de sua particularidade com YHWH. Mais do que simplesmente escutar, o verbo [m;v', “ouvir”, induz a uma atitude humana em relação ao Criador135. Ouvir a YHWH impõe o gesto de obedecer-lhe, prestar-lhe culto, por meio dos decretos estabelecidos por vontade do próprio criador. Induz a uma prática136. Trata-se de ser o mais coerente possível. Não existe outra maneira de receber as bênçãos do Senhor, a não ser por meio do gesto de ouvi-lo e prestar-lhe culto. A utilização do verbo ressalta a unicidade e importância do Deus de Israel. A comunidade se vê diante de uma divindade completamente diferente das demais existentes no Antigo Oriente. A narrativa sublinha que não se trata apenas de tê-lo como eixo referencial, mas combater, em seu nome, os cultos prestados ao deus Baal. Certamente, o risco de deixar-se influenciar pelas divindades cananéias foi, sem duvida alguma, um perigo que rondou a comunidade de Israel nas mais diferentes etapas históricas de sua existência. Diante de tais considerações, o gesto de ouvir expressa toda a riqueza de seu significado. A unicidade de YHWH e a pertença de Israel como povo seu escolhido será uma idéia fundamental ao longo de toda pregação profética, quer antes quer depois do exílio. 133 O verbo שָׁ ַכרna proporção do relacionamento entre YHWH e Israel será utilizado inúmeras vezes no antônimo זָ ַכר. Não poucas vezes, Israel será alertada de não se esquecer de seu Deus e das proezas por ele feitas em prol de seu povo escolhido (Dt 5,15; 8,18; 15,15; 16,12; 24,16. 22). A “aliança” será lembrada por Deus (Ex 2,24; 6,5; Lv 26,42), mas esquecida por Israel (Am 1,9; Is 56,6; Jr 3,16; 11.3). 134 Por séculos foram utilizados inúmeros elementos provenientes da natureza na prestação de culto a YHWH. Cf. ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento, p. 326. 135 A expressão שָׁ מַ עé soleníssima no ato de entender o relacionamento entre Israel e seu Deus. Trata-se de uma equação de cunho exaltativa envolvendo Israel e seu Deus. Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, p. 128. Sabe-se que YHWH, na qualidade de ser único, sofrera concorrência com a divindade de Baal. Não há dúvida de que o uso imperativo do verbo, em Dt 6,4-5, visa conclamar sobre a comunidade israelita o poder impar e exclusivo do javismo. Escutar envolve a dimensão comportamental diante das normas divinas. Por isso, a YHWH, Israel deve se dirigir com todo o “coração, alma e força”. Cf. BLENKINSOPP, J., Deuteronοmio. In: CBSJ, Vol I, p. 309. 136 Ocorre um apelo de cunho exortativo imposto ao povo de Israel. Num mundo fortemente marcado pelo politeísmo a fidelidade a YHWH é vista como uma maneira própria de ser. Cf. LOHFINK, N., Ascolta, Israele – Esegesi di testi del Deuteronomio. Brescia, Paideia Editrice, 1998, pp. 67-68. 122 Os termos ^v.d>q' !A[M.mi, “desde tua santa morada”, juntamente com a ação expressa na frase ^M.[;-ta,( %rEÜb'W, “abençoa o teu povo” são expressões nítidas de que esta parte conclusiva do texto se refere a termos usuais de uma oração137. A solicitação pode encontrar seu significado mais pleno nas duas promessas feitas por YHWH, que culminaram na posse da terra prometida. Em outras palavras, as promessas feitas ao patriarca Abraão (Gn 12,2-3) culminam com as bênçãos sobre o povo eleito, Israel (Gn 15,8). Vê-se que o autor deuteronomista harmonizou duas tradições antiqüíssimas em forma de súplica, na narrativa. Trata-se de uma bênção condicionada às atitudes de Israel ouvir a voz de seu Deus e cumprir todos os mandamentos de YHWH. Só nestas verdadeiras cláusulas da obediência, entendida como testemunho diante dos grupos mais necessitados, Israel se apoderará da terra da promessa, como viverá para sempre em שׁלוֺם ָ , “paz”; numa “terra em que jorram leite e mel”. 3.6. O senso cúltico contra atos que impossibilitam a realização do projeto da bênção: Dt 27,11-26 A constatação de elementos de cunho cúltico, como a expressão: !mEa' Wrm.a'w> ~['²h'-lk' Wnõ['w>, “e todo o povo dirá: amém”, citada doze vezes, ao longo de toda a perícope de Dt 27,11-26, evidencia o aspecto litúrgico empreendido ao texto, com a finalidade de dar ao conjunto de normas fixado, agora, proclamado como Lei, uma nova e eficaz formulação138. Soma-se a referência às duas montanhas – Garizim e Ebal – como cenário escolhido por vontade divina para realizar uma cerimônia pela posse da terra, ao cruzar o Jordão. 3.6.1. Dt 27,11-26: tradução, aspectos filológicos e variantes Ordenou Moisés ao povo naquele dia, dizendo: 137 11a ~['h'-ta, hv,mo wc;y>w: `rmoale aWhh; ~AYB; Muitas análises a relacionam com a frase encontrada em IRs 8,43. Cf. BROWN, R, E., FITZMYR, J. A., MURPHY, R. E., NCBSJ, p. 245. 138 Na opinião de L`hour, Dt 27 nos remete diretamente ao livro do Josué, no desejo de compreender o amplo significado da assembléia de Siquém, e notar a existência de uma equivalência entre “Ebal e Garizim”. Cf. L`HOUR, J., “L`alliance de Sichen”. In: RB, v. 70, 1962, pp. 161-184. 123 Estes permanecerão em pé 12a para abençoar o povo sobre o monte %rEb'l. Wdm.[;y: hL,ae ~yzIrIG> rh:-l[; ~['h'-ta, Garizim, quando atravessarem o Jordão: 12b Simeão e Levi, ywIlew> !A[m.vi Judá e Issacar, José e Bejamim. E estes permanecerão em pé, !DEr>Y:h;-ta, ~k,r>b.['B. 13a para a maldição, `!mIy"n>biW @sEAyw> rk"XF'yIw> hd"WhywI hL,aew> hl'l'Q.h;-l[; Wdm.[;y: no monte Ebal, lb'y[e rh:B. !beWar> Rubem, `yliT'p.n:w> !D" !lUWbz>W rveêa'w> dG" Gad e Aser e Zabulon, Dan e Neftali. Tomarão a palavra os levitas, 14a ~YIwIl.h; Wn['w> eles dirão 14b Wrm.a'w> para todo homem de Israel, com voz `~r" lAq laer"f.yI vyai-lK'-la, altiva: Maldito139 o homem que faz 15a vyaih' rWra' b hf,[]y: rv<a] 15 estátua ou ídolo de metal fundido - hw"hy> tb;[]AT hk'Sme ;W ls,p, abominável para YHWH obra de mãos de artista 15c ydEy> hfe[m] ; e a pendura às escondidas. 15d rt,S'B; ~f'w> vr"x' Tomarão a palavra todo o povo 15e ~['Þh'-lK' Wn[w> e dirão: amém! 15f `!mEa' Wrm.a'w> Maldito quem desprezar seu pai e sua 16a AMaiw> wybia' hl,qm. ; rWra' todo o povo dirá: amém! 16b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> Maldito quem remover a fronteira do 17a Wh[erE lWbG> gySim; rWra' 17b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> a %r<D"B; rWE[i hG<vm. ; rWra' mãe, seu vizinho, todo o povo dirá: amém! Maldito quem desencaminhar um 18 cego no caminho, 139 Vale realçar a compreensão do verbo “ אָ ַררexecrar, pronunciar uma maldição”. Uma “fórmula de maldição”. ALONSO SCHÖKEL, L., DBHP, p. 79. 124 todo o povo dirá: amém! Maldito quem desviar o direito do 18b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> a jP;vm. i hJ,m; rWra' 19 estrangeiro, do órfão e da viúva, hn"m'l.a;w> ~Aty"-rGE todo o povo dirá: amém! 19b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> Maldito quem se deitar com a mulher 20a bkevo rWra' pois descobriu o manto do seu pai, 20b wybia' tv,aäe-~[i wybia' @n:K. hL'gI yKi todo o povo dirá: amém! 20c `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> Maldito quem mantiver relações com 21a bkevo rWra' todo o povo dirá: amém! 21b hm'heB.-lK'-~[i `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> Maldito quem mantiver relações 22a bkevo rWra' de seu pai, todo [tipo de] animais, com sua irmã, filha do seu pai ou filha AMai-tb; Aaå wybia'-tB; Atxoa]-~[i de sua mãe, todo o povo dirá: amém! 22b `!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w> Maldito quem mantiver relações com 23a bkevo rWra' todo o povo dirá: amém! 23b ATn>t;xo-~[i `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> Maldito quem golpear seu próximo 24a rt,S'B; Wh[erE hKem; rWra' todo o povo dirá: amém! 24b `!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w> Maldito quem 25a { rWra' sua sogra, em segredo, pegar suborno para golpear a vida de yqI+n" ~D" vp,n< tAKh;l. dx;vo x;qEl{ um sangue inocente, todo o povo dirá: amém! 25b `!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w> yrEb.DI-ta, ~yqIy"-al{ rv<a] rWra' Maldito quem não cumprir as palavras desta lei, taZOh;-hr"ATh; praticando-as, 26a ~t'Aa tAf[]l; todo o povo dirá: amém! 26b `!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w> Ocorrem pequenas diferenças no tocante à grafia na comparação entre os manuscritos. No v. 12 notam-se cinco ressalvas de ordem tipicamente gráfica. A primeira refere-se ao termo “monte Garizim”. Na Bíblia Rabbinica de Jacob ben 125 Hayyim grafa-se הר גרזִּיםcomo se encontra em Dt 11,29. O códice manuscrito do Pentateuco Samaritano une os substantivos na fórmula הרגרזים. Na Guenizá do Cairo, encontra-se na forma הר גריז)י(ם. Outra variante refere-se ao códice manuscrito hebraico 9.69 e poucos outros manuscritos da LXX e Vulgata utilizam a forma לוי, subtraindo a conjunção ו, e não ְו ֵל ִויcomo apresenta o TM. Uma terceira forma encontra-se junto ao Pentateuco Samaritano, LXX e Vulgata, que registram a forma י ְהוּדָ הsubtraindo a conjunção ו. A quarta diferença, também de ordem gráfica, refere-se ao nome שּש ָכר ָֺ ִ י, “Issacar”, sem a partícula conjuntiva encontrada em alguns manuscritos hebraicos medievais da LXX e Vulgata. O mesmo caráter de subtração, correspondendo à grafia יוֺ ֵסף, “José”, sem a conjunção, é registrado, também, em poucos manuscritos hebraicos medievais, entre os quais, Pentateuco Samaritano, códices cursivos (minúsculos) da LXX e Vulgata. No v. 13, verificam-se apenas duas breves diferenças gráficas. Uma, subtraindo a conjunção ו, antecedendo a indicação da tribo de ז ְבוּ ֻלן, é encontrada no manuscrito hebraico 1, e em manuscritos medievais, divergindo do TM, ao assinalar וּז ְבוּ ֻלן. Já o manuscrito Siríaco/Peshitta diverge do TM ao citar a tribo de “ דןDan”, acrescentando a conjunção ו. O verbo קָ ָלה, “desprezar”, no v. 16a, recebe algumas mudanças em sua grafia. Dois manuscritos hebraicos medievais usam-no no tronco hif`il, no particípio מקלה, com o sinal vocálico em tsere e não segol, como no TM, conforme outros dois manuscritos hebraicos que utilizam ְמ ַק ֵלּל, como pode ser encontrado em Ex 21,17. Porém a LXX usa o termo o` avtima,zwn, “o que desonra”. Uma segunda diferença é encontrada no Pentateuco Samaritano referente ao modo de grafar o verbo, na sua forma plural, na terceira pessoa, como faz o TM no v. 15: ְואָ ְמרוּ, “responderão”. Nos versículos 17 e 18, notam-se duas informações referentes à grafia do verbo אָ ַמר, que tem como critério a grafia usada no versículo 16: ְואָמַ ר, “responderá”. Nota-se que vários manuscritos hebraicos medievais e a Bíblia Rabbínica, de Jacob ben Hayyim, utilizam o sinal vocálico tsere e não segol ao grafar o verbo hJ,m “desviar”, como se encontra no v. 19. A citação do verbo אָמַ ר, no verso 19, como nos versos 20 e 21, segue a forma usada no v. 16b: ְואָ ַמר. 126 No v. 22, no Códice Vaticano (séc. IV), em alguns manuscritos, ocorre uma correção ao grafar avdelfh/j patro.j h' mhtro.j auvtou/, “irmã do seu pai e de sua mãe” = אחות אביו ואמו, “irmã do seu pai e sua mãe”. Neste caso, ocorre uma variante, pois o interdito recai sobre o grau de parentesco tia e não irmã, como salienta o TM: AMai-tb; Aa wybiÞa'-tB; Atxoa]-~[I “com a sua irmã, filha do seu pai e filha de sua mãe”. Embora anotada a variante entre os graus de parentesco tia e irmã, opta-se por manter o texto presente no TM. A grafia do verbo אמר assemelha-se à do v. 16b: ואמר, como registram os vv. 23b, 24b, 25b e 26b. Semelhante à expressão yqIn" ~D" “sangue inocente”, encontrada em Dt 19,10 em paralelo ao v. 25a, ocorre uma diferença registrada na Bíblia Rabbinica de Jacob ben Hayyim que opta por דם נקיא. Três ressalvas são indicadas no v. 26. A primeira provém do Targum Pseudo-Jônatas referindo-se ao uso do termo “ אָרוּרInfame”. Mudança apenas no aspecto da forma, sem alternância na interpretação do verbo. Poucos manuscritos, entre os quais: Pentateuco Samaritano, alguns códices cursivos minúsculos da LXX acrescentam o sufixo כֺּלantes de “ ַהתּוֺ ָרה ַהזֺּאתestas leis”. Uma terceira alternância é registrada na expressão “ ַל ֲעשֺוֺת אוֺתָ םpraticando-as”, grafada no Pentateuco Samaritano na forma: ַל ֲעשֺוֺתָ ם. Com exceção da observação ocorrida no v. 22, que muda o grau de parentesco de irmã para tia – variante encontrada somente no manuscrito do Códice Vaticano - não se encontra nenhuma nuança no conjunto dos vv. 11-26. Conclui-se, por meio da comparação entre os manuscritos, pequenas diferenças no aspecto gráfico, num reduzido número de manuscritos, tendo como parâmetro da versão do TM, sem a possibilidade de encontrar em Dt 27,11-26 nenhuma variante. Vale ressaltar a conclusão de inúmeros trabalhos que indicam uma redação recente empreendida à perícope, datando-a de um período pósexílico mas que manteve a mais antiga informação de dimensão litúrgica – do decálogo siquemita - conhecida no Antigo Testamento140. 140 Cf. GARCÍA LÓPEZ, F., El Pentateuco. Introdução a la lectura de los cinco primeiros libros de la Biblia. Navarra, Editorial Verbo Divino, 2003, p. 311; Boecker indica uma fase pós-prefácio à redação formada pelos capítulos 27,1-30,20. Os demais capítulos foram tardiamente somados ao livro, como: 1,1-4; 43 e 31-34. Cf. BOECKER, H. J., Law and the administration of justice in the Old Testament and Ancient East. Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1980, p. 178. 127 3.6.2. Delimitação, composição e estrutura Embora seja o único versículo a explicitar a trilogia do estrangeiro, do órfão e da viúva, não há como excluir o v. 19 de todo o conjunto da perícope. Os vv. 11-26 formam uma unidade literária. Tal estrutura pode ser delineada, considerando duas fórmulas usuais no livro do Dt: rmoale aWhh; ~AYB; “naquele dia, dizendo”, que, ao lado da expressão ~t'Af[]l; ~AYh; ^W>cm ; . ykiónOa' rv,a] “que eu hoje te ordeno cumprir”, utilizada com freqüência nas introduções ou nas conclusões, marcam a passagem de uma seção à outra141, além do bloco literário formado pelo “dodecálogo siquemita”142 (vv. 15-26). Nas ordens dadas por Moisés (v. 11) especificam-se dois grupos recebendo, cada um, uma distinta tarefa: aos estabelecidos ao sul, no monte Garizim, a responsabilidade de %r;Be “abençoar”; aos estabelecidos no monte Ebal, ao norte, a tarefa de serem os responsáveis pela hl'l'q., “maldição” sobre o povo. Responsáveis, porque o uso do verbo dm;[' “estar de pé, pernanecer em pé”, é apresentado envolto em uma conotação fortemente ética. A unidade entre as duas partes do texto (vv. 11-14 e vv. 15-26) se estabelece pela ação dos levitas (v. 12), responsáveis de proferir, pela utilização de um discurso eminentemente litúrgico, as doze maldições sobre todos os homens de Israel (v.14). Este texto (Dt 27,11-26) pode ser dividido em duas partes. Os vv. 11-14 formam um primeiro bloco e os vv. 15-26 constituem o conjunto das doze leis proclamadas pelos levitas, sendo que a unidade entre as partes se faz pela função exercida pela tribo de Levi. Entre os versos 11-14, é possível encontrar elementos oriundos de outras fontes do livro de Deuteronômio. Verifica-se que três elementos utilizados em Dt 11,26-29 sustentam a narrativa nesta parte do livro: a) bênção e maldição (v. 26); b) cumprimento das ordens de YHWH, como instrumentos para o recebimento da bênção ou da maldição143 (vv. 27-28); c) as indicações dos montes Garizim e 141 Dt 7,11; 8,1.11; 10,13; 11,8; 13,19; 15,5; 27,1; 27,10; 30,2; 31,22. Termo cunhado por Von Rad diante do contexto em que Israel é chamado “hoje” a obedecer e cumprir todo o conjunto de leis diante de seu Deus, YHWH. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, op.cit. p. 182. 143 Pode-se pensar que estas “maldições” não chegam a ser declaradas, mas que se tratam de uma linguagem de caráter impositivo diante das obrigações das quais o povo não deve, em hipótese 142 128 Ebal, como lugares privilegiados para dispensar as bênçãos ou as maldições. Não são poucos os estudos que vêem nesta parte de Dt 11,26-29 o anúncio de uma cerimônia sobre a aliança que se soma à outras prescrições litúrgicas apresentadas em Dt 27,11-13144. Seguindo estas mesmas observações, Christensen opta pela seguinte estrutura formada entre os vv. 11-14145: A) Grupos designados para abençoar o povo no monte Garizim vv.11-12 B) Simeão e Levi, Judá e Issacar, José e Bejamin C) Grupos designados para amaldiçoar no monte Ebal D) Rubem, Gad e Aser e Zabulon, Dan e Neftali. E) Tomarão a palavra... com voz altiva v.12d v. 13a v. 13d v. 14a-b O conjunto dos vv. 11-14 é formado por quatro grupos institucionais: Moisés, os dois grupos tribais localizados em Garizim e Ebal, e os levitas. Cada um deles tem uma determinada função. Pode-se verificar a seguinte dinâmica imposta ao texto por meio de um paralelismo: Moisés →→ ordens ao povo: v. 11 Monte Garizim →→ bênção: v. 12 Monte Ebal →→ maldição: v. 13 Levitas →→ falam ao povo: v. 14 Ao conjunto dos vv. 11-14, onde são agrupados dois grupos tribais, em dois diferentes postos e com duas funções distintas, irá se juntar uma série de doze normas, ligadas ao dia-a-dia. Verifica-se que este tipo de linguagem exortativa, alguma, se esquivar. Cf. BUIS, P., “Deuteronome XXVII 15-26: Maledictions ou Exigences de L`alliance?”. In: VT, 17, 1967, pp. 478-479. 144 Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, op. cit., pp. 369-372. Para Alonso Schökel o aspecto cerimonial não aparece de modo evidente, mas encontramos no texto a soma de inúmeras tradições litúrgicas. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco, op. cit., p. 364; ABBA, R., “Priests and Levites in Deuteronomy”. In: VT, XXVII, 3, pp. 256-267; CRAIGIE, P. C., The Book of Deuteronomy. Mich, William B. Eerdmans Publishing, 1976, pp. 330-334. “Deve ser enfatizado que essa literatura – demasiadamente diversificada para ser analisada aqui - não inclui, somente, discursos e narrativas sapienciais, mas sim uma série de mandamentos rituais; ordens sobre a cerimónia de bênção e maldição entre Monte Gerizim e Monte Ebal; o cântico de bênção às tribos reunidas em Israel, onde é dado um lugar de destaque para as tribos do norte e de Levi, enquanto Judá desempenha mais um papel marginal”. ROFÉ, A., Deuteronomy:Issues and Interpretation. Londo-New York, T&T Clark, 2002, p. 224. 145 Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 21,10-34,12. In: WBC, Vol. 6b. 129 algo muito frequente nesta parte do livro, tem sempre a figura de Moisés como principal mediador. A ação de sujeito principal na narrativa de Dt 11,26-29 executada pelo próprio Deus é aqui, transmitida à pessoa de Moisés. Tais observações possibilitam estabelecer a seguinte estrutura para a segunda parte: 1) Leis contra a prática da idolatria • Proibição de imagem, objeto de fundição, obra de artesanato: (v. 15) 2) Leis conclamando ao bom relacionamento familiar e social • Apelo ao gesto de proteção ao pai e mãe: (v. 16) • Proibição de violar a propriedade do vizinho: (v. 17) • Proibição de desviar o cego do caminho: (v. 18) • Alerta em defesa do direito do estrangeiro, do órfão e da viúva (v. 19) 3) Leis de interdito sexual • Não se deitar com a mulher do pai: (v. 20) • Não se deitar com qualquer tipo de animal: (v. 21). • Não se deitar com a irmã: (v. 22) • Não se deitar com a sogra: (v. 23) 4) Leis de cunho ético-comunitário • Proibição de golpear um companheiro secretamente: (v. 24) • Proibição do suborno para golpear um inocente: (v. 25) 5) Comportamento ético-religioso • Apelo para a prática das palavras da lei: (v. 26) Ocorre uma semelhança entre a primeira e a última advertência. Os apelos para evitar a prática da idolatria (v.15a-b) ecoam na fidelidade a todo o conjunto da Lei que é o único meio de contemplar e conhecer os desígnios de YHWH (v. 26ab ). Os laços familiares (vv. 16-19) formam um paralelo com as normas de cunho mais social (vv. 24-25), tendo no centro leis de impedimento sexual (vv. 20-23). 130 3.6.3. Comentário e análise semântica A ênfase, de caráter cúltico, pode ser encontrada nestas afirmações: a) a existência de dois grupos tribais localizados em lugares distintos: os que se localizam sobre Garizim, pronunciam as bênçãos (v. 12a); os do monte Ebal são portadores das maldições (v.13a); b) pela primeira vez, o grupo sacerdotal dos Levitas recebe uma tarefa específica: entoar e dizer, com voz forte, as leis a serem executadas pela comunidade (v. 14a); c) os dozes refrões que intercalam as respectivas “maldições”, sendo que todos são concluídos com a fórmula tipicamente litúrgica e solene: o amém. Garizim e Ebal são localidades apresentadas de modo bem definido na narrativa de Dt 27,11-14146. Numa comparação entre este texto com outras duas narrativas, que também se utilizam desta identificação geográfica (Dt 11,26-29 e Js 8,33-34) também ocorre o destaque dos montes Garizim e Ebal. Verificam-se, também, constantes acréscimos posteriores à redação. Um argumento muito forte é o de relacionar a posse da terra prometida à observância dos mandamentos de YHWH. Na narrativa de Dt 27,11-26, prevalece a expectativa de receber a bênção por parte de YHWH. Pelo binômio hk'r'B., “bênção”, e a hl'l'q., “maldição, nota-se a existência marcante de possuir ou não a proteção divina. “Para o indivíduo e para o povo, existem somente dois caminhos: vidabênção, morte-maldição. A ação dramática que se opta em Ebal-Garizim pretende demonstrar que toda a história e a vida do homem estão submetidas a estes critérios. Com sua conduta, o povo e também o indivíduo, podem desencadear um processo melhor ou o contrário. Uma vez na terra prometida, alcançada a paz, a bênção torna-se algo permanente, uma opção fundamental para todos (11,26; 30,19)147. Moisés recebe a notoriedade. Dele tudo procede. Ele é o mediador entre a vontade de YHWH e as necessidades dos homens de Israel. Aos poucos, o caráter 146 São duas “ localidades situadas no centro da terra prometida, formando o cenário de uma cerimônia que os israelitas devem realizar no mesmo dia em que cruzam o Jordão. Esta circunstância marca uma diferença significativa a respeito dos demais textos do segundo discurso de Moisés, situados além do Jordão; provavelmente, Dt 27 é uma interpolação tardia no discurso”. Cf. GARCÍA LÓPEZ, F., El Pentateuco. Introduccíon a la lectura de los cinco primeiros libros de la Biblia. Navarra, Editorial Verbo Divino, 2003, p. 311. 147 Cf. GUILLÉN TORRALDA, J., “Sobre el vocabulário de `bendición` del Pentateuco”. In: FERNANDEZ MARCOS, N., TREBOLLE BARRERA, J., FERNANDEZ VALLINA, J. (Orgs.). Simposio Biblico Espanol. Madrid: Universidad Complutense, 1984, p. 277. 131 absoluto, centralizador na figura de Moisés se dilui junto às demais instituições, representadas pelos doze líderes tribais e na função, pela primeira vez especificada, dos levitas. Tudo acontece na seguinte ordem: Moisés ordena, os líderes tribais abençoam ou não e, os levitas - oriundos da tribo de Levi (v. 12b) exortam todos os homens de Israel à observância das leis proclamadas. Nota-se que existe um crescendo no interior da narrativa, o que leva Blenkinsopp a concluir o caráter tardio imposto à redação148. A narrativa apresenta três elementos legitimadores desta solenidade litúrgica: a) Siquém, embora não explicitamente indicada na narrativa mas, pelas indicações dos montes Garizim e Ebal, é o local escolhido para reunir todo o Israel para ouvir a leitura dos mandamentos149. Situado a uma altitude de 881 mt, voltado para o sul, o monte Garizim sempre se apresentava revestido de pastagens, o que não era possível no monte Ebal, com 950 metros de altura e localizado ao norte da cidade de Siquém, onde se encontra uma terra predominantemente árida. Possivelmente, sejam esses os motivos para ser escolhido como local da maldição; b) Os sacerdotes, oriundos da tribo de Levi, são apresentados, pela primeira vez, com uma função de cunho eminentemente religioso. A este grupo cabe a missão de ler laeÞr"f.yI vyaiî-lK'-la,, “para todo homem de Israel”, (v. 14), de modo solene, com voz firme e altaneira o conjunto das doze leis; c) !mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>, “E todo o povo responderá: Amém”. Tal participação dos homens de Israel, convidados a responderem simplesmente !mEa', “amém”, destoa enormemente da reedição apresentada em Js 24. Na versão deuteronômica tudo acontece de modo mais simples. Não acontece uma declaração soleníssima exaltando a unicidade de YHWH, bem como a fidelidade inconteste do povo (Js 24,16-18; 21-24). O amém demonstra a aceitação em acolher o mandamento pronunciado pelo levita, bem como, estabelecer um tipo de punição ao transgressor. As interdições anunciadas são todas de pleno conhecimento de Israel. Segue o anúncio dos mandamentos divididos em cinco seções: 1) Maldição contra os idólatras. A prática da idolatria é condenada em todas as esferas. Caso o delito viesse a ser julgado, o transgressor era 148 Cf. BROWN, R. E., FITZMYER, J.A., MURPHY, R.E., NCBSJ, p. 245. O relato será retomado e detalhado em Js 24. Garizim e Ebal exerceram relativa importância na geo-política militar na defesa da cidade de Siquém, por suas posições tremendamente estratégicas. Cf. AHARONI, Y. e AVI-YONAH, M., BA, Macmillan, New York, 1977, p. 43. 149 132 publicamente punido. Aqui, acentua-se o processo ou a punição feita em segredo. Aquela que só Deus é capaz de ver e punir. A lei contra a idolatria já era amplamente divulgada e conhecida. Aqui, o redator considera a lei apresentada no Código da Aliança (Ex 20,23; 23,13), no Decálogo (Dt 5,8) e que será, mais tarde, apresentada no conjunto das Leis de Santidade (Lv 19,4; 26,1)150. 2) Leis conclamando ao bom relacionamento familiar e social. Neste conjunto, quatro leis são apresentadas. A primeira faz um apelo contra qualquer atitude de venha amaldiçoar pai e mãe. O crime cometido contra o pai e contra a mãe não deixa de ser uma reedição de Ex 21,17 e mantida na Lei de Santidade (Lv 20,19). Uma segunda lei, voltada para o estabelecimento da boa convivência, proíbe usurpar a propriedade do vizinho (Dt 19,14). O direito deve também ser estendido aos cegos e coxos. Esta terceira lei que compõe este conjunto de normas, voltadas para o bom relacionamento familiar e social, surge pela primeira vez em Dt 27,18, e será retomada nas Leis de Santidade (Lv 19,14). Uma quarta lei evidencia a prática do direito ao grupo dos desvalidos (v. 19). Numa primeira redação, no Código da Aliança, o grupo dos beneficiados parece estar mais ampliado, além de serem apresentados como pessoas capazes de reivindicar ou apelar contra a violação de seus direitos (Ex 22,20-23; 23,3). 3) Leis de interdito sexual. As proibições pairam na esfera dos laços familiares: mãe (v. 20); irmã (v. 22) e sogra (v.23). A bestialidade também é censurada no verso 21. A interdição da prática sexual com a mãe recebe uma reedição (v.20). A proibição já fora assinalada no Código Deuteronômico (Dt 23,1) e sofrera uma reedição, uma significativa ampliação junto às Leis de Santidade (Lv 18,7-17)151. A censura imposta à prática da bestialidade é mantida no conjunto dos dois códigos legais (Ex 22,18; Lv 18,23.20,15). Em Dt 27,21 a prática é tida como um gesto reconhecido como infâmia, isto é, um gesto que desonra a pessoa. No Código da Aliança a mesma prática é apresentada como uma grave violação em que o réu deve morrer: tm'(Wy tAmï hm'ÞheB.-~[i bkeîvo-lK', “todo 150 Nesta parte do trabalho os três Códigos serão citados e relacionados entre si. Toma-se por base a definição exposta por Crüsemann: “Como o Código Deuteronômico busca continuar, corrigir, complementar e substituir o Código da Aliança, assim o Código da Santidade quer proceder em relação ao Deuteronômio”. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, op. cit., p. 383. 151 A ampliação, e até certo modo, o detalhamento na proibição sexual com mulheres na esfera familiar, apresentada em Lv 18,7-17, evidenciam temas vividos no interior da comunidade religiosa na época pos-exílica. Cf. Ibidem, p. 407-408. 133 aquele que se deitar com toda classe de animal, será morto” (Ex 22,18). A condenação à morte não se mantém em Lv 18,23, em que a bestialidade deve ser evitada para não violar a lei da pureza. Recorre-se ao verbo טמא, “ficar impuro, continuar impuro”, no piʿel. Retomado em Lv 20,15, a mesma prática impõe também ao homem, como ao animal a pena capital de morte. A prática sexual com irmã ou sogra é uma proibição (vv. 22-23). A interdição é explícita no Código Deuteronômico e posteriormente mantida na Lei de Santidade. Em Lv 18,9 o ato recebe uma proibição, ao passo que em Lv 20,17, este tipo de falta contra a família, terá como pena máxima a morte de ambos. Esta mesma dinâmica de agravamento da pena se mantém diante do homem que pratica relação sexual com sua sogra. Em Lv 18,17 o incesto é proibido, e em Lv 20,14 o incesto, uma vez comprovado e julgado, impõem aos delatores, homem e mulher, a pena máxima de morte. 4) Leis de cunho ético em relação ao compatriota. A violência cometida contra um companheiro, somada à prática de aceitar suborno, são comportamentos que tornam o homem infame. O homicídio é citado pela primeira vez no decálogo Ex 20,13. No Código da Aliança (Ex 21,12) causar a morte de alguém é motivo de levar o réu também à morte. Em Dt 27,24, encontra-se um adendo: rt,S'_B; Wh[eÞrE hKeîm; rWr§a', “Infame quem golpear seu próximo em segredo”. A inclusão do termo rt,S'_B; “em segredo” permite perceber uma evolução, no texto do Deuteronômio, em comparação com o Código da Aliança e a Lei de Santidade (Lv 24,17) que estabelecem a pena de morte para quem ultrajar seu semelhante. Esta preocupação em preservar a vida pode oferecer suporte à compreensão de não aceitar suborno para golpear um inocente (v. 25). O crime de suborno não recebe nenhuma norma na Lei de Santidade. Na narrativa de Dt 27,25 o suborno não deve acontecer, tendo em vista a morte de um inocente. A ênfase ao gesto de aceitar suborno deve ser evitada, pois se trata de um desvio de consciência, como registra o Código da Aliança (Ex 23,8) e o Código Deuteronômico (Dt 16,19). 5) Comportamento ético-religioso. O último gesto, considerado como infâmia, não apresenta uma lei propriamente dita, mas um solene apelo para a comunidade religiosa não se esquecer de todo o conjunto de leis recebido de 134 YHWH (v.26)152. Trata-se de um simples apelo, uma exaltação conclamando ao não esquecimento de nenhum dos mandamentos contidos no conjunto da lei doada por YHWH. Dt 27,11-26 é um texto que se apresenta como um verdadeiro diálogo litúrgico comparado à escolha, exclusividade suprema de YHWH, proferida pela comunidade em Siquém (Js 24,14-24). O aspecto litúrgico pode ser comprovado por meio do gesto de “abençoar o povo” (v. 12b), na palavra dita “para a a maldição” (v. 13 ) e, pela repetição, um tanto solene, da palavra “ אָ ֵמןamém”, (vv. 15-26), pronunciada pela assembléia, por estar de acordo com todas as possíveis infâmias a serem evitadas, proclamadas “ קוֺל ָרםcom voz forte”, pelos levitas (v. 14). As bênçãos e maldições adquirem um amplo significado quando relacionadas aos personagens e, consequentemente, às respostas pronunciadas pelo povo, após ouvirem as leis ditas pelos levitas. Ebal e Garizim, dois lugares de culto ligados às antigas tradições que remontam às fases predeuteronômicas153. O “ אָ ֵמןamém”, reforça o caráter litúrgico impregnado em toda a perícope. Destaca-se a utilização, por duas vezes, do verbo “ ָעמַ דestar de pé, permanecer”154, que seguido das respectivas preposições: “ ְל ָב ֵרְךpara abençoar”, (v. 12a) e ַעלˉ ַה ְקּ ָל ָלה, “para a maldição” (v. 13a), impõem ações bem definidas aos dois grupos tribais instalados em Garizim e Ebal. Seguindo o contexto da narrativa, estes se apresentam “em pé” evidenciando a atitude de intercessão, de vigilância, de prontidão junto à assembléia reunida, num lugar previamente determinado. Vindos da tribo de Levi, responsáveis pela bênção (v. 12b), surgem os sacerdotes, que não proclamam as bênçãos, mas um extenso diálogo litúrgico, tendo por base um conjunto de leis provenientes do Código da Aliança e reeditadas na Lei de Santidade, como anotadas acima. A doxologia imposta ao conjunto da narrativa verifica-se pelo uso ritmado da expressão “ אָ ֵמןamém, de fato”. Expressa uma atitude comportamental. O povo ao ouvir a proclamação dos atos proibidos, responde de modo inconteste. A expressão, de cunho conclusivo, “ אָ ֵמןamém”, está unida não somente ao anúncio 152 Possivelmente Dt 27,26 é acréscimo estabelecido durante a redação final do livro. Cf. SCHÖKEL, L. A., Pentateuco, p. 336. Ver também o parecer de Blenkinsopp. Cf. BROWN, R. E., FITZMYER, J. A. e MURPHY, R. E., NCBSJ, p, 246. 153 Os lugares não recebem nenhuma notoriedade durante o período da monarquia israelita. Pensase que dificilmente seria o lugar escolhido para manifestar a vontade de YHWH, e aí, perpetuar sua memória. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, op. cit. p. 183. 154 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBHP, p. 504; BROWN, F., DRIVER, S. e BRIGGS, C., BDB, p. 763; HARRIS, R. L., DITAT, p. 1637. 135 das atitudes proibitivas - idolatria, comportamento ético-social, limites à prática sexual, comportamento religioso – mas ao enunciado qualitativo de se tornar um “infame, amaldiçoado” na vivência comunitária. Esta condição é o fio condutor da narrativa. O verbo “ אָ ַררamaldiçoar, execrar” não é inúmeras vezes citado nos textos do Antigo Testamento155. No livro do Deuteronômio é utilizado sempre no senso exortativo de cumprir os mandamentos, os preceitos deixados por YHWH. Todas as afirmações se voltam para esta condição. Não importa a classificação social; o texto é explicito ao se dirigir laer"f.yI vyaiî-lK'-la, “para todo homem de Israel” (v. 14). A categoria social “ ָעםpovo”, é citada na abertura (v. 11) e na conclusão da perícope (v. 26), além de perpassar todo o corpo do texto ao responder às proibições proclamadas. A utilização é de uso genérico e não deixa dúvida de que o conceito de povo não se reduz a uma realidade tribal ou clã. Trata-se de um conceito vasto, aglutinador de todas as instâncias sociais, segundo as instituições religiosas citadas no texto, como: a liderança de Moisés (v. 11), o nome das doze tribos (vv. 12-13), os levitas (v. 14). Além destas instituições, encontram-se os elementos materiais na formação e constituição do povo: a família (16a), o respeito na demarcação da propriedade (v. 17a), a manutenção do direito dos grupos desfavorecidos (v. 18a, 19a), a convivência ética com base no grau de parentesco (vv. 20-23), as leis para conter homicídios (vv. 24,25). A preocupação demasiada com a infâmia ou execração pública pode estar implicada em algum tipo de revisão ou releitura empreendida em algum determinado período histórico das leis. Há um acento muito forte voltado para o desejo de viver honestamente, de modo equânime no interior da comunidade. O comportamento justo deve imperar na convivência com os pais, com os vizinhos, junto ao deficiente e aos setores pobres da comunidade (vv. 16-19). Numa outra série, também contendo quatro advertências, merece respaldo: evitar a contaminação por meio de certas práticas sexuais: wybiêa' tv,aäe-~[I “com a mulher do seu pai”, hm'heB.-lK'-~[I “com qualquer animal”, Atêxoa]-~[ “com sua irmã”, ATn>t;x)o-~[i “com sua sogra” (vv. 20-23). O uso insistente do verbo שׁ ַכב ָ “deitar, reclinar, inclinar”, que, ao longo da narrativa, adquire um sentido sexual, reforça o caráter 155 Das 32 vezes em que o verbo é citado no Antigo Testamento, 16 encontram-se nos conjuntos dos capítulos 27,15-26 e 28,16-19. 136 de pureza cultual, acenando para um período recente na redação de autoria do redator deuteronomista. 3.7. Conclusão: uma prática jurídica que agrada a Deus A existência de uma redoma de proteção em torno desses grupos, em momentos bem específicos na vida social, religiosa e jurídica de Israel, e que defendê-los passa a ser uma maneira de expressar o grau de relacionamento com YHWH. Na coletânea dos textos analisados – Dt 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-22; 26,12-15; 27,11-26 – onde as narrativas empregam uma linguagem ora litúrgica, ora jurídica, nota-se a referência à trilogia social inserida num determinado contexto. Pela ordem estudada, concluem-se os respectivos resultados nos círculos narrativos: a) A historicidade divina passa pela defesa dos marginalizados. Em Dt 10,12-22 encontra-se uma declaração soleníssima sobre os atributos do Deus de Israel. O texto não faz outra coisa a não ser exaltar os poderes de YHWH, transmitidos ao longo de gerações. Apresenta a singularidade do Deus de Israel. Uma divindade acima de todas as outras. Incomparável em poder e realizações em defesa do povo por ele escolhido. Entre inúmeras ações, vê-se um Deus solícito na defesa do direito aos grupos socialmente fracos e enfraquecidos. Não é por coincidência a insistência no uso dos verbos: faz justiça, ama o estrangeiro, dá pão e roupa. Tais atitudes divinas devem ser repetidas pela comunidade israelita, como prova de sua adesão filial a YHWH. b) Existe um período definido para a prática da equidade. A narrativa de Dt 14,28-29 realça um tempo determinado – “Ao final de três anos – como período para disponibilizar a quantida especificada – décima parte – aos necessitados. Tal atitude garante a bênção de YHWH. Não existem gestos tangenciais para não pôr em prática tal determinação divina. É clara a norma ao propor um tempo em que os pobres irão “regojizar-se em suas portas”. 137 c) Em família, alegram-se na presença do Todo Poderoso. A Festa das Semanas tem um tempo determinado para acontecer, segundo Dt 16,912. A contagem inicia-se a partir do ato de colher as primeiras espigas de trigo. Na ocasião, parte dos produtos do campo será entregue em um lugar de culto determinado. Duas são as ocasiões de alegria: usufruir dos produtos colhidos no campo, e a ocasião de poder observar e executar tal mandamento divino. Trata-se de um princípio ideológico justificador de práticas gratuítas diante daquele que libertou Israel da terra da escravidão. d) Exercer o direito pela ocasião de colher os produtos da terra. A ocasião da colheita dos produtos básicos da economia – trigo, azeite e vinho – citados em Dt 24,17-21, é um momento de garantir a vigência do direito dos grupos desprotegidos. Nenhuma quantia é exclusivamente citada na narrativa. Em três ocasiões156 o texto declara que não se deve voltar para pegar as sobras que ficaram para trás, mas parte do produto, quando encontrada, pertencerá, como evidencia a narrativa, a quem dela necessitar. Assim como a acasião da colheita, a lembrança dos anos vividos na condição social de escravo, citada duas vezes na narrativa, é um forte argumento que obriga a comunidade de Israel a praticar e garantir o exercício do direito. e) A não transgressão da lei como meio de receber a bênção. Pela segunda vez, no conjunto das perícopes, a décima parte dos produtos da terra é mencionada como pertencente ao estrangeiro, órfão e viúva (Dt 14,28,29 = Dt 26,12-15). O fato de pertencer a um grupo específico passa, primeiramente, pelo gesto de dar a quantia estipulada em lei, com a finalidade desses grupos se fartar e suprir suas necessidades. Há uma diferença quando da comparação com o texto de Dt 14,28-29. Desta vez, ocorre maior elucidação ao mencionar as possíveis ocasiões em que a décima parte dos produtos, quantia esta, diga-se de passagem, exorbitante, corre o risco de ser desviada de sua especificidade. Não é por acaso a referência, por cinco vezes, da partícula de negação “ ֹלאnão”. Trata-se de um comportamento pautado 156 Cf. Dt 24,19d, 20c, 21c. 138 pela ética de em tudo “ouvir a voz de YHWH”. Tal gesto exige um comportamento voltado para praticar plenamente os princípios expostos por Moisés, tendo assim, a garantia de viver numa situação de paz. f) A ação litúrgica reafirma a manutenção do direito. Fora do conjunto dos textos que formam o corpo primitivo do livro (12-26), Dt 27,11-26 destaca uma ação litúrgica voltada para agradar a Deus. São recitadas realidades presentes na esfera religiosa, social e familiar da comunidade. A ação litúrgica, tendo à frente os levitas, é compreendida como uma ocasião de relembrar Israel a não se esquecer de todo um conjunto de leis impostas a Israel por seu Deus. Não se exclui, nessa ação litúrgica, a defesa do direito ao estrangeiro, órfão e viúva. Como é possível perceber, as leis expressas são de cunho excessivamente apodíctico. Não deixam brechas para argumentações possíveis. Por outro lado, vale perguntar se estas leis foram de fato praticadas. A “décima parte” foi, de fato, disponibilizada com evidência, como é possível perceber na leitura da lei? A defesa intransigente dos setores, socialmente desfavorecidos, foi preocupação em destaque no conjunto das relações econômicas? Nas épocas das colheitas a separação da décima parte foi algo empreendido por setores responsáveis em fazêla? O gesto de não voltar para respigar o campo foi lembrado, num senso rotineiro, e praticado? São questões deste naipe que serão analisadas adiante, e para melhor compreender os textos desta parte do livro do Deuteronômio, escolheu-se a época dos Tanaítas, com evidência às escolas de Rabi Hillel e Rabi Shammay, na terceira parte da pesquisa. 139 PARTE II: COMENTÁRIO DOS TEXTOS DA MISHNÁ E SUA INTERPRETAÇÃO DO DT 140 4 Trilogia social nos textos da Mishná 4.1. A importância da Mishná na formação do judaísmo Na forma em que chegou até nossos dias, a Mishná está dividida em seis principais ordens. Cada ordem (seder) contém certo número de tratados. São 63 tratados que se dividem em capítulos; neles encontramos as respectivas normas. Na abordagem optou-se por unir tratados que, embora sendo apresentados em ordem diferente, abordam temas semelhantes. Ao longo de toda sua existência, as comunidades religiosas de Israel, espalhadas nos mais diferentes centros de produção literária, sempre estiveram sob 1 um determinado poder imperialista1. Este pequeno país, por sua posição geopolítica, enfronhado entre grandes potências regionais, sempre recebeu influência dos movimentos políticos e literários de além fronteiras. Os projetos políticos, movimentos de revoltas ou contra as reformas, as relações econômicas, ofereceram elementos dos mais variados tipos à elaboração teológica, presentes nas páginas bíblicas. Impérios e produções literárias se interagem. 4.1.1. A tradição judaica em meio à experiência da גּוֹ ָלה, "desterro" O cenário dominado pela presença romana ocupa o centro dessa parte da pesquisa. É durante a presença desse imperialismo brutal que tem início o processo redacional da tradição oral, culminando com a Mishná. Logo após a 1 Consideram-se, principalmente os impérios Babilônico, Persa, Grego e Romano, por serem amplamente documentados, quer nos textos bíblicos quer em textos extrabíblicos. Cf. JOANNÈS, F., La vie de déportés de Juda en Babylonie. In: LMB, 161, 2004, pp.27-31; SCHWARTZ, J., Quelques réflexions à propor de trois catastrophes. In: DAHAN, G. (Org.), Les Juifs au regard de l`histoire, Paris, Picard, 1985, pp. 21-29. 141 conquista romana da cidade de Jerusalém, com a destruição do II Templo, em 70 d.C., e que persistiu por mais de dois séculos, os sábios judeus, exatamente em Yavneh (Jâmnia), procuravam responder aos desafios impostos sem, no entanto, menosprezar as máximas bíblicas. A pujança da cidade de Jerusalém, somada às classes sacerdotais e funcionários envolvidos nos trabalhos da corte e do templo, muito servis às normas ditadas por Roma, não serão capazes de impedir a dispersão de parte da população das cidades mais importantes de Israel, diante das políticas efetuadas pelos imperadores romanos. O regime imposto pelos romanos se apresentou como um poderio avassalador. Os anos seguintes a 66 nada mais representam à comunidade judaica, dentro e fora das terras de Israel - um sinônimo de destruição em massa. A conjugação de forças, motivadas por líderes religiosos como R. Yohanan b. Zakai, R. Akiba, R. José b. Halafta terá um caráter de nobre resistência. Pois, sabe-se que nem todos os grupos religiosos se uniram contra a dominação romana. Os fariseus, por exemplo, não foram favoráveis a qualquer tipo de movimento insurrecional, preferindo apegar-se à leitura e estudo da Lei; é a eles que devemos o surgimento do judaísmo sobre a forma do rabinismo. Sempre envolta com as grandes mudanças políticas do cenário internacional2, a compreensão da experiência do termo גּוֹ ָלה, “exílio, desterro”3, 2 “Por ser um corredor comercial, ligando o Egito com a Fenícia, o Norte da Síria, a Mesopotâmia e a Arábia, a terra de Israel sempre despertou o interesse dos grandes impérios: egípcios, assírios babilônicos, persas, gregos, romanos”. MARQUES, M. A., Beleza, sedução e morte: uma leitura exegética de Judite 16,1-12. Tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, 2008, p. 201. Destaque para o capítulo III, na seção sobre o “o grupo dos hasidim”, pp. 221-226. 3 O verbo grego διασπείρω, “dispersar”, está na raiz da palavra diáspora, presente na LXX e oriundo do III século a.C. Sob o pressuposto de dispersar, distribuir, disseminar foi possível empregar o conceito de diáspora às comunidades espalhadas em diversas localidades fora das terras de Israel. Segundo os textos bíblicos, o senso de ser estrangeiro, de viver em terras alheias, muito cedo foi experimentado pelos patriarcas (Gn 15,13; 23,4). A produção literária dos primeiros profetas, tidos como escritores, irá evidenciar as realidades históricas que submetem as comunidades de Israel à condição de estrangeiro. No uso do conceito ָגּלוּת, “desterrados” será desenvolvido as visões proféticas que visam o restabelecimento, em terras de Israel, da porção dos exilados na Babilônia e daqueles que permaneceram em Israel. A expressão, ֵמאַ ְר ַבּע ַכּנְפוֹת ָהאָ ֶרץ, “dos quatro cantos da terra” (Is 11,12), sinônimo retomados em Is 45,6: ִמ ְק ֵצה ָהאָ ֶרץ, “dos confins da terra”, e em 56,7 no conceito de ִכּי ֵביתִ י ֵבּית־תְּ ִפ ָלּה י ִ ָקּ ֵרא ְל ָכל־ ָה ַע ִמּים, “pois a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos”, são nítidas referências às comunidades que vivem fora dos limites geográficos de Israel. Tais expressões soam como um autêntico projeto social de reconstruir uma nação espalhada pela dominação babilônica. O profeta Jeremias é outro que se utiliza de conceitos específicos ao expor o ideal de recompor uma nação dilacerada: ֵמאֶ ֶרץ ָצפוֺן שׂ ָראֵ ל ְ ִ אֲ שֶׁ ר ֶה ֱע ָלה אֶ ת־ ְבּנֵי י, “que fez subir os filhos de Israel da terra do norte” (Cf. Jr 16,15. 23,8). Nota-se que a palavra diáspora, de modo algum, traduz o peso histórico do conceito ָגּלוּת, “desterrados” que, na Bíblia, jamais pode ser entendida como algo abstrato quando se refere ao 142 acompanhou todas as fases históricas vivenciadas pela comunidade religiosa de Israel. Tal experiência pode ser verificada com clareza ao longo de inúmeras produções literárias ocorridas em Israel. Produções essas, que colaboraram na garantia da identidade e perspectivas de verdadeira sobrevivência ao longo de toda sua existência. O fenômeno Israel não se compreende fora dos textos sagrados produzidos pela comunidade. Eis um fator essencial na preservação da identidade de Israel, em meio aos grandes confrontos do cenário militar e cultural impostos pelos dominadores. Apaziguadas as armas, é preciso conter o domínio cultural. Na composição da Mishná, a experiência da diáspora envolve todos os fatores da vida social, religiosa e cultural dos judeus. O processo de compilação dos textos da Mishná coincide com o período de ocupação do império Romano4. Os planos desse avassalador império colocaram em risco a identidade ética das comunidades religiosas de Israel. Embora residindo em terras de Israel, ou além fronteira, as comunidades, na época dos Tannaítas, não perderam de vista o projeto maior de viver, em meio às contradições históricas e sociais impostas pela política imperialista, o seguimento dos trâmites expostos nos textos sagrados. A Mishná é o resultado final de um processo redacional, no qual os sábios de Israel não mediram esforços para compilar leis, tradições, conceitos divinos, por meio de um esmerado trabalho, sempre pautado pela desenvoltura no conhecimento da Torá escrita e oral, concluído em meados do ano 219 d.C.5. A exílio, aos errantes, aos escravos ou ainda a um tempo de alienação. Cf. PAUL, A., Une voie d’approche du fait juif: diaspora et gālût. In: CARREZ, M.; DORÉ, J.; GRELOT, P. (Orgs.), De la Tôrah au Messie, Paris, Desclée, 1981, pp. 367-380. Segundo Manns, o conceito diáspora tornou-se uma realidade histórica junto às comunidades judaicas. Sua síntese apoia-se nos informes bíblicos e nos escritos de Flávio Josefo. Cf. MANNS, F., Le Judaïsme: milieu et memoire du nouveau testament, Jerusalém, Franciscan Printing, 1992, pp. 208-218; HORSLEY, R. A., Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial, São Paulo, Paulus,2004, p. 22. 4 Propícia a observação de Schwartz feita sobre as comunidades religiosas atingidas no percurso das três guerras envolvendo romanos e judeus: “O primeiro embate contra Roma se limitou à Terra Santa. O segundo, nascido de longo ressentimento, atingiu mais nitidamente a Diáspora, se bem que as forças não foram suficientes para impedir a terceira. A revolta, no final do reinado de Adriano, atingiu, em certos aspectos, o pivô da primeira revolta. E foi assim que o II século d.C. presenciou o desaparecimento de uma cultura de forma grega e a conclusão, na Judéia, do desastre largamente iniciado em 70 d.C.”. Cf. SCHWARTZ, J. À propôs de trois catastrophes, op.cit., p. 29; MANNS, F., op. cit., pp. 35-38. 5 A abordagem é consensual entre inúmeros estudos. Verifica-se que os fatos ocorridos em meados do ano 135, impuseram à organização rabínica novas exigências. Como bem analisam Strack e Stemberger: “O redator colecionou as fontes, selecionou as leituras mais importantes..., transmitiu assim o texto eclético a partir dos treze modos de halakhah como havia aprendido”. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica,Valencia, Soler, 1989, p. 202; Cf. KÜNG, H., Ebraismo, Milano, RCS, 2005, p. 160. Uma ressalva histórica feita por Miranda e Malca facilita compreender o surgimento da Mishná: “O cristianismo não se expandiu e o judaísmo rabínico não se consolidou nos vazios de um Império decadente ou de uma 143 Torá exige um constante processo de renovação. Tal movimento está dividido entre a pesquisa (Midrash) e o estudo-ensino (Talmud). Ao redigir a Mishná, os sábios atingem um dos estágios desse processo de renovação da Torá6. O conhecimento do passado se justifica numa harmonia e coerência com as máximas divinas. Urge ensinar o passado, tendo em vista o futuro. A compreensão do conceito de Torá se divide em dois aspectos que se completam mutuamente. O termo clássico שׁ ְבּ ַעל ֶפּה ֶ “ תּוֺ ָרהTorá oral” usado pela tradição judaica é considerado antigo na moderna literatura7. No outro lado existe a תּוֺ ָרה שֶׁ ִבּ ְכ ָתּב, “Torá escrita”. Por Torá oral se entende o conjunto de normas estabelecidas pelos sábios e fielmente transmitidas na relação mestre e discípulo. Assim, deixa transparecer o primeiro parágrafo do tratado Pirkei Abhot: “Moisés recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu a Josué, Josué aos anciãos, os anciãos aos profetas, os profetas a transmitiram aos homens da Grande Assembléia. Estes diziam três coisas: sede cautelosos no julgamento, fazei muitos discípulos, colocai uma proteção em torno da Torá”8. Tais normas formam a jurisprudência rabínica que recebe o nome de הלכה, halakhah. Aos sábios9, por meio de uma autoridade ilimitada, coube a missão de civilização em perigo, como muitos miticamente acreditam. No que se refere ao cristianismo, foi diante de um mundo no melhor de sua forma que ele teve, desde o início, de apresentar também o melhor de si mesmo para garantir sua expansão e sua consolidação, como ilustra toda a literatura patrística. Quando o Nassi Shimon morreu e sucedeu-lhe seu filho Iehudá Hanassi, nos finais do século II d.C., a liderança palestina dos judeus cresceu de forma significativa. A posição social, a cultura, as habilidades de organizador e qualidades de estadista e de devoção fizeram de Iehudá um dos homens mais extraordinários de sua época. Até hoje é referido como “O Príncipe”, “Nosso Santo Rabino” ou simplesmente “Rabi”. Sob sua orientação foi compilado e organizado o código de leis, a Mishná”. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios Fariseus: reparar uma injustiça,São Paulo, Loyola, 2001, p. 51; Cf. COHEN, A., Le Talmud, Paris, Payot, 1986, p. 32. Horsley declara ser a Mishná “o fruto mais notável da atividade rabínica”. Cf. HORSLEY, R. A., Arqueologia histórica e sociedade na Galiléia, São Paulo, Paulus, 2000, p.166. 6 Cf. Ibidem. p. 64. 7 Uma boa definição pode ser encontrada nos trabalhos de Safrai. Na sua opinião, deve-se ter certa precaução diante do entendimento dado à palavra torá. Na bíblia hebraica, o conceito básico dessa palavra é “instrução”, mas pode receber também um significado mais amplo sendo compreendida na sua forma plural: torot, ensinamentos, leis. Cf. SAFRAI, S., Oral Tora. In: SAFRAI, S. e TOMSON, P. J. (Orgs.) The literature of the Sages, Philadelphia, Van Gorcum, Assen/Maastricht, 1987, pp. 35-119. 8 Cf. Abot 1,1. DEL VALLE, C., (Ed.), La Misna, Salamanca, Sígueme, 1997, p. 837. 9 A compreensão de Torá, como texto sagrado, doado por Deus a Israel, por meio de Moisés, compreende sempre uma atualidade, aos desafios e problemas no hoje da existência humana. Nessa função de atualizar os conceitos divinos, está a função dos sábios. No tratado BQ (Babá qammá) 5,7 encontramos a seguinte afirmação, que justifica o conceito atual, em relação aos textos sagrados: “Porque a Escritura fala de casos presentes e comuns”. Essa compreensão transforma a jurisprudência não numa norma presa a um passado, mas inserida no universo de uma comunidade sempre em transformação. Útil a citação de Urbach, ao recorrer à uma visão de Santo Agostinho, alheio ao mundo cultural judaico, para enfatizar o apego incondicional à tradição e ao exercício dos sábios, em meio aos desafios da comunidade religiosa: “É uma verdade surpreendente que o povo judeu jamais abandonou suas leis, seja sob as normas dos reis pagãos ou 144 interpretar a Torá e garantir a execução dos princípios das halakhoth. Tais normas, englobando todos os aspectos da vida pessoal e comunitária, enfocavam princípios como: nascimento, casamento, normas no trabalho na agricultura, preceitos éticos e teológicos10. O termo Torá implica duas diferentes conotações, compreensões. Torá significa o trabalho de ensinar os mandamentos de YHWH e incentivar o cumprimento das leis. Não há um grau hierárquico ao relacionar a oralidade ao escrito. A diferença está no processo e não no valor de credibilidade ou divergência de conteúdo. “Rabban Yohanan ben Zakkai, com seus colegas e seus discípulos, começou a reconstruir a vida judaica sob a Palavra de Deus, na Torá. A Torá, para os fariseus não é somente a Escritura (Torá escrita); ela é também e sobretudo tradição (Torá oral)”11. Os inúmeros percalços provocados por constantes guerras e violações de direitos é a causa maior do desencadeamento do processo redacional imposto às leis orais. Pode-se imaginar se não fossem essas últimas realidades cercearem a vida da comunidade religiosa, não existiriam, em seu formato atual, os textos da Mishná, e o exercício da oralidade seria corrente, ainda, em nossos dias. 4.1.2. A autoridade hermenêutica de Hillel Separados por milhares de quilômetros e vivendo sempre sob os mesmos domínios imperialistas12, a comunidade judaica instalada na região do Eufrates jamais se distanciou culturalmente da cidade de Jerusalém13. Sabe-se que os judeus manifestavam sua pertença ao templo de Jerusalém enviando, sob a dominação dos cristãos. Neste aspecto, ele se distingue das outras tribos e nações. Não houve nem imperador, nem rei que, os encontrando dentro de seu país, fosse capaz de impedir os judeus de se separarem, pela observância de sua Lei, do resto da família dos outros povos”. Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, Paris, CerfVerdier, 1996, p. 541. Ver também a análise de Briend sobre a vida das comunidades, privadas do templo, em terras da Babilônia. BRIEND, J., Une communauté juive sans temple. In: LMB, 161, 2004, pp. 33-35. 10 Sobre todos os tratados na Mishná, vale conferi-los mais adiante, quando oportunamente analisam-se os respectivos textos mishnáícos relacionando-os ao livro do Dt. 11 Cf. LENHARDT, P., “La valeur des sacrifices dans le judaïsme d`autrefois et d`aujourd`hui”. In: NEUSCH, M. (Org.), Le sacrifice dans les religions, Paris, Beauchesne, 1994, p. 62. 12 Manns apresenta uma síntese sobre os vários impérios e suas respectivas políticas frente às comunidades judaicas. Cf. MANNS, F., Le judaisme: milieu et mémoire du Nouveau Testament, op. cit., pp.25-40. 13 Salutar conferir as cidades babilônicas, bem como, suas características nos anos que seguiram o exílio babilônico. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, op. cit., pp. 27-28. 145 periodicamente, a quantia correspondente dos frutos armazenados durante a colheita, no cumprimento dos preceitos. Fala-se de caravanas formadas por milhares de pessoas em marcha pelo deserto da Síria, com etapas em Palmira, Damasco e Bashan em direção ao monte Sião14. Seguindo a informação de Charlesworth, Hillel, cognominado “o velho”, ou “o babilônico”, fez seus primeiros estudos sobre a Torá em sua terra natal, Babilônia. Nasceu no ano 60 a.C. vindo a falecer em 20 d.C., vivendo sob as políticas empreendidas por Herodes, o grande (37 – 4 a.C), sendo contemporâneo de Jesus de Nazaré15. Não se sabe exatamente quando passou a residir em Jerusalém no desejo de completar seus estudos, tendo como diretores os zugot, “pares”, Shemayah e Avtalyon16. O período da atuação de Hillel, juntamente com a escola do sábio Shamai17, marca o surgimento da época dos tanaítas18. A novidade inaugurada por esse brilhante sábio, do partido dos fariseus, não foi somente sua dedicação incondicional à Torá, mas a possibilidade de estabelecer regras, relativas ao método aristotélico19, no estudo dos textos bíblicos. Tem início o controle racional sobre as interpretações. As sete regras hermenêuticas compiladas por Hillel representam não apenas um momento, mas o modelo de interpretação 14 Cf. HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, Paris, Albin Michel, 2005, p. 18. Ao descrever sobre a importância do “concílio” de Yabné e seu esforço em determinar os livros canônicos ou não, Manns destaca que o crivo hermenêutico adotado considerou as regras estabelecidas por Hillel. Cf. MANNS, F., op. cit., p.41. 15 Cf. CHARLESWORTH, J. H. e JOHNS, L. (Orgs.); Hillel and Jesus: Comparative Studies of Two Major Religious Leaders, Minneapolis, Fortress Press, 1997, p. 4. As informações biográficas sobre este conceituado mestre da escritura carecem de uniformidade. Miranda e Malca destacam as 316 citações feitas sobre Hillel nas páginas do Talmud, bem como, lendas que se mesclam ao seu alto grau de importância no mundo intelectual da época. Fala-se, até, que teria vivido 120 anos, divididos em três fases distintas: quarenta anos em Babilônia, quarenta como estudante em Jerusalém e outros quarenta na qualidade de patriarca em Jerusalém. Cf. DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, op. cit., p.121. 16 Inúmeras passagens do Talmud anotam o amor incondicional no estudo da Torá demonstrado por Hillel. Cf. HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, op. cit. p. 28; FRIEMAN, S., Who`s who in the Talmud, op. cit., pp. 163-165. As duplas de sábios marcam um período peculiar no cuidado das tradições. Fala-se que um estabelecia-se como nassi, “presidente”, enquanto o outro ocupava a cadeira de av bet din, “presidente do tribunal”. Embora sendo poucas as informações sobre a função dos pares, sabe-se que atingiram um elevado grau de reconhecimento e admiração, junto à população, após o ano 104. Cf. STEINSALTZ, A., Introduction au Talmud, Paris, Albin Michel, 1987, p. 32. 17 “Estes fariseus foram os dois últimos e mais ilustres dos cinco “pares”, mestres fariseus que trabalharam em duplas, como presidente e vice-presidente do San’hedrin”. Cf. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, op. cit. p. 122. 18 Cf. Ibidem, pp. 34-35. 19 Cf. WIGODER, G. (Ed.), Hillel. In: DE d J, Paris, Cerf/Robert Laffont, 1996, p. 470. 146 rabínica praticada diante de qualquer texto bíblico20. Posteriormente, as regras passam por um processo de reinterpretação chegando ao conjunto de treze regras, na época de Rabi Yismael21 e posteriormente trinta e duas, no período da atuação de Rabi Eliezer22. Não é de modo algum uma imposição de método a descoberta de Hillel. Seu mérito está na capacidade de compilação de práticas interpretativas há séculos em uso pelos sábios23. A seguir, busca-se elucidá-las tendo como exemplos alguns versículos da Mishná, que serão estudados ao longo do parágrafo 4.3. a) ַקל ָוחוֺ ֶמר, “fácil e complexo”. Procura estabelecer certa regularidade na interpretação dos textos e nas normas estabelecidas partindo sempre do que é mais simples para o que é mais complicado. Um exemplo da regra verifica-se na máxima expressa sobre a quantia que faz parte da פיאה, “respiga”, do preceito a ser separado durante a colheita. Nota-se que a narrativa da Mishná faz uma relação que vai do simples para o amplo ao afirmar: “se um recolhe algo do limite e o jogar com os demais já não tem parte dele....o mesmo vale para a rebusca e para o feixe esquecido” (Pea 4,3). Um outro exemplo encontra-se na contenda entre R. Aquiba e R. Eliezer ao determinar quando há ou não cachos de rebusca a serem disponibilizados aos pobres (Pea 7,7). b) ירה שָׁ ָוה ָ ֵ ְגּז, literalmente “sentença idêntica”. A regra ressalta que entre duas narrativas distintas prevalece a mesma interpretação, quando se trata da mesma analogia. Compreende-se que a Bíblia colocou tais expressões similares com o propósito de estabelecer uma reciprocidade 20 Passeto destaca o uso feito pela geração apostólica das regras de Hillel no ato de interpretação das escrituras. “Constatamos que o Novo Testamento, formando parte da tradição oral de Israel e a literatura cristã dos primeiros séculos, são testemunhos da oralidade de Israel e que mais tarde passam a serem escritos”. PASSETO, E., La influencia de la tradicíon oral de Israel en la tradicíon cristiana. In: El Olivo, XIX, 42, 1995, pp. 7-20. 21 Rabi Yismael (ben Elisha) foi uma grande personalidade na história da exegese bíblica. Atuou na terceira geração do tanaítas, tendo mantido inúmeros debates com R. Akiva, no cenário da hermenêutica. Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introduccíon a la literatura talmúdica y midrásica, Valencia, Institución S. Jerónimo para la investigación bíblica, 1988, p. 49; FRIEMAN, S., Who’s Who in the Talmud, London, Jason Aronson, 1995, pp. 369-371. 22 Rabi Eliezer, conhecido como Eliezer ben José há-Gelilí, atuou na geração de Bar Kokba. Por meio das suas trinta e duas regras se explicam não somente as haggadah, mas toda a Torá. Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introduccíon a la literatura talmúdica y midrásica, Valencia, Institución S. Jerónimo para la investigación bíblica, 1988, pp. 59-69. 23 Partindo da época dos pares (200 a.C. – 20 d.C), chegando à geração dos amoraítas (220 – 500 d.C.), Steinsaltz apresenta um quatro completo das quatro gerações que marcaram a tradição rabínica até a elaboração final do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud the Steinsaltz edition: A Reference Guide, New York, Randon House, 1989, p. 30. 147 entre ambas. Essa regra, porém, deve ser usada com muita propriedade. Ninguém, aleatoriamente, pode-se dar ao privilégio de estabelecer uma gezerah shawah24. Um exemplo aplicativo dessa regra está em Pea 6,4, quando está em debate a separação dos feixes que ficam para trás durante a colheita. c) ִבּנְי ַן אָב ִמ ָכּתוּב ֶא ָחד, literalmente “construção principal a partir de um único texto”25. Trata-se de vincular a citação feita em um texto a outros textos, uma vez que entre eles são encontrados os mesmos paradigmas ou terminologias26. “Um texto principal oferece aos demais um caráter comum que os vincula em uma só família”27. d) שּׁנֵי ְכתוּ ִבים ְ ִבּנְי ַן אָב ִמ, “construção principal a partir de dois textos”. Verifica-se esta regra quando uma conduta é definida como senso comum. O que recebe uma validade em um determinado texto, pode ser semelhante em outros textos. Um nítido exemplo é a defesa sempre incondicional do órfão, do estrangeiro e da viúva nas seis narrativas do livro do Deuteronômio: 10,17-18; 14,28-29; 16,10-14; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. No conjunto dos doze textos mishnáicos o nível de preocupação com os pobres se repete (Pea 4,3. 6,4. 7,7; Msh 5,10; Meg 2,5; Ned 11,3. BM 9,13). e) ְכּ ָלל וּ ְפ ָרט, “Geral e particular”. Segundo Steinsaltz, Strack e Stemberger esta regra de Hillel foi detalhada em oito princípios hermenêuticos por R. Yismael28. Estabeleceu-se um processo capaz de levar ao pleno conhecimento das afirmações presentes nos textos bíblicos, relacionando o geral ao particular e o particular ao geral. A existência de algo válido para todos relaciona-se, inevitavelmente, com o particular. O geral não existe a não ser numa realidade particular e vice-versa. Tal eficácia pode ser exemplificada pelo tratado Shebi 7,1 24 O conceito é amplamente exposto na obra de Strack e Stemberger. Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica, p. 53. Estas outras regras são também elucidadas por Steinsaltz ao abordar os princípios hermenêuticos do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 150. 25 Tradução feita considerando as informações de STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., op. cit., p. 53. 26 Steinsaltz ressalta a existência de três tipos de binyan ab: a) o que nós encontramos quando olhamos para...?”; b) analogia construída a partir de um só verso; c) analogia construída com base em dois versos. CF. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 149. 27 Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., op. cit., p. 53. 28 Cf. Ibidem. pp. 53-54. 148 ao argumentar sobre os produtos sujeitos à lei do sétimo ano: “Em relação ao ano sétimo se estabeleceu uma regra geral: tudo o que é comestível para o homem ou para os animais, as espécies dos tingidores e o que não se conserva na terra, ficam sujeitos às regras do ano sétimo”. Tal afirmação envolve também as pequenas hortaliças selvagens utilizadas no trabalho de tingir as roupas. f) ְכּיוֺ ֶצא בוֺ ְבּ ָמקוֺם ֶא ָחד, “semelhante a ele em outra passagem”. O exercício de buscar compreender um determinado texto pode ser feito tendo como princípio um texto mais elucidativo, mais claro, mais compreensível. O que é mais evidente pode ajudar na compreensão de textos quase sempre ininteligíveis, num primeiro momento29. Em BM 9,13 são refletidos os inúmeros tipos de comportamento, entre credor e devedor, quando chega o momento de cobrar uma respectiva dívida. Nota-se que ao longo da argumentação surgem vários exemplos a serem evitados no desefo de não violar um preceito negativo. O credor não pode apropriar-se de um bem sem o consentimento do Tribunal. A máxima é detalhada ao declarar que o credor não pode aproveitar-se da situação apropriando-se de meios ligados à produção, e aos afazares do dia-a-dia, como: arado, moinho, colchão e utensílios domésticos. g) ֺדָּ ָבר ַה ָלּמֶ ד מֵ ִענְי ָנו, “algo que se explica por seu contexto”. Prevalece o contexto, a realidade como elemento primordial na interpretação de um determinado texto. Há uma evidência nessa regra. É preciso compreender o contexto para se ter a exata interpretação, imposta pelo texto ou realidade em questão. Saber quando se está ou não diante de uma quantia a ser disponibilizada aos pobres, durante a colheita, exige saber o modo e local onde começou a recolher os produtos do campo (Pea 6,4). Estar o mais próximo do texto bíblico foi a preocupação dos sábios na aplicação e entendimento dos conceitos halákhicos. Desde o momento em que Esdras empenhou-se, com todo o seu coração, para entender, praticar e ensinar a Torá (Cf. Esd 7,10), os sábios vêem nele a função de sua existência: compreender 29 Um exemplo pode ser compreendido diante da prosperidade firmada com Abraão (Gn 12,3). Trata-se de um elemento central na pregação paulina, ao garantir aos pagãos a salvação por meio da justificação pela fé (Gl 3,8.16). Cf. PASSETO, E., La influencia de la tradición oral de Israel en la tradición cristiana, op. cit., p. 12. 149 e não medir esforços para explicar e viver segundo os projetos da Torá. Não há outra primazia junto aos sábios que não seja o bom exercício diante da Torá. A primazia da Torá se impõe como um princípio natural. O que não é compreendido num primeiro contato requererá um exercício com base no midrash - interpretação e comentário, posterior, dos textos bíblicos. Prevalece uma interpretação literal da escritura que, sempre, acena para um gesto concreto, como as normas expressas pela Mishná. 4.2. " סדר זרעיםSeder Zeraim O tema sobre a agricultura inaugura a primeira ordem da Mishná que, segundo comentário de Maimônides, é essencial à existência humana, pois sem alimento o homem é incapaz de viver e de servir a Deus30. Nessa ordem, 31זרעים, "sementes", seis tratados encontram suas justificativas na utilização de textos provenientes do livro do Deuteronômio, aqui analisados na seguinte sequência: Pe’ah 4,3; 6,4; 7,7; Dem 1,2; Shebi 7,1 e MSh 5,10. Nota-se que todos os seis capitítulos abordam o tema da colheita e a obrigatoriedade de disponibilizar parte da quantia recolhida às pessoas ou grupos necessitaos. 4.2.1. “ פֵּﬡָ הPe’ah”32 (córner, limite, divisa) 4,3 , נטל מקצת הפיאהSe alguém recolhe algo (dos frutos do preceito) do limite (de teu campo) וזרק על השארe o jogar com os demais ; אין לו בה כלוםjá não tem parte nela; , נפל לו עליהporém se jogar-se sobre eles, פירס טליתו עליהe estender seu manto . מעבירין אותה ממנוse o obriga a tirá-lo dali. 30 Cf. WIGODER, G. Sementes. In: DEdJ, p. 1103. Nesta parte do trabalho, os conceitos da provenientes da “ ֲה ָל ָכהLeis” não estão vocalizados, uma vez que utilizamos uma edição da Mishná sem os sinais massoretas. 32 Todos os textos da Mishná utilizados no estudo dos doze versículos, neste capítulo, foram encontrados na edição eletrônica, disponível em: http://kodesh.snunit.k12.il/. Na edição hebraica: מאגר ספרות הקודש. Acessado pela primeira vez em out. de 2008. 31 150 , וכן בלקטO mesmo vale para a rebusca, . וכן בעומר השכחהe para o feixe esquecido33. No versículo, prevalece um vocabulário predominantemente punitivo. Está em debate o recolhimento dos frutos, feito não pelo proprietário, nos limites do seu campo, mas por um pobre que tem a intenção de fraudar o proprietário no momento em que este colhe parte do produto disponibilizado no campo, desvirtuando completamente os preceitos. Identificado o sujeito e o verbo na narrativa, percebe-se a quem a Mishná direciona a repreensão. Os pobres acorriam para fazer o pe`ah em sistema de pilhagem. Cada qual era resposável pelo seu “monte”, ajuntado em determinados locais disponíveis no campo. Seguindo a argumentação de Roth, o sujeito da frase é um “dos mais pobres” que está colhendo o pe`ah deixado por um agricultor. Vale ressaltar que certas pessoas ao colherem uma determinada quantia disponibilizada, segundo a Torá, nem sempre usavam de honestidade34. O motivo da repreensão expressa na frase visa alertar uma possível fraude. Caso um pobre esteja recolhendo sua parte do pe`ah e venha a juntar essa quantia às outras que não foram por ele recolhidas ou que pertençam ao proprietário ou a algum de seus companheiros, ele não possuirá parte no montante recolhido. Afinal, seu desejo é de apossar-se de certa quantidade de produtos que não lhe pertencem. Verifica-se a idéia de aproveitarse de uma situação, por demais corriqueira, e roubar parte de um produto alheio. Percebe-se, nitidamente, o desejo denunciativo, diante de uma atitude não lícita. Um pobre aproveita a situação da respiga para cometer um saque. Nessa situação, a Mishná é clara ao acenar que o pobre que respiga “ אין לו בה כלוםjá não tem parte nela”, pois ela foi tirada da parte não estabelecida pelo preceito. Não se pode violar a quantia estabelecida no preceito פיאה. Na norma, prevalece o desejo de realizar a justiça. A porção isenta do preceito – leia-se, הפיאה, “o pe’ah” - deve vigorar mediante o esforço do trabalho honesto. Tal aspecto é destaque ao relacionar os frutos recolhidos ao uso dos 33 Cf. Dt 24,19-21. “Os tribunais tem o direito de privar alguém de fazer a respiga, a fim de impor a obediencia à lei”. ROTH, R. S., Shiurim Pe`ah. Disponível em: <http://www.bmv.org.il/Shiurim/pe`ah/peah039.html>. Acesso em: 6 de abr. 2009. 34 151 verbos: נפל, “cair, deitar-se, deixar cair”35, ָפּ ַרס, “cortar, fatiar”, ֶה ֱע ִביר, “transferir, remover”. Não há meio de burlar o preceito imposto à colheita. É intencional que a Mishná tenha relacionado a colheita dos frutos à prática que legitima os grupos desfavorecidos de usufruírem do preceito determinado. Não se deve, porém, em nenhuma instância, praticar a violação do preceito, segundo argumento exposto na Mishná: וכן בלקט וכן בעומר, “o mesmo vale para a rebusca e feixe”. Nota-se que ocorre uma mescla da linguagem deuteronômica e a linguagem normativa dos tratados. Um comportamento injusto – nesse caso a violação do preceito – não se pode transferir para as demais instâncias comunitárias. Há um rigor estabelecido pela Torá normatizando toda e qualquer relação social. De Miranda e Malca destacam o posicionamento social e coletivo dos sábios diante da situação da pobreza: “Estender a tzedaká aos pobres com todo o coração tinha a significação intrínseca de um ato de virtude. Daí, ter-se desenvolvido o axioma que, se os ricos fossem realmente honestos e tementes a Deus, distribuiriam prazerosamente a riqueza que retinham em custódia de Deus entre os inúmeros credores de Deus – os pobres, os doentes, os desamparados, os necessitados etc.” 36. Os sábios visam corrigir uma prática de injustiça, de violação do direito em curso ao afirmar: אין לו בה כלום, “já não tem parte nele” e מעבירין אותה ממנו, “se o obriga a tirá-lo dali”. Na narrativa em questão, os sábios acenam à primazia e autonomia da Torá e, somente com base em seus arcabouços, é possível reconciliar os interesses individuais e coletivos, superando conflitos em vista do bem comum. Para os sábios, a luta para impor a primazia da Torá era, sobretudo, uma missão ética. Com base na narrativa deuteronômica que garante aos pobres o direito de respigar parte dos produtos deixados no campo, a Mishná ousa denunciar pessoas, entre o grupo dos respigadores, que se apossavam, de modo fraudulento, dos produtos recolhidos e pertencentes a outras pessoas que se encontravam na mesma condição social. A denúncia é legítima, pois não se pode apoiar-se num preceito divino e fazer dele ocasião de legitimar a desigualdade entre pessoas. 35 Cf. JASTROW, M., Dictionary of Talmud Babli, Yerushalmi, Midrashic Literature, and Targumim, p. 924. 36 Cf. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 95. 152 4.2.2. “ פֵּﬡָ הPe’ah” 6,437 38 : ואלו הן ראשי השורותPara os extremos das linhas vale o seguinte׃ שניים שהתחילו מאמצע השורהse começam dois (recolher os feixes) pelo meio da linha, זה פניו לצפון וזה פניו לדרוםum se volta para o norte e outro se volta para o sul, ושכחו לפניהם ולאחריהםesquecendo (alguns feixes) a frente ou atrás deles, ; שכחה, שלפניהןos que caem diante deles são considerados como feixes, . אינו שכחה, ושלאחריהןainda que os que caem detrás deles não se consideram como tais. , היחיד שהתחיל מראש השורהSe uma pessoa só começa pelo extremo da linha ושכח לפניו ולאחריוe esquece (alguns feixes) que estavam uns adiante e outros detrás dele, ; אינו שכחה, שלפניוos que estão adiante dele não se consideram como feixes esquecidos, ושלאחריו שכחהporém os que estão atrás são feixes esquecidos, . שהוא בבל תשובposto que a este se aplica ׃não voltarás atrás39. זה הכללEsta é a regra geral ׃a tudo o que se pode aplicar ; שכחה, כל שהוא בל תשובo não voltarás atrás é considerado como feixe esquecido, . אינו שכחה, וכל שאינו בל תשובe a tudo que não se possa aplicar a ele não voltarás atrás não é considerado feixe esquecido. 37 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h12.htm>, edição eletrônica, acessada em 29 de dez. de 2008. 38 A métrica na divisão dos textos da Mishná é feita considerando a edição eletrônica. 39 Cf. Dt 24,19. 153 O versículo alude a duas situações que visam esclarecer quando algo pode ser considerado ou não na categoria de שכחה, “considerados como feixes”, durante a realização da colheita. Os dois exemplos distintos justificam a máxima apresentada em Dt 24,19: 19a ^d<f'b. ^r>yci(q. rcoq.ti yKiä e esqueceres um feixe no campo 19b hd<F'B; rm,[åo T'óx.k;v'¥w> não voltarás para pegá-lo. 19c ATx.q;l. bWvt' al{Ü Para o estrangeiro, para o órfão e 19d hy<+h.yI hn"mß 'l.a;l'w> ~AtïY"l; rGE±l; Deste modo, 19e ![;mÛ;l. te abençoará YHWH, teu Deus, 19f `^yd<(y" hfeî[]m; lkoßB. ^yh,êl{a/ hw"åhy> Quando colheres a tua colheita no teu campo para a viúva será. em toda obra de tuas mãos. ‘^k.r<b'y> O termo utilizado para determinar a quantia a ser disponibilizada aos grupos desfavorecidos é “ ְושָׁ ַכח ָתּe esqueceres”. A Mishná visa determinar quando e como a quantia dos produtos recolhidos deve ser disponibilizada conforme a máxima deuteronômica. Estes exemplos são importantes na medida em que, seguindo as exigências bíblicas deixam dúvidas sobre o que deve ser de fato disponibilizado. A máxima necessita ser regulamentada. Não é difícil imaginar que a norma não estava sendo praticada durante o período da colheita, o que colaborava, em muito, para o aumento da marginalidade, penalizando, ainda mais, os pobres e endividados no decorrer dos anos. Por feixe, entende-se a quantia recolhida pelo agricultor e guardada como sendo resultado de seu trabalho. A dúvida é superada com dois exemplos distintos: a) dois homens, recolhendo os feixes, em direção opostas – um para o norte outro para o sul – começando pelas extremidades das linhas, a quantia de produtos que venha a cair atrás deles, no momento da colheita, não deve fazer parte da quantia por eles guardada como resultado do trabalho. Em outras palavras: o que ficou atrás, não lhes pertence mais. Não pode ser somada à porção por ele recolhida inicialmente. b) apenas um trabalhador faz a colheita, começando na divisa de sua propriedade e, durante o ato, esquece porções de 154 espigas, seja à sua frente ou atrás dele, sem ser arrancadas, apenas a porção que ficou para trás é considerada parte do preceito. Este exemplo é, ainda, mais esclarecedor. Ao escolherem radicalmente as máximas bíblicas, os sábios visam meios para pô-las em prática. Os argumentos surgidos em torno de uma máxima bíblica nada mais refletem que os desejos de ver a justiça praticada junto aos membros da comunidade. No texto da Mishná, fica definido, uma vez por todas, o que faz ou não parte do feixe destinado ao preceito. 4.2.3. “ פאהPe’ah” 7,7 כרם שכולוSe uma vinha tem somente cachos de עוללותrebusca, , רבי אליעזר אומרsegundo R. Eliezer pertencem ao ; לבעל הביתproprietário, , ורבי עקיבה אומרentretanto segundo R. Aquiba . לענייםpertencem aos pobres. לא. . . "כי תבצור, אמר רבי אליעזרR. Eliezer arguiu: “se tu vindimas, não " תעוללtens que recolher os cachos da (כא, )דברים כדrebusca”40. , אם אין בצירPorém, se não há vindimas, como . מניין עוללותhaverá cachos para a rebusca? אמר לו רבי עקיבה "וכרמך לאReplicou R. Aquiba: “não farás a ,(י, תעולל" )ויקרא יטrebusca de tua vinha”41, אפילו כולוinclusive quando toda ela não tenha . עוללותmais que cachos de rebusca. . . . אם כן למה נאמר "כי תבצורSe é assim, por que está "לא תעולל escrito:“Quando colheres a tua vinha não farás rebusca”? ( אין לענייםPara mostrar que) os pobres não têm 40 41 Cf. Dt 24,21. Cf. Lv 19,10. 155 , בעוללותdireito aos cachos da rebusca . קודם לבצירantes da vindima. Dois ilustres sábios são citados neste versículo que procura determinar quando existem עוללות, “pequenos cachos de uvas que não estão completamente formados”42. No debate entre dois tanaítas, não existe consenso se tal quantia será ou não disponibilizada aos pobres. Embora, seguindo argumentação dos sábios, Rabi Aquiba43 e Rabi Eliezer44, discordantes em sua definição, prevalece a tese de que só há respiga após o trabalho da vindima. O problema a ser solucionado apresenta uma vinha cuja produção apresenta somente uvas qualificadas como “ עוללותrebusca” - entenda-se uma plantação onde as uvas são de má formação ou de péssima qualidade para serem utilizadas no lagar. R. Eliezer argumenta, seguindo a narrativa encontrada em Dt 24,21: hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; ^yr<_x]a; lleA[t. al{ ^m.r>K; rcob.ti yKi, “quando colheres a tua vinha não farás rebusca na vinha que ficou atrás de ti. Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será”. Em sua opinião, toda a vinha, nessas condições, pertencem ao proprietário, pois não pode ser feita, ainda, a vindima ao longo de toda a plantação. Em opinião contrária, R. Aquiba argumenta e defende a opinião de entregar totalmente a vinha aos pobres, seguindo a formulação de Lv 19,10: ~k,yhel{a/ hw"hy> ynIa] ~t'ao bzO[]T; rGEl;w> ynI['l, jQEl;t. al{ ^m.r>K; jr<p,W lleA[t. al{ ^m.r>k;w>, “tua vinha não rebuscarás nem recolherás os frutos caídos do teu pomar. Tu os deixarás para o pobre e para o estrangeiro. Eu sou Senhor teu Deus”. 42 Um termo técnico no universo jurídico do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: The Steinsaltz Edition, Toronto, Random House, 1989, p. 238. O cacho de uva com defeito ou esquecido durante a colheita é tido como “uma porção reservada ao pobre”; Cf JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 1051. 43 São inúmeros os autores que elevam ao mais alto grau do judaísmo farisaico, da época tanaítica, a pessoa de Rabi Akiva ben Iossef (40 a 135 d.C.). Grande estudioso da Torá oral e escrita, Akiva ordenou, por tópicos, as normas da jurisprudência, mais tarde culminando na redação da Mishná. É considerado mestre mais influente na época de Yavne. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literature talmúdica y midrásica, p.119; DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 147; URBACH, E. E., Les sages d’Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p.621; SAFRAI, S., The literature of the sages, p. 71. 44 Sábio tanaíta da terceira geração, metade do século II d.C. Sua atuação foi considerável ao levar adiante as conclusões de Yavne. DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 156; STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literature talmúdica y midrásica, p.117. 156 Salvo as dissonâncias entre R. Aquiba e Eliezer, a Mishná conclui, com base na argumentação proposta pela Torá, que a rebusca não seja feita enquanto não ocorrer a vindima. Nota-se que as argumentações visam enfrentar idéias daqueles que se negavam a cumprir o direito, não possibilitando a prática da rebusca, ou antecipando-a antes da vindima. Está em jogo o cumprimento do direito de vindimar e de rebuscar. O crivo consensual provém da Torá. 4.2.4. “ דמאיDemay” 45 1,246 הדמאיAos produtos do dízimo duvidoso , אין לו חומשnão se aplica a lei do quinto , ואין לו ביעורnem da remoção,47 , ונאכל לאונןpodem ser comidos por um que está de luto,48 , ונכנס לירושלים ויוצאpode-se introduzir em Jerusalém e tirálos dali. ומאבדין את מיעוטוSe, no caminho, se estraga uma , בדרכיםpequena quantidade, (não importa); , ונותנו לעם הארץpode-se dar a uma pessoa não instruída, ואוכל כנגדוmas haverá de comer o equivalente, ( ומחללין אותו כסףo preço do resgate) pode ser convertido ,( על כסףem dinheiro) de uso comum: , ונחושת על נחושתprata por prata, , כסף על נחושתdinheiro por cobre, , ונחושת על הפירותprata por cobre e cobre por frutos, . ובלבד שיחזור ויפדה את הפירותcontanto que alguém volte para resgatar os frutos. . דברי רבי מאירEsta é a opinião de R. Meir. , וחכמים אומריםOs sábios afirmam 45 A Mishná abre um parágrafo sobre produtos de origem desconhecida. Literalmente, a palavra דמאיsignifica “dúvida”. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 179; DEdJ, p. 270. 46 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h13.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de 2008. 47 Cf. Dt 26,13. 48 Cf. Dt 26,14. 157 יעלו הפירות וייאכלוque os frutos tem que ser levados a . בירושליםJerusalém e ali, devem ser consumidos . No estudo e na interpretação das normas estabelecidas nos textos de Nm 18 e Lv 22, os sábios construíram uma jurisprudência relativa aos produtos produzidos por pessoas tidas como incultas, identificadas como “ ַעם ָהאָ ֶרץpovo da terra”49 e reconhecidas como negligentes na atribuição do dízimo sobre o resultado da colheita. Ao abordar o tema, procuram responder o que fazer quando se está de posse de um bem ou produto de procedência desconhecida, dos quais não há certeza de que foram recolhidos os respectivos dízimos. A Mishná apresenta uma norma, considerando as inúmeras leis bíblicas relacionadas aos produtos do campo e à série de dízimos neles embutidos50. As ordens na atribuição do dízimo, segundo Valle, seguiam estes critérios: “Uma vez descontada a oferenda e o primeiro dízimo, do restante se separava no primeiro, segundo, quarto e quinto ano do sétimo ano outro dízimo (=segundo dízimo), que o proprietário devia levar a Jerusalém e consumi-lo ali. Para evitar os contratempos de transporte se permitia vendê-lo na província e aplicar o equivalente (um quinto do seu valor) na aquisição de alimentos em Jerusalém onde deviam ser consumidos. No terceiro e sexto do sétimo ano, este dízimo era entregue aos pobres (Dt 14,22-29; 26,12-15) e, por isso, era chamado dízimo dos pobres”51. A Mishná procura resolver qual deve ser o comportamento diante de um produto suspeito de não ter passado pelas exigências de recolhimento das respectivas cifras dos dízimos. Quais são e em que consistem a חומש, “lei do quinto” e da ביעור, “remoção”, uma vez que está evidente, segundo a lei, que parte do dízimo deve ser consumido em espécie na cidade de Jerusalém? 49 “Quem é um am há-arets? Aquele que não come do alimento não consagrado em estado de pureza levítica – esta é a opinião de R. Meir. Mas os sábios dizem: seja quem for que não separa corretamente o dízimo de sua produção...aquele que não recita o Shema - pela manhã e à tarde – é a opinião de R. Eliezer. R. Yehoshua diz: aquele que não coloca os tefillin. Ben Azzai declara: aquele que não tem mezuza à sua porta e não tem franjas em sua vestimenta. R. Yonathan bar Yossef é da opinião que seja quem for que tem filhos e não os faz estudar a Torá. Outros dizem: mesmo se um indivíduo estudou a Escritura e a Mishná, mas se ele não frequenta os eruditos, hão de considerá-lo como um am há-arets”. Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p. 652. 50 Na época do Segundo Templo, “o agricultor era obrigado a separar a quinta parte de sua produção agrícola que ele “ofertava” aos sacerdotes uma décima parte do restante, como primeiro dízimo. Cf. DEdJ, p. 270. 51 Cf. DEL VALLE C. (org.), La Mishna, p. 67. 158 A resposta deve ser compreendida por um aprimorado sistema de recolhimento e fiscalização posto em prática pelos sacerdotes. Há um sistema rígido de lealdade ao Senhor (Dt 13,1). Ao apresentar-se como Deus único e realizador de inúmeras obras em favor de seu povo escolhido, Ele passa a ser a garantia de prosperidade e segurança. Não há outro Deus capaz de garantir a aliança firmada. Este modo de pensar a relação Deus e Povo é levado às últimas consequências no Código do Deuteronômio, ao fazer a releitura dos temas já apresentados em Ex 20,22–23,33. Nada mais justo do que enfatizar a intimidade feita por meio de uma aliança entre YHWH e seu povo, Israel. Os textos, mais do que realçar a aliança contraída com essa divindade, visam destacar a lealdade e exclusividade a ele prestadas. Ao associar o cumprimento do recolhimento dos dízimos à vontade de YHWH, forjou-se, sim, um arcabouço de idéias infindáveis52. Há de se ter clareza de que a tributação do dízimo sobre os produtos do campo ocorria todos os anos. Durante o primeiro, segundo, quarto e quinto ano, tempo que compõe o conhecido ciclo da שמיטה, os moradores do país eram obrigados a realizar, assiduamente, o pagamento do מעשר שני53 ou segundo dízimo. Esses produtos ou a sua soma equivalente em dinheiro, deveriam ser levados a Jerusalém e ali consumidos. O מעשר ראשון54 ou primeiro dízimo, seguia as prescrições elencadas em Nm 18,21.24, sendo destinado aos levitas. No terceiro e sexto ano, do período da Shmîtah ou período do ano sabático, a soma dos dízimos era destinada à população dos desfavorecidos economicamente, aos merecedores do מעשר אני55 ou dízimo dos pobres (Dt 14,28-29; 26,12)56. Os autores da Mishná, diante dos produtos reconhecidos na categoria דמאי, “duvidoso”, optam por isentar o proprietário de uma série de normas. A primeira refere-se ao ato de efetuar o pagamento, no quinto ano, ficando, deste modo, isento do segundo dízimo. Fica também dispensado de levá-lo, em mercadoria ou em espécie monetária, a Jerusalém e lá encontrar seu destino final. Uma terceira 52 Quanto à quantidade a ser oferecida no pagamento do dízimo há inúmeras abordagens. Cf. ZABATIERO, J. P. T., Tempo e espaço sagrados em Dt 12,1-17,13, p. 137-142. 53 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 222. 54 Cf. Ibidem. p. 221. 55 Cf. Ibidem. 56 O ato de não disponibilizar os respectivos dízimos e valores correspondentes será também denunciado no tratado Abhot 5,9. Ver análise mais adiante, p. 177. 159 isenção, proveniente de um דמאי, privilegia a pessoa em estado de luto, a quem é facultado o consumo de tal quantia. Ao comentar o conceito técnico de אנינות, “aninut” forma plural de אונן, “onen”, corrente na halakhah, Steinsaltz acentua um tempo de “isenção de todo preceito positivo”, enquanto perdurar o período de luto57. A Mishná quebra esse preceito. Ao declarar ונאכל לאונן, “Podem ser comidos por um que está de luto” os produtos tidos como demay adquirem uma norma especial, podendo ser consumidos, mas na cidade de Jerusalém, conforme a máxima subscrita por R. Meir58. Possivelmente, esta parte do segundo dízimo, consumido em Jerusalém, devia coincidir com a época em que os israelitas subiam em direção à cidade de Jerusalém para as festas de peregrinação. Sendo assim, vê-se que a obrigatoriedade de consumo em Jerusalém servia para a subsistência dos peregrinos nos dias em que perduravam os festejos. 4.2.5. “ שביעיתShebiit” 7,159 :כלל גדול אמרו בשביעית Em relação ao ano sétimo se estabeleceu uma regra geral: , אכל שהוא מאוכל אדםtudo o que é comestível para o homem , וממין הצובעין, ומאוכל בהמהou para os animais, as espécies dos ואינו מתקיים בארץtingidores e o que não se conserva na terra, יש לו שביעיתficam sujeitos às regras do ano sétimo, , ולדמיו שביעיתcomo também o dinheiro obtido em sua venda. יש לו ביעורEstão sujeitos à lei da remoção60, 57 Cf. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 162. O período de exéquias envolvia a morte de alguém próximo ao círculo de parentesco em primeiro grau: pai, mãe, irmã, irmão, filho, filha, marido ou esposa. De todo e qualquer mandamento positivo – orar o Shema, uso do tallit, comer carne e beber vinho, comer da oferta do segundo dízimo e comer dos sacrifícios sagrados impunha certa proibição, no período da vigilância fúnebre na esfera familiar. 58 Fala-se que foi o primeiro discípulo de Rabi Ushmael e posteriormente de Rabi Akiva, no período tanaíta. Homem de memória privilegiada, escriba de profissão, deu sequência aos ensinamentos deixados por seu mestre, Akiva. Seu trabalho foi de fundamental importância ao compilar as tradições orais sendo indispensáveis na redação da Mishná. DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 176. 59 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h15.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de 2008. 160 . ולדמיו ביעורe mesmo o dinheiro obtido em sua venda. ואיזה זהQuais são? , זה עלי הלוף השוטהAs folhas de ervas silvestres, as folhas , והרגילה, והכרישין, העולשין, ועלי הדנדנהde menta, a escarola, os alhos, a flor. ונץ החלבde- leque e a flor-de-leite. ,ומאוכל בהמה E as ervas para o gado? As sarças e os החוחיןespinhos, espécies que usam os . והדרדריןtingidores? . וקוצה, וממין הצובעין ספחי איסטיסOs brotos de anil e do falso açafrão. יש להןEles estão submetidos à lei do sétimo , שביעית ולדמיהן שביעיתano, e também o dinheiro obtido em sua venda. יש להן ביעורEles estão sujeitos à lei da remoção, .ולדמיהן ביעור o mesmo que o dinheiro obtido em sua venda. Um grande problema era definir quais os produtos que estão ou não sob as normas estabelecidas no ano sabático. Duas diferentes realidades estão no centro dessa norma posta em prática: o repouso da terra61 e a anulação dos casos das dívidas financeiras62. A chegada do sétimo ano propiciava uma era de equidade, um recomeçar de novo, entre todos os grupos sociais. Tempo de negação de qualquer experiência acenando concentração de bens e acúmulo de riqueza. Seguindo as orientações vindas da Torá63, a שביעית, “Shebiit”, ou ano sabático era o tempo por excelência da reparação das injustiças, da equiparação da concentração de renda oriunda do acúmulo de terras ou cobranças de juros por empréstimos realizados. Refere-se ao período da distribuição de renda àqueles diretamente envolvidos nas tarefas do dia-a-dia: escravos e empregados e um posicionamento objetivo e claro, por parte dos sábios, em motivar o povo a viver sob a soberania de YHWH. 60 Cf. Dt 26,13. Refere-se ao conceito da שמיטת קרקע, “libertação da terra”. Todos os produtos devem permanecer no campo e serem consumidos por animais, aves e apanhados por pessoas. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 260. 62 Refere-se ao conceito da שמיטת כספים, “cancelamento das dívidas financeiras”. Cf. Ibidem, p. 261. 63 Cf. Ex 23,10-11; Lv 25,2-7; Dt 15,1-6. 61 161 O texto diz que todos os produtos da terra, tidos como comestíveis pelos homens e animais, estão sujeitos à lei . O texto da Mishná é explícito: אכל שהוא מאוכל אדם, “tudo que é comestível ao homem” e também ומאוכל בהמה, “e comestível para os animais” está disponibilizado quando da chegada do ano jubilar. Nada deve ficar excluído da lei do sétimo ano, nem mesmo a lei da remissão sobre qualquer produto. Nada deve deixar de ser considerado no tempo da remissão. Neste aspecto, compreende-se o argumento considerando, até mesmo, as pequenas ervas, ervas selvagens, tidas como insignificantes e utilizadas para o tingimento de roupas, tais como: ervas silvestres, folhas de menta, escalora, alho, flor-de-leque, flor-de-leite, broto de anil, falso açafrão. Tudo deve ser disponibilizado com a chegada do ano sabático. Há de se evitar os abusos sociais. Esse adendo pode ser considerado pelo uso do termo ביעור64, “remoção”, quatro vezes corrente no versículo. Uma vez que tudo está submetido à lei do ano sabático, também יש לו ביעור ולדמיו ביעור, “ficam sujeitos à lei da remoção e mesmo o dinheiro obtido em sua venda”. Isto é, a remoção do dízimo dos produtos do ano quarto e sétimo; esse último, coincidindo com o ano jubilar, deve estar sujeito à lei do período sabático. Nada pode escapar da regra máxima com a chegada do ano da remissão65. O projeto imposto é fruto da vontade divina. Os argumentos dos sábios encontram eco e credibilidade por serem oriundos do próprio Senhor: hw"hyl;( hJ'miv. ar"q'-yKi, “pois se chama remissão para o Senhor” (Dt 15,2). Os sábios eram profundos conhecedores das inúmeras relações sociais geradoras de injustiças. O posicionamento ético diante de uma situação de injustiça é inquestionável. A primazia volta-se ao ano sabático, princípio e eixo de toda prática na esfera social. Trata-se de uma intervenção por demais ambiciosa por parte dos sábios, mas pautada na instância da Torá, o que lhes dava maior credibilidade e confiabilidade junto às mais diferentes instâncias da esfera social. Não falam em nome próprio, mas sim em nome de YHWH. A base de toda argumentação não é outra se não a realização da vontade e palavra do Senhor. 64 Cf JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 164. 65 Cf. Dt 15,9. 162 4.2.6. “ מעשר שניMaaser Shení” 5,10 , במנחה ביום טובNa tarde do último dia ; היו מתוודיםse faz a confissão. : כיצד היה הווידויQual era a fórmula da confissão? " "ביערתי הקודש מן הביתSeparei o que é consagrado da minha casa (Dt 26,13), . זה מעשר שני ונטע רבעיisto é, o segundo dízimo e os frutos das árvores do quarto ano. " "נתתיו ללויDei-o para o levita (Dt 26,13) . זה מעשר לויisto é, o dízimo do levita. " "וגם נתתיוTambém fiz outra entrega (Dt 26,13). . זו תרומה ותרומת מעשרa saber, a oferta e a oferta do dízimo, " "לגר ליתום ולאלמנהPara o estrangeiro, para o órfão e para a viúva (Dt 26,13), , זה מעשר עניFiz a entrega do dízimo dos pobres , ולקט שכחה ופיאהo fruto da respiga, o fruto esquecido e o da esquina, . אף על פי שאינן מעכבין את הווידויainda que isto não invalida a onfissão. . זו חלה," "מן הביתda minha casa, isto é a massa (devida ao sacerdote). O vocabulário predominante na perícope é cúltico, com destaque para a oração pronunciada durante o gesto de oferecimento de um sacrifício ou de um dos dízimos prescrito pela Torá. Ao declarar במנחה ביום טוב, “na tarde do último dia festivo”, a Mishná refere-se às orações que acompanhavam a entrega dos dízimos no quarto e sétimo ano, do período sabático66. A fórmula proposta na Mishná tem origem no texto de Dt 26,13-1567. Na sequência, são considerados três diferentes dízimos. A primeira oferta citada é זה מעשר שני, “isto é o segundo dízimo” ofertado “durante o primeiro, segundo, quarto 66 O termo יום טוב, “O grande Festival”, alude à festa da Páscoa. Cf. DEL VALLE, C., La Misna, p.179. O termo pode também referendar as respectivas festas: Shavuot, Rosh HaShanah e Sukkot. Em certos contextos refere-se ao dia do perdão, Yom Kippur. 67 Cf. M. Msh. 5,12-13. 163 e quinto ano do período sabático”68. Sob essa quantia era determinado seu consumo, quando possível, em Jerusalém, podendo, de acordo com a realidade, ser trocada pela quantia equivalente em dinheiro. O versículo cita זה מעשר לוי, “isto é, o dízimo do levita”, conhecido como מעשר ראשון69, “primeiro dízimo”. Este dízimo inicial era entregue ao levita, após o cumprimento da תרומה, Teroumah, ”oferta” sobre o resultado de toda a colheita. O levita, por sua vez, era obrigado a doar um décimo de todos os dízimos ao sacerdote. Todos os moradores em Israel tinham obrigação de cumprir o preceito, que direcionava um décimo para os sacerdotes. Um terceiro dízimo era destinado ao estrangeiro, órfão e viúva. Pertencem a esta trilogia os grupos dos pobres, escravos. O versículo é muito objetivo ao apresentar os destinatários do מעשר עני, “dízimo dos pobres”. A redação Mishnáica segue paralela ao texto de Dt 24,19.20.21. A realidade da respiga, do esquecimento e do ato da vindima acenam para o cumprimento de todas as normas que não podiam ser negligenciadas pelos agricultores. Todos os sacrifícios feitos eram seguidos de oração. A וידוי מעשר, “confissão do dízimo”, tinha como elemento único a recitação de Dt 26,13-15. Seguindo a própria Mishná, e apoiado nos comentários de Del Valle e Steinsaltz70, a prática de recitar o conteúdo desses versículos foi abolida por ordem de João Hircano (135-104), considerando as inúmeras faltas no ato de cumprir corretamente as prescrições ao disponibilizar a quantia dos respectivos dízimos, segundo a cifra estabelecida. “O segundo dízimo está destinado à comida, à bebida e à unção; para comer o que habitualmente se come; para beber, o que realmente se bebe; para usar como unguento, o que habitualmente se usa como unguento”71. Os preceitos referentes ao dízimo exigiam um trabalho, empreendido por parte do doador, e seu gesto é qualificado no momento em que ele a recita manifestando, deste modo, de forma correta, sua confiança na soberania de Deus, atualizada todos os anos, ao cumprir a norma estabelecida. Praticá-la é reafirmar sua confiança nas bênçãos vindas de Deus, sinônimos de prosperidade na colheita, 68 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 222. Um décimo da quantia recebida era entregue pelo levita ao sacerdote. Cf. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 221. 70 Cf. M. Msh 5,15; DEL VALLE, C., La Misna, p.180; STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 185. 71 Cf. M. Msh, 2,1. 69 164 satisfação em construir uma sociedade de iguais e esperança daquele que crê no amor de Deus. O fiel se vê na qualidade de cumpridor da vontade do Senhor. O próprio Deus o qualifica. 4.3. “ סדר מועדSeder Mo´ed”72 Esta ordem determina as normas para os dias festivos e como celebrá-los do modo mais solene possível. Na época do acontecimento das festas, ocorrem as manifestações exteriores demonstrando o grau de compreensão da Torá e das normas estabelecidas pelos ensinamentos dos sábios. 4.4. “ מגילהMegillah” 2,573 , כל היום כשר לקרות את המגילהTodo dia é apto para a leitura do rolo, , ולקריאת ההללpara recitar o hino de louvor, , ולתקיעת שופרpara o toque do shofar, , ולנטילת לולבpara pegar o ramo, , ולתפילת המוספיןpara a oração adicional, , ולמוספיןpara os sacrifícios adicionais, , ולווידוי הפריםpara a confissão no sacrifício dos , ולווידוי המעשרtouros, para a confissão com motivo do , ולווידוי יום הכיפוריםdízimo74, para a confissão no Dia da , לסמיכהExpiação, , ולשחיטהpara a imposição das mãos para sacrificar, , לתנופהpara agitar, , להגשהpara colher um punhado, , לקמיצה ולהקטרהpara queimar o incenso, 72 Desta ordem fazem parte temas ligados às respectivas festas: Sábado, Funções exercidas durante os festejos, Páscoa, Ciclos, Dia do Perdão, Festa das Cabanas, Dias Festivos, Ano Novo, Dias de Jejuns, Livro de Ester, Festas menores, Sacrifício Festivo. Considera-se na pesquisa somente o Livro de Ester por apresentar uma determinada norma no texto de Dt 26,12-15. 73 Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h2a.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de 2008. 74 Cf. Dt 26,13-15. 165 , למליקהpara torcer a cabeça das aves, , לקבלהpara receber o sangue, , ולהזיהpara a aspersão, , להשקאת סוטהpara fornecer a água à suspeita adúltera, , ולעריפת העגלהpara desnucar o garrote . ולטהר את המצורעpara purificar o leproso. A expressão כל היום, “todo dia”, remete às leituras obrigatórias que devem acontecer durante a realização das respectivas festividades e atividades religiosas75. As festas traduziam a plena convicção de estar em sintonia com a vontade de Deus, além de oferecer, por um determinado tempo, certo distanciamento dos dias ordinários e aprendizagem com os fatos do passado, significativos à vida de todas as comunidades religiosas, dentro ou fora do território76. O versículo faz referência explícita às festas de Purim 77 לקרות את המגילה, “para a leitura do livro”; Ano Novo, ולתקיעת שופר, “para o toque do shofar” e Dia de Expiação; Tabernáculo, ולנטילת לולב, “para pegar o ramo”; Sábados e dias festivos, ולתפילת המוספין, “para oração adicional” além de outras inúmeras leituras obrigatórias ao longo do dia e diante de situações específicas, como: queima de incenso, aspergir o sangue, purificar o leproso e dar água à suspeita adúltera. O texto agrupa uma série de vários atos sociais e religiosos, acompanhados pelas respectivas leituras bíblicas, que especificam a recitação do texto de Dt 26,13-15 no momento da entrega dos dízimos anuais. Embora não haja, ao longo do versículo, nenhum tipo de preferência ou grau de importância a uma determinada prática religiosa, a recitação de Dt 26,13-15 pode ser notada como um gesto habitual no período Tanaítico, quando da entrega dos dízimos, como fora mencionado no tratado sobre as normas estabelecidas ao segundo dízimo78. Trata-se de um agir conforme as regras estabelecidas por vontade de Deus. Gesto compreendido como um ato de amor, livre e consciente, 75 O capítulo dois esclarece dúvidas quanto à leitura do livro de Ester durante a cerimônia de Purim, e outras leituras obrigatórias em dia de festa. 76 Manns faz uma síntese das principais festas ligadas ao cotidiano religioso. MANNS, F., Le judaisme: milieu et mémoire du Nouveau Testament, pp. 99-132. 77 Cf. WIGODER, G. Rouleau. In: DEdJ, p. 649. 78 Cf. M. Msh. 5,10. 166 fortalecendo a unidade com Deus79. Nota-se o grau de unidade nas normas estabelecidas pelos sábios no desejo de mostrar o amor a Deus. A fidelidade a Deus, bem como, a busca pela santidade expressa nos textos bíblicos, é vivenciada por meio de gestos litúrgicos e por uma prática social 80. 4.5. “ סדר נשיםSeder Nashim” O tratado נדרים, “votos” apresenta normas visando concretizar as disposições estabelecidas em Nm 30. Centra-se nas regras indispensáveis na firmação de um voto entre um homem e uma mulher, elucidando também as possíveis condições favoráveis para anulá-lo. Nos seus sete tratados, esta terceira ordem versa sobre normas de condutas em relação às mulheres, sempre com base nos textos da Torá (Cf. Dt 20,2-9; 24,1; 25,5; Ex 22,16; Nm 5,11-31.6.30) e em Rt 4. 4.5.1. “ נדריםNedarim” 11,381 Diz-se: קונם שאיני נהנה “qonam se tiro proveito לברייותde qualquer pessoa”, , אינו יכול להפרnão pode anulá-lo, ויכולה היא ליהנות בלקטainda que ela possa beneficiar-se da ובשכחהrespiga, do fruto esquecido82 e da rua de . ובפיאהteu campo. Diz-se: קונם כוהנים ולויים “qonam os sacerdotes e levitas que se , נהנים ליbeneficiam de mim” se o colhem pela ; ייטלו על כורחוforça. Porém se diz: “qonam” 79 Para os Tanaítas existe a distinção entre o agir por amor e agir pela fé. Segundo Rabi Akiva, os gestos feitos com amor são acompanhados pelas características do amor e do martírio. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p. 433. 80 Cf. Ibidem, p. 383. 81 O texto hebraico é uma reprodução do programa eletrônico. Cf. < http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h33.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008. 82 Cf. Dt 24,19. 167 , כוהנים אלו ולויים אלו נהנים ליestes sacerdotes e levitas que se . ייטלו אחריםbeneficiam de mim, outros o podem colher (os frutos devidos). O texto desenvolve-se no contexto em que o marido ou pai pode anular o voto feito pela esposa ou filha83. Apelando ao conceito técnico de קוֹנ ָם, qonam, o voto feito por uma mulher pode ser cancelado. Segundo a definição dos sábios “trata-se de um voto específico onde a pessoa proíbe a si mesmo de comer algo ou visa beneficiar-se de alguma coisa ou de alguém ao dizer: “esta pessoa é para mim um qonam”84. O versículo apresenta três diferentes argumentações quanto ao uso do termo qonam. Num primeiro momento, não há meio para retirar uma falta cometida por uma mulher caso esta venha, diante de qualquer contexto social, tirar proveito de alguém ou de algo pertencente à outra pessoa. Por se tratar de uma violação na qual a pessoa venha se beneficiar de modo injusto, אינו יכול להפר, “não pode anulá-lo”, declara a Mishná. Mas a mulher, embora tendo cometido algum delito, pode, seguindo a prescrição de Dt 24,19, usufruir da lei da respiga: “Quando colheres a tua colheita no teu campo e lá esqueceres um feixe, não voltarás para pegá-lo. Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será. Deste modo te abençoará YHWH, teu Deus, em toda obra de tuas mãos”. Num segundo exemplo, a norma refere-se aos sacerdotes e levitas que, no exercício de suas funções, venham a obter lucros indevidos. Tal violação de direito não há como ser revocada, pois se trata de uma forma de aquisição indevida: ייטלו על כורחו, “se colhem pela força”. Neste caso as autoridades religiosas estariam usurpando de um direito fixado, anteriormente pela halakhah. Segundo o tratado sobre os produtos do campo, são quatro os tributos fixos dos quais sacerdotes e levitas tem direitos garantidos: produtos do campo, o dízimo oriundo da primeira colheita, os dízimos apresentados no templo, além das obras de caridade marcadas pela disponibilidade dos produtos do campo aos grupos sociais desfavorecidos85. 83 Os vários tipos de votos feitos por uma mulher, estando ela na qualidade de esposa ou filha, e que podem ser anulados pelo marido ou pai, são tratado no versículo 11. 84 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 251; JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 1335. 85 Cf. M. Peá 1,1. 168 Um terceiro exemplo é apresentado considerando o mesmo caso – violação cometida por um sacerdote ou levita. A diferença está em afirmar que, na mesma intensidade da violação cometida sobre a pessoa, outras pessoas podem colher os frutos devidos, retirados por sacerdotes e levitas. Nota-se aqui um conceito fundamental de justiça (Cf. Ex 21,24; Dt 19,21). O grau de importância diante da narrativa de Dt 24,19, por parte dos sábios é absoluto. Mesmo diante de um caso reconhecido como qonam não existem meios capazes de impedir a prática da respiga dos feixes esquecidos no campo durante o tempo da colheita. 4.5.2. “ גיטיןGittin” 5,886 As inforrmações presentes em Dt 24,1-4 fundamentam os debates no tratado גיטין, “Gittin”, estabelecendo regras para a plena realização do litígio entre marido e esposa. O tratado está dividido em nove capítulos, sendo o quinto dedicado às regras da שָׁ לוֺם, “paz” no interior das comunidades. : אלו דברים אמרו מפני דרכי שלוםAs seguintes coisas foram ditas para favorecer a paz. , כוהן קורא ראשוןO sacerdote lê primeiro, , אחריו לויdepois dele o levita , ואחריו ישראלe depois dele um israelita leigo . מפני דרכי שלוםpara favorecer a paz. , מערבין בבית ישןO erub seja feito na casa antiga . מפני דרכי שלוםpara o bem da paz. , בור שהוא קרוב לאמה מתמלא ראשוןA cisterna que está próxima a um canal . מפני דרכי שלוםse enche primeiro, para o bem da paz. , מציאת חירש שוטה וקטן יש בהן גזלAo encontrado por um surdo-mudo, um idiota ou um menor, se aplica a lei . מפני דרכי שלוםdo roubo pelo bem da paz. . גזל גמור, רבי יוסי אומרR. Iossef afirma: trata-se de roubo formal. 86 O texto hebraico foi extraído do programa eletrônico< http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h36.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008. 169 , מצודות חיה ועופות ודגים יש בהן גזלAo preso na rede (o alçapão), sejam animais, aves, peixes, se lhes aplica a . מפני דרכי שלוםlei do roubo pelo bem da paz. . גזל גמור, רבי יוסי אומרR. Iossef afirma: trata-se de roubo formal. , העני המנקף בראש הזית מה שתחתיו גזלSe um pobre vareja a copa de um oliveiral, a todo o que está debaixo (da árvore) se lhe aplica a lei do roubo pelo . מפני דרכי שלוםbem da paz. גזל, רבי יוסי אומרR. Iossef afirma: trata-se de roubo . גמורformal. אין ממחין ביד עניי גוייםNão há de proibir aos pobres não , בלקט בשכחה ובפיאהisraelitas recolher os frutos da respiga, מפני דרכיdo esquecido87 e do limite de teu campo . שלוםpara o bem da paz. Ter gestos voltados para a harmonia. Essa é a tônica central desta parte do tratado sobre o divórcio. O conteúdo do texto é claro: אלו דברים אמרו מפני דרכי שלום, “As seguintes coisas foram ditas para favorecer a concórdia”. São apresentadas sete atitudes, comuns ao cotidiano, exemplificando maneiras que devem ser imitadas para se viver em harmonia, podendo ser divididas em três grupos distintos. Num primeiro bloco, aparecem três práticas por demais comuns: na Sinagoga a leitura da escritura deve seguir o grau hierárquico. Nos dias festivos: Páscoa, Festa das Semanas, Ano Novo, Dia do Perdão e Cabanas88 não são poucos os que se dispõem à leitura da Torá. Na finalidade de evitar debates inúteis a Mishná estabelece uma certa ordem. A leitura seja feita na seguinte ordem: sacerdote, levita e, em seguida, o leigo. O “ עירובerubh”, literalmente traduzido por “mistura, conjunção”89, diz respeito a um processo legal, criado pelos rabinos, para facilitar a observância de atos casuísticos, em dia de sábado, com atenção 87 Cf. Dt 24,19s. Festas fundamentadas nos textos bíblicos. 89 Cf. JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 1075. 88 170 centrada na não transgressão das leis90. As questões referentes ao erubh devem ser encaminhadas na casa mais antiga entre as vizinhanças. A terceira norma refere-se ao abastecimento de água para os moradores de uma determinada região91. A Mishná aconselha que as cisternas próximas da fonte sejam cheias, num primeiro momento. Um segundo bloco visa elucidar a compreensão do גזל גמור, “roubo formal”. A afirmação procede de R. Iossef92, citada três vezes, após três diferentes atos. Não importa a pessoa que venha a furtar algo: sempre será considerado um crime, pois, se trata de uma prática abominável diante dos preceitos de YHWH: Ex 20,15; Lv 19,11. Com vista à concórdia, mesmo que a falta venha a ser cometida por um surdo-mudo, um idiota ou por uma criança, o ato será considerado um “roubo formal”, devendo a pessoa sofrer as punições estabelecidas. O material usado para prender animais, aves ou peixes pertence a algum tipo de proprietário. Assim, apropriar-se de animais, peixes ou aves pegos nas armadilhas, não há como não ser considerado um roubo formal. O mesmo julgamento recai sobre o momento em que um homem pobre recolhe da copa das árvores os frutos, colocando-os com as próprias mãos sob a árvore. Conclui-se que, nos três exemplos ocorre a violação de uma norma negativa. O roubo, não importa quem venha a cometê-lo, é considerado um crime, visando o estabelecimento de uma convivência social em equilíbrio: מפני דרבי שלום, “pelo bem da paz”. O versículo conclui com um realce dado ao gesto de não proibir, quer israelita, quer pagão, de por em prática o direito de respiga expresso em Dt 24,19s. O texto é inovador ao referendar os עניי גויים, “pobres não israelitas”. 90 Existe uma variedade de éruv. Steinsaltz realça: a) erubh do passeio/quintal: fica proibido, em dia de sábado, transportar qualquer coisa que seja do domínio público para o privado. Segundo a mesma lei não é proibido fazer o contrário, isto é, transportar do círculo privado ao coletivo; b) éruv das iguarias cozidas: quando uma festa, seguindo o calendário, cai numa sexta-feira fica proibido preparar a refeição para o sábado; c) éruv das fronteiras: a norma segue o preceito estabelecido em Ex 16,29 determinando a medida exata a ser percorrida em dia de sábado. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, pp. 240-241; Cf. WIGODER, R., Érouv. In: DEdJ, pp. 321-323. 91 O tratado עירוב, “erubh” delimita as ações a serem consideradas quando diz respeito a uma cisterna de domínio privado ou público. 92 Rabi Yossef (ben Chalafta) faz parte da quarta geração de tanaítas, do II século. Proveniente de uma destacada família da Babilônia, é citado em inúmeros tratados do Talmud, exceto (Bikkurim, Me’ilá, Tamid, Horayot e Haguigá). Era um dos cinco rabinos refugiados na Babilônia durante a revolta de Bar Kochbá. Com o fim das restrições impostas por Adriano, retorna à Palestina tendo grande destaque nas assembléias de Yabne e Usha. Cf. FRIEMAN, S., Who’s who in the Talmud, London, Jason Aronson, 1995, pp. 400-403. 171 Visando a convivência harmoniosa entre as vizinhanças os proprietários de terras são intimados a contemplar, nos tempos da colheita, não apenas o compatriota israelita, mas na mesma proporção o estrangeiro93. 4.5.3. סוטהSotah 9,1094 Sempre na procura de adequar-se às observações determinadas pela Torá, o tratado “ סוטהSotá” foi redigido no desejo de solucionar casos de infidelidade da esposa, conforme o previsto em Nm 5,11-31. Da confirmação das testemunhas, passando por todo o trâmite processual, até chegar à condenação ou absolvição da mulher, o tratado expõe em detalhes as etapas do processo. . יוחנן כוהן גדול העביר הודית המעשרO Sumo Sacerdote Yojanán aboliu a confissão do dízimo95. אף הוא ביטל את המעורריםTambém acabou com aqueles que . ואת הנוקפיןtinham a missão de despertar e de golpear. . היה פטיש מכה בירושלים,עד ימיו Em seus dias bateu o martelo em Jerusalém. אין אדם צריך לשאול, ובימיוEm seu tempo, não havia necessidade . על הדמאיde perguntar (se um fruto) era dízimo duvidoso. Na dinastia dos Macabeus e Asmoneus, o nome de João Hircano I surge na função de sumo sacerdote e rei em Jerusalém, durante os anos de 134 – 104 a.C. Nesse período acontece o apogeu do estado Asmoneu, em que as decisões desse monarca e líder religioso garantem um período de prosperidade em Jerusalém96. Alguns de seus atos foram registrados nesse tratado da Mishná. Sob seu domínio o governo passa a ter maior liberdade diante da Síria, constantes relações com 93 Cf. Lv 19,9-10. Comparações são feitas considerando possíveis influências do Código de Hamurabi. Cf. DEL VALLE, Carlos (ed.), La Mishna, p. 569. Página eletrônica: http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h35.htm, acessado em 29 de dezembro de 2008. 95 Cf. Dt 26,13. 96 Cf. BASLEZ, M-F., Les Maccabées: guerre coloniale et événement fondateur. In: LMB, 168, 2005, pp.19-23. 94 172 Roma e, às vezes, com o Egito, o que favoreceu o enriquecimento e o fortalecimento da aristocracia, acompanhados por uma relativa crise relacionada à prática devocional por parte dos sacerdotes97. “Os inúmeros grupos de “piedosos” se mostravam receosos ou permaneciam à margem. Davam-se por satisfeitos com a garantia de uma liberdade de culto, e a segurança de poder levar uma vida de acordo com a lei; em relação aos seus males e dificuldades presentes, não confiavam em um solução humana, se não que esperavam uma futura e gloriosa intervenção divina que transformaria o destino do mundo. Os caminhos, algumas vezes tortuosos, seguidos pelos Macabeus, e especialmente por Jónatan, para alcançar seu objetivo naqueles momentos de transtorno e nas disputas deste mundo, é evidente que não tiveram a aprovação dos “piedosos” 98. O versículo apresenta um momento em que os sábios procuram repensar o judaísmo99. A prática devocional, conforme a narrativa de Dt 26,13, deixara, desde o tempo de Esdras, de ser praticada. Apenas os dízimos direcionados aos sacerdotes eram efetuados, ficando o grupo dos levitas alijados de tal direito. Eis o motivo que levou o sumo sacerdote João Hircano a abolir o gesto religioso que direcionava o dízimo aos levitas e aos pobres100. Outros gestos abolidos pelo sumo sacerdote foram o canto cotidiano, entoado pelos levitas, com base no Salmo 44,24: “Desperta! Por que dormes, Senhor?”, com a finalidade de evitar blasfêmias; o uso do bastão para ferir os animais na testa, antes de serem mortos e a proibição de trabalhar em dias 97 Um grupo conhecido como pacifista, mas radicalmente contra os privilégios dos sacerdotes e o elevado grau de enriquecimento da aristocracia, resultado da política expansionista empreendida por João Hircano, se vê representado na reação dos fariseus. Cf. NODET, É., Les pharisiens sont les héritiers des Maccabées. In: LMB, 168, 2005, pp. 24-27; DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios Fariseus, p. 38; PAUL, A. O judaísmo tardio: história política, São Paulo, Paulinas, 1983, pp. 34-35. 98 Cf. NOTH, M., História de Israel, Barcelona, Garriga, 1975, p. 341; HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, Paris, Albin Michel, pp.34-39. Sievers, na tentativa de por um fim ao estereótipo em relação aos fariseus, ressalta doze aspectos históricos, ao demonstrar o alto grau de inserção farisaica na comunidade judaica ao longo de toda a dominação romana. Cf. SIEVERS, J. Who were the pharisees?. In: CHARLESWORTH, J. H. e JOHNS, L. L., Hillel and Jesus: comparative studies of two major religious leadres, Minneapolis, Fortress Press, 1977, pp. 137- 155. 99 A Mishná Sotah, como outras diversas mishnaiot, surgiu durante a época em que as práticas cultuais e jurídicas estavam em franca atividade, na época do Templo. Análises paralelas entre outros textos, recentes – Filon e Josefo – descrevem diferenças no modo de praticar ritos punitivos quando se trata de denuncias de infidelidade matrimonial e punições às mulheres. Sotah, possivelmente, teve sua redação em meados do século II. Cf. ROSEN-ZVI, I., Sotah Tractate. Disponível em: <http://jwa.org/encyclopedia/article/sotah-tractate>. Acesso em: 25 de mar. 2009. 100 Segundo Valle, a recitação do ato de fé, segundo Dt 26,13, era um contra-senso na medida em que não se cumpria mais o preceito, como estabeleceu a Torá. DEL VALLE, C., La Misha, p. 589. 173 semifestivos. Caiu por terra, também, a obrigatoriedade de saber sobre determinada quantidade de alimento pesava ou não o dízimo duvidoso. Pelo texto não se pode afirmar se a recitação sobre os dízimos, com base na prescrição deuteronômica, voltou ou não a ser praticada com toda a devoção conforme manda a tradição, mas é notório que, pelo menos na época de Hircano, o rito religioso veio a ser abandonado por falta de coerência. 4.6. “ סדר נזיקיןSeder Neziqin” As leis versam sobre fatos ligados ao mundo da economia e transação financeira, ao homicídio e meios para estabelecer a corte de justiça, bem como a qualificação das testemunhas. Esta quarta ordem da Mishná apresenta inúmeras leis versando sobre a superação de contendas na esfera pública ou privada. Fatos ligados ao mundo econômico, social e religioso. A ordem, salvo qualquer anacronismo, é um verdadeiro “código civil” na superação de conflitos na esfera econômica e social. Primeira Porta, Porta Média e Porta Última formam um único tratado, que devido à extensão dos 30 capítulos, foi dividido em três secções. Os danos causados por uma pessoa a outra ocupam a Primeira Porta. As questões de ordem econômica ocupam a Porta Média. As exigências e critérios nas relações de compra e venda são assuntos para a Porta Última101. 4.6.1. “ בבא מציעהBava Metzia” 9,13 , המלווה את חברוSe alguém faz empréstimo a seu próximo, לא ימשכננו אלאnão tomará dele nenhum penhor sem o ; בבית דיןconsentimento do tribunal, , ולא ייכנס לביתו ליטול את משכונוnem entrará em sua casa para pegar a prenda, שנאמרuma vez que está escrito: 101 Cf. DEL VALLE, C., La Mishna, p. 635; STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literature talmúdica y midrásica, pp. 174-176. Texto hebraico copiado na página eletrônica: <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h42.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008. 174 ". . . אשר אתה נושה בו, תעמוד; והאיש, "בחוץpermanecerá fora, e o homem a quem .(יא, )דברים כדfizeste o emprestimo virá... (Dt 24,11). , היו לו שני כליםSe (o devedor) tiver dois utensílios, ( נוטל אחדo credor) poderá pegar um, ; ומחזיר אחדporém deixará o outro. , מחזיר את הכר בלילהDeve devolver o colchão à noite . ואת המחרשה ביוםe o arado ao dia. , ואם מתSe morre (o devedor), ( אינו מחזירo credor) não tem que devolvê-lo aos . ליורשיוherdeiros. , רבן שמעון בן גמליאל אומרRabán Simeão ben Gamaliel ensina: אף לעצמו אינו מחזיר אלאinclusive mesmo ao devedor não tem ; עד שלושים יוםque devolvê-lo antes de trinta dias. , משלושים ולהלןA partir de trinta dias poderá vendê-lo . מוכרו בבית דיןcom consentimento do tribunal. , אלמנה בין שהיא ענייהDe uma viúva, seja pobre בין שהיא עשירהou rica, , אין ממשכנין אותהnão se há de pegar nada em penhor, שנאמרporque está escrito: בגד, "לא תחבולnão tomarás em penhor as roupas da .(יז, אלמנה" )דברים כדviúva (Dt 24,17). , החובל את הריחייםSe alguém toma como penhor um ; עובר בלא תעשהmoinho, . וחייב משום שני כליםquebrando um preceito negativo, se torna culpado por razão de pegar dois objetos, שנאמרuma vez que está escrito: " ורכב, "לא יחבול ריחייםnão se tomará em penhor a pedra .(ו, )דברים כדinferior ou superior do moinho. (Dt 24,6) ולא ריחיים ורכב בלבד Não disseram só a pedra inferior e , אמרוsuperior do moinho, אלא כל דבר שעושין בו אוכלtodos estes objetos com o qual se 175 , נפשprepara a comida, שנאמרuma vez que está escrito: " הוא חובל,“ "כי נפשporque seria pegar em prenda uma .(ו, )דברים כדvida”. (Dt 24,6). A בית דין, “corte, tribunal”,102 não era somente um espaço para julgar e decretar respectivas sanções aos infratores por seus crimes praticados, mas uma entidade responsável em elaborar leis para aproximar o homem ao seu Criador, em harmonia com toda a sociedade. Este princípio pode ser verificado considerando o uso dos textos bíblicos feito pelos magistrados. Em sua estrutura, o versículo acena à superação de inúmeros conflitos. Diante de um מלוה, “empréstimo” não há meios de tirar proveito de uma possível situação de dependência do חבר, “próximo”, caso esse tenha solicitado um empréstimo, seja ele em bens ou dinheiro. Compete ao tribunal definir ou não a quantia a ser pega como penhor. Fica também estabelecido que nada o credor tome como propriedade sua com o objetivo de saldar a dívida. Com base na máxima bíblica: “ficarás do lado de fora, e o homem a quem fizeste o empréstimo virá para fora trazer-te o penhor” (Dt 24,11), os sábios criaram uma regulamentação impondo um princípio essencialmente proibitivo. Pela expressão שנאמר, “uma vez que está dito, escrito,” é introduzida uma máxima como resultado de um processo de interpretação determinando que tal prática é absolutamente proibida. Nesse caso, a propriedade, a casa, era compreendida como um espaço inviolável. As relações comerciais não devem ser feitas com base na violação de direitos. Este princípio pode ser notado ao longo do segundo parágrafo do versículo, ao apresentar uma máxima, seguida de um exemplo e novamente uma máxima. A primeira máxima trabalha com uma categoria de valor utilizando uma comparação: שני כלום, “dois utensílios”, נוטל אחד, “pegar um” e ומחזיר אחד, “deixará o outro”. O jogo numérico visa alertar que o devedor precisa de meios para trabalhar e quitar sua dívida. A retenção de todos os seus meios de trabalho seria a legitimação de sua redução ao estado de pobreza permanente. O exemplo מחזיר את הכר בלילה, “deve devolver o colchão à noite” e ואת המחרשה ביום, “e o arado ao dia” 102 O Talmud acena para a existência de vários níveis de tribunais formados por três, vinte e três, setenta e um juízes, no período do segundo templo. Após a destruição de Jerusalém, o sábio tanaíta, Yohanam ben Zakkai, transferiu o sinédrio para Yavneh. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 168. 176 acena novamente para o princípio da não violação de direito. Assim como o colchão é usado para dormir, o arado é visto como instrumento essencial para trabalhar a terra. O exemplo mostra a necessidade do trabalhador de emprestar um determinado objeto, caso este demore a ser devolvido. Não há possibilidade de reter um bem indispensável de alguém. A segunda máxima alerta para a proibição de transferência dos débitos. Não existem meios de transferir para uma geração contratos de dívidas contraídas por uma outra geração. Uma descendência não se vê obrigada a pagar uma dívida por ela não contraída. Entre os litigantes deve haver uma relação comercial na base do direito. As normas estabelecidas demandam uma honestidade sem limites. Nesse prisma deve-se compreender a citação de Raban Simeão ben Gamaliel II103. Esse destacado fariseu, tanaíta da terceira geração, enfatiza o princípio de que, nas relações comerciais, deve-se levar em conta a pessoa e não um desenfreado desejo em acumular, a qualquer custo, o lucro. Ao reter algo do devedor, o credor deverá devolver antes de um período determinado de עד שלושים יום, “até trinta dias”. Após esse tempo ao credor está facultada a possibilidade de vender o objeto que está sob sua responsabilidade, mas não a qualquer preço, causando desta forma maior dano ao devedor. A lei obriga consultar o tribunal a fim de que se faça uma adequada avaliação do patrimônio posto à venda. Como apelo à solidariedade, a narrativa retoma a máxima afirmada em Dt 24,17: “Não farás violar o direito do estrangeiro, do órfão e não tomarás como penhor a roupa da viúva”. É possível perceber o desejo de ter a vida pautada pelas máximas das leis recebidas por Israel e transmitidas pelos sábios. Seguindo o texto bíblico, a Mishná também enfatiza a proteção aos bens pertencentes à viúva. A novidade, e aqui não há como não perceber o desejo de viver sob as ordens de YHWH, está no destaque dado à redação da norma legal, em especificar a condição social: שהיא ענייה, “seja pobre” ou שהיא עשירה, “seja rica”. A observância de uma מצוה, “ordem”, proveniente da Torá e definida pelos sábios como dom de Deus para o bem dos homens104, visa a realização do 103 Este sábio atuou durante a época de grande perseguição e sofrimento imposto pelo regime romano. Teria estado na fortaleza de Bar Kochbá, conseguindo escapar do massacre. Simeão ben Gamaliel foi patriarca em Jerusalém sendo seus contemporâneos: Rabi Meir, Rabi Natan, Rabi Iehudá ben Hai, Rabi Shimon ben Yochai ilustres tanaítas. Seu filho, Rabi Iehudá Hanassi foi o compilador da Mishná. FRIEMAN, S., Who’s who in the Talmud, pp. 278-280. 104 Urbach define a revelação de Deus por meio de ordens, autorizações e interdições. O homem é convidado a encontrar sua plena realização no cumprimento dos preceitos divinos. O ato de 177 homem em relação a Deus e a instauração do bom relacionamento na sociedade. Este é o motivo da observância de uma ordem negativa: “Não tomarás como penhor as duas mós, nem mesmo a mó de cima, pois assim estarias penhorando uma vida” (Dt 24,6). Este é o sentido da expressão: עובר בלא,החובל את הריחיים תעשה, “Se um toma como penhor um moinho quebrando um preceito negativo”. Neste versículo nota-se a busca pela harmonia na convivência social na afirmação: אלא כל דבר שעושין בו אוכל נפש, “todos estes objetos com o qual se prepara a comida”, garantindo, assim, o direito aos bens utilizados no trabalho. Fica evidente que os enunciados fundamentais provenientes dos textos bíblicos foram amplamente explicitados, passo a passo, em todo o corpo da jurisprudência rabínica105. A ética em relação ao próximo deve se pautar pelo cumprimento da justiça. “A regra de ouro de seu comportamento fora dada por Hillel, cerca de uma geração antes do nascimento de Cristo, como evolução progressiva de Levítico 19,18.34: “O que não desejas para ti, não o faças a teu próximo”. O conceito de próximo não se limita aos israelitas. Implica todos os humanos e, de certa forma, toda a Criação. Segundo Rabi Iehoshua ben Chananiá, também “os justos dos povos do mundo”, em outras palavras, os justos não-israelitas, participarão do mundo futuro, do mundo por vir (Olam habá) ao lado de Israel. Rabi Meir dizia: “Um não-judeu que segue a Torá é semelhante ao sumo sacerdote”106 4.6.2. “ אבותAvot”, 5,9 O tratado procura justificar a transmissão dos ensinamentos da Torá, começando por Moisés até o último tanaíta, Rabi Yehudah Hanassi, editor da Mishná, no século II d.C. As máximas sapiênciais são de autoria de vários sábios e provenientes do III a.C.107. בארבעה פרקים הדבר מרובהEm quatro momentos a peste aumenta: transgressão nada mais é do que a diminuição da personalidade humana. O gesto de cumprir um mandamento outorga ao realizador o poder daquele que o ordenou: Deus. Um amplo estudo sobre o tema está no capitulo treze da obra. Cf. URBACH, E. E., Les sages d’Israël:conceptions et croyances des maîtres du Talmud, pp.229-415. 105 Por jurisprudência entenda-se o desenvolvimento do conceito ֲה ָל ָכה, “Halakhah”, formado pelos mandamentos vindos da Torá, passando pela lei oral e pelo desenvolvimento dos ensinamentos dos sábios. Cf. WIGODER, G., Jurisprudence rabbinique. In: DEdJ, pp. 412-419. 106 DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 97. 107 Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 31. Conforme edição eletrônica: <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h49.htm> . Acessado em dez. de 2008. 178 , ובשביעית, ברביעיתno ano quarto, no ano sétimo, ובמוצאי החג,ובמוצאי שביעית ao final do ano sétimo e ao final da festa : שבכל שנהdos tabernáculos, todos os anos. , ברביעיתNo ano quarto מפני מעשר עניa causa do dízimo108 dos pobres ; שבשלישיתdo ano terceiro; מפני מעשר, בשביעיתno ano sétimo, a causa do dízimo dos ; עני שבשישיתpobres do ano sexto; , במוצאי שביעיתao final do sétimo ano, ; מפני פירות שביעיתa causa dos produtos do ano sétimo; , במוצאי החג שבכל שנה ושנהao final da festa anual dos tabernáculos, מפני גזל מתנותa causa do roubo dos dons109 ענייםdos pobres. A expressão דֶּ ֶבר, “pestilência, peste” é utilizada para expressar as inúmeras ocorrências em que o não cumprimento de uma מצוה, “mandamento, ordem” acontece. Procura-se enfatizar um desvio feito de modo intencional. O descumprimento da מצוהé violado propositadamente. Trata-se de um מצוה הבאה בעבירה, “um mandamento que foi diretamente transgredido”110. Pelo uso do conceito הדבר מרובה, “a peste aumenta” quatro tipos de violações ocorrem com certa frequência, comprovada pela referência de tempo שבכל שנה, “todos os anos”. Nota-se um modo elucidativo ao indicar primeiramente as quatro violações, na seguinte ordem: ברביעית, “no ano quarto”; ובשביעית, “no ano sétimo”; ובמוצאי שביעית, “ao final do ano sétimo” e ובמוצאי החג, “e ao final da festa dos tabernáculos”. Listadas as violações, a Mishná passa a explicar os motivos pelos quais ocorrem as violações. Pode-se identificar a seguinte estrutura na composição: Ano quarto __________________________ dízimo dos pobres Ano sétimo __________________________ dízimo dos pobres Final do ano sétimo ____________________ produtos do sétimo ano Final da festa dos Tabernáculos __________ roubo dos dons 108 Cf. Dt 24,18 Cf. Dt 14,28-29. 110 Cf. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 222. 109 179 Das quatro violações elencadas, três ocorrem ao longo dos sete anos que compõem o período sabático. ברביעי מפני מעשר עני, “No ano quarto, a causa do dízimo dos pobres” deixa de ser realizada. A narrativa bíblica determina: “ao final de três anos, tu farás tirar a décima parte de toda a tua colheita deste ano e farás disponibilizar nos teus portões” (Dt 14,28). Essa quantia especificada pertenceria aos pobres. O dízimo trienal devia ser entregue diretamente aos pobres, aos socialmente necessitados. Eis uma maneira da jurisprudência rabínica de contemplar a dádiva proveniente de Deus. A segunda violação continua a ressaltar o מעשר עני, “dízimo dos pobres” realizado a cada triênio. No sétimo ano deveria ser entregue aos pobres a quantia separada do dízimo do sexto ano. Há um tempo fixado para disponibilizar aos pobres seus dízimos. Eles não têm outros meios capazes de garantir sua sobrevivência. Esta fixação fica evidente ao relacionar בשביעית מפני מעשר, “no sétimo ano, a causa do dízimo dos pobres” com o período שבשישית, “do ano sexto”. Este dízimo era sonegado duas vezes num período de sete anos. A solidariedade para com os grupos dependentes, como meio de expressar a dádiva libertadora recebida por seu Deus, não acontecia, por intencional negligencia (Dt 14,29). O conjunto das normas deuteronômicas apresenta uma regulamentação para circunstâncias bem específicas. Há clareza sobre o que fazer ou não fazer diante de diferentes realidades e ambientes envolvendo a sociedade judaica. Neste prisma, a sonegação dos produtos do sétimo ano é a terceira violação denunciada na declaração: מפני פירות שביעית,במוצאי שביעית, “ao final do ano sétimo, a causa dos produtos do ano sétimo”. Trata-se, literalmente de abandonar a lavoura, bem como os frutos, os alimentos nela cultivados, com a chegada do sétimo ano, tempo jubilar111. A compreensão da importância do ano sabático, bem como o teor da crítica, fica elucidada comparando com a norma estabelecida sobre o ano sabático: “Se alguém tem frutos do ano sétimo e chega o tempo da remoção, tem que distribuí-los como alimento para três refeições ao máximo por pessoa. Os pobres podem comer depois que tenha começado o tempo da remoção, porém os ricos, não. Tal é a opinião de Rabi Yehuda. Rabi Yosé ensina: tanto o pobre como o rico podem comer deles depois que tenha chegado o tempo da remoção” 112. 111 Cf. Ex 23,10-11; Lv 25,1s.; Dt 25,1s. M. Shebi 9,8. As normas sobre o que fazer com os produtos da lavoura quando da chegada do Ano Jubilar formam o tratado Shebiit “Ano Sabático”. 112 180 Fica evidente que o gesto de disponibilizar os produtos do campo no tempo sabático foi negligenciado. Ocorre, numa falta contra as ordens de Deus e um total desrespeito pelos direitos legítimos dos pobres. A negligência é denunciada. A Mishná não deixa de lado as responsabilidades dos israelitas, que sofrerão diante de sua sonegação. Uma quarta violação, intitulada de גזל, “roubo”, acontecia com a chegada das festas agrícolas. Páscoa, Semanas e Sukkot eram as três importantes festas de peregrinação marcadas por eventos históricos atrelados à realidade social da comunidade. Sukkot113 é o cenário escolhido para a denúncia na transgressão do mandamento que determina deixar no campo a quantia dos pobres. Na estação do outono aconteciam as colheitas no campo e nessa ocasião deveria, com o máximo de fidedignidade, ser abandonada, na lavoura, a décima parte, para ser consumida pelos pobres até que esses se fartassem (Lv 19,10; Dt 14,28-29). Chegou-se ao nível da banalização o dever de disponibilizar parte dos frutos da terra aos grupos sociais em risco de sobrevivência. Diante disso, a sonegação é compreendida como o meio, por excelência, de favorecer o aumento da peste. Ao codificar os quatro meios, bem como a época em que הדבר מרובה, “a peste aumenta”, os sábios acenam não somente para a chegada do juízo divino, mas para a diminuição da dignidade humana. Ao transgredir um mandamento divino, o homem perde sua referência divina, além de possibilitar o aumento da pobreza no interior da comunidade. 4.7. Conclusão Os sábios não são em nada flexíveis diante das normas oriundas da Torá. Os casuísmos são cuidadosamente respondidos com a máxima preocupação de não violar nenhum preceito, nenhuma vontade expressa por Deus. Os preceitos não são compreendidos como uma regra, pura e simplesmente, mas o único meio pelo qual a humanidade é capaz de chegar ao grau de santidade. 113 A festa é celebrada entre a última semana de setembro e a primeira quinzena de outubro, correspondendo ao dia 15 de Tishri, pelo calendário lunar, tendo a duração de sete dias. Relembra os anos errantes vividos por Israel em busca da terra prometida, quando a comunidade residiu em cabanas (Lv 23,42-43). 181 Na esfera da ética social, considerando as denúncias pelo não comprimento das práticas religiosas referentes à época da colheita114, ao dízimo115, à chegada do ano sabático116, às respectivas leituras bíblicas durante o período das festividades117, às anulações dos votos feitos por homens e mulheres em seus tribunais118, frente às situações de divórcio119, em ocasiões em que mulheres venham a ser denunciadas pela prática de adultério120, aos conflitos diante de empréstimos em dinheiro ou em trabalhos não quitados121 ou em meio a conselhos, vindos dos mais diversos círculos sapienciais122, são meios para a prática da justiça. Justiça essa vivenciada na relação com o pobre e sua situação de marginalidade. Tal gesto fica explicado nas afirmações de Miranda e Malca: “Cientes das injustiças do mundo em que viviam, os fariseus manifestavam uma fé indestrutível nos impulsos humanísticos do coração humano, ao tempo em que eram realistas e lúcidos. Julgaram acertado formular a busca pela justiça (tzedaká), a prática da caridade e da benevolência numa obrigação religiosa. Sem a pressão da lei religiosa, muitos poderiam desviar seu olhar dos pobres, das injustiças e dos necessitados. Como os salmistas, os profetas e os sábios, os fariseus serão unânimes em apresentar a justiça como uma exigência da vida social e como fruto de uma autentica relação com Deus”123. O tema da defesa dos pobres parece, não poucas vezes, violado em momentos cruciais, ao mesmo tempo em que ocorre a busca em recompor as oportunidades perdidas na relação com o próximo e com Deus. A pobreza não é compreendida como algo natural. Natural é a fé em Deus que criou tudo e tudo disponibilizou livremente à humanidade. Esta, por sua vez tem a função de mero administrador dos bens recebidos. No conjunto dos doze textos da Mishná nota-se a presença de relações contratuais que são, em bom número, de cunho religioso. Por religioso entenda-se a origem que levou os sábios a elaborarem uma determinada norma. Só existe a preocupação em disponibilizar os produtos no campo porque existe um preceito escrito da parte da divindade: dar garantias de que os pobres terão meios para 114 M. Pea. 4,3; 6,4; 7,7. M. Dem. 1,2; MSh 5,10. 116 M. Shebi. 7,1. 117 M. Meg. 2,5. 118 M. Ned. 11,3. 119 M. Git. 5,8. 120 M. Sot. 9,10. 121 M. BM. 9,13. 122 M. Abht. 5,9. 123 DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 93. 115 182 sobreviver. Eis o projeto divino. Por meio dos textos, compreende-se o real sentido da experiência religiosa. Experiência essa sempre vinculada ao mundo real. É na busca de superação dos conflitos, ocasionados pelo não cumprimento de uma máxima divina que se compreende a existência do Deus que tudo criou. Diante da enorme quantidade de bens arrecadados a cada ano, fica evidente que os pobres encontram garantia de subsistência. Eis o aspecto do enfoque social existente nas leis Mishnáicas. Há também certos preceitos de ordem contratual. Podem ser classificadas as normas vigentes nas relações financeiras ou que sejam realizadas exigindo previamente algum tipo de contrato entre as partes envolvidas124. Verifica-se que os contratos, mais do que meras ideias, sustentam a equidade e visam estabelecer e perpetuar uma convivência de paz entre os membros de um determinado grupo social. Embora em menor grupo, há uma norma de cunho sapiencial, como pode ser notado nas denúncias contra os quatro tipos de sonegação dos dízimos125. Denúncias, diante de um gesto intencional de não cumprir determinada ordem, refletem a preocupação, sempre presente, de cumprir os preceitos da Torá, bem como, o grau de sensibilidade pela equiparação social presente nos ensinamentos dos sábios de Israel. Fica elucidado um princípio de causalidade: o surgimento dos grupos sociais desfavorecidos revela o grau de apego de todos os preceitos de Deus. Os apelos dos sábios seguem na direção de colocar a pessoa diante de sua divindade. O uso da expressão: “a causa pelo roubo dos dons dos pobres” (Ab 5,9) é, por demais, significativa. Ela não só acena para os bens que fazem parte natural da “causa” dos pobres, como, com toda teimosia, apela contra aqueles que não medem limites para desviar o que é de direito dos pobres. O “roubo dos pobres” acontece. Mais do que uma mera força de expressão de linguagem, os sábios procuram restabelecer o grau de sintonia entre o contribuinte e o ser de Deus. Afinal, somente o Senhor dá garantia de segurança e prosperidade. 124 125 Cf. BM 9,13; Sot 9,10; Git 5,8 e Ned 11,3. Cf. Ab 5,9. 183 5 A trilogia social nos textos deuteronômicos e mishnáicos Neste capítulo, são analisados os doze versículos da Mishná, divididos em três blocos. Com base na trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva, procura-se analisar os dois universos literários. Tal proposta elucida, ainda mais, o objeto prioritário desta tese. No esforço comparativo entre as narrativas, somente as explícitas referências aos grupos sociais marginais serão analisadas seguindo a ordem numérica do livro do Deuteronômio. Com base nesse critério, forma-se a seguinte ordem na apresentação: 1) O dever de disponibilizar os dízimos. Dt 26,12-15 comparado aos versículos: Dem 1,2; Shebi 7,1; MSh 5,10; Meg 2,5 e Sot 9,10; 2) O direito dos pobres pela respiga. Dt 24,19-21 comparado com os versículos: Pea 4,3; 6,4; 7,7; Ned 11,3; Git 5,8; BM 9,13; 3) A violação do direito dos pobres. Dt 14,28-29 comparado ao versículo Ab 5,9. A escolha dos versículos da Mishná foi feita considerando a similaridade do respectivo texto bíblico que oferece fundamentação a uma respectiva ordem. 5.1. O dever de disponibilizar os dízimos Dt 26,131 13 Dirás diante de YHWH, teu Deus: Dem 1,22 a Aos produtos do dízimo duvidoso separei o que é consagrado da minha b casa c não se aplica a lei do quinto nem da remoção3. e também o dei para o levita, para o 1 Na comparação entre as narrativas, serão considerados somente os versículos que dão sustentação argumentativa à norma estabelecida na Mishná, uma vez que a perícope, em todo o seu contexto já foi analisada na segunda parte do trabalho. 2 As letras dividindo o verso da Mishná são para simples conferência, uma vez que essa subdivisão inexiste na narrativa original. 3 Cf. Dt 26,13. 184 estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus mandamentos e não esqueci. 14 Não comi disto [dízimo] no meu luto, d e não queimei dele [dízimo] em estado e de impureza, f e não dei dele [dízimo] para um morto. tirá-glos dali. Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus. h Eu fiz conforme me mandaste. pequena iquantidade, (não importa); j Podem ser comidos por um que está de luto4. Pode-se introduzir em Jerusalém e Se, no caminho, se estraga uma pode-se dar a uma pessoa não instruída, k mas haverá de comer o equivalente. l (O preço do resgate) pode ser convertido m(em dinheiro) de uso comum: n prata por prata, dinheiro por cobre, o prata por cobre e cobre por frutos, p contanto que alguém volte para resgatar qos frutos. r Esta é a opinião de R. Meir. s Os sábios afirmam que os frutos tem que tser levados a Jerusalém e ali, devem ser uconsumidos . A semelhança entre as narrativas está em apresentar aspectos em relação ao dízimo. Nota-se: 1) os textos destacam a elaboração de normas para disponibilizar certas quantias do dízimo. Dt estabelece a cifra “da décima parte” (v. 12); 2) o tratado reconhece as leis envolvendo o dízimo, mas ressalta que, 4 Cf. Dt 26,14. 185 sobre o dízimo de procedência duvidosa, rege uma norma de aspecto negativo (Dem 1,2a). As duas narrativas expressam a importância de separar certa quantia a ser disponibilizada a um determinado grupo de pessoas. As diferenças são significativas. O Dt estabelece uma lei diante do dízimo de procedência certa, reconhecido como puro, pela lei. Ao passo que na narrativa da Mishná a lei tem um aspecto negativo, pois apresenta normas a serem praticadas diante de uma soma de procedência duvidosa. Não se tem certeza da origem e do processo utilizado na aquisição de determinada mercadoria. Nessa condição a soma pode ser consumida em qualquer lugar e por alguém não judaíta. É possivel também ser trocada por espécie em dinheiro, desde que seja uma quantia equivalente. Esquematicamente: Dt 26,12-15 Dem 1,2 Consagrado Impuro pobres judaítas pobres não judaítas tuas portas/casas Jerusalém ou em qq. lugar motivação cumprir o mandamento -------------- ordem proveniente do Senhor estabelecida por R. Meir Dízimo Destinatários local de consumo Percebe-se a substituição em espécie monetária referente à quantia a ser obrigatoriamente consumida por alguém não judaíta. Nota-se que esta foi uma maneira de resolver sobre a utilização do dízimo proveniente do ָאָרץ ֶ “ עַם הpovo da terra”. A lei expressa em Dem 1,2 tem como alvo este grupo social. Sobre esta quantia não pesa nenhuma obrigatoriedade da parte do Senhor, por isso, existe a possibilidade de trocar a quantia do dízimo por algo equivalente em espécie. A regra estabelecida por R. Meir atualiza um preceito negativo diante de determinada quantia, desde que esta seja relativa ao dízimo. Por “povo da terra” é justo ressaltar que a compreensão soa diferente quando comparado ao conceito predominante do AT. Escrito ao longo do segundo século da nossa era, o tratado Dem reflete as relações entre as comunidades judaítas instaladas nas regiões de Judá e Galiléia, em meados do século II. Nesse ambiente adverso à soberania dos fariseus, deve ser compreendida a relação das comunidades religiosas com pessoas ou grupos sociais alheios aos seus costumes ou traços culturais. 186 A motivação religiosa pode ser vista um alto grau de observância e apego às leis bíblicas. O controle de todo o trabalho e produto do solo é regido pelas normas estabelecidas pela Torá, e os sábios a veem como regra, são apenas controladora dos trabalhos agrícolas, mas como meio de agradar a YHWH. O possuidor de uma determinada quantia a ser disponibilizada tem a obrigatoriedade de saber a procedência do produto. O cumprimento dessa certeza é algo intrínseco em Deuteronômio (cf. 26,13-14), e sofreu um aspecto minucioso na redação do tratado Dem 1,2. O que está em questão é não burlar uma lei divina. Para isso os sábios são lúcidos ao declarar que “aos produtos do dízimo duvidoso não se aplica a lei do quinto nem da remoção” (cf Dem 1,2a-c). Afinal, o dever de agradar e receber a bênção de YHWH é a finalidade de todo esforço da comunidade. 5.1.1. Produtos disponibilizados no sétimo ano. Dt 26,13 Shebi 7,7 a Em relação ao ano sétimo se estabeleceu buma regra geral: tudo o que é comestível cpara o homem ou para os animais, as despécies dos tingidores e o que não se fconserva na 13 Dirás diante de YHWH, teu Deus: terra, separei o que é consagrado da minha gficam sujeitos às regras do ano sétimo, h casa como também o dinheiro obtido em sua ivenda. Fica sujeito à lei da e também o dei para o levita, para o remoção5, estrangeiro, para o órfão e para a viúva, je mesmo o dinheiro obtido em sua conforme teu mandamento, que me venda. mandaste. Não transgredi nenhum dos teus kQuais são? As folhas de ervas mandamentos silvestres, las folhas de menta, a e não esqueci. escarola, os alhos, a mflor - de- leque e a flor-de-leite. n E as ervas para o gado? As sarças e os o espinhos. Espécies que usam os p tingidores? q Os brotos de anil e do falso açafrão. r Todos eles estão submetidos à lei do 5 Cf. Dt 26,13. 187 s sétimo ano, e também o dinheiro obtido tem sua venda. Estão sujeitos também à ulei da remoção, o mesmo que o dinheiro vobtido em sua venda. A aproximação entre as perícopes ocorre no uso do verbo ָבּ ָער, “remover, separar”, utilizado na forma piel, em Dt 26,13: tyIB;h;-!mi vd<Qåoh; yTir>[ô:Bi, “separei o que é consagrado da minha casa” (v.13) e, a expressão יש לו ביעור, “ficam sujeitos a lei da remoção”, em Shebi (v.c). As demais afirmações, em ambos os textos, seguem independentes. Nos dois textos, prevalece um longo discurso relativo ao que deve ser disponibilizado aos pobres. O texto de Shebi apresenta um aspecto explicativo diante do que deve ou não ser disponibilizado com a chegada do ano jubilar e do dízimo. A narrativa não discorre em generalidades. Visa prestar um esclarecimento ao citar espécies de vegetais sobre os quais pesam a lei do ano jubilar. São apresentados esclarecimentos de bens sobre os quais recaem a lei do sétimo ano e outras duas, sobre os produtos sujeitos à lei do dízimo. Em primeiro lugar, acena para todas as espécies de comestíveis, utilizados pelos homens e úteis aos animais. Sob esses bens recae a lei do sétimo ano. Um segundo esclarecimento visa as espécies de ervas naturais utilizadas para o tingir das roupas. Um outro esclarecimento ressalta as espécies de plantas que não se conservam sob a terra. Fica também disponibilizada toda e qualquer quantia em dinheiro recebida com a venda dos respectivos produtos. A perícope obedece à seguinte estrutura, nessa primeira parte: A – No sétimo ano devem ser disponibilizados: a) Produtos comestíveis (homem e animal) b) Produtos utilizados pelos tintureiros c) Produtos que não se conservam na terra. Uma segunda parte da narrativa de Shebi acentua a obrigatoriedade do dízimo de vários produtos colhidos, serem destinados aos pobres. O texto, em tom elucidativo, parece querer impedir possíveis fraudes de sonegação ao apresentar a frase: quais são os produtos? E os sábios, por sua vez, demonstram um forte rigor e apego às normas estabelecidas no Dt. São os seguintes produtos: 188 B – Produtos sujeitos à remoção: a) Tipos de ervas silvetres b) Ervas para os animais c) Ervas utilizados pelos tintureiros A clareza e objetividade marcam o texto da Mishná, impregnada de um aspecto elucidativo, esclarecedor. Por duas vezes, afirma-se que esses produtos estão sujeitos à lei do dizimo e do ano jubilar. Mesmo que tal quantia venha a ser colocada a venda, o dinheiro recebido será integralmente disponibilizado para os pobres. Está em jogo a felicidade dos pobres e, para que isso aconteça, é preciso compreender e radicalizar a partilha dos bens. Eis algo esclarecedor, quando comparado às normas sobre o ano jubilar, expostas nos textos bíblicos. Não é por outro motivo que duas vezes o texto recorre à expressão ולדמיו שביעית, “como o dinheiro da venda do sétimo ano” (v. b+f ), e em outras duas à expressão ולדמיו ביעור, “e mesmo o dinheiro obtido de venda da remoção” (v. c+g). A narrativa de Dt 26,13, quando comparada ao texto expresso em Shebi 7,1, apresenta leis, num contexto mais geral, de modo mais amplo. Apresenta um arcabouço legal menos contextualizado, o que não poderia ser diferente, uma vez que a Mishná procura meios para colocar em prática os preceitos expostos no Dt. A comparação deixa transparecer que Dt 26,12-15 trata de uma lei que se impõe diante do resultado final da empreitada, da colheita. Tal detalhe pode ser verificado diante da expressão: “Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte de tua colheita, no terceiro ano” (v. 12). A linguagem é litúrgica e acena para uma profissão de fé diante de Deus: “Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva” (v. 13). Outro detalhe que realça o cenário litúrgico é a declaração de inocência, ainda diante de Deus, no uso da partícula de negação ֹלא, “não”, acompanhada de cinco respectivos verbos, que enaltecem o grau de perfeição do fiel diante de Deus: yTir>b:['-al{, “não transgredi”, yTix.k'v' al{w>, “e não esqueci”, yTil.k;a'-al{, “não comi”, yTir>[:bi-al{w>, “e não queimei” e yTit;n"-al{w>, “e não dei”. O aspecto litúrgico continua ao longo do resto do versículo exaltando o grau de inocência diante de Deus: “eu ouvi a voz de YHWH...eu fiz conforme mandaste” (v.14) e conclui com a 189 apresentação de uma oração conclamando as bênçãos divinas sobre o povo de Israel, sobre o solo cultivado e certeza de prosperidade (v.15). A comparação realça o grau de comprometimento e inovação empreendido pelos sábios da Mishná. Há que ressaltar que para elaborar as normas referentes ao ano jubilar e ao dízimo os sábios ampararam-se num texto deuteronômico de cunho eminentemente litúrgico, fortemente confessional. Eles retrabalharam o texto de tal forma que chegaram a ampliá-lo, diga-se de passagem, com coragem, somando leis regulamentadoras do ano sétimo inexistentes em Dt 26,12-15, acarretando maior legitimidade às suas propostas. 5.1.2. O dízimo dos pobres e a declaração no dia festivo, por excelência Dt 26,13 a MSh 5,10 Na tarde do último dia festivo b 13 Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa se faz a confissão6. Qual era a fórmula da cconfissão? d e Separei o que é consagrado da minha casa (Dt 26,13), f isto é, o segundo dízimo e os frutos das g árvores do quarto ano. dDei-o para o h e também o dei para o levita, para o i levita (Dt 26,13) isto é, o dízimo do levita. Também fiz outra entrega (Dt 26,13) j a saber, a oferta do dízimo, k Para o estrangeiro, para o órfão e para estrangeiro, para o órfão e para a viúva, a lviúva (Dt 26,13), (fiz a entrega) do conforme teu mandamento, que me m dízimo dos pobres, o fruto da respiga, mandaste. o nfruto esquecido e o do limite (de teu o campo); ainda que isto não invalide a Não transgredi mandamentos e não esqueci. 6 Cf. 26,13. nenhum dos teus p confissão. gDa minha casa, isto é, a q massa (devida ao sacerdote). 190 A narrativa de MSh 5,10 é redigida com base nas afirmações presentes em Dt 26,13, o que lhe oferece um alto grau de antiguidade, remetendo-a ao período da assembléia de Iavne7. São citadas as três espécies de dízimo a serem disponibilizados, cada qual, a seu tempo: a) o segundo dízimo recolhido no ano um, dois, quatro e cinco, levado para ser consumido em Jerusalém (v.c); b) o dízimo do levita, conhecido como o primeiro dízimo (v.d); c) o dízimo dos pobres (v.f). MSh acena para a tarde do último dia festivo como momento de fazer a confissão de fé. Ou seja, de declarar diante da presença de Deus a inocência. Esse dia é chamado de יו۟ם טו۟ב, a saber, a tarde do último dia da grande festividade que é “dia da Páscoa” (v.a), com a duração de sete dias. O conteúdo apresentado tem como eixo Dt 26,13. Em torno da frase: “separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus mandamentos e não esqueci” é construído MSh 5,10, que procura enquadrar neste texto litúrgico, os três tipos de dízimos que eram acompanhados pela recitação de Dt 26,13. Outro detalhe similar, na aproximação dos textos, são as repetições da trilogia social. Ambas apresentam referências à trilogia social. Em MSh ocorre uma separação. Ao descrever a entrega do dizimo primeiro, destinado ao levita, a frase cita somente a primeira parte na narrativa. Isto é: “o dei para o levita”, pois ressalva o dízimo levita. Ao disponibilizar o dízimo “para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva”, a narrativa chama a atenção para o fato de que está se referindo ao dízimo disponibilizado para a garantia de sustentabilidade dos pobres. Aliás, a ressalva está no próprio texto na afirmação: שׂר ָענִי ַ ַמ ְע, “dízimo dos pobres”. A esses foi dada a liberdade da respiga e de colher os frutos esquecidos no campo. No tocante às diferenças, Dt 26,13 carece de exatidão. Por ser uma máxima, provoca certa imprecisão quando comparado à Mishná. Dt afirma: “Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte” (v.12). MS precisa a época de oferecer os dízimos ao afirmar: “Na tarde do último dia faz a confissão” 7 Ao analisar as etapas redacionais impostas à Mishná, Manns argumenta que “as mishnaiot que são ligadas aos versos da Escritura são antigas”. Ele toma como exemplo o texto em análise: MSh 5,10. Cf. MANNS, F., Pour lire la Mishna, p. 152. 191 (v.a). A trilogia social é citada duas vezes, por completo, em Dt (vv. 12, 13) e não é dividida em referências como acontece em MSh (vv. d+f ). Dt não faz nenhuma lembrança à obrigatoriedade de disponibilizar o ַח ָלּה, “massa”, dom dos fiéis entregue aos sacerdotes, como faz MSh (v.G). Essa espécie de massa de fazer pão que era ofertada aos sacerdotes, com base na narrativa de Nm 15,20: “Como primícias da vossa massa separareis um pão; fareis esta separação como aquela que a fez com a eira”8. Como em Shebi 7,7 a narrativa de MSh 5,10, embora sendo muito antiga, assemelhando-se em muito ao texto do Dt, guarda ligeiras diferenças e acentua, embora partindo de um texto com fortes aspectos cúlticos, a obrigatoriedade para com todos os tipos de dízimos. Nota-se um esforço da comunidade religiosa em aproximar ao máximo, sua experiência religiosa com os preceitos das Escrituras. 5.1.3. O dízimo lembrado nas ocasiões festivas Dt 26,12-15 12 Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte de tua colheita, no terceiro ano, a décima parte, darás para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. Eles comerão, em tuas portas, fartar-seão. Meg 2,5 a Todo dia é apto para a leitura do rolo, para recitar o hino de louvor, c para o toque do shofar, d para pegar o ramo, e para a oração adicional, f para os sacrifícios adicionais, g para a confissão no sacrifício dos touros, b 13 Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha hpara a confissão com motivo do casa e também o dei para o levita, para dízimo9, o estrangeiro, para o órfão e para a ipara a confissão no Dia da Expiação, j viúva, para a imposição das mãos k conforme teu mandamento, que me para sacrificar, l mandaste. para agitar, m Não transgredi nenhum dos teus para colher um punhado, n mandamentos para queimar o incenso, o e não esqueci. para torcer a cabeça das aves, 8 Ao comentar o tratado Massa () ַח ָלּה, Del Valle acena à atualidade dessa prática. Ainda hoje se separa a quantia do ַח ָלּה, “massa”, mas por não haver quem seja digno de comê-la, tal quantia é queimada. Cf. DEL VALLE, La Misna, p. 185. 9 Cf. Dt 26,13-15. 192 14 Não comi disto [dízimo] no meu luto, ppara receber o sangue, e não queimei dele [dízimo] em estado qpara a aspersão, r de impureza, para fornecer a água à suspeita e não dei dele [dízimo] para um morto. adúltera, spara desnucar o garrote t Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus. para purificar o leproso. Eu fiz conforme me mandaste. 15 Dirige teu olhar desde tua santa morada dos céus e abençoa o teu povo, Israel, e o solo que deste para nós. conforme prestaste juramento para nossos pais, terra que destila leite e mel A “ ַחג פּוּ ִריםFesta de Purim” sustenta a referência bíblica. Nela se encontra motivação para existir, seguindo os registros do livro de Ester10. São nas ocasiões festivas que o povo expressa suas mais íntimas e profundas convicções sociais e religiosas. A festa começou a ser celebrada no dia 14 do mês de Adar; somente no século II d.C., após receber um tratado na redação da Mishná, invocando a vitória dos hebreus, sobre os inimigos persas e, como Deus pode manifestar sua presença diante dos revezes da vida11. No tempo dos Amoneus a festa era conhecida como “o dia de Mardoqueu” (2Mc 15,36). A experiência da diáspora, acelerada pela guerra contra as tropas romanas (66-73), pôs em risco a perda total das tradições sapienciais e religiosas da comunidade. A devastação final viria, seis décadas mais tarde, com o fracasso do levante liderado por Bar Kochba (132-135). Essa última experiência, bélica arruinou profundamente toda a região da Judéia. Os lastros do fracasso estão na destruição da população, no desaparecimento de grandes escolas rabínicas e na edificação do templo em louvor a Júpiter Capitolino, na antiga cidade divina Jerusalém12. Tais referências históricas favorecem a compreensão do estilo redacional presente em Meg 2,5. Ocorre um aspecto diretivo no uso dos verbos no infinitivo que relembra inúmeras atividades sociais e religiosas: Festa do Ano Novo (v.c), Festa dos Tabernáculos (v.d), os ritos adicionais pela ocasião dos sábados festivos (v.c), ritos de purificação dos sacerdotes e do povo (v.g), ritos de remissão dos pecados (v.s). As citações encontram fundamentos nos textos 10 Est 9,20-28. Cf. Encyclopaedia Judaica, V. XIII, pp. 1390-1391. 12 Cf. GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel, pp. 295-303. 11 193 bíblicos, e ao retomá-las a Mishná lança as bases fundamentais para a vida social da comunidade judaíta. Os mestres rabinos crêem que há somente um meio para agradar a Deus: conhecê-lo. Ensinar era uma obrigação dos sábios. Para isso são indispensáveis o estudo e as obras de caridade, como acenam de Miranda e Malca: “No seio do povo permanentemente tentado pelo politeísmo, o grande mérito dos fariseus, por sua ação educativa e seus exemplos pessoais, foi manter o povo numa severa fidelidade ao Deus único. Esse sistema educacional fez com que o povo judeu tivesse um nível religioso e moral bem mais elevado do que o das populações vizinhas”13. A similaridade com o texto de Dt 26,12-15 poderia ser nula, se não fosse a inclusão da frase “para a confissão com motivo do dízimo” (cf. Meg 2,5h). Com exceção dessa frase, os dois textos correm em direção antagônicas. As inúmeras festas e orações elencadas em seus próprios tempos, não deixam de ser uma novidade expressa pelos sábios. Trata-se de um convite “lembrete” diante de um círculo litúrgico sobrecarregado de símbolos e eventos. Por último ocorre a lembrança da confissão do dízimo, citada como uma obrigatoriedade trivial na vida de um religioso. Vale notar que os redatores da Mishná embora longe do templo outrora destruído (70 d.C), guardam a memória de uma prática religiosa fortemente revestida de um gesto social. A oração era feita no exato momento em que se depositava, ou deliberava a quantia estabelecida para os pobres. Eis o mérito expresso pela Mishná: a destruição do templo não serve de álibi para descumprir um mandamento de Deus voltado para amparo dos pobres. 5.1.4. A confissão do dízimo abolida pelo Sumo Sacerdote Dt 26,13 Sot 9,10 13 Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, 13 a O Sumo Sacerdote Yojanán DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Os sábios fariseus, p92. 194 conforme teu mandamento, que me b mandaste. aboliu a confissão do dízimo14. Não transgredi nenhum dos teus c mandamentos Também acabou com aqueles que e não esqueci. tinham da missão de despertar e de golpear. e Em seus dias bateu o martelo em f Jerusalém. g Em seu tempo, não havia necessidade de hperguntar (se um fruto) era dízimo i duvidoso. O que facilita a comparação entre as duas narrativas é a nítida referência à oração “separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me mandaste”, baseada em Dt 26,13, proferida no momento de entrega do dízimo, como estabelecia a lei. A recitação servia como uma espécie de “atestado de boa procedência” do dízimo oferecido. Conheciam-se prescrições para se evitar transações com produtos sobre os quais pesa a suspeita do dízimo duvidoso. Oportuna a referência à descrição encontrada no livro de Tobias15, sobre a prática em vigor, em meados do início do século II a.C. Apesar do aspecto da canonicidade empreendido ao livro, nota-se um peso forte dado à centralização, em Jerusalém, referente ao dízimo. Tal observância teria ocorrido logo após a queda do segundo Templo. A quantia, anteriormente recolhida pelos levitas nas colônias, nos lugares onde se davam as próprias produções, passa a ser pagável num lugar central: Jerusalém16. Possivelmente, nem todas as normas tiveram peso de lei pétrea e, por isso, ao longo dos anos sofreram mudanças ou deixaram de ser praticadas ou se tornaram insignificantes para a comunidade religiosa. Um exemplo de mudança na tradição e costume foi a obrigação da prática das atividades impostas por João 14 Cf. Dt 26,13. Cf. Tb 1,6-8. 16 Cf. SCHMIDT, F., O Pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, São Paulo, Loyola, 1998, pp. 189-190. 15 195 Hircano17 no modo de recolher o dízimo18. A prática de pesquisar sobre o dízimo duvidoso caiu por terra. Com base nos argumentos de Schmidt, esse preceito religioso foi suprimido, pois os “principais beneficiários são, de agora em diante, os sacerdotes e não os levitas”19. Em Sot 9,10 pode-se notar o valor histórico recolhido pelos sábios num período conturbado na vida social e religiosa em Jerusalém. João Hircano exerce o cargo gozando de total independência diante dos selêucidas, enfraquecidos, sobretudo, após a morte de Antíoco VII, na batalha contra os partos. Em meio a crises internas, que parecem cada vez mais incontroláveis, o poderio beligerante selêucida cede, vertiginosamente, sua influência sobre as terras espalhadas na Judéia, o que acaba facilitando, ainda mais, os planos expansionistas colocados em marcha por Hircano20. Registram-se a formação de um exército profissional, frentes de batalhas nas fronteiras de Mádaba, na Iduméia, em Siquém e a destruição do templo de Garizim, em meados do ano 108 a.C. A fragilidade dos reinos helenistas do leste possibilitam 17 Há suspeitas sobre a identidade do personagem citado pela Mishná, em Sot 9,10. Não são poucos os que associam o Sumo Sacerdote Yohanan à dinastia dos Asmoneus. Matatias, filho de João, filho de Simão, sacerdote da linhagem de Joiarib” teria dado início à revolta contra a profanação do Templo, em 166 a.C., pelos helenistas; o que, segundo Roth, seria impossível, pois ambos não chegaram ao posto de Sumo Sacerdote. Outro possível personagem pretendente ao cargo seria o Sumo Sacerdote Yohanan, citado em Ne 12,22-23. Mas esse teria vivido em meados de 410 a 370 a.C. A figura, historicamente mais próxima, ao personagem em questão, seria mesmo um outro membro da família dos Asmoneus chamado João Hircano. Esse sim, teria ocupado o cargo máximo na linhagem sacerdotal, entre os anos 135 a 104 a.C. Cf. ROTH, R. Simchah, DissertaçãoSotah, 9, 10. Disponível em: <http://www.bmn.org.il/shiurim/sotah/sot105.html>. Acesso em 18 de mar. 2009. 18 Sobre os deveres de culto e exigências sociais assegurada ao Sumo Sacerdote, oportuna as observações elencadas por Jeremias. Ao Sumo Sacerdote pesava uma representação de “santidade eterna”, ainda que pese denúncias de usurpação no cargo. Cf. JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário, São Paulo, Paulinas, 1969, pp. 208-223. 19 SCHMIDT, F., O Pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, p. 191. Esse, por sua vez, recorre às informações listadas por Flávio Josefo que, com base num edito de Júlio Cesar, acena que “[Os judeus] pagarão a Hircano e a seus descendentes o dízimo que pagaram a seus antepassados”. A reforma imposta por Hircano nada mais objetivava que o acúmulo e monopólio total dos dízimos em mãos dos sacerdotes, inutilizando, para tal controle, qualquer investigação sobre os dízimos recolhidos. 20 Cf. GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias, São Paulo, Teológica/Loyola, 2005, p. 269. Não são poucos os historiadores que sublinham a atmosfera marcada por um saudosismo de cunho nacionalista sobre a qual as grandes epopéias davídicas e salomônicas devem ser reinventadas por meio do expansionismo posto em prática pela realeza judaica da época. Cf. NOTH, M., Histoire D’Israël, Paris, Payot, 1970, pp. 390-392; SCHIMIDT, F., O pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, p. 187. 196 uma certa prosperidade econômica na Judéia21. O ponto alto será a destruição da antiga capital Samaria. A governabilidade de Hircano é fortemente marcada por um estilo helênico de governar, o que irá atrair correntes oposicionistas lideradas pelo grupo dos fariseus, conhecido junto às camadas populares de אָח- irmão ou companheiro - por serem em sua maioria doutores da Lei. “O farisaísmo, com sua doutrina fundamentada na tradição oral, que tinha a mesma importância que a lei escrita, conseguiu abrir-se criticamente a novas respostas possíveis a perguntas que tinham se tornado atuais. Numa época em que os vínculos coletivos já não sustentavam nem abrigavam de modo natural a pessoa individual e o indivíduo tinha começado a perguntar de modo individual pela justiça em um mundo cheio de injustiça, perversidades e derramamento de sangue, ainda mais sob a impressão das perseguições contra as pessoas fiéis à lei, também o farisaísmo integrou a doutrina da ressurreição dos mortos e da recompensa pós-morte, da alma que pode ser castigada ou recompensada após a morte”22. O governo de João Hircano tende favoravelmente ao grupo religioso dos saduceus que se tornaram absolutos no controle das ações governamentais e administração das atividades sócio-religiosas envolvendo-se não somente junto ao Templo de Jerusalém, mas nas ações e controle do Sinédrio. Eis a possibilidade de entender a anulação do rito sobre a pureza dos dízimos oferecidos, imposta por Hircano que, atrelado a um grupo majoritário, representado pelos saduceus, imprime aos hábitos religiosos um estilo altamente helenístico. A fragilidade dos governos que se sucedem na Judéia pode ser percebida após a morte de Hircano, em 104 a.C. Seu filho Aristóbulo sobe ao trono, mas tendo na retaguarda um famigerado e fratricídio golpe de estado, impondo à morte, por meio de cárcere e fome, seus irmãos e sua própria mãe, esta, sucessora legítima ao trono, além de dar continuidade às políticas beligerantes de Hircano. Embora tenha seu governo vigorado apenas um ano, foi tempo suficiente para impor uma campanha contra Ituréia do Norte, e chega ao ponto de obrigar toda a população a praticar a religião judaica, impondo o rito da circuncisão. A política expansionista somada ao estilo helenista empreendida por Alexandre Janeu (10376 a.C.), como sucessor de Aristóbulo, segue em ritmo acelerado, ao longo do primeiro século a.C. Uma guerra civil nos anos 96-95 a.C. não tardará a surgir, 21 GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias,p. 270. 22 Ibidem, p. 277. 197 resultando na morte de mais de 800 pessoas ligadas ao partido dos fariseus. Essa guerra foi responsável pelo total enfraquecimento cultural e social da comunidade religiosa e terá seu final somente com o surgimento da nova política internacional adotada por Pompeu, que se impõe como autoridade na Síria e Judéia. Crê-se que tais aspectos históricos facilitam compreender a decisão tomada pelos sábios, expressa em Sot 9,1. A comparação entre as duas narrativas se justifica somente na medida em que Dt 23,13 oferece sustentação à narrativa apresentada pela Mishná. O texto bíblico deixa de ser recitado mediante o ato da entrega do dízimo que caíra em desuso havia mais de três séculos, e como era benéfico aos sacerdotes do templo de Jerusalém, não havia motivo para mantê-lo, uma vez que a primazia farisaica no final do século II era unânime. Os sábios buscam, sim, coerência frente à respectiva norma bíblica. 5.2. O dever de garantir aos pobres o direito da respiga Na época em que se faz a colheita, o proprietário é obrigado a disponibilizar os cantos da propriedade para serem colhidos pelos pobres. Esse espaço, juntamente com os produtos do campo que se encontram sobre ele, é conhecido como Pea. Uma prática social voltada à justiça no mundo da agricultura23. A Torá não chega a estipular a quantia mínima, mas os rabinos determinam o equivalente a um sexagésimo de todo o produto existente no campo, como valor mínimo a ser disponibilizado no campo para que os pobres encontrem porções que lhes possam garantir subsistência. 5.2.1. O recolhimento do Pea não é ocasião de roubar o proprietário Dt 24,19-21 19 Pea 4,3 Quando colheres a tua colheita no teu a campo e esqueceres um feixe no campo b não voltarás para pegá-lo. c Para o estrangeiro, para o órfão e para a d 23 Se alguém recolhe algo (dos frutos do preceito) do limite (de teu campo) e o jogar com os demais, já não tem parte nela. Cf. SPITZER, J., Peʿah: os cantos dos nossos campos. Disponível em: <http://www.myjewishlearning.com/practices/Ethics/Tzedakah_Charity/Requirements/The_Corne rs_of_Our_Fields.shtml>. Acessado em: 06 abr. 2009. 198 viúva será. e Deste modo, te abençoará YHWH, teu f Deus, em toda obra de tuas mãos. g está obrigado a tirá-lo dali. 20 h O mesmo vale Quando varejares tua oliveira, Porém se jogar-se sobre eles e estender seu manto, não repassarás [os ramos que ficaram] i atrás de ti. esquecido. para a rebusca e para o feixe Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva serão. 21 Quando colheres a tua vinha não farás rebuscar [a vinha que ficou] atrás de ti. Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será. A ênfase na comparação entre Pea 4,3 e Dt 24,19-21 encontra seu motivo no uso dos verbos “ ָק ַצרrecolher” (cf. Dt 24,19, Pea 4,3a) e o gesto adotado diante de alguém que venha a esquecer um determinado שּדֶ ה ָ “ ע ֹמֶ ר ַבּfeixe no campo”, presente em ambos os textos (Dt 24,19, Pea 4,3i). Enquanto Dt 24,19-21 indica para a obrigatoriedade de disponibilizar os produtos existentes nos cantos do campo: “quando varejares tua oliveira, não repassarás [os ramos que ficaram] atrás de ti” (v. 20), a Mishná condena o mau uso da lei feita por grupos de pobres no momento de respigar produtos. A ocasião, longe de proporcionar a igualdade, tornou-se ocasião de crime cometido contra o proprietário: “Se alguém recolhe algo (dos frutos do preceito) do limite (de teu campo) e o jogar com os demais já não tem parte nele” (a – d ). É nítido o aceno dado pela Mishná contra as fraudes cometidas contra o proprietário pela ocasião da respiga e do feixe esquecido. A Torá acena a um gesto de justiça e ocasião dos pobres encontrarem meios para sobreviverem, e Pea alerta a “pessoa para não roubar dos proprietários” 24. 24 Cf. Ibidem. 199 5.2.2. A radicalidade da lei do “não voltar atrás” Não é por mero acaso que a palavra “ שכחהfeixe esquecido”25, é seis vezes citada pela M. Pea (g,i,n,o,t,x). Trata-se de saber o que será disponibilizado aos pobres. A norma presente em Pea 6,4 encontra seu fundamento em Dt 24,19, ao utilizar o termo hd<F'B; rm[o T'x.k;v'w> “e esqueceres um feixe no campo” (v. 19). A quantia esquecida é o critério adotado para dispor ou não parte da colheita. Dt 24,19 Pea 6,4 a Para os extremos das linhas vale o b seguinte: se começam dois (a recolher os cfeixes) pelo meio da linha, um se Quando volta ao dnorte e outro se volta ao sul, colheres a tua colheita no teu campo esquecendo e(alguns feixes) à frente e e esqueceres um feixe no campo atrás deles, não voltarás para pegá-lo. f Para o estrangeiro, para o órfão e para a g viúva será. h Deste modo, são iconsiderados como tal. os que caem diante deles são considerados como feixes esquecidos, a não ser que caem detrás deles não te abençoará YHWH, teu Deus, em toda obra de tuas mãos. j Se uma pessoa só começa pelo extremo k da linha e esquece (alguns feixes) que l estavam, uns adiante e outros detrás dele, m n os que estão adiante dele não se consideram como feixes esquecidos, o porém os que estão atrás, sim, p posto que a este se aplica: não voltarás q atrás26. r Esta é a regra geral: a tudo o que se pode saplicar o não voltarás atrás, é 25 Um conceito técnico no universo da legislação. Seguindo o preceito de Dt 24,19, a disponibilização do “feixe esquecido” é compreendido como um espécie de presente disponibilizado aos pobres. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud:A Reference Guide, p. 266. 26 Cf. Dt 24,19. 200 t considerado como feixe esquecido, u a não ser que não se possa aplicar a ele v não voltarás atrás não se considera como xfeixe esquecido. Percebe-se como os sábios buscaram na Torá uma equação para poder estabelecer quando algo faz ou não parte da quantia, obrigatoriamente, disponibilizada aos pobres. Prevalece o argumento maior proveniente da Torá. Em outras palavras, o trabalhador, no momento em que recolhe os feixes previamente amontoados em fileiras, não deve “voltar para pegá-los” (v. 19). Essa quantia – esquecida – já é para ser juntada pelos pobres. Prevalece a cláusula da lei: ֹלא תָ שׁוּב “ ֽל ַק ְחתּוֹnão voltes para pegá-lo”. 5.2.3. Em qualquer situação os pobres serão lembrados Os cachos de uvas reconhecidos como ( עוֹלֵלוֹתdefeituosos, cachos falhos, mal formados) devem ser disponibilizados para os pobres. Trata-se de um ַמתְּ נוֹת “ ֲענִי ִיםpresentes aos pobres”27. Porém, no caso apresentado em Pea 7,7, ficaria o proprietário em total prejuízo ao ver toda produção disponibilizada aos pobres? A Mishná impõe tal questionamento no desejo de impossibilitar uma possível violação dos direitos de respiga garantido aos pobres. Dt 24,21 Pea 7,7 a Se uma vinha tem somente cachos de b rebusca, segundo R. Eliezer pertencem Quando ao cproprietário; colheres a tua vinha d não farás rebuscar [a vinha que ficou] pertencem eaos pobres. atrás de ti. f Para o estrangeiro, para o órfão e para a g 27 entretanto segundo R. Aquiba R. Eliezer arguiu: “se tu vindimas, não tens que recolher os cachos da Era comum separar parte da colheita e entregá-la aos pobres, como gesto de caridade, cumprindo preceitos da Torá, comumente chamados de: “ מַ עְשַׂ ר ָענִיdízimo do pobre”, לֶקֶ ט “respiga”, “ פֵּאָהcanto do campo, limite da plantação”, “ ֶפּ ֶרטsimples uvas caídas por terra durante a colheita”, “ עו֯ לֵלו֯ תpequenos cachos de uvas”. Cf. STEINSALTZ, R, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 225. 201 viúva será. rebusca”, (Dt 24,21). h Porém se não há vindimas, como haverá icachos para a rebusca? j Replicou R. Aquiba: “não farás a rebusca kde tua vinha”, (Lv 19,10). l inclusive quando toda ela não tenha mais mque cachos de rebusca. n Se é assim, por que está escrito:“Quando ocolheres a tua vinha não farás rebusca”? p (Para mostrar que) os pobres não tem q direito aos cachos da rebusca r antes da vindima. 5.2.4. Não há meios de revogar o direito da Torá O versículo apresenta três cláusulas em torno de situações em que pesam o conceito de conam, divididas nos parágrafos: a) a–e , b) f– h , c) i– l . Somente no primeiro, a – e, ocorre a nítida referência ao termo שׁ ְכ ָחה ִ “fruto esquecido”. Nota-se que a narrativa de Ned 11,3 leva às últimas conseqüências o caráter defensivo dos pobres, ao garantir à esposa o direito de respigar no campo em busca dos produtos esquecidos. Busca-se solucionar um litígio entre as partes: mulher e marido. Dt 24,19 Ned 11,3 Quando a colheres a tua colheita no teu campo b e esqueceres um feixe no campo lo, não voltarás para pegá-lo. c Para o estrangeiro, para o órfão e para a d viúva será. de eteu campo. Deste modo, f te abençoará YHWH, teu Deus, em levitas gque se beneficiam de mim” se o toda obra de tuas mãos. colhem hpela força. 28 Cf. Dt 24,19. (Se diz): “conam se tiro proveito de qualquer pessoa”, não pode anulá- ainda que, ela possa beneficiar-se da respiga, do fruto esquecido28 e da rua (Se diz): “conam os sacerdotes e 202 i (Porém se diz: “conam”) estes j sacerdotes e levitas que se beneficiam de mim, koutros o podem colher (os frutos ldevidos). Se a mulher diz ao seu marido: “Eu juro – conam – que não retirarei nenhum benefício da população”. Ela declara sua disposição em não receber nenhum bem ou quantia pertencente ao marido, pois ele não tem poder de anular a promessa feita pela mulher, a ela cabe, segundo os princípios da Torá, o direito de ser sustentada e beneficiar os produtos do campo em determinadas épocas. A Guemará, ao comentar Ned 11,3, realça o direito da mulher beneficiar-se dos bens do marido, uma vez que ela já não se encontra incluída nos pertences ou propriedades do marido29. Ao marido cabe aceitar, pois é impossível anular um preceito proveniente da Torá. Essa radicalidade pode ser conferida nas afirmações feitas em benefício da mulher: “ ויכולה היא ליהנות בלקט ובשכחה ובפיאהתela possa beneficiar-se da respiga, do fruto esquecido e da rua de teu campo”. A mulher, na qualidade de divorciada e não necessariamente na condição social de viúva - passa a ter amplos poderes de entrar e recolher a parte que lhe cabe, do campo, na época da respiga, dos frutos esquecidos, além de beneficiar-se da pe’ah. Na época da Mishná as cláusulas se referem aos bens ou mercadorias pertencentes ao marido e não obrigatoriamente a um campo com plantações diversas. Não há maiores semelhanças entre as narrativas, mas nota-se que a prerrogativa defendendo o estrangeiro, órfão e viúva, em Dt 24,19, é agora compreendida na pessoa da mulher divorciada. 5.2.5. Esforços voltados para a manutenção da paz Considerando os esforços voltados para a superação das desigualdades sociais e a harmonia social entre diferentes grupos, a narrativa presente em M. Gittim 5,8 demonstra, entre inúmeros hábitos marcantes na vida religiosa e social, um grau de sensibilidade social, ao situar os direitos dos pobres, como meio para 29 Cf. GUEMARA, encontrado em <http://www.come-and-hear.com/nedarim/nedarim 83.html>. Acessado em: 10 de Abr. 2009. 203 conviverem em paz. Verifica-se que as três práticas, garantidas na Torá: respiga, recolhimento dos produtos esquecidos e limite do campo, são garantias dadas aos pobres não judaítas (l. u-y). Dt 24,19-21 Git 5,8 Quando a colheres a tua colheita no teu campo b e esqueceres um feixe no campo c não voltarás para pegá-lo. d Para o estrangeiro, para o órfão e para a e viúva será. f Deste modo, g te abençoará YHWH, teu Deus, em h toda obra de tuas mãos. i Quando surdo-jmudo, um idiota ou um menor, varejares tua oliveira, se aplica a klei do roubo pelo bem da não repassarás [os ramos que ficaram] concórdia. atrás de ti. l Para o estrangeiro, para o órfão e para a formal. viúva serão. m Quando n colheres a tua vinha lei odo roubo pelo bem da concórdia. não farás rebuscar [a vinha que ficou] p R. Iossef afirma: trata-se de roubo atrás de ti. q formal. Se um pobre vareja a copa de Para o estrangeiro, para o órfão e para a um roliveiral, a todo o que está debaixo viúva será. (da sárvore) se lhe aplica a lei do roubo As seguintes coisas foram ditas para favorecer a concórdia. O sacerdote lê primeiro, depois dele o levita e depois dele um israelita leigo para favorecer a concórdia. O erub seja feito na casa antiga para o bem da concórdia. A cisterna que está próxima a um canal se enche primeiro, para o bem da concórdia. Ao encontrado por um R. Iossef afirma: trata-se de roubo Ao preso na rede (o alçapão), sejam animais, aves, peixes, se lhes aplica a pelo tbem da paz. R. Iossef afirma: se trata de uum roubo formal. Não há de proibir aos vpobres não israelitas recolher os frutos da xrespiga, do esquecido30 e do limite de teu ycampo para o bem da paz. 30 Cf. Dt 24,19s. 204 Em Dt 24,19-21 os três momentos ligados ao tempo da colheita: 1) “a tua colheita no teu campo” (v.19); 2) “varejares tua oliveira” (v.20); 3) “colheres a tua vinha” (v.21) direcionam-se para estarem disponíveis ao estrangeiro, órfão e viúva (vv. 19, 20 e 21) dos círculos judaítas, embora o texto não faça nenhuma exigência neste sentido. Gittim, pelo contrário, especifica o grupo dos pobres e, ainda, qualificando-os como “ עניי גוייםpobres não israelitas, pobres estrangeiros”. Para os sábios está em jogo não aspectos beligerantes na convivência social mas o real interesse em uma convivência pacífica entre os pobres que convivem numa mesma realidade31. A busca por uma harmonia comunitária permeia todo o versículo. Não é em vão a definição de roubo estabelecida por R. Iossef32. Entende-se por roubo formal a posse ilegítima dos frutos colhidos por um pobre e sorrateiramente apropriados por um outro trabalhador. A qualificação de “roubo formal” busca manter as boas relações comunitárias objetivando a paz, que é vista como importante para o grupo social dos pobres. 5.2.6. Relações comerciais sem usuras A proibição de violar o direito em transações comerciais é um princípio apodíctico, determinante na narrativa de Dt 24,17 e em outras partes do livro33. Diante dessa apresentação de caráter irrefutável, a M. BM 9,13 não faz outra coisa que não seja contextualizar, com gestos do dia a dia, tais máximas34. BM não somente faz inúmeras exemplificações situando a aplicação das leis, como amplia a defesa em relação à viúva. A amplitude é por demais realçada na especificação feita em torno do sujeito “ אלמנהviúva”. A בין,אלמנה בין שהיא ענייה “ שהיא עשירהviúva, seja pobre ou rica” recebe a defesa da lei. BM defende seus bens como algo inalienável. Dt 24, 17 BM 9,13 a 31 Se alguém faz empréstimo a seu Salutar a perspectiva apontada pela Guemara ao comentar Gittin, 5,8: “nós apoiamos os pobres pagãos, juntamente com os pobres de Israel. Visitar os doentes do pagão, juntamente com os doentes de Israel, e enterrar os pobres do pagão, juntamente com os mortos de Israel, seguindo o interesse pela paz”. Disponível em: <http://www.come-and-hear.com/gittin/gittin_61.html>. Acesso em 11 de Abr. 2009. 32 Conferir nota sobre a atuação de R. Iossef no § 3.5.2. 33 Cf. Dt 17,1.11.15; 18,1.9; 19,14; 22,1.4; 23,17; 26,4. 34 Conferir a análise de BM 9,13 no § 3.6.1. 205 próximo, b c não tomará dele nenhum penhor sem o consentimento do tribunal, nem entrará d em sua casa para pegar a prenda, uma vez fque está escrito: permanecerá fora35. (Dt g24,11). Se (o devedor) tiver dois hutensílios, (o credor) poderá pegar um, iporém deixará o outro. Deve devolver o jcolchão a noite e o arado ao dia. Se morre k(o devedor), (o credor) não tem que ldevolvê-lo aos herdeiros. Rabán Simeão mben Gamaliel ensina: inclusive mesmo nao devedor não tem que devolvê-lo antes ode trinta dias. A partir de trinta dias ppoderá vendê-lo com consentimento do rtribunal. De Não farás violar o direito do estrangeiro uma viúva, seja pobre [do] órfão s e não tomará como penhor a roupa da t viúva. u ou rica, não se há de pegar nada em penhor,porque está escrito: não tomarás em penhor as roupas da viúva36 (Dt v 24,17). Se alguém toma como penhor um wmoinho, quebrando um preceito x negativo, se torna culpado por razão de y pegar dois objetos, uma vez que está z escrito: não se tomará em penhor a pedra a1inferior ou superior do moinho.(Dt 24,6) b1 c1 Não disseram só a pedra inferior e superior do moinho, se não todo objeto d1com o qual se prepara a comida, e1 35 36 Cf. Dt 24,11. Cf. Dt 24,17 uma vez que está escrito: 206 f1 porque seria pegar em prenda uma vida. g1 (Dt 24,6). Há sintonia em defender a causa da viúva, considerando essa máxima bíblica, entre os rabinos37. Pois uma viúva não pode correr o risco de ficar em descrédito diante de seus vizinhos. Em tempos em que ela ocupa a administração da casa, a viúva era obrigada a comparecer diante do tribunal e expor os meios disponíveis para manter seus filhos e filhas (BB 9,6). 5.3. A violação do direito dos pobres Se a finalidade dos ensinamentos da Torá é colocar a humanidade sob a aceitação do reino dos céus38, a narrativa de Ab 5,9 se apóia no texto de Dt 14,2829 para acusar o desvio, no ano quarto e no final da festa dos Tabernáculos, do direito dos pobres de recolher os produtos no campo. Por duas vezes a narrativa se apóia em Dt 14,28-29. Num primeiro momento denuncia o não cumprimento do preceito pelo dízimo dos pobres (v. 28), e num segundo momento, o fato de não disponibilizar os produtos do campo, ao final da festa dos Tabernáculos (vv. 2829). “Tabernáculos” acontecia no final do ano agrícola. A Mishná denuncia que, já nos tempos tanaíticos, a violação do direito dos pobres não foi considerada. Dt 14,28-29 Ab 5,9 Ao final de três anos, a tu farás tirar a décima parte de toda a b tua colheita deste ano c e farás disponibilizar nos teus portões. festa ddos tabernáculos, todos os anos. Virá o levita, f Porque g ele não tem parte da herança contigo, h 37 Em quatro momentos a peste aumenta: no ano quarto, no ano sétimo, ao final do ano sétimo e ao final da No ano quarto a causa do dízimo39 dos pobres do ano terceiro; Cf. FREEDMAN, H., Introduction to Baba Mezi‘a. In: EPSTEIN, I (Ed.), Soncino Babylonian Talmud. Disponível em: <http://www.come-andhear.com/babamezia/babamezia_103.html#chapter_ix>. Acesso em: 13 de abr. 2009. 38 Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p. 417. 39 Cf. Dt 14,28 207 o estrangeiro, o órfão e a viúva, i que vivem nas tuas vizinhanças j e comerão k e se satisfarão. l Deste modo, m te abençoará YHWH, teu Deus tabernáculos, em todas as obras que n no ano sétimo, a causa do dízimo dos pobres do ano sexto; ao final do sétimo ano, a causa dos produtos do ano sétimo; ao final da festa anual dos tuas mãos realizarão. a causa do roubo dos dons40 o dos pobres. 5.4. Conclusão Estabelecer uma unidade e, ao mesmo tempo, uma interação com toda a Torá pode ser uma equação após comparar esses dois universos literários. Evidentemente, sobre a Torá recai toda a primazia, mas nota-se a liberdade com que os sábios atualizam a Torá, na certeza de que nela está a vontade e as bases do reino divino. Os sábios se esforçaram para atualizar os textos bíblicos, pelos quais eles declaram total submissão, num gesto de profundo amor. Esse esforço impõe um caráter profundamente místico e realmente martiriológico. A Mishná realça a forma e a força das ordens divinas. O não cumprimento de uma norma é sinônimo de ferir o tecido social comunitário, além de desvirtuarse dos projetos divinos. Adonai se identifica com Israel. Eis um ponto crucial na reflexão empreendida pela tradição judaica, que oferece sentido à comunidade religiosa. O chamado a ser “nação santa” não é passado, mas existencial, real e atualizado. Os sábios debruçaram-se sobre a Torá. O valor dado ao estudo, à atualização e ao comprometimento com os preceitos divinos, presentes nos textos do Deuteronômio não encontram outro sentido a não ser o de sempre perpetuar o encontro com YHWH, isto é, confirmado com atualizações impostas às comunidades, como é possível perceber na análise dos versículos Ab 5,9, Ned 11,3, Git 5,8. É imposta uma total radicalidade às comunidades para que seu agir reflita a vontade do Criador. Eis a única maneira de atualizar e viver a aliança contraída entre YHWH e seu povo eleito. 40 Cf. Dt 14,28-29. 208 6 Conclusão final A análise deste trabalho insere-se em dois universos literários: Deuteronômio e Mishná. A leitura foi feita considerando os grupos sociais estrangeiro, órfão e viúva, identificados como trilogia social. Essa trilogia é encontrada seis vezes no livro do Dt (10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26). Verifica-se que, em torno desses grupos, há um determinado corpo jurídico, normas legais, que implicam determinadas práticas religiosas e sociais, voltadas para garantir a subsistência daqueles grupos. Há uma espécie de redoma jurídica capaz de garantir o sucesso e evitar o infortúnio desses grupos no interior da sociedade. Defendê-los é a expressão da fé e do amor divino. A insistência na defesa desses grupos sociais foi a motivação primeira desta pesquisa. Os contextos sociais e históricos em torno do Dt e da Mishná são distintos. Embora não se ignorem as diferentes sociedades, que forjavam o surgimento desses conjuntos literários, é útil apresentar algumas interrogações: qual o ambiente social que possibilitou o surgimento dos grupos sociais תום ֹ ָי, ֵגר,? ַא ְל ָמ ָננ Há diferenças conceituais entre a trilogia social formada por essas três categorias no Dt, e a compreensão do conceito de “ ָע ִניpobre, indigente”, “necessitado”1 209 1 e יון ֹ “ ֶא ְבpobre, necessitado”2, defendido pela corrente profética do século VIII/VII? Outro cenário elucidativo acena para à Mishná. Quais eram os grupos sociais que os autores da Mishná procuraram defender, apoiando suas normas nos textos do Dt? As camadas pobres, do século II, sob a dominação romana, estão em sintonia com os grupos sociais desfavorecidos do Dt? Em que medida os hábitos religiosos, como o pagamento do dízimo, o cumprimento do ano jubilar, perdão das dívidas são realces na Mishná? Pela ordem, procura-se esclarecer, primeiro, as questões em torno do Dt. As consequências sociais sentidas num estado beligerante, junto aos camponeses, após a guerra de 722 a.C. e, mais tarde, com as incursões no território de Judá, chefiadas por Senaquerib (705-681 a.C.), fornecem relevantes informes na compreensão do surgimento de leis e práticas dos grupos sociais desfavorecidos. De Salmanasar III (858-824 a.C.), passando por Teglat-Falasar III (745-727 a.C.), até o episódio final de 722 a.C., quando ocorre a destruição do reino de Israel, na guerra imposta por Salmanasar V (726-722 a.C.), as incursões do reino assírio serão constantes em direção aos estados situados na região sul, sobretudo em direção ao Egito3. Até meados do ano 663 a.C., quando crises internas e a perda da guerra contra o Egito, provocam o declínio do império Assírio. Os grupos ַא ְל ָמ ָננ,תום ֹ ָי, ֵגּרdiferem-se dos grupos sociais defendidos pelo movimento profético dos séculos VIII e VII. O período áureo da profecia, inaugurado por Amós, Oséias, Miquéias, Isaías4, depara-se com uma sociedade agrária surpreendida pelo movimento econômico e militar empreendido pelo governo de Jeroboão II (783-743 a.C.). O aumento das fronteiras do reino de Israel, em direção ao norte e ao sul (cf. II Rs 14, 25-27), leva às consequências inevitáveis de um rápido processo de pauperismo imposto aos homens livres, proprietários de terras e com heranças garantidas, pois o projeto jeroboânico visava o aprimoramento do aumento de impostos e o controle das rotas comerciais. 1 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 509. Cf. Ibidem. p. 22. 3 Não faltaram tentativas de opor-se ao regime imposto pelos reis assírios. As tentativas de insurreição foram em sua maioria frustrantes. A política mercantil escravagista impôs-se de modo avassalador. Cf. GARMUS, L., op. cit., p. 13. 4 Sicre realça o exercício da escritura inaugurado pelos profetas do século VIII. Há uma diferença da época “reformista” representada nas atividades de Débora, Samuel, Elias e Eliseu. Tal corrente, apesar das denúncias contra os desvios do povo, não propõe o abandono das estruturas. Após Amós e Oséias, a problemática social é elemento central na crítica dos pecados praticados contra YHWH. Cf. LUIS SICRE, J., Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem, Petrópolis, Vozes, 1996, pp. 242-243. 2 210 As instruções catequéticas exaltando a experiência de Israel com a divindade YHWH (cf. Dt 6,21-23; 26,5b-10), consideram, e, em muito, a saída do Egito, identificado como terra da escravidão, e a experiência tribal. Tais períodos fornecem elementos essenciais na elaboração da teologia da terra5. São fatos que marcaram a origem de Israel e serão utilizados pelos profetas, na apresentação de suas críticas contra as violações e desvios do direito e da justiça impostos aos “ אֲ נָשִׁיםhomens” que veem suas situações se agravarem com a destruição do reino do norte, em 722 (cf. Is 11,1-9; Os 12,10. 13,4; Mq 6,3-4). As descrições de Amós acenam para um cruel sistema de violação dos direitos dos grupos socialmente desfavorecidos impostos pelos altos proprietários de terras e atrelados à corte (cf. Am 3,9; 4,1; 5,12; 8,4.6). O panorama nacional, em meados do ano 760 a.C., demonstra enorme atividade comercial que assegura uma complexa estrutura econômica, nos mais diversos setores da sociedade palestinense. Causa maior desse período de expansão acontece entre os anos de 806 a.C., época em que Assíria surge como grande império, até o ano de 747 a.C., quando sobe ao trono o grande Teglat-Falasar III (747-727 a.C.)6. Nesse período o reino de Israel não sofre nenhum infortúnio. A única preocupação da realeza, seja em Judá, seja em Israel, é a de olhar para seus próprios interesses internos. Está na crítica profética a única corrente de oposição ao modelo político empreendido por Jeroboão II7. As profecias defendem o “ ָה ִאישο homem, ο indivíduo, ο pai, ο nobre, ο valente”, em seu sentido mais genérico8. Este homem, visto como cidadão e merecedor de direitos, está se tornando um “ ָע ִניpobre, indigente” um יון ֹ “ ֶא ְבpobre, necessitado”. As elites citadinas, os proprietários dos latifúndios e os grandes comerciantes conseguem acumular, cada vez mais, riquezas por um sistema de extorsão das famílias camponesas, por meio de saques, empreendidos pela guerra e 5 TCHAPÉ, J. B., “A tomada de posse da terra de Cannaã por Israel no livro do Deuteronômio”. In: CONCILIUM, n. 320, 2007/2, p. 54. “A terra não se apresenta apenas como um lugar de bênção, de vida e de prosperidade, É o lugar onde Israel deve fazer a vontade de Deus, o lugar onde o povo é chamado a pôr em prática as leis e os costumes que Moisés recebeu de Deus (Dt 4,5; 5,31; 6,1; 12,1). 6 O surgimento dos impérios não é novidade na história antiga. No cenário bíblico, Israel deparou-se pela primeira vez com um poder imperial a partir dos resultados da política imposta por TeglatFalasar III. As guerras são analisadas como uma conquista executada em vários estágios. Cf. GARMUS, L., O imperialismo: estrutura e dominação. In: RIBLA, n. 3, pp. 7-20. 7 ALBERTZ, R., op. cit., p. 299: “Nestas circunstâncias, os trabalhadores do campo sucumbiram sob a opressão financeira da classe privilegiada, e se viram inevitavelmente submetidos a uma dependência total dos detentores do poder econômico, logicamente o empobrecimento de um amplo setor da população. Os profetas designam a esse grupo com os nomes típicos de “os desvalidos” (dal), “os pobres” (ʼebyôn), ou “os indigentes” (ʿanaw/ʿaní)”. 8 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 49-50. 211 pelo trabalho forçado, na cidade – na utilização de mão de obra nas grandes construções públicas - e no campo. Nessa realidade, é possível compreender as denúncias proféticas (cf. Mq 2,1-5; Is 5,8). Na opinião de Schwantes os homens livres estão impossibilitados de garantir às futuras gerações o controle de suas terras. Eis o motivo primário dos oponentes da realeza, representados pelos profetas: “Podemos, pois, dizer que, no século VIII, em Judá e em Israel, o campesinato é um fator político, capaz de articular sua insatisfação diante de regimes opressivos, como o de Jeroboão II, e de decidir sucessões”. As correntes proféticas do século VIII, a de Amós em especial, não só tem esse contexto como pano de fundo, mas ela mesma é uma das vozes da gente do campo. A base social e organizada dessa profecia é o campesinato”9. O aparecimento dos grupos sociais: אַ ְל ָמנָה, י ָתוֹם, ֵגּרnão se relaciona aos anúncios condenatórios proferidos pela corrente profética do século VIII. Essa, pela essência de seu conteúdo, se volta para a defesa do cidadão, do varão em estado de empobrecimento ou em vias de perder a terra, a herança em decorrência de um sistema. O aumento do número de refugiados rumo à região Sul do país, Judá, é considerável, após 722 a.C10. Juntamente com esse aglomerado de pessoas, migram, também, as fortes tradições religiosas. No interior desse fluxo migratório rumo ao estado de Judá, estariam os autores da “escola deuteronomista”, como explica Römer: “Os escribas também mantinham os anais, estavam envolvidos na correspondência diplomática e compilavam leis. Sabemos que também mantinham registros de acontecimentos memoráveis, por exemplo, de atividades proféticas em palácios ou textos. Mas sua capacidade de escrever conferia-lhes também certa independência do rei que, nem sempre, sabia escrever, e, como podemos deduzir de textos egípcios, podem ter considerado a si mesmo intelectualmente superiores. É claro que os escribas podiam também escrever por própria iniciativa e tentar, através de seus escritos, influenciar a política da corte”11. 9 SCHWANTES, M., A terra não pode suportar suas palavras: reflexões e estudo sobre Amós”, Paulinas, São Paulo, 2004, pp. 98-99. Oportuna a exposição gráfica apresentada por Reimer, ao analisar as palavras do profeta relacionadas com as dimensões: social/jurídico, religioso, administrativo. Cf. REIMER, H., “Amós: profeta de juízo e justiça”. In: RIBLA, n. 35/36, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 181. 10 RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, história e literária, Petrópolis, Vozes, 2008, p.73: “O fim do reino do Norte causou importantes mudanças demográficas e sociais em Judá. Investigações arqueológicas sugerem nitidamente um aumento da população e uma ampliação da cidade de Jerusalém na segunda metade do século VII, provavelmente após 722”. 11 RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, história e literária, p. 53. Lamadrid também ensaia ler os acontecimentos do Antigo Israel, à luz da escola deuteromista. GONZÁLEZ LAMADRID, A., As tradições históricas de Israel: introdução à história do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 1999. pp. 19-24. Os deuteronomistas não se furtam em tecer ao longo dos importantes fatos históricos suas considerações. Assim se forma o livro do Dt: resultado de um processo redacional sobre os fatos marcantes da vida religiosa de Israel e Judá. De modo tradicional 212 O entrave político envolvendo o rei Ezequias (727-698 a.C.) e sua fracassada coalizão de reinos contra a Assíria, desta vez chefiada por Senaquerib (705-681 a.C.), leva a uma situação social alarmante12. Dominada a rebelião, em 701 a.C., Judá se vê na situação de pagar pesados tributos ao reino assírio (cf. 2Rs 18,14-16), além de lastimar a destruição de 46 cidades somadas às fortalezas de Laquis e Lebna. Ezequias permanece no trono mas vê seu reino diminuído, transformado em CidadeEstado, e obrigado a submeter-se à categoria de vassalagem13. Em meados do ano 605 a.C., sobe ao trono babilônico o príncipe herdeiro Nabucodonosor. O novo império cresce em direção ao oeste. Após se recuperar de uma derrota contra os egípcios, marchou pessoalmente contra as muralhas da cidade de Jerusalém14. No intuito de fortalecer, cada vez mais, o império, sob sua liderança organizou incursões militares, todas elas bem sucedidas. Em 597 a.C. tomou a cidade de Jerusalém, contando com um exército formado por caldeus, arameus, moabitas e amonitas (cf. 2Rs 24,2). Judá terá seu rei Joaquim deportado para Babel, juntamente com a nobreza de Judá (cf. 2Rs 24,17). A saída dos caldeus deixa para trás um rastro de destruição e ruína, cuja representação maior espelha-se numa comunidade aceita-se os capítulos 12-16, sob o reinado de Josias (640-609 a.C.). O Deuteronômio josiânico não passaria de um conjunto de leis. A esse conjunto de leis agrupam-se relatos relacionados ao decálogo (Dt 5) e à chegada na terra (Dt 1-3), mais o relato da experiência do Sinai (Dt 9-10). Após o reinado de Josias o Dt é compreendido como leis numa história, que comentam o Decálogo. No exílio babilônico é acrescentado Dt 16-18, dando enfoque às instituições e constituindo um código de leis. Os capítulos 19-25 são pós-exílicos. A eles são agrupados os capítulos 6,11 – adesão aos mandamentos – e o discurso sobre o valor da lei: Dt 4. Época em que o Dt passa a ser compreendido como o livro das leis de Moisés. Após o ano de 540, sob o domínio dos persas, o livro passa por um processo editorial, formando o texto hoje conhecido. Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio, op. cit., pp. 32-35. Ainda considerando os importantes fatos, Kaefer acena outra possível formação do Dt. Cf. ADEMAR KAEFER, J., Un pueblo libre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 en la composición del Pentateuco, op. cit., pp. 238-242. Um exemplo entre acontecimento e relato é oferecido por Römer. Cf. RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, histórica e literária, op. cit., p158-159. 12 Cf. NAKANOSE, S., Uma história para contar:a Páscoa d Josias: metodologia do Antigo Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30, São Paulo, Paulinas, 2000, p. 155; ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel em tempos del Antigo Testamento, Simancas, Valladolid, 1999, p. 307. Os argumentos sobre este período são semelhantes entre os autores. 13 A época ecoa nas profecias de Is 1,7-9; Ez 16,27. 14 Considerando as narrativas históricas e proféticas, Ludovico informa, passo a passo, as diversas fases da presença dos caldeus nas terras de Judá, bem como os movimentos insurgentes contra a política avassaladora empreendida no reino de Judá. Cf. GARMUS, L., “A comunidade de Israel em Crise: o exílio da Babilônica”. In: EsBi, Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 23-37. A partir da presença babilônica que ocupa um cenário de mais de quarenta anos, a história das comunidades religiosas de Judá ocupam diferentes cenários geográficos, segundo a análise de Gunneweg. Existe um grupo que fica em Judá, outro parte é assentado em diferentes regiões na Babilônia, restando ainda aqueles que já residiam na diáspora, a partir do evento de 722 a.C., ocorrido na Samaria. Os relatos históricos e teológicos correm independentes um do outro. Cf. GUNNEWEG, A. H.J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias. São Paulo, Teológica & Loyola, 2005, pp. 205-217. 213 religiosa exilada e sem Templo, além de fracassadas sublevações15 que colaboraram para o total aniquilamento do estado de Judá16. A província de Judá, não somente vivenciou sua destruição total, como amargou, por quatro décadas, humilhação e desintegração social em terras Babilônicas. Neste cenário, ocorre um esforço literário impregnado pela corrente deuteronomista, resultado de um amplo trabalho de revisão de sábios e profetas, como afirma Crüsemann: “É a teologia do Deuteronômio e do amplo movimento deuteronômico/ deuteronomista que proporciona ao Êxodo sua posição central na Bíblia. A maneira como ele é interpretado, para o presente, do tempo dos reis tardios e, portanto, renarrado, foi, com razão, definida como “centro da teologia bíblica”17. Pela tradição judaica, tendo à frente o partido dos fariseus, percebe-se o mesmo movimento de releitura. Os autores da Mishná transformaram as máximas bíblicas em argumentos irrefutáveis na defesa dos pobres de sua época. As diferenças acenam para momentos significativos da vida familiar e social das comunidades religiosas dispersas nas mais diferentes realidades. A motivação maior em reunir as inúmeras tradições pode ter ocorrido a partir do momento em que a “ameaça mortal”, representada no exílio babilônico, impôs aos judaítas a possibilidade total do seu desaparecimento18. Com base nas análises presentes no capítulo V, é possível analisar três diferentes situações sociais, intimamente ligadas à vida social e destacadas na Mishná dando prova de total fidelidade à Torá. Os sábios fariseus redigem as normas, em defesa dos grupos desfavorecidos, do século II d.C, sob o regime imperialista romano. 15 Antes, porém, julga-se salutar indicar três aspectos que O estado de completa destruição e falta total de qualquer autonomia administrativa, considera as três ocupações babilônicas no território de Judá: 597, 587 e 582. A deportação definitiva, visando pôr fim a qualquer resistência, ocorre no ano de 587. 16 Cf. ALBERTZ, R., Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento, Madrid, Simancas Ediciones, v. II, 1999, p. 461. 17 CRÜSEMANN, F., Cânon e História Social: ensaios sobre o Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2009, p. 309. Na mesma perspectiva segue Römer: “A novidade da história deuteronomista consiste em revisar os textos mais antigos, e organizá-los em uma composição coerente que relata a história de Israel, das origens ao Exílio. Para Römer o trabalho desses “Deuteronomistas” da época do exílio prepara, assim, o caminho em direção à “religião do livro”. RÖMER, T., Naissance da la Bible. In: LMB, n. 137, 2001, p. 19. 18 JOHNSON P., História dos Judeus, São Paulo, Imago, 1995, p. 93: “Foi no exílio que as normas da fé começaram a parecer de importância máxima: normas de pureza, de asseio, de dieta. Tais leis eram agora estudadas, lidas em voz alta, decoradas. É provável que desse tempo date a injunção do Deuteronômio 6,6-8. No exílio, os judeus, privados de um estado, tornaram-se uma nomocracia – e se submetiam voluntariamente a uma lei que só poderia ser posta em vigor por consenso. Nada dessa espécie tinha jamais ocorrido na história”. 214 marcam qualquer leitura em torno dos textos da Mishná e que garantem a manutenção da experiência religiosa do Antigo Israel às futuras gerações. São eles: 1) O caráter de irrevogabilidade da Torá: Analisadas as inúmeras ocasiões bélicas que assolaram a província da Judéia, impostas por uma série de grandes impérios, com base nos relatos bíblicos, edificou-se “uma cerca em torno da Torá”19 o que preservou a identidade nacional de Israel. O conceito de “ דְּ ַבר י ְה ָוהPalavra de YHWH” (cf. Is 39,8; Jr 13,3; Ez 27,1); foi elemento primordial para salvaguardar a identidade de Israel. A “Palavra de YHWH” é um pleno testemunho da intervenção divina na história. Os ensinamentos em torno do conceito da Torá, antes de ser um cânon reunindo uma série de livros é, antes de tudo, o ato de ensinar20 a Torá Oral. Este senso de irrevogabilidade pode ser visto na série dos doze textos da Mishná abordados na pesquisa. À mulher não há meios de negar-lhe o direito de respiga, ainda que ela se encontre na situação de divorciada. Ela tem o direito de efetuar a respiga e encontrar meios para garantir sua sobrevivência (cf. Ned 11,3). Os empenhos humanos devem estar direcionados para edificação da paz, com base nas normas da Torá21. A Mishná oferece os meios para implementá-los na vida da comunidade (cf. BM 9,13p-u). Esta apego central à Torá estabelecerá o eixo em torno do qual Israel se constituirá e encontrará sua identidade como nação22. 2) O desejo de servir a YHWH é viver em sua sintonia: No uso do tetragrama o nome de Deus é identificado como uma real divindade, imanente, mas ao mesmo tempo transcendente, diferentes das divindades 19 M. Ab 1,1: “Moisés recebeu a Torá no Monte Sinai e a transmitiu a Josué. Josué a transmitiu aos anciãos e estes a transmitiram aos profetas. Os profetas a transmitiram aos homens da Grande Assembléia. Estes disseram três coisas: “Sede cautelosos no exercício da justiça; fazei muitos discípulos; fazei uma cerca em torno da Torá”. Simão, o justo, estava entre os homens da Grande Assembléia. Dizia ele: “O mundo repousa sobre três coisas: sobre a Torá, sobre o Culto e sobre os atos de caridade”. 20 Cf. <http://www.ista.edu.br/semanateologica/extras/carta_romanos.pdf>. Acessado em 10 de jun. de 2009. 21 A aproximação tornou-se intensa a partir da destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C. A aproximação de relevantes mestres na Grande Assembléia teve, como eixo, prestar um serviço de proteção à Torá Escrita e Oral. Estava em jogo a perda das tradições. Aos sábios não faltaram outra opção a não ser de reorganizar e recontar a Torá. O resultado dessa reviravolta leva o nome de Mishná (optar pelo estudo e ensinar por repetição). Cf. LENHARD, P. e COLLIN, M., La Torah orale des pharisiens: textes de la Tradicion d`Israël, Paris, Cerf, 1990, pp. 8-11. 22 Crüsemann apresenta o conceito de “Pátria Portátil”. “Os judeus salvaram-se do grande incêndio do Segundo Templo e, por assim dizer, arrastaram-no consigo ao exílio como uma pátria portátil, atravessando toda a Idade Média”. Crüsemann, F., Cânon e História Social: ensaios sobre o Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2009, p. 345. 215 do Antigo Oriente. A fé, nessa divindade, pode ser plenamente sentida na declaração de fé, forjada no Israel pós-exílico: “ י ְה ָוה אֶ ָחדDeus Um” (Dt 6,4). Não resta dúvida de que, em torno da Torá, proveniente de YHWH, Israel vivenciou, nos mais diferentes estágios de sua história, o que os sábios chamam de “a Shekhina” ou seja a “existência de Deus no seio da história”23. Esse YHWH, que é Um, torna-se o Deus dos pequenos. Estudar a relação entre Deus e os pobres, ou pequenos é, antes de tudo, optar por um tipo de aproximação: considerar a identidade dos pobres em relação a YHWH, perceber o modo como o Deus de Israel se abaixa e lhes dirige seu olhar preferencial (cf. Sl 113,6). Os Salmos testemunham o privilégio do ָענ ִיou ָענָוdirecionado a esse Deus24. 3) Total submissão à administração romana: Todo o processo da redação da Mishná coincide com a presença dominadora dos romanos na Judéia. Roma impõe um regime hierárquico-patriarcal a todos os setores da vida pública e familiar. Na base de um sistema econômico mercantil escravagista, o sistema de arrecadação de vários impostos fazia crescer, mais e mais, o endividamento e o número de escravos e escravas. O poder político era atrelado ao religioso. A tática de aliar-se com os poderes religiosos, nas províncias, era um dos meios para manter os privilégios romanos em todo o vasto império25. Nesse cenário de completa dominação, estão todos os versículos da Mishná analisados no capítulo 23 Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, pp. 4372. 24 Cf. COULANGE, P., Dieu, ami dês pauvres:Etude sur la connivence entre le Très-Haut et les petits, Fribourg, Academic Press, 2007, pp. 12-16. 25 TÁCITO, Agrícola, 30,3-31,2. “...mais perigosos do que todos [os outros dominadores] são os romanos, de cuja arrogância em vão pensamos poder escapar através de submissão e comportamento leal. Esses ladrões do mundo, depois de não mais existir nenhum país para ser devastado por eles, revolvem até o próprio mar; quando o inimigo é rico, eles são ávidos; quando é pobre, ambicionam a sua honra; nem o oriente nem o ocidente satisfizeram a sua gula; são os únicos entre todos que, com a mesma cobiça, querem apoderar-se da riqueza e da pobreza. Saquear, assassinar, roubar – a isso eles chamam de dominação; e ali onde criaram um deserto – a isso eles chamam de paz. Crianças e familiares são para todos, conforme a vontade da natureza, o que temos mais precioso; através de recrutamento, eles são tirados de nós, para que, em algum outro lugar, façam trabalho escravo; mulheres e irmãs, mesmo quando escapam dos desejos dos inimigos, são violentadas por aqueles que se chamam amigos e hóspedes [=romanos]. Bens e propriedades transformaram-se em impostos; a colheita anual dos campos torna-se tributo em forma de cereal (frumentum); sob espancamentos e insultos, nossos corpos e mãos, são massacrados na construção de estradas através de florestas e de pântanos...”. Tradução de Ivoni Richter. Cf. REIMER, H. e REIMER, I. R., Tempos de Graça: o jubileu e as tradições jubilares na Bíblia, São Paulo, Sinodal/Paulus/Cebi, 1999, pp. 120-121. Giordani oferece inúmeros editos apresentando várias maneiras punitivas e sansões físicas impostas pelos imperadores. Cf. GIORDANI, M. C., História de Roma: antiguidade clássica II, Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 336-346. 216 precedente e aqui retomados, no desejo de compreendê-los em seu contexto vital. No âmbito literário, a Mishná, numa época drástica no cenário internacional, mantém seu posicionamento absoluto de agradar a YHWH e cumprir os preceitos da Torá. Segue-se a análise de diferentes práticas religiosas vivenciadas pelas comunidades, num cenário totalmente adverso. Nota-se, aí, a importância das leis da Torá e a comprovação de que o judaísmo mishnaico soube, não somente receber, mas também contextualizar as normas do Dt em fatos do dia-a-dia da vida social. Sobre isso, podem-se citar três aspectos disso: a) O dever de disponibilizar os dízimos: YHWH exerce sua soberania, original e sustentadora de todas as outras realidades. Ao reconhecer a soberania de YHWH, e sabedores das inúmeras vicissitudes históricas ocorridas no passado, os sábios buscam meios para implementar o desejo da suprema divindade. Quando comparado à narrativa de Dt 26,13, cinco tratados da Mishná (Dem 1,2; Shebi 7,1; Msh 5,10; Meg 2,5 e Sot 9,10), apresentados no capítulo V, de modo descritivo, mostram diferentes realidades sociais. É nítido o desejo de jamais violar um preceito estabelecido pela Torá – entenda-se nesta parte do trabalho, o Dt. Os tratados deixam claro que a prática de recolher o dízimo e destiná-lo ao templo, ou aos grupos socialmente pobres, não caiu em desuso no período mishnaico. Sobre o dízimo duvidoso não se aplica nenhuma lei. E não podia ser diferente. Afinal, não é sagrado e, por isso, não pesa sobre ele nenhuma norma. A comparação revela o alto senso de receptividade das leis expressas no Dt. b) O direito dos pobres pela respiga: A realidade social da comunidade judaíta, durante o domínio romano não foi diferente de épocas passadas. Embora a vida das comunidades, no interior do império, fosse gradativamente se tornando mais branda, podem-se perceber, de maneira evidente, os esforços em zelar pelo bem estar da comunidade26. As normas da Mishná visam fazer valer a prática do direito no diaa-dia dos pobres (Pea 4,3; 6,4; 7,7; Ned 11,3; Git 5,8; BM 9,13). O judaísmo do primeiro século não se impõe como religião. Caracteriza-se mais com ações ou práticas devocionais e sociais para garantir a sobrevivência de seus membros. Nestes 26 No governo do imperador Antonio Pio (138-161) a vida das comunidades judaicas, gradativamente, começa a usufruir de melhores meios de sobrevivência. Tribunais são reorganizados, escolas abertas. Os grupos espalhados pelo vasto império gozam de toda efervescência arquitetônica do final do segundo século. Cf. de MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 51. 217 tratados, nota-se que homens e mulheres são tratados com os mesmos direitos, vistos como inalienáveis. Não se pode violar o preceito divino, muito menos o direito da pessoa. c) Denúncia contra a violação dos diretos dos pobres: Nota-se um conceito inovador da tradição judaica na defesa do direito da pessoa do pobre, expressa de modo literário. E não poderia ser de outra maneira. O tratado Ab 5,9, apoiando-se na lei do dízimo trienal a ser disponibilizado aos pobres, denuncia os atos negligentes daqueles que visam arruinar a vida dos pobres, negando-lhes o direito de usufruir da décima parte dos produtos ou bens acumulados no período de três anos. Os rabinos, de posse de toda essa tradição literária, optam pelo enaltecimento da justiça. Criticam a violação dos direitos. Não se percebe, em nenhum momento sequer, desejo de encobrir situações errôneas, em detrimento de um possível poder local, ou na manutenção de privilégios de pessoas ou grupos. A convivência fraterna, no interior da comunidade, deve expressar o ideal de viver e instaurar a máxima harmonia social. O ideal de viver sob as bênçãos de YHWH é medido na proporção em que o direito e a justiça são praticados e mantidos na vida dos pobres. Quer para a Torá, quer para a Mishná, bem como para toda a tradição judaica, não há outro modo de experimentar que “Deste modo te abençoará YHWH, teu Deus, em todas as obras que tuas mãos realizarão” (Dt 14,29). 218 7 Referências bibliográficas 1. Edições Bíblicas BÍBLIA - Tradição Ecumênica, GALACHE, G. C. e KONINSGES, J. (Orgs.), São Paulo, Edições Loyola, 1994, 2480 p. BÍBLIA DE JERUSALEM, BAZAGLIA, P. e BORTOLINI, J. (Orgs.), São Paulo, Editora Paulus, edição revisada, 2002, 2205 p. Bíblia Hebraica Stuttgartensia, ELLGER, K. e RUDOLPH, W. 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