EDITORIAL T á cada vez mais down no high society! Down, down, down... cantava Elis Regina, ironizando as angústias da periclitante classe média brasileira, nos anos 70, na canção de Rita Lee. Down passou a substituir “fossa” e foi substituído por deprê! Por que será que fazemos de nosso sofrimento um espetáculo? Décadas antes, Nelson Cavaquinho avisava: “Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com minha dor”. Nossos humores são assim, exigem acompanhamento, querem se impor aos nossos semelhantes, a todo mundo, se possível. Na impossibilidade de contaminar o mundo, serve o nosso parceiro amoroso, os familiares e até os amigos! Melhor ainda será convencer nosso analista das perfeitas razões do nosso (mau) humor, insinuando sua parcela de culpa no caso ou sua total impotência para revertê-lo. “Tristeza não tem fim, felicidade sim!” dizem os versos de Vinícius de Morais para a bela música de Tom Jobim, traduzindo a melancolia da alma brasileira. O sentimento de tristeza e seus efeitos colaterais para os humanos tornaram-se, em nossa época, doença e diagnóstico pret a porter. Mas, antes de desdenhar desse estado de coisas, podemos interrogá-lo, tentar decifrar a metáfora em que se constitui. Esse é um dos ângulos da questão que o cartel-eixo deste ano vem trabalhando na APPOA e que podemos acompanhar nos textos que compõe este número do nosso Correio. Na seção Debates, retomamos a discussão sobre a reforma psiquiátrica e a legislação e sobre os efeitos clínicos e sociais correspondentes à nova lei: ela muda os antigos estigmas relativos ao “louco”? Ajuda-nos a pensar a questão a entrevista que Miriam Chnaidermam concedeu à pedagoga Noemi de Araújo e ao professor de Teoria do Cinema Rubens Machado Junior sobre seu filme “Dizem que sou louco”, que trabalha com a figura do “louco de rua”. No que se refere às tentativas de regulamentar como profissão o trabalho dos psicanalistas, consideramos oportuna a questão levantada por Charles Melman na Fundação Européia pela Psicanálise, sobre se a Psicanálise é uma questão de Estado e quais as conseqüências de tal atrelamento. No texto de Charles Melmam, encontramos o entrecruzamento destes temas: o sofrimento psíquico, a demanda de alívio, as propostas de cura C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 1 EDITORIAL NOTÍCIAS e a promessa política de defender os cidadãos contra os maus profissionais. É grande a pressão pela resposta rápida e coletiva (que poupe o sujeito do trabalho de encontrar o que perdeu naquilo que ele diz que perdeu, de economizar o trabalho do luto, de encontrar suas referências privadas). Os analistas não estão vacinados contra os ideais de sua época, de modo que não é fácil suportar o irrealizado de seu paciente, o fracasso, mesmo que se saiba que o inconsciente é o irrealizado, o incorreto, o não-conforme, como nos diz Melmam. A insuportabilidade do ponto de ignorância da qual todos participamos é o que faz o sucesso dos novos medicamentos que a pesquisa de ponta indicou. Só que esta, parece, só vê a ponta do iceberg! 2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 JORNADA APPOA 2001 “OS NOMES DA TRISTEZA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA” Certas palavras ganham significados tão amplos que, em certos momentos, seus contornos ficam imprecisos e acabam servindo para dizer tudo e mais um pouco. Foi assim no passado com o termo “melancolia”, e é hoje com o que chamamos de “depressão”. A verdade é que nomear a tristeza e a diversidade de seus estados sempre foi difícil. Ninguém escapa das mazelas desta experiência, mas somos pouco capazes de chegar a uma idéia sobre o que de fato nos acomete. No vácuo desta confusão de sentimentos é que este sintoma ganhou vida própria e hoje nomeia boa parte dos diagnósticos clínicos. Tudo cabe debaixo do guarda-chuva da depressão: inibições, angústias, mal-estares difusos, fobias, qualquer sofrimento pede abrigo ao termo. O que há em comum a todas as histórias é a recorrência de um discurso de que nada, nem ninguém, será capaz de produzir a felicidade. Chegamos, assim, à definição desta tristeza moderna: trata-se da dificuldade de lidar com a falta de felicidade. Acorremos, então, com todo tipo de soluções, drogas, placebos e sedação à dor. Queremos acima de tudo não enfrentar a inevitável condição de existir. Se reclamamos tanto da falta da felicidade é porque acreditamos que não basta existir se não houver algo que justifique, marque, recompense, motive uma vida. A empreitada coletiva da humanidade já não é um propósito de fácil apreensão. Sem ilusões coletivas, resta o que cada um pode arrancar de sua passagem pela terra, e a palavra que sintetiza esta expectativa é: felicidade. O papel da psicanálise sempre foi o de escutar o que se impõe sintomaticamente em uma época. Foi assim que deu voz às mulheres no século passado. Agora, a tarefa é escutar a tristeza, a melancolia e a depressão, em suas aproximações e diferenças, para que isso faça efeitos naquele que fala e naquele que escuta. A clínica dessas patologias nos leva a pensar C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 3 NOTÍCIAS NOTÍCIAS sobre o suicídio, a dor, a culpa, o infantil, as toxiconamias, uma direção da cura através da sublimação e outros pontos relacionados a essa problemática, a qual, acreditamos, tem tanto a dizer. Data: 29 e 30 de setembro de 2001 Local: FEDERASUL Largo Visconde do Cairu, 17 – 6o. andar Porto Alegre – RS PROGRAMA SÁBADO – 29 /09 MANHÃ: 9h Cortina de vidro – Maria Ângela Brasil, Psicanalista, Presidente da APPOA O vírus da desesperança – Ligia Gomes Víctora, Psicanalista, membro da APPOA (intervalo) Luto e melancolia na infância – Norma Brunner, Psicanalista, membro do Centro Lydia Coriat de Buenos Aires – Argentina TARDE: 14h A dor do melancólico – Sandrine Malem, Psicanalista, membro da Association Psychanalyse et Médecine de Paris – França A vida por um fio – Rosane Monteiro Ramalho, Psicanalista, membro da APPOA (intervalo) O supereu nas neuroses de transferência e na melancolia – Liz Nunes Ramos, Psicanalista, membro da APPOA A sublimação na melancolia – Lucia Alves Mees, Psicanalista, membro da APPOA DOMINGO – 30 / 09 MANHÃ: 9h Tem remédio de pressão? – Eduardo Mendes Ribeiro, Psicanalista, membro da APPOA O luto do objeto nas toxicomanias – Marta Conte, Dra. Psicologia Clínica PUC/SP, Coord. Política Estadual de Drogas SES/RS (intervalo) Quem é o culpado das nossas perdas – Alfredo Jerusalinsky, Psicanalista, membro da APPOA 4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 INSCRIÇÕES: Pagamento antecipado até dia 14/9/2001 Após 15/9/2001 e Inscrições no local: Associados R$ 35,00 Estudantes R$ 40,00* Profissionais R$ 50,00 Associados R$ 50,00 Estudantes R$ 55,00* Profissionais R$ 70,00 – As inscrições poderão ser feitas na APPOA, ou por fax (mediante depósito no Banco Banrisul; agência 032; conta-corrente 06.039972.0-6; ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE). – * Estudantes devem apresentar, ou enviar por fax, comprovante de matrícula em CURSO DE GRADUAÇÃO. PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA – INTERNAÇÃO HOSPITALAR Freqüentemente os psicanalistas se deparam em sua clínica com situações de crise, casos que requerem internação ou intervenção, inclusive medicamentosa. Tais situações convocam a interlocução e o trabalho compartilhado com a psiquiatria, num trânsito nem sempre fácil. No intuito de viabilizar o trabalho analítico nestas circunstâncias especiais, foi criado na cidade um serviço de internação na Clínica São José. A proposta teve origem nas discussões e é um efeito do trabalho de um cartel na APPOA, dedicado às questões da psicose. Teve início com o estudo do Seminário de J. Bergès e G. Balbo – “Há um infantil na psicose?” e interlocução com colegas da École de Psychanalyse de L´Hôpital Sainte Anne – Centre Henri Rousselle – Paris. É um serviço de psicanálise e psiquiatria voltado ao tratamento de múltiplos transtornos psíquicos que possam necessitar de hospitalização e organizado por Adão Costa, Conceição Beltrão, Maria Auxiliadora Sudbrack e Mário Fleig. Informações sobre procedimentos e encaminhamentos: Fone/fax:051 32221281 e-mail:[email protected] C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 5 NOTÍCIAS NOTÍCIAS EXERCÍCIOS CLÍNICOS Título: Quando uma análise parece que “não anda”. (Análise de um caso clínico) Dia: 15 de setembro – sábado Horário: 9h30min Proponente: Diana Lichtenstein Corso. Debatedores: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira. Atividade vinculada ao Cartel “A melancolia e as depressões”. PSICANÁLISE COM CRIANÇAS Comunicamos que o grupo temático ”Psicanálise com crianças”, encerrado no mês de junho com os seminários de Marta Pedó, deu origem a um Cartel sobre o mesmo tema. Temos nos reunido quinzenalmente, nas quartasfeiras, no horário das 20h15min, na sede da APPOA. Começamos lendo textos freudianos, o primeiro deles, “Três ensaios...”, pretendemos seguir a leitura de Freud, à luz da discussão de casos clínicos. Participantes: Ana Sílvia Espig, Clarice Trombka, Elaine Rosner, Eliana Dable de Mello, Roselene Gurski, Giovana Cavalcante. Os interessados em participar, favor contatar a secretaria da APPOA. CONFERÊNCIA E DEBATE No dia 19 de setembro de 2001, às 20h, será realizada uma Conferência e, posteriormente, um debate com Ivan Izquierdo e Alfredo Jerusalinsky, intitulada “Memória e depressão”. 6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 JORNADA SOBRE ADOLESCÊNCIA EM BLUMENAU Nos dias 21 e 22 de setembro, acontecerá em Blumenau – SC, a Jornada “Adolescência e seus Impasses”, abrindo mais um espaço de discussão sobre a passagem adolescente e suas vicissitudes. O Programa de Pesquisa e Extensão “Adolescência e Experiências de Borda” terá uma participação significativa no evento, sendo que todos os palestrantes fazem parte do grupo de pesquisadores. A Jornada está sendo promovida pelo Departamento de Psicologia e pelo Centro Acadêmico de Psicologia da Universidade Regional de Blumenau – FURB. PROGRAMA Sexta-feira 21/09/2001 18h30min – Entrega das credenciais 19h30min – Abertura 20h – Mesa Temática: Adolescência e Contemporaneidade Palestrante – Clara Maria von Hohendorff Debatedora – Valéria Machado Rilho Sábado 22/09/2001 8h30min – Mesa Temática O Adolescente e a Escola Palestrante – Ângela Lângaro Becker Debatedora – Diana Lichtenstein Corso 10h – Coffe Break 10h30min – Mesa temática – Clínica com Adolescentes Palestrante – Diana Lichtenstein Corso Debatedora – Ana Laura Giongo Vaccaro 14h30min – Mesa Temática A Exclusão Adolescente Palestrante – Valéria Machado Rilho Debatedora – Ângela Lângaro Becker, 16h – Coffe Break 16h30min – Mesa Temática Adolescência e Sexualidade Palestrante – Ana Laura Giongo Vaccaro Debatedora – Clara Maria von Hohendorff C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 7 NOTÍCIAS SEÇÃO TEMÁTICA Local – Centro de Convenções Willy Sievert – Proeb Blumenau SC Inscrições – Profissionais: R$25,00 Estudantes: R$15,00 Informações pelo telefone: (47) 321 0280 Apoio – Pró-reitoria de Extensão e Relações Comunitárias Centro de Ciências da Saúde – FURB MUDANÇA DE TELEFONE Ana Maria Medeiros da Costa informa seu novo telefone: 9685 2697. ERRATA No último Correio n. 93, p. 14, saiu grafado incorretamente o nome da autora da notícia “Um vôo interrompido: Norberto Irusta”, o nome correto é Jandira K. Mengarelli. Rosane Monteiro Ramalho é participante do Cartel “Figurações do feminino na Psicanálise” editado no Correio da APPOA, nº93, p. 4. A seção temática deste número do Correio é dedicada ao tema que constitui o eixo dos trabalhos da APPOA, neste ano: a clínica das depressões e da melancolia. A especificidade da depressão em relação à melancolia, o trabalho de luto, anorexia e bulimia, as relações entre adolescência e melancolia são algumas das questões que o leitor encontrará trabalhadas, nas páginas a seguir. Os textos, aqui reunidos, desdobram algumas idéias fundamentais, que já vêm sendo discutidas em torno do assunto, em diversos momentos de trabalho – na Jornada de Abertura, no “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA”, no espaço do cartel – e em nossas publicações – a Revista n. 20 e o Correio n.90 (maio de 2001). Neste mês de setembro, com a jornada “Os nomes da tristeza na clínica psicanalítica” e a publicação deste Correio, damos continuidade à produção em torno deste eixo temático. Agradecemos àqueles que contribuíram para a produção desta edição e desejamos a todos uma boa leitura! Gerson Smiech Pinho Maria Lúcia Müller Stein 8 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 9 SEÇÃO TEMÁTICA RIBEIRO, E. M. Depressão é mais do que... DEPRESSÃO É MAIS DO QUE UM SENTIMENTO Eduardo Mendes Ribeiro A relação, ou distinção, entre melancolia e depressão tem sido objeto de estudo e discussão em diversas reuniões de trabalho na APPOA. Como forma de contribuição para o debate, quero assumir uma posição em defesa da “depressão”, ou seja, do interesse clínico e teórico de se trabalhar com este significante. Digo isto porque tem sido freqüente a consideração de que sob o nome de “depressão” costuma ser designada uma variedade de formas de sofrimento psíquico, o que tornaria este termo excessivamente abrangente e pouco preciso; ou de que esta expressão se refere apenas à superficialidade de um fenômeno, sem considerar suas raízes mais “profundas”, que deveriam ser buscadas na investigação da natureza do conflito psíquico inconsciente que lhe deu origem. Proponho um entendimento diferente por duas razões. Em primeiro lugar, porque me parece importante relacionar os conceitos teóricos de nosso campo com as expressões de senso-comum: quando nossos pacientes afirmam estar deprimidos, eles sabem do que estão falando, e é importante que possamos problematizar este saber; e, em segundo lugar, porque entendo ser possível utilizar a noção de “depressão” para designar um tipo de sofrimento psíquico, e mesmo de posição subjetiva, que se define na relação que o sujeito mantém com seus ideais. Ideais estes que se constituem não somente no âmbito das relações familiares primárias, mas, também, sob influência do contexto sócio-cultural em que ele se encontra inserido. Sabemos que as primeiras relações sociais, geralmente mantidas no universo familiar, definem um “modo de ser”, que chamamos de estrutura psíquica. Trata-se de um modo de lidar com a falta, com os ideais, com a alteridade, e que produz, também, uma determinada imagem de si. Posteriormente, o conjunto mais amplo de relações sociais mantidos pelo sujeito adolescente/adulto determina o repertório de alternativas de que 10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 ele dispõe para dar sentido e responder às diversas formas de mal-estar com que se depara. Evidentemente, existe uma continuidade entre estes dois momentos lógicos. Ou seja, o “modo de ser” orienta o processo de inserção social de cada indivíduo. Entretanto, e este é o ponto que pretendo enfatizar, não me parece que o trabalho analítico com todo sofrimento psíquico, e em especial com a depressão, deva partir necessariamente da interpretação dos processos primários de constituição subjetiva, ou seja, da forma específica como se definiu uma estrutura psíquica, ou, como estou chamando, um “modo de ser”. Interpretações desta ordem podem surgir no percurso de uma análise, mas não são condições necessárias para a produção de efeitos analíticos. Em outras palavras, quero propor o entendimento de que a “profundidade” de uma análise não depende de quanto se volta para trás. No campo psicanalítico, no que diz respeito à relação entre melancolia e depressão, encontramos posições diferentes e divergentes: para alguns, a depressão é considerada uma forma atenuada de melancolia; para outros, melancolia designa uma estrutura subjetiva, enquanto depressão diz respeito a um estado de humor passageiro; para outros ainda, trata-se de relações diferentes, pois a melancolia define-se a partir de uma forma específica de constituição do eu-ideal, enquanto na depressão a relação em questão é com o ideal-de-eu. Não pretendo fundamentar uma diferenciação entre estes termos, mas, para poder apresentar alguns argumentos que me interessam, preciso partir de um entendimento do que seja melancolia e do que seja depressão. Estou entendendo “melancolia” como um “modo de ser” marcado pela fragilidade com que se constituiu o eu-ideal, ou seja, por um tipo de relação com o Outro materno em que o sujeito produziu uma imagem de si um tanto precária. Este modo de ser faz com que o sujeito apresente uma tendência a assumir estados depressivos que, mesmo quando desencadeados por fatos de realidade, remetem a uma “falha” em sua constituição subjetiva. Uma investigação etiológica destes casos remeteria à análise da relação com o Outro materno. Por outro lado, poderíamos também nos questio- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 11 SEÇÃO TEMÁTICA RIBEIRO, E. M. Depressão é mais do que... nar sobre a relação que muitas mães mantém com seu Outro, ou, em outras palavras, tentar entender o que faz com que estas mães tenham tanta dificuldade para investir seu desejo em seus filhos, ou ainda, de forma mais genérica, em como conciliar cultura narcísica e maternidade. Sabe-se que muitas mães exercem suas funções como se estivessem seguindo o manual da boa mãe. O que fica em primeiro lugar é elas serem reconhecidas como boas mães. E estou entendendo por “depressão” uma posição (ou situação) subjetiva em que preponderam os sentimentos de desânimo, apatia e uma imagem de si desvalorizada. Excetuando-se os casos de modos de ser melancólicos, os estados depressivos decorrem de circunstâncias existenciais em que o sujeito se vê, ou privado de uma referência ao ideal-do-eu, ou impotente frente a exigências superegóicas a que não consegue satisfazer. Eu não estou preocupado em estabelecer uma distinção entre ideal-do-eu e supereu, pois estou me referindo a uma instância responsável, tanto por orientar um vir-a-ser do sujeito, quanto por exigir que ele atinja este ideal. Na teorização freudiana, o ideal-do-eu deriva do supereu, representando a transformação da autoridade parental num modelo referencial. Se aceitarmos, ainda que por hipótese, estas definições, estaremos lidando com duas realidades qualitativamente distintas: uma afirma-se como um modo de ser, dotado de certa estabilidade (a melancolia); e outra mostrase como um modo de estar, produto de uma série de contingências que envolvem a relação do sujeito com os ideais que recebe do Outro, ou da cultura (a depressão). Qual o interesse de optar por esta conceituação? Colocando as coisas desta forma, torna-se possível legitimar teoricamente um fenômeno clínico – a depressão –, cuja realidade não dá para desconsiderar, interpretando-a como produto das relações entre o eu e o supereu cultural, como chamava Freud; ou com o ideal-do-eu, como preferiria Lacan. Vejamos algumas passagens do texto freudiano que ajudam a fundamentar esta proposta: “Outro ponto de concordância entre o superego cultural e o individual é que o primeiro, tal como o último, estabelece exigências ideais estritas, cuja desobediência é punida pelo medo da consciência”. “Algumas das manifestações e propriedades do superego podem ser mais facilmente detectadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no indivíduo isolado”. “Caso se exija mais de um homem, produzir-se-á nele uma revolta ou uma neurose, ou ele se tornará infeliz”1. O supereu cultural, agente destas exigências ideais mencionadas por Freud, certamente constitui uma instância referencial para as possibilidades de gozo, mas também indicativa de seu fracasso. Sendo assim, me pergunto por que haveríamos de considerar o sofrimento produzido pela relação com o supereu cultural menos legítimo ou profundo do que aquele que se refere ao supereu individual? Chamar de “depressão” a posição em que se encontra este sujeito seria adotar uma noção psicológica, que desconsidera os conflitos inconscientes? A consideração de que na sociedade contemporânea a cultura do narcisismo apresenta-se como tendência hegemônica, no sentido de que, na dificuldade de constituição de ideais orientados para o futuro, as preocupações dirigem-se à busca de satisfações imediatas, não autoriza a conclusão de que estes conflitos situem-se fora do campo do inconsciente. Não esqueçamos da dimensão inconsciente do ego. Não basta reconhecer a natureza dos conflitos intrapsíquicos, é necessário, também, compreender a lógica que rege as relações entre o sujeito e o social na cultura contemporânea. Afirmar que estas relações são sempre singulares é uma meia verdade, pois não há como desconhecer que compartilhamos de um mesmo mundo simbólico e de um imaginário social que nos atravessa. É verdade que a forma como se constitui uma subjetividade, uma estrutura psíquica, um modo de ser, determina em grande parte sua produção C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 12 1 Freud, Sigmund. O Mal-estar na civilização [1930]. Em Obras Completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. 13 SEÇÃO TEMÁTICA RIBEIRO, E. M. Depressão é mais do que... sintomática, mas a observação clínica nos mostra que existem sintomas, como a depressão, que não são monopólio de nenhum tipo específico de constituição subjetiva. Aliás, não vejo qual o interesse que haveria em cristalizar uma amarra entre estrutura psíquica e sintoma. Se assumirmos esta posição, corremos o risco de abrir mão do que o estruturalismo tem de mais elucidativo, que é sua análise relacional de valor, que prescinde das interpretações causais; e de assumir o que ele tem de mais problemático, que é o caráter estático das estruturas, que dificulta a compreensão de suas transformações. O modo de ser com que nos constituímos é dotado de grande estabilidade, mas, como toda estrutura, ele é apenas formal. Por outro lado, nossa relação com o mundo externo, com o social, é extremamente dinâmica. Existe uma instância psíquica que assume esta função, a de regular nossa relação com o Outro, com o mundo: é o ideal-do-eu. O ideal-do-eu, que tem seus contornos delineados a partir das expectativas parentais, assume formas mais definidas no convívio social mais amplo, ao deparar-se com uma pluralidade de modelos identificatórios que se oferecem como signos de valor. Entretanto, em uma sociedade individualista, é possível que o que se receba dos pais seja a afirmação de um desejo que pode parecer tão generoso, como vago e inútil. Algo do tipo: “só queremos que sejas feliz e tenhas sucesso no caminho que escolheres”. Ora, “ser feliz” e “ter sucesso” não é uma tarefa fácil. “Feliz” como? “Sucesso” em que? Se os pais não são capazes de apontar algo que mereça ser desejado, esta orientação será buscada no que a sociedade afirma ser valor. Na dificuldade de constituir um ideal capaz de servir de orientação para seus investimentos, não é de se estranhar que muitos jovens adultos posterguem, às vezes indefinidamente, a separação dos pais e, em casos extremos como na toxicomania, refugiem-se em um mundo privado, limitando ao máximo suas relações de alteridade. Em outros casos, nas chamadas crises de meia idade, não é incomum o surgimento de quadros depressivos, quando o sujeito percebe que dificil- mente conseguirá realizar os ideais que assumiu como objetivos em sua vida. Muitas vezes, estas pessoas parecem ter realizado uma série de coisas importantes, mas nada que possa ser considerado como a conquista da felicidade, ou o ápice de um sucesso profissional. Por outro lado, sabemos também que não é apenas o fracasso em atingir nossos ideais que produz depressão. Pode ocorrer exatamente o contrário, quando, depois de realizar algo muito desejado, encontramo-nos “abandonados pelo nosso ideal”, para usar uma expressão de Melman. Seja como for, trata-se de conflitos que remetem ao que temos de mais íntimo, não se situando no campo limitado às frustrações egóicas. Não se deve confundir o conflito do eu com seus Ideais com uma psicologia do ego, de bases estritamente conscientes. Afinal, se o ego é por definição uma instância conservadora e refratária a tensões, o ideal-do-eu representa o vetor da atividade desejante. Se encarada dessa forma, a problemática depressiva não se encontra necessariamente associada, como entende Roudinesco, a uma “valorização dos processos psicológicos de normalização, em detrimento das diferentes formas de exploração do inconsciente”2. Mas, por outro lado, ela tem razão ao alertar para o fato de que ultimamente se tornou prática comum tratar diferentes formas de sofrimento psíquico através de ansiolíticos e antidepressivos, e/ou com o recurso a técnicas comportamentais. Tudo em nome de um combate à depressão. A idéia de que a depressão é uma doença que pode e deve ser curada, como qualquer outra doença, estimula a adoção de terapêuticas rápidas e “eficazes” no combate dos sintomas que, neste caso, acabam se confundindo com a doença. Esta recusa da legitimidade do sofrimento psíquico encontra-se em consonância com uma ideologia que não vê limites nas possibilidades humanas de superação de tudo que impeça seu bem-estar. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 14 2 Roudinesco, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. 15 SEÇÃO TEMÁTICA Sem dúvida, como aponta Roudinesco, o significante “depressão” pode encontrar-se associado a essa ilusão narcísica, mas isso não implica que o rejeitemos. Pelo contrário, faz parte de nossa prática auxiliar na produção de novas articulações entre as manifestações narcísicas e seus determinantes simbólicos, na busca de uma posição subjetiva em que desejar seja possível. PEREIRA, R. de F. Luto impossível... LUTO IMPOSSÍVEL, MELANCOLIA INSTAURADA Robson de Freitas Pereira “Posteriormente [em 1915] fiz uma tentativa para produzir uma ‘Metapsicologia’. Com isso eu queria dizer um método de abordagem de acordo com o qual todo processo mental é considerado em relação com três coordenadas, as quais eu descrevi como dinâmica, topográfica e econômica, respectivamente; e isso me pareceu representar a maior meta que a psicologia poderia alcançar. A tentativa não passou de uma obra incompleta; após escrever dois ou três artigos – ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’ [1915c], ‘Repressão’ [1915d], ‘O Inconsciente’ [1915e], ‘Luto e Melancolia’ [1917e] etc. – fiz uma interrupção, talvez acertadamente, visto que o tempo para afirmações dessa espécie ainda não havia chegado. Em meus mais recentes trabalhos especulativos entreguei-me à tarefa de dissecar nosso aparelho mental, com base no ponto de vista analítico dos fatos patológicos, e o dividi em um ego, um id e um superego. O superego é o herdeiro do complexo edipiano e representa os padrões éticos da humanidade”. S. Freud N este trecho da obra “Um estudo autobiográfico”, Freud explica as razões de haver escrito “Luto e Melancolia”. Insere o texto em uma tentativa de construir sua metapsicologia, fornecendo-nos uma idéia concisa do que para ele constituir-se-ia este projeto. Podemos lembrar, também, que este tema aparece quase como uma continuação das elaborações de “Introdução ao narcisismo” e contemporâneo de “Considerações atuais sobre a morte e a guerra”. O psicanalista Jacques Hassoun disse certa vez que estas “Considerações” apelavam à metapsicologia, para compreender as transformações subjetivas articuladas com os efeitos da Primeira Guerra Mundial, de 1914/1918, verdadeiro marco de inauguração século XX. Freud abandona o projeto da metapsicologia: para ele tornou-se impossível constituir uma teoria geral dos processos mentais a partir da articulação de três coordenadas (vide citação acima). 16 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 17 SEÇÃO TEMÁTICA Nos parece importante destacar a referência a incompletude da tarefa, não como signo da impotência do inventor da psicanálise, mas como significante extraído da impossibilidade de inventar uma teoria, “com base no ponto de vista analítico dos fatos patológicos”, que desse conta totalmente daquilo que ele denominava “aparato mental”; ou mesmo da complexidade paradoxal da vida social. Coerente com esta posição, Freud fazia questão de afirmar que os avanços na clínica podiam não ser abundantes, mas um passo teórico, mesmo pequeno, não era desprezível. Mais uma vez, podemos observar que ele não descartava os avanços, sabidamente incompletos. A psicanálise “apresenta suas armas” reconhecendo a impossível universalidade de uma teorização seja sobre a subjetividade, seja sobre os laços sociais. Quer dizer, faz da castração seu limite e não se propõe como “visão de mundo”. As questões abordadas por Freud em “Luto e melancolia” mostram sua atualidade quando, a partir delas, podemos tentar algumas observações concernentes ao trabalho de luto que os psicanalistas ainda hoje tem que fazer para manter viva sua prática. Reconhecendo o buraco ao redor do qual o fundamentalismo religioso e a hegemonia cientificista fazem suas promessas de recobrimento, simultaneamente fascinantes e terroríficas. PEREIRA, R. de F. Luto impossível... TÓPICOS FREUDIANOS DESDOBRAMENTOS LACANIANOS Por muitas razões somos obrigados a fazer escolhas. A lógica do inconsciente determina nossa escrita. Ainda mais neste breve comentário. Assim, tentaremos nos ocupar de dois tópicos: seu posicionamento clínico, ou seja, a dimensão transferencial intervindo diretamente na elaboração conceitual e, a falta de objeto como dimensão estrutural para a clínica da melancolia e das depressões. Nos parece evidente que quando falamos em trabalho na transferência e relação de objeto, o psicanalista está em causa. Seja pelo exercício de sustentação de uma prática cuja ética está suportada pelo desejo (do psicanalista); seja pelo reconhecimento de que um psicanalista é sintoma da psicanálise. Tirar conseqüências deste enunciado, por mais enigmático que ele possa parecer, é uma das responsabilidades da comunidade dos psicanalis- tas. Ele está referido aos efeitos da análise de cada um, nesta trajetória incerta onde se reconhece que sintoma é sinal do sujeito e que a passagem de analisante a analista não está referida a uma prática do bem ou da virtude sublime. É trágico que ainda hoje vejamos se reproduzir análises onde o principal resultado é a identificação com o analista (e seus desdobramentos religiosos ou de inibição). Sintoma que Lacan fez questão de interpretar desde a década de 50. Por sua dimensão real, o sintoma pode nos ajudar a lidar com a falta. Por suas articulações com Simbólico e Imaginário pode orientar a escuta. Esta escuta que se ocupa das formações do inconsciente, desdobra uma prática clínica que implica esta dimensão da coragem para enfrentar a angústia de se dispor ao lugar de objeto causa de desejo do outro. Lembremonos da escrita do discurso do psicanalista, onde o pequeno a está no lugar de agente e o Sujeito barrado no lugar do outro; conseqüentemente S1 ocupa o lugar da produção e S2, o saber, coloca-se no lugar da verdade. Ocupar um lugar de objeto baliza desde uma representação preciosa até o dejeto. A questão crucial implica em como faz um psicanalista para desvencilhar-se deste semblante de objeto, sem propôr promessas de completude, ou a reiteração do amor ao pai, nas suas mais diversas aparências. “O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica”. Assim, Freud se expressa logo no início de seu texto. Onde após descrever seu método de análise – homólogo ao trabalho da significação dos sonhos – tentará trabalhar a melancolia em comparação com o luto. As características da melancolia estão na mesma linha dos transtornos causados pelo luto com esta diferença fundamental de que na melancolia, o Eu do sujeito encontra-se no lugar central e, mais do que isto, é este Eu que será degradado. “A perturbação da auto-estima está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas”, afirma Freud. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 18 19 SEÇÃO TEMÁTICA PEREIRA, R. de F. Luto impossível... O trabalho freudiano avança no sentido de descrever como o sujeito relaciona-se com uma perda e quais os fatores que podem fazer com este trabalho de luto passe a se transformar numa situação melancólica. A perda relaciona-se com um objeto amado e, conseqüentemente, idealizado. ”Onde as causas excitantes se mostram diferentes, pode-se reconhecer que existe uma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor”. Acrescentemos que certos aspectos da parcialidade do objeto e sua dificuldade de apreensão devem-se a gama de significações das quais está investido este objeto perdido. Como verificamos na afirmação de Freud: “... mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém”. Estas observações serão amplamente desenvolvidas por Lacan, principalmente em seu seminário sobre “A transferência”, onde, a partir da noção de imparidade subjetiva, desenvolve a dialética das posições do “amado” e do “amante”, onde ambos encontram articulados por seu lugar de desconhecimento. O amado não sabe o que o outro vê nele, assim como o amante não sabe exatamente o que o faz desejar. Mas retornemos ao quadro clínico freudiano. Freud insiste na perda da auto-estima, onde o EU passa a ser fonte de todas as mazelas, como uma das características essenciais da melancolia. Além disto, apresenta uma série de desdobramentos, efeitos da patologia do luto que nos levam a pensar na atualidade desta clínica. “Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e – o que é psicologicamente notável – por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida”. Esta observação, além de outras ao longo do texto, apontam a insônia e os graves transtornos alimentares atuais (anorexia, bulimia) como podendo ser estudadas como uma transformação do Eu, na sua identificação com o objeto perdido. O suicídio e a mania também são outros efeitos citados no texto. Quando falamos anteriormente na angústia que um psicanalista tem que suportar, podemos nos referir a esta tarefa solitária; onde fazer atos que cortem com os diversos desdobramentos patológicos da tristeza (no Brasil: termos singulares como ‘saudade’, ‘banzo’ mostram os deslizamentos de nossa língua para nomear o inominável), nos levam ao encontro transferencial com a impotência, com os remorsos e pesadelos noturnos e diurnos por mortes não elaboradas. Daí a necessária função da instituição dos analistas. Freud nos indicou também um caminho para a escuta. O sintoma é algo da ordem da verdade para quem sofre. Não é o caso de se fazer juízos de valor a respeito das queixas e suas respectivas demandas. “Seria igualmente infrutífero, de um ponto de vista científico e terapêutico, contradizer um paciente que faz tais acusações contra seu ego. Certamente, de alguma forma ele deve estar com a razão, e descreve algo que é como lhe parece ser”. A pergunta freudiana dirige-se então muito mais no sentido do porquê uma pessoa precisa adoecer para ter acesso a uma verdade sobre si mesmo. “O ponto essencial, portanto, não consiste em saber se a autodifamação aflitiva do melancólico é correta, no sentido de que sua autocrítica esteja de acordo com a opinião de outras pessoas. O ponto consiste, antes, em saber se ele está apresentando uma descrição correta de sua situação psicológica. Ele perdeu seu amor-próprio e deve ter tido boas razões para tanto”. “É assim que encontramos a chave do quadro clínico: percebemos que as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o eu do próprio paciente”. Apenas uma rápida observação sobre esta articulação com o outro. Ela será extensamente desenvolvida por Lacan, ao descrever a constituição do Eu a partir de sua alienação ao outro, via imagem especular; assim como a identificação do sujeito com a falta de objeto (vide Seminário IV). Sem falar nos desdobramentos das três identificações, a partir do seminário 9 – “a Identificação”, onde o traço unário passa a ter lugar de destaque. Vamos nos ater a observar como Freud apresenta uma das mais importantes contribui- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 20 21 SEÇÃO TEMÁTICA PEREIRA, R. de F. Luto impossível... ções conceituais: a relação com a perda do objeto. Assim, retornamos ao texto. Estas duas citações de “Luto e melancolia” sublinhadas acima, fruto da clínica cotidiana de Freud, nos levam diretamente a pensar a importância fundamental deste processo pelo qual a falta de objeto transforma-se em condição central na análise da melancolia. E, como poder conceituar que “a sombra do objeto” que se projeta sobre o Eu , por este processo de identificação do Eu com o objeto perdido, passe a ter uma função primordial na vida de um sujeito. Freud escreve desta maneira: “Assim a sombra do objeto caiu sobre o eu, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do eu e, o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do eu e o eu enquanto alterado pela identificação”. A partir daqui, vamos a algumas hipóteses. O sombreamento do Eu pode nos interessar no seguinte sentido: trata-se do sombreamento dos suportes simbólicos do Eu. Um recobrimento feito pela dimensão imaginária do objeto que se torna hegemônica. Daí a dificuldade do sujeito que nos fala, na clínica, reinserir os elementos simbólicos que constituem os suportes de sua história e, conseqüentemente, de seu Eu. Seria importante definir de que “elementos” simbólicos estamos falando. Tratam-se de significantes. Significantes fundamentais que perderam sua função de deslizamento ao ficarem presos a sentidos restritos (a serviço da impotência e da tristeza), ou talvez, significantes que não foram inseridos na constelação enunciativa de um sujeito. Alfredo Jerusalinsky, em recente palestra na APPOA, se refere a isto como uma impossibilidade de encontrar uma forma de representação do objeto perdido que re-insira a ordem simbólica. Coerente com a concepção freudiana da melancolia se instaurar quando evidencia-se a impossibilidade de substituição do objeto. O luto é o trabalho feito para elaborar a perda do objeto (sempre perdido) e nossa identificação com esta falta. A melancolia seria um sentimento decorrente do luto e a depressão sua patologia. Nos interessa, em todo caso, acentuar este caráter de hegemonia do imaginário, onde sustentar-se prevalentemente nesta dimensão (ou ditmansion, mansão do bem ou mal dito) implica uma reafirmação da castração em sua vertente imaginária. O Real – cuja impossibilidade deveria aterse ao sintoma e ser reconhecido como impossível, em seus desdobramentos inconscientes e corporais –, fica relegado a tarefa de sustentar esta forma particular de nodalização onde I recobre parte significativa de S. Com isto, estamos fazendo referência a elaboração de Lacan ao relacionar inibição, sintoma e angústia com os registros do Real, Simbólico e Imaginário. Onde o sintoma, em sua condição estrutural, seria o recobrimento do Real pelo Simbólico (aí apareceriam os furos no Real) e, a inibição seria o efeito do sombreamento da dimensão simbólica pelo imaginário. A partir daqui, muitas questões ficam em aberto. Como dissemos no início, seguindo a Freud, a psicanálise está na antítese das totalizações, elas servem para alimentar a potência imaginária do Outro. Mas algumas destas considerações podem ser enunciadas como atuais. Por exemplo: o que funciona hoje como suporte simbólico para um sujeito? A perda da autoestima, num mundo onde a hegemonia do narcisismo é a tônica, pode parecer um sintoma paradoxal. Neste sentido, o imperativo do gozo, traduzido na exigência de felicidade e na promessa de que os objetos podem suprir todas as faltas, no mínimo impõem dificuldades a um trabalho de luto. O imaginário pode fazer esta função simbólica? Sabemos que Nomedo-Pai é um significante de estrutura, porém, como pensar que este é um significante que deve advir na presença da ausência de um significante que encubra a falta no Outro. Este lugar da palavra, que não quer nada do sujeito, mas que, ao mesmo tempo, é constantemente substantivado, feito consistência para que um sujeito possa se suportar na sua existência. Os analistas, em seu trabalho de luto, talvez tenham algo a dizer sobre isto. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 22 23 SEÇÃO TEMÁTICA PEDÓ, M. Luto, melancolia, duplo, desamparo. LUTO, MELANCOLIA, DUPLO, DESAMPARO1 Marta Pedó Penso, portanto, que Freud aponta a mais de um tipo de luto patológico: o primeiro, em alguns casos de neurose obsessiva; o segundo, na melancolia. (Na neurose histérica também deve haver). Texto elaborado para o estudo de “Luto e Melancolia”, de Freud, e apresentado em Canela por ocasião do Relendo Freud e Conversando sobre a Appoa em maio último. 2 Freud, S. “Luto e Melancolia” [1917] in: Obras Completas, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1976. A MELANCOLIA Com seu diferencial último na regressão da libido ao ego, a melancolia guarda em comum com o luto a dor e o dispêndio de energia tão vastos que o ego se apresenta muito empobrecido. É na questão do narcisismo como tipo de escolha objetal e da identificação ao objeto perdido que encontraremos algumas chaves, diz Freud. Após esta pequena introdução, interessa-me apresentar um fragmento da análise de uma senhora cuja principal queixa ela resume na palavra tédio, um sentimento constante na sua vida. Penso em que lugar ocupa esse tedium vitae para ela. É evidente a diminuição de energia disponível de que usufrui, porém não sem angústia. Freqüentemente, também, diz pensar em desaparecer, deixar de ser; isto acontece principalmente à noite, ao deitar-se, quando o que a tranqüiliza e permite o adormecer é pensar que vai dormir e, assim, deixar de ser por algumas horas. Um dia ela traz este pequeno fragmento de sonho: Um menino e uma menina estão num poço, um desses poços d’água redondos. Estão no fundo do poço – perdidos. Abandonados? Para morrer, certamente. É um poço que está seco. Olho agora como se fosse pelo olhar da menina; olho para cima, olho para o menino, vejo nós dois como se fôssemos meio misturados. Tudo tem um tom amarronzado. Acordo e penso em como poderia ser a dor de morrer de fome, o que me causa muito sofrimento. Pensa então nos filhos e, logo, em si e seu irmão – companheiro de brincadeiras quando crianças. Ele era quem inventava os jogos perigosos de que a mãe não gostava. Sente pena de si e do irmão – poderiam já ter sido castigados assim? Não acredita, mas fica com um sentimento ímpar de malestar. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 O LUTO o processo normal de luto, Freud2 lembra que o mundo parece vazio ao sujeito. Ele despende uma enorme quantidade de energia para ir, devagarinho, retirando suas ligações com o objeto perdido. É um processo doloroso, pois, cada vez em que uma das lembranças é evocada, ela vem hiperinvestida, exigindo para o desligamento da libido uma quantidade enorme de energia. Freud não situa um tempo para o trabalho do luto, ele diz apenas que é longo e doloroso. Mas um trabalho depois do qual o sujeito sai, simplesmente, sem nenhuma intervenção terapêutica necessária. Não é sofrer ou levar muito tempo que deve nos (pre)ocupar, portanto. É algo mais o que caracteriza o patológico. O que seria? Parece-me, desde a leitura de “Luto e Melancolia”, que melancolia e luto patológico não são sinônimos, embora guardem semelhanças entre si. Freud identifica reações melancólicas na neurose obsessiva, com predomínio de auto-recriminações, o que estaria presente na melancolia propriamente dita, porém nesta a regressão da libido isenta o sujeito de responsabilizarse pela auto-recriminação e ter vergonha de fazê-lo publicamente. Ou seja, se a auto-estima está abalada na neurose obsessiva, pela ambivalência afetiva, na melancolia ela é o determinante de o sujeito perder toda sua discrição para consigo mesmo, como se não houvesse amor-próprio em absoluto. O elemento da vergonha está ausente no melancólico, que faz pública e constante toda sua enfadonha lamúria. N 1 24 25 SEÇÃO TEMÁTICA PEDÓ, M. Luto, melancolia, duplo, desamparo. Lembra, então, de uma história em que o príncipe é deixado num poço pela rainha para se afogar – é um fragmento antigo, só tem esse registro, nem lembra que história é essa. Água, fome, frio, solidão. Mais uma lembrança – o filme do Conde Drácula, o vampiro. Sempre conheceu apenas a história do Drácula já vampiro, este filme conta quase como história de amor a passagem em que ele se rebela contra a Igreja. Ele era um Conde respeitado e religioso que partira para lutar em uma Cruzada, deixando sua amada no castelo, com padres que a cuidavam. Esta, durante a longa espera, de anos, recebe a mensagem enganosa de que o Conde morrera durante uma batalha. Não suportando a dor, ela se suicida atirando-se ao rio. Quando o Conde retorna, recebe a notícia da morte e de que ela não recebera a bênção da Igreja, pois o suicídio é pecado. Então, rebela-se e se torna o vampiro. Já como homem-vampiro, o Conde escuta o lamento de sua amada que diz em tom de apelo que o rio é tão frio e que ela está tão sozinha... Na morte pelo frio e pela fome, pensa, a pessoa adormece antes de sofrer demais – alivia-se ao pensar isto, pois a passagem do filme lhe causa calafrios. Volta ao sonho: – Por que o irmão junto? Talvez porque aqueles momentos de castigo fossem os momentos em que tinha muita raiva de sua mãe. Tinha vontade de cuidar do irmão, como quando fazia os temas por ele. A mãe desta paciente, já falecida há cerca de 15 anos, era sempre lembrada com especial carinho até este momento, quando passa a se perguntar se ela tinha mesmo sido uma pessoa tão abnegada quanto antes pensava. Explico melhor: a idéia do carinho predominava até que, recentemente, ela escuta de uma amiga da mãe um conselho de maternagem (idéia de sua mãe). Diz ela que um bebê, estando bem alimentado, limpo e sem frio, não tem porque não ficar em seu berço, não precisa de colo. A paciente, então, escuta com descrença, não conseguindo acreditar que sua mãe pudesse ter dado conselhos para uma conduta tão fria. Um sonho é sempre relativo a um desejo – de que desejo estaríamos tratando neste sonho? O sujeito está no fundo do poço, desamparado. Não se trata de um sonho agradável de maneira nenhuma; mas mesmo ali, no fundo do poço, a paciente refere em suas associações a possibilidade – negada – de que isto seja um castigo, como se fosse suposta a presença de uma mãe castigadora. Ou seja, uma presença viva. Estar no fundo do poço, com toda a força da metáfora, mas pelo menos com a mãe viva, este poderia ser o desejo em questão, algo tal como se alguém com fome e frio merecesse colo. Aventuramo-nos a conjeturar – seria esta uma reação melancólica como forma de evitar o desamparo? De outro modo, teríamos de pensar no desejo pelo desamparo, pela morte, e, conseqüentemente, no masoquismo. Em ambas situações, pela via do ser castigada, ou pela via da erotização do desamparo, o masoquismo se faz presente. Um lembrete não sem importância para nosso estudo: em 1917, quando escreve “Luto e Melancolia”, Freud ainda não escreveu “Além do Princípio de Prazer”, ou seja, ele ainda considera que o sadismo é o ponto inicial para um sujeito e que o masoquismo seria secundário à introjeção deste sadismo, como por exemplo no caso da ambivalência que faz prolongar o processo de luto pela perda de um objeto amado através de auto-recriminações. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 26 CASTIGO – AUTO-RECRIMINAÇÃO Na melancolia ou no luto patológico no quadro de uma neurose obsessiva, a auto-recriminação é a manifestação mais aparente. O conflito subjacente é relativo à ambivalência de sentimentos amorosos e hostis para com o ente querido perdido. O melancólico se auto-tortura, o obsessivo se auto-recrimina – são fenômenos equivalentes em sua conflitiva, mas não em suas conseqüências. Seguimos em “Luto e Melancolia”, onde o sado-masoquismo é descrito como o que, elevado ao grau máximo, pode resultar no suicídio, ato em que alguém objetivaria matar em si mesmo o ódio responsável pela perda do objeto amado. Algo como eliminar o culpado, portanto. Mas há uma distinção importante a fazer entre pensamentos e atos suicidas – os atos reque- 27 SEÇÃO TEMÁTICA rem mais do que a ambivalência sado-masoquista, eles requerem que o sujeito trate a si mesmo como objeto, ou seja, estaríamos na regressão da libido ao narcisismo tal qual num quadro de melancolia. A senhora do sonho tem pensamentos de tipo suicidas (pensar em desaparecer e deixar de ser durante o dormir) e produz a associação da história de amor do Conde Drácula. O relato faz saltar aos olhos dois pontos: a falha da Igreja e o sofrimento no apelo da suicidada. A Igreja, na figura dos padres, falhou em sua função de proteção e não acolheu o sofrimento da mulher que não suportava mais esperar, com o agravante de que este mesmo sofrimento, a espera, dizia respeito a uma guerra santa. Fica-se com a impressão de que o Conde teria boas razões em rebelar-se diante de um abandono tão brutal. O guardião não resguardou e, ainda, renegou sua ovelha. Não é sem importância pensar a figura do guardião – o guardião da rocha da castração, diríamos, que faz neste caso seguirmos no gozo fálico. Essa senhora segue com o guardião a fantasiar, pensar, sonhar com o sofrimento do desamparo, evocado pelo apelo da suicidada, que fala da solidão e do frio no fundo do rio, e também pelas crianças abandonadas no fundo do poço. O sentimento de desamparo é, em “Inibição, Sintoma e Angústia”3, apontado como o que se apresenta à criança pequena ameaçada da ausência da mãe – ou seja, ameaçada da perda do objeto. Um pouco mais claro: o desamparo seria a conseqüência de algo que a criança prevê em sua angústia. Numa criança pequena, a angústia antecipa o perigo da perda, o perigo do desamparo, mas ela vem acompanhada do componente da dor da perda em si, numa certa confusão entre antecipação e fato ocorrido. Um primeiro elemento, então, a pensar é o de que há um período em que a percepção da possível perda evoca na criança o sentimento da perda em si. Adiante, encontramos que uma criança vai distinguir entre perda do objeto e perda do amor do objeto, este sendo um novo perigo, bem mais duradouro e fonte determinante de angústia de ali em diante. PEDÓ, M. Luto, melancolia, duplo, desamparo. Este tipo de confusão entre a perda efetiva do objeto e a perda do amor do objeto nos faz voltar ao sonho da paciente, que desejaria a mãe insatisfeita consigo; ou melhor, com ela e com seu duplo: o irmão, companheiro – descrito como o par ativo – lugar masculino de sua inveja. Aquele que tinha a coragem de desafiar a mãe e pôr em prática seu ódio. O conceito do duplo, do mórbido e do estranho tem um espaço especial na obra de Freud4, que qualificou de unheimliche os fenômenos estranhos, assustadores e familiares. É possível encontrar inúmeros exemplos do uso do mórbido e do estranho na literatura, em especial de ficção, em que sombras, espelhos, espíritos guardiões, duplos, robôs, clones, almas gêmeas que se encontram em momentos históricos diferentes, e outros afins, com a crença na alma e o medo da morte. A idéia da alma imortal foi provavelmente um dos primeiros duplos do corpo e sua origem seria muito primitiva, no narcisismo primário. Embora a difusão do seu uso, Freud resguardou à vida real o aparecimento do fenômeno do estranho, momento em que determinadas situações, combinadas em condições especiais como numa repetição, provocam uma sensação estranha, que evocaria o desamparo experimentado em alguns sonhos. Aqui é a compulsão à repetição que tem seu efeito de estranho à percepção. O estranho aparece aqui como o reprimido do temor ao desamparo, e a melancolia como expressão sintomática de defesa contra o desamparo. Este estaria já presente como condição mórbida – porém ligado à noção do castigo. Castigo infligido pela suposta mãe no sonho, castigo à suicida, àquela que não suportou a espera. O desamparo idolatrado e idealizado, ativamente buscado por vezes. Existe a permanência da crença num além-morte – este ainda parece ser o determinante do cunho obsessivo ao quadro. Arriscamos mais um pensamento: a pré-condição mórbida à melancolia seria um desamparo (amoroso) experimentado. O caminho para a saí- 3 Freud, S. “Inibições, Sintomas e Ansiedade” [1926] in: Obras Completas, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1976. 28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 4 Freud, S. “O Estranho” [1919] in: Obras Completas, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1976. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 29 SEÇÃO TEMÁTICA da, neste caso, parece ter sido primeiro poder esboçar essa queixa: ela é que me deixou pela sua frieza, diferente do auto-referido castigo: ela me deixou porque minha ambivalência, meu ódio, me faz indigna do seu amor. “É verdade que a afirmação “Todos os homens são mortais” é mostrada nos manuais de lógica como exemplo de uma proposição geral; mas nenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve, para a idéia da sua própria mortalidade.” (Freud, 1919). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Freud, Sigmund. “Luto e Melancolia” [1917] in: Obras Completas, Rio de Janeiro Ed. Imago, 1976. _____________. “O Estranho” [1919] in: Obras Completas, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1976. _____________. “Inibições, Sintoma e Ansiedade” [1926] in: Obras Completas, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1976. 30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 RAMALHO, R. M. A dor emudecida na... A DOR EMUDECIDA NA ANOREXIA E NA BULIMIA Rosane Monteiro Ramalho A tualmente, é crescente o número de casos de anorexia e de bulimia, bem como é assunto recorrente na mídia. Na clínica, a escuta de algumas pacientes com tais problemáticas levou-me a investigar as produções já existentes sobre o tema, essas, porém, em alguns aspectos, não correspondiam ao que escutava. Muitos estudos na área médico-psicológica geralmente consistem numa descrição fenomenológica, sendo associados a uma exagerada preocupação com o corpo, corroborada pelo ideal social do “corpo perfeito”, que preconiza a magreza como padrão estético. Obviamente que a cultura em que essas pacientes estão inseridas tem influência sobre elas. Relacionada a este ideal, portanto, encontra-se a proliferação de inúmeros tipos de dietas, moderadores de apetite, cirurgias estéticas, bem como academias de ginástica. No entanto, a questão é como esse ideal é tomado por essas jovens que acabam apresentando anorexia e bulimia. Entre os estudos psicanalíticos, existe um relativo consenso em atribuir esses sintomas a dificuldades nas relações primordiais dessas pacientes, que influenciariam na imagem que elas têm de si mesmas. Entretanto alguns deles consistem numa interpretação psicológica, atribuindo essas patologias, por exemplo, a uma recusa da feminilidade, numa tentativa de manter o corpo infantil. Outros interpretam-nas como uma recusa do corpo estando associado ao sexo, ou ao “pecado”. Alguns consideram tais manifestações como autodestrutivas, outros, ainda, como onipotência, havendo uma recusa da falta, uma recusa da diferença. Assim, o que escutava de minhas pacientes, em determinados aspectos, se contrapunha ao que encontrava em muitas produções sobre o assunto, nas quais algumas generalizações também me causavam um certo incômodo, uma inquietação, levando-me a escrever. Partindo da escuta de casos clínicos e lançando um outro “olhar” sobre essas problemáticas, proponho, então, uma outra perspectiva de interpretação. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 31 SEÇÃO TEMÁTICA Na escuta dessas jovens, em suas distintas histórias, eu percebia certos aspectos em comum. Elas apresentavam uma problemática imagem de si, sendo frágeis suas sustentações enquanto sujeito. Além disso, as manifestações de anorexia e bulimia iniciaram após um rompimento amoroso, vivido, por elas, como experiências de abandono, de desamparo. Ao longo dos processos de análise, essas pacientes puderam também falar da difícil relação que tinham com suas mães, sentindo-se “abandonadas” por elas, ou seja, sentiam não ter encontrado um lugar para si no desejo materno, embora, na busca de encontrá-lo acabassem numa posição sacrificial, com uma extrema exigência em relação a si. Sabemos que a aquisição da imagem de si – como constitutiva da subjetividade –, é tomada especularmente, a partir do olhar, do desejo de um outro (no caso a mãe, como encarnação deste Outro primordial) endereçado ao sujeito. Imagem esta que passa a ser uma matriz simbólica em seu processo de identificação. No entanto, a falta de um olhar, de um desejo que forneça uma imagem de si, permanecendo o modelo ideal sempre inacessível, “estrangeiro”, fora do alcance do sujeito, é o que se encontra na melancolia1. Aliás, esta parece ser a verdade explicitada no sofrimento melancólico; ou seja, ele, mais do que ninguém, conhece o desamparo, a fragilidade com que nos sustentamos enquanto sujeitos: uma imagem, uma ilusão. Ou seja, sabe que “o rei está nu”. Enfim, tem acesso à verdade do logro egóico: a ilusão da identidade – esta irredutível ficção que define o sujeito –; e é esta consciência tão crua, esta impossibilidade de ter uma ilusão, um engodo, esta estreita proximidade com a morte, que torna sua vida tão cinza, sem esperança e amarga. A frágil imagem de si característica das pessoas que apresentam anorexia e bulimia muitas vezes decorre do fato de se sentirem atendidas somente em suas necessidades orgânicas e não encontrarem acolhida às suas demandas psíquicas, não lhes sendo oferecido um olhar, através do qual pudessem obter um reconhecimento enquanto sujeito. RAMALHO, R. M. A dor emudecida na... No caso de minhas pacientes, a dificuldade na relação com suas mães não fazia parte, a princípio, de seus discursos. Trata-se de construções ao longo dessas análises, uma vez que, diferentemente dos relatos comumente escutados de neuróticos – que se colocam num lugar de vítima, mesmo que sentindo culpa –, essas pacientes não atribuíam ao outro (no caso, a mãe) a causa de seus problemas. Ao contrário, elas se consideravam as únicas responsáveis por eles, como se sua insuficiência ou desvalor fosse algo inquestionável e razão de suas dificuldades. Ou seja, que, por sua responsabilidade, não se fizeram amar. Seus discursos aí se mantinham, bem como se restringiam às suas dificuldades alimentares, como se essas mulheres não tivessem uma história. Somente ao longo das análises é que foi, então, construída uma narrativa, uma história, que possibilitasse que seus atos acedessem à fala. Por não encontrarem um lugar no desejo materno em relação a si (ou encontrarem-no de forma frágil), isto é, por não se tratar de um Outro desejante, castrado, mas, absoluto, sem falta, sem desejo, sem a possibilidade (ou com muita dificuldade) de uma alteridade – em relação ao qual era difícil uma separação, uma distinção, só restando o desamparo e a angústia do abandono – elas tentavam corresponder, então, a um ideal impossível, inatingível, um ideal de perfeição, muitas vezes, de uma forma obstinada. Penso que isso nos ajude a entender a demasiada exigência em relação a si característica dessas pessoas. O que também podemos denominar como um “superego sádico, mordaz” (um superego materno). Isso parece também explicar a tendência ao masoquismo nessas pacientes, o que também encontramos na melancolia2. Alguns autores consideram que a anorexia e a bulimia não constituem uma estrutura psíquica diferençável. No entanto, às vezes, são denominadas como estados limites 3; outras vezes, patologias do narcisismo4, ou do 2 A cerca disso, Lacan propõe que, na melancolia, trata-se do suicídio do objeto, de um objeto que entrou, de algum modo, no campo do desejo e que, por sua ação, ou por qualquer risco que correu na aventura, desapareceu. Freud (1924) diferencia a melancolia da psicose e da neurose, passando a denominá-la de neurose narcísica, resultando de um conflito entre o eu e o supereu. 3 JEAMMET, P. In: URRIBARRI, R. (org.). Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 1999. 4 ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 1 32 33 SEÇÃO TEMÁTICA ideal5. Muitos autores também as associam à depressão ou melancolia6, como já o faziam Freud e Abraham. Embora essas manifestações não consistam numa estrutura específica, através do discurso dessas pacientes, podemos encontrar um substrato comum. Parece haver uma deficiência, uma precariedade relativa à identificação primária, devido a sentir não ter sido investida de forma a ter significado o falo imaginário materno – o que poderia imaginariamente suprir a falta materna. Pois, por mais que se configure ilusório e que, além disso, seja preciso deixar de sê-lo para aceder a uma posição subjetiva (isto é, é necessária a castração), sabemos que, para deixar de sê-lo, é preciso “ter sido” antes. Então, é necessário ter havido a alienação para haver a separação. A partir desses casos, podemos pensar que a anorexia e a bulimia – ou seja, a recusa ou a ingestão excessiva seguida pela expulsão do objetoalimento – parecem ser tentativas de estabelecer uma separação, uma falta até então impossível de ser simbolizada, tal qual o brincar infantil de fazer desaparecer o objeto. Reporto-me, então, ao Fort-da freudiano, enquanto constitutivo do simbólico. Desta forma, ao invés de ser abandonada, é ela (anoréxica ou bulímica) quem abandona, que recusa. Faz a tentativa de passar da experiência que viveu passivamente à atividade. Ao invés de ser abandonada, ela se torna, então, a autora da separação. Busca, na ausência do objeto, a presença de sua representação, uma “presença na ausência”. Assim, na falta de uma introjeção simbólica do objeto, tais manifestações, através de um objeto real (no caso a comida), consistem ou numa recusa – na anorexia – de forma a inscrever uma falta, um limite; ou na incorporação e expulsão do objeto – na bulimia –, de maneira a buscar o estabelecimento de uma introjeção (e, conseqüentemente, de uma separação). Ambas, de formas, porém, distintas, implicam a possibilidade de uma recusa, a busca de uma diferenciação, de um reconhecimento como sujeito. RAMALHO, R. M. A dor emudecida na... LAMBOTTE, M-C. “A deserção do Outro”. In A clínica da melancolia e as depressões Revista da APPOA. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001. 6 HERSCOVICI, C. & BAY, L. Anorexia nervosa e bulimia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Consistem na tentativa, embora fracassada, da demarcação de um dentro e de um fora, uma vez que encontram-se fragilizados os limites tanto corporais, quanto psíquicos. Para pensar tal processo, utilizo-me das contribuições de Freud, Lacan e Hyppolite sobre a introjeção e a incorporação como protótipos da identificação. Enfim, a instauração de um dentro e de um fora considerada como um processo constitutivo do simbólico. Nesta linha, também, relaciono a freqüente divisão, estabelecida por essas pacientes, entre objetos considerados bons (que podiam ser introjetados), enquanto outros classificados como maus (que deviam ser rejeitados). Considero esta questão importante para pensarmos a problemática da anorexia e da bulimia, pois, muitas vezes, são interpretadas como atos puramente destrutivos, quando parecem tratar-se justamente do oposto. Assim, ao meu ver, a partir desses casos, tais manifestações, paradoxalmente, por mais que possam levar à morte física, consistem também numa luta pela vida, pela vida psíquica, sendo uma tentativa desesperada de estabelecer uma falta, de uma separação, até então impossível de ser simbolizada. Discordo, portanto, de alguns autores que sustentam a idéia de uma recusa da falta, e também de uma recusa de qualquer internalização. Nessa direção, tanto na anorexia quanto na bulimia, encontra-se uma problemática de domínio, de controle, porém, mais do que controlar, dominar o objeto, a tentativa da paciente parece ser de defesa, de sair da condição em que se encontra dominada, anulada, “engolida”. Podemos pensar que essas manifestações consistam na única forma possível de se rebelar, de dizer não, negação esta necessária ao acesso a uma condição subjetiva. A anorexia e a bulimia são, no entanto, respostas diferentes e, por que não dizer, opostas, à mesma questão fundante. Assim, o forçar a paciente a comer – atitude freqüentemente tomada em muitos tratamentos – acaba fazendo, geralmente, com que ela intensifique a resistência, por se encontrar acuada, ameaçada psiquicamente, por se sentir invadida, dominada, “engolida”, pois o que ela mais teme é a perda de controle em relação à comida, em relação ao Outro, ou seja, sua morte C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 5 34 35 SEÇÃO TEMÁTICA RAMALHO, R. M. A dor emudecida na... psíquica. Por isso, o fato de a intervenção analítica tomar o sintoma da paciente como uma busca pela vida, por um reconhecimento enquanto sujeito, – enfim, tomar o seu aspecto constitutivo –, pode, justamente, implicar no abrandamento, por parte da paciente, da necessidade de seu sintoma. Isto é, fornecer uma via discursiva para o ato. Acredito que tais manifestações, mais do que se tratar de sintomas neuróticos propriamente ditos (no caso, retorno do recalcado, ou formação substitutiva), por não serem decorrentes de um recalcamento, mas, justamente, de sua falha, de sua precariedade, consistem, portanto, ao meu ver, numa tentativa de instaurá-lo. Por isso, tais sintomas parecem tratar-se de atos que “escaparam” ao simbólico, que decorrem das suas brechas – daí a angústia – e, por isso, serem uma tentativa de estabelecer um recalcamento, obtendo, assim, uma inscrição. A partir desses casos, penso existir, então, uma outra perspectiva de interpretação dessas manifestações, não como uma recusa da castração, da falta, mas enquanto uma tentativa de instaurá-la. No sofrimento dessas mulheres, podemos escutar um apelo de virem a aceder a uma condição de sujeito, ao desejo, e, portanto, à feminilidade. Porém, é necessário escutar o que está emudecido no ato. Essas pacientes, em seu silêncio, “pediam” um reconhecimento enquanto um ser diferenciado. No entanto, trata-se de um limite, que, mais do que impossibilitar uma relação, justamente, a promove, fornecendo-lhe as condições. Buscavam um lugar no desejo do Outro – todavia, um desejo, não uma demanda imperativa – que lhes permitissem existir, bem como, que lhes fossem reconhecidas a sua feminilidade. É possível que, muitas vezes, as interpretações de recusa da feminilidade e mesmo de autodestrutividade decorram do impacto que a visão do corpo emagrecido da paciente provoca no terapeuta, ou naquele com quem ela se depara. É como se o horror da figura esquálida se sobrepusesse, dificultando e, por vezes, até impossibilitando a escuta da paciente. A escuta de um sofrimento que requer um esforço para que consiga ser formulado através de palavras, manifestando-se, geralmente, por atos, ou nas “entrelinhas”. Porém, para além da questão diagnóstica, o que considero significativo, no caso dessas pacientes, é a especificidade da relação de objeto estabelecida. Para pensar tal questão, tomo, de Lacan, os conceitos de falta simbólica (ou castração), falta imaginária (ou frustração) e falta real (ou privação). Nesse sentido, na recusa do objeto da necessidade (na anorexia) ou na sua ingestão e posterior expulsão (na bulimia), trata-se da tentativa de inscrever uma falta simbólica, uma vez que a problemática dessas pacientes parece consistir em uma falta real, da ordem da privação. Parecem lidar com a falta - ou precariedade - deste agente simbólico que possibilitaria, então, a inscrição desta outra falta, a falta simbólica e o acesso ao desejo. No entanto, na busca de fazer uma falta no Outro, acabam por fazer é nelas mesmas. Mediante essas manifestações alimentares, é como se essas jovens “dissessem” que, mais do que do objeto da necessidade orgânica, era do objeto de “necessidade” psíquica que precisavam para viver; enfim, que necessitavam de desejo para viverem, para não morrerem enquanto sujeito. A partir desses casos, penso que essa possa ser uma direção da clínica da anorexia e da bulimia, ou seja, possibilitar que essa dor emudecida e atuada possa ter uma inscrição, uma representação, que possa ser, então, nominada. Que o ato possa dar lugar à palavra, de forma que o sofrimento dessas mulheres consiga, portanto, adquirir uma inscrição, a partir da especificidade do lugar ocupado pelo analista. Para isto é necessário que a paciente encontre uma acolhida no desejo de seu analista, para que possa, então, também ter acesso ao seu. Isto é, uma acolhida que possibilite, que permita, uma separação, uma diferenciação. Que o analista possa oferecer um “olhar”, um testemunho, possibilitando que o apelo emudecido, sufocado e desesperado de sua paciente adquira uma inscrição. No entanto, que consiga transitar com ela, na transferência, no estreito limite entre o abandono e o ingurgitamento; ou seja, nem muito perto, que sufoque, nem muito longe, que abandone. Enfim, que essas pacientes passem a poder falar, simbolizar essa falta, esse vazio... que sua dor, até então silenciada, possa ser nominada... que, no lugar do ato, possa vir, enfim, a palavra... que possam, então, reescrever – ou mesmo escrever – suas histórias. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 36 37 SEÇÃO TEMÁTICA FRÖEMMING, L. S. Trauer und melancholie ... TRAUER UND MELANCHOLIE: TRADUZINDO OS NOMES DO EU reud inicia seu texto de 1917 dizendo que, se o sonho serviu como paradigma normal das perturbações psíquicas narcísicas, agora a tristeza – um afeto normal – servirá de base para explicar a melancolia. Há, inclusive, uma homofonia entre Traum (sonho) e Trauer (tristeza). Trauer seria mais propriamente traduzido como tristeza, além de luto. A tristeza, o luto, a angústia são afetos. A melancolia pode ser explicada a partir de um afeto: a tristeza. Um dos primeiros ensaios freudianos visando construir uma nosologia envolve justamente algo que nomearíamos como as vicissitudes dos afetos e a melancolia aparece como resultado de uma transformação do afeto. Em carta a Fliess, em 1894, Freud escreve: “Tenho agora uma visão de conjunto e uma concepção geral das neuroses. Conheço três mecanismos: conversão dos afetos (histeria de conversão), deslocamento do afeto (obsessões) e transformação do afeto (neurose de angústia e melancolia). Se a pulsão não nos aparecesse sob a forma de afeto, nada poderíamos saber sobre ela, afirmava Freud dois anos antes em “O inconsciente”. O afeto está sempre à deriva, não é recalcado, apenas os significantes que o amarram podem sê-lo. A neurose traumática testemunha os efeitos de um afeto produzido por um sujeito quando confrontado com a iminência de sua própria morte. A melancolia nos diz dos efeitos produzidos por uma perda que não encontra registro e que busca inscrição no eu, mediante uma identificação. Este artigo se situa entre a “Introdução ao narcisismo” (1914) e “O eu e o isso” (1923) e parece assinalar que a clínica da melancolia joga um importante papel nesta passagem. Na melancolia, um investimento de objeto é substituído por uma identificação (1917). Porém, este processo não é restrito à melancolia, ele é mais geral, deduz Freud no capítulo III de “O eu e o isso” (1923). O que vem antes, o investimento de objeto ou a identificação? Esta questão perpassa vários outros escritos. Uma das primeiras formulações do conceito de inconsciente deriva da clínica da histeria. No embate teórico com Breuer, que falava em estados hipnóides, Freud vai além. A amnésia, o fato de não registrar na consciência eventos traumáticos, era tomado como algo próprio da histeria. Freud vai dizer que é próprio do funcionamento psíquico um plano de registro diferenciado. Poderíamos dizer que, para Breuer, só as histéricas têm inconsciente enquanto que Freud vai dar a real amplitude ao conceito. Se, em 1917, ao refletir sobre a clínica da melancolia, Freud diz que se verifica a substituição de um investimento de objeto por uma identificação, seis anos depois, ele dará uma amplitude maior a esta operação, situando-a como constitutiva do próprio aparelho psíquico, dando origem ao supereu. Assim, deduzimos, houve um tempo na história da formulação dos conceitos psicanalíticos em que se supunha que só as histéricas tinham inconsciente e outro tempo em que vigorou a suposição de que só os melancólicos tinham super-eu. Como as pessoas referem perdas é algo que passei a escutar com C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 Liliane Seide Fröemming Oh, pedaço de mim Oh, metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu Oh, pedaço de mim Oh, metade amputada de mim Leva o que há de ti Que a saudade dói latejada É assim como uma fisgada No membro que já perdi (Chico Buarque – Pedaço de mim – 1977) F 38 39 SEÇÃO TEMÁTICA FRÖEMMING, L. S. Trauer und melancholie ... mais cuidado desde que iniciamos a perscrutar a tristeza e a melancolia como nosso tema privilegiado. Trago duas referências que escutei recentemente de pessoas que me contam como vivenciaram a morte de familiares. Se é que se pode vivenciar uma morte... Uma mãe, que perdeu recentemente o único filho num acidente, conta que ele era muito cuidadoso e organizado, mantinha tudo em ordem, gostava de tomar banho, de ter tudo limpo, de se perfumar. Diz que o pior momento foi quando teve que mexer em seus pertences. Não sabia o que fazer com aquilo. Havia dias em que arrumava a casa e, inadvertidamente, trocava as roupas de cama do quarto do filho. Foi muito difícil se desfazer do travesseiro. O que escolhemos guardar quando alguém morre? Essa mulher, que inicia falando da limpeza do filho, talvez tenha guardado dele o único objeto que exalava seu genuíno cheiro. Uma mulher, que iniciou há pouco sua análise, invoca como razão transferencial, dentre outras, o fato de me ver constantemente fazer compras em uma feira de produtos ecológicos (“alguém que tem cuidados com sua alimentação e de sua família, provavelmente é alguém capaz de ter outros cuidados...”). Não se sente com a idade que tem. Diz que foi “pêga distraída”, quando percebeu estava prestes a chegar aos cinqüenta anos. Têm agora a idade que a irmã tinha quando morreu. A mãe pediu que ela arrumasse as coisas da irmã, logo após o enterro. Achou estranho, recusou, percebeu que não poderia atender aquele pedido. Diz que a morte da irmã foi como se um trem a pegasse desprevenida pelas costas. Pegar distraída, pegar desprevenida. A partir desta pontuação surge a questão de que o efeito da morte da irmã foi de que o tempo começou a passar mais depressa, foi arremessada no tempo. Se na tristeza provocada pela perda de um familiar, o mundo se torna empobrecido, esvaziado, há que se desfazer de objetos; na melancolia, é o próprio eu que fica desabitado, desprovido do enlace libidinal que o prendia ao mundo. A perda de um objeto se transforma numa perda do eu, e a ruptura entre o sujeito e a pessoa amada se transforma em uma ruptura no interior do próprio eu. O eu sofre um rearranjo, bipartido agora entre o eu crítico e o eu alterado por uma identificação com o objeto perdido. Vamos propor um exercício de trabalhar algumas diferenças entre três versões do texto freudiano, assinalando algumas diferenças entre o alemão, o espanhol e o português. Selecionamos o terceiro parágrafo: “Die Melancholie ist seelisch ausgezeichnet durch eine tief schmerzliche Verstimmung, eine Aufhebung des Interesses für die Aussenwelt, durch den Verlust der Liebesfähigkeit, durch die Hemmung jeder Leistung und die Herabsetzung des Selbstgefühls, die sich in Selbstvorwürfen und Selbstbeschimpfungen äussert und bis zur wahnhaften Erwartung von Strafe steigert”. (GW, Fischer Verlag) “La melancolia se singulariza em lo anímico por una desazón profundamente dolida, una cancelación del interés por el mundo exterior, la pérdida de la capacidad de amar, la innhibición de toda productividad y una rebaja em el sentimiento de sí que se exterioriza em autorreproches y autodenigraciones y se extrema hasta uma delirante expectativa de castigo” (OC, Amorrortu Ed.). “Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição” (OC, Imago Ed.). Aufhebung, substantivo e aufgehoben, predicado, são termos nossos conhecidos da discussão de Lacan e Jean Hyppolite em torno da Verneinung (1925). Vou lhe dizer o que não sou, daí se conclui o que sou. Apresentar-se como o que se é, sob a forma do não ser. Ao formular o que não sou, permito conclusões sobre o que sou. Forma de expressão da denegação. Mas, diz Freud, a denegação é uma Aufhebung do recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado. “O próprio processo do recalque ainda não foi aufgehoben por isso”. Aqui, prossegue, o intelectual separa-se do afetivo. Aufhebung remete à dialética de Hegel, que ao mesmo tempo quer dizer negar, suprimir e conservar, suspender. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 40 41 SEÇÃO TEMÁTICA FRÖEMMING, L. S. Trauer und melancholie ... Reencontramos aqui, a propósito da melancolia, o termo aufhebung, traduzido como cessação/cancelamento/liquidação. Há, no melancólico, aufhebung de seu interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, e diminuição de Selbstgefühls. Talvez fosse mais próprio o uso de suspensão. O parágrafo 9 situa que o melancólico sofreu uma perda no que tange ao eu: Er hat seine Selbsachtung verloren (D); Há perdido el respeto por sí mismo(E); Ele perdeu seu amor próprio (P). Vamos encontrar muitas variantes do eu neste texto freudiano; este é um texto antecipatório do “Eu e o Isso”, onde o que está em questão é como nomear o eu, quais são os nomes do eu. Eis aqui um glossário da ocorrência destas variantes no original seguido das propostas de tradução em espanhol e português: Selbstgefühl – auto-estima ou sentimento de auto-estima (P) e sentimiento de sí (E). Ichgefühls – auto-estima (P) sentimiento yoico (E) Ich selbst – próprio ego (P), yo mismo (E) Selbstachtung – amor próprio (P), respeto por sí mismo (E) Também o parágrafo 26, pelas preciosas indicações sobre a escuta analítica e por imprecisões de tradução merece ser detidamente trabalhado. “Es spricht sich nun rasch aus und schreibt sich leicht nieder, das die “unbewusste (Ding-) Vorstellung des Objekts vond der Libido verlassen wird”. Aber in Wirklichkeit in diese Vorstellung durch ungezählte Einzeleindrücke (unbewusste Spuren derselben), vertreten, und die Durchführung dieser Libidoabziehung kann nicht ein momentaner Vorgang sein, sondern gewiss wie bei der Trauer ein langwieriger,, allmählich fortschreitender Prozess. Ob er na vielen Stellen gleichzeitig beginnt oder eine irgendwie bestimmte Reihenfolge enthält, lässt sich já nicht leit unterscheiden; in den Analysen kann man oft feststellen, dass die gleichlautenden, durch ihre Monotonie ermüdenden Klagen doch jedesmal von einer anderen unbewussten Begründung Herrühren. Wenn das Objekt keine so grosse, durch tausendfältige Verknüpfung verstärkte Bedeutung für das Ich hat, so ist sein Verlust (*) auch nicht geeignet, eine Trauer oder eine Melancholie zu verursachen. Der Charakter der Einzeldurchführung der Libidoablösung ist also der Melancholie wie der Trauer in gleicher Weise zuzuschreiben, stütz sich wahrscheinlich auf die gleichen ökonomischen Verhältnisse um dient denselben Tendenz” (GW, Fischer). “Se discurre de inmediato y con facilidad se consigna: “la representación (cosa-) {Dingvorstellung} inconciente del objeto es abandonada por la libido”. Pero en realidad esta representación se apoya en incontables representaciones singulares (sus huellas inconcientes), y la ejecución deste quite de libido no puede ser un proceso instantáneo, sino, sin duda, como en el caso del duelo, un proceso lento que avanza poco a poco. Comienza al mismo tiempo en varios lugares o implica alguna secuencia determinada? No es fácil discernirlo; en los análisis puede comprobarse a menudo que ora este, ora estotro recuerdo son activados, y que esas quejas monocordes, fatigantes por su monotonía, provienen empero en cada caso de uma diversa raíz inconciente. Si el objeto no tiene para el yo una importancia tan grande, una importancia refozada por millares de lazos, tampoco es (*) apto para causarle un duelo o una melancolía. Esse carácter, la ejecución pieza por pieza del desasimiento de la libido, es por tanto adscribible a la melancolía de igual modo que al duelo; probablemente se apoya em las mismas proporciones económicas y sirve a idénticas tendencias” (OC, Amorrortu). “A resposta rápida e fácil é que “apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido”. Na realidade, contudo, essa apresentação é composta de inumeráveis impressões isoladas (ou traços inconscientes delas) e essa retirada da libido não é um processo que possa ser realizado num momento, mas deve, por certo, como no luto, ser um processo extremamente prolongado e gradual. Se ele começa simultaneamente em vários pontos ou se segue alguma espécie de seqüência fixa não é fácil decidir; nas análises, torna-se freqüentemente evidente que primeiro uma lembrança, depois outra, é ativada, e que os lamentos que soam sempre como os mesmos, e são tediosos em sua monotonia, procedem, não obstante, cada vez de uma fonte inconsciente diferente. Se o objeto não C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 42 43 SEÇÃO TEMÁTICA possui uma tão grande importância para o ego – importância reforçada por mil elos –, então também sua perda (*) não será suficiente para provocar quer o luto, quer a melancolia. Essa característica de separar pouco a pouco a libido deve, portanto, ser atribuída de igual modo ao luto e à melancolia, sendo provavelmente apoiada pela mesma situação econômica e servindo aos mesmos propósitos em ambos” (OC, Imago). CORSO, D. L. Um adolescente de meio século. UM ADOLESCENTE DE MEIO SÉCULO Diana Lichtenstein Corso A Os paragráfos estudados foram extraídos a partir do texto em alemão (A) Gesammelte Werke, S. Fischer Verlag; em espanhol (E) Obras Completas, Editora Amorrortu e Português (P) Obras Completas, Imago Editora. O trabalho de tradução do parágrafo 26 foi realizado com a colaboração do colega Luis Fernando Lofrano de Oliveira, que identificou o erro da tradução na Amorrortu onde Eizeleindrücke está traduzido como representações e não como impressões. Estas são anotações produzidas por ocasião do “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA” realizado em maio deste ano em Canela/RS. atualidade do “Apanhador no campo de centeio”. Quando um texto aniversaria, tendemos a dizer-lhe o mesmo que a uma pessoa: – “Estás jovem!”. Por isso, no cinqüentenário do “Apanhador no campo de centeio”, o óbvio seria comentar a sua atualidade e o quanto ele foi inovador. É perfeitamente possível lê-lo, se subtrairmos as referências históricas, como o discurso contemporâneo de um adolescente. O livro é o relato de três dias na vida de um jovem de dezesseis anos. Holden Caulfield tem cabelos grisalhos, quase dois metros, fuma, bebe, opina e sente frio. São três dias em que tudo e nada acontece, o personagem está vagando após a expulsão do colégio e ainda não quer chegar em casa. Neste espaço de tempo, ninguém o espera em lugar nenhum e nesta pequena eternidade compartilhamos a análise do mundo que Holden freqüentava. A delícia do livro emana da inteligência com que o personagem desmonta as ambições e crenças de seus colegas, professores, ex-alunos da escola, artistas. Em linguagem depretensiosa, casual, vai desnudando a alma de todos com quem se cruza ou de pessoas de quem se recorda, montando um leque de personagens que, embora seus contemporâneos, não perderam a atualidade. Holden não consegue entrar em sintonia com ninguém, embora faça esforços de inserção na busca de quem o escute. Esse eterno desencontro proporciona um olhar de exterioridade sobre o mundo que habita e, realmente, visto de fora, tudo parece ridículo. No passado perdido, parecia haver alguma esperança de interlocução: o irmão que morreu, o outro irmão escritor, antes de “se prostituir em Hollywood”, a amiga a quem não revelou seus desejos eróticos, estes poderiam entendê-lo, mas estão mortos ou ausentes. Compartilhando a sua solidão gelada, chegamos a um único encontro, Phoebe, a irmãzinha de 8 anos, somente ela quer ouvi-lo mais do que falarlhe. De todas as questões do personagem a mais contundente é que ninguém suporta escutá-lo. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 Eis um glossário e anotações de tradução para trabalhar o texto: Vorstellung – representação; Einzeleindrücke – impressões. Donde se conclui que há um erro de tradução na Amorrortu. (*) Também aí falta uma palavra em espanhol, verlust (sua perda). Verlassen, aufgelassen : resignadas (E), abandonadas (P). Proposta: deixada de lado, deixada, talvez cancelada. Abziehung – quite (E), retirada (P). Ou: separar, tirar, subtrair. Da libido (P), de libido (E). Preferência por espanhol por sugerir que é uma quota e não A libido toda. Zuzuschreiben – adscrita (E), atribuída (P). Melhor em E, mantém a idéia de escrever, schreiben. Ablösung – separação (P), desasimeinto (E). Proposta: desatamento, desprendimento. Lösung – desligamento (P) , desasimiento (E) Interesselosigkeit – perda de interesse (P) falta de interés (E) Verlust – perda (P) perda (E) 44 45 SEÇÃO TEMÁTICA CORSO, D. L. Um adolescente de meio século. Holden critica a tudo e a todos, duvida de qualquer solução, e uma das alternativas que se coloca é desistir. E se, em vez desta guerra pelo sucesso, construíssemos uma cabana na natureza, tendo que lutar apenas pela subsistência? Não se trata de uma visão romântica apenas, mas de um discurso que atravessou o movimento hyppie, assim como todas as alternativas juvenis que se quiseram construir à sociedade capitalista. É precisamente esta postura que elevou J.D. Salinger, autor deste livro, à categoria de mito. Além de escrever este livro, que tornou-se uma espécie de “carta de fundação da adolescência”, o autor é um eremita, famoso pelas recusas de contato com a mídia. A questão levantada pelo personagem e pela atitude do autor é a de uma abstinência das metas, valores e principalmente destas centenas de bugigangas com os quais os adultos se rodeiam, encontrando aí a prova de seu sucesso. O sucesso deste texto sempre foi atribuído a ser fiel e premonitório. Temos todos os motivos para pensar que nos últimos 50 anos não houve mudança substancial no discurso adolescente. Ou melhor, poderíamos dizer que a adolescência, enquanto fenômeno, continua sendo uma resposta aos propósitos de que foi incumbida, principalmente a partir do pós-guerra. Mais que uma resposta, a adolescência é uma reação. Não é de forma alguma novidade que os jovens tenham um papel social definido. Rituais de iniciação e sistemas de ensinamentos constituem para a juventude um espaço desde a antiguidade. A novidade, que tem mais ou menos a idade deste livro, é a de um período da vida para o qual a sociedade não tem espaço e, se o tiver, o jovem fará o possível para criar uma alternativa ou simplesmente não ocupá-lo. O espaço social da adolescência é o limbo. Costumamos associar a adolescência com a época dos acontecimentos, das escolhas, mas ela é antes de tudo uma experiência de melancolia e procrastinação. Quando finalmente tomamos alguma decisão, ainda somos jovens, inexperientes, pretensiosos, mas já estamos deixando de ser adolescentes. Não me refiro, por exemplo, a fazer uma escolha vocacional, mas a assumi-la. Qualquer um sabe a diferença que há entre entrar em um curso universitário e o momento de realmente estar se preparando para uma profissão, entre ter experiências amorosas e sexuais e fazer escolhas amorosas. A adolescência é justamente o tempo de uma suspensão, como poderia dizer transição, passagem. A compreensão crucial é que este espaço intermediário precisa ser considerado legítimo, escutado, acompanhado. Pedir ao jovem que assuma as conseqüências do que pensa é remetê-lo a um tempo de resoluções que ainda não chegou. A relação com o mundo é experimental, o que não impede de amar, aprender e até trabalhar. Existe uma regra que ninguém deveria desrespeitar: a inteligência do discurso adolescente não é instrumentalizável, ela não serve para nada. É claro que serve, e muito, para o sujeito que cresce: será a matriz de seu projeto de vida, é nela que ele está formatando sua versão de ser a partir da criança que ele não é mais. O importante é não pedir ao sujeito provas, nenhuma pragmática redunda de seu trabalho psíquico, porque a adolescência é uma experiência de suspensão da vida. A adolescência é idealizada pela sociedade dos adultos como sendo uma época de potência, confundindo o potencial de fazer escolhas, verdadeiro pesadelo para os jovens, com a potência de possuir todas as alternativas. Ao adulto, melancólico de maturidade, parece que o jovem pode possuir todas os amores, todas as profissões, viver no mundo inteiro, freqüentar todos os amigos. Nada mais falso. Dois trechos poético-literários, separados por meio século, são a melhor tradução do que estou tentando dizer. O primeiro é cantado por Renato Russo: “Quantas chances desperdicei, quando o que eu mais queria era provar para todo mundo, que eu não precisava, provar nada para ninguém” (no disco Legião Urbana – Dois). O segundo sai da boca de Holden Caulfield, o personagem do livro, que assiste a apresentação de um pianista muito bem quisto do público, numa casa noturna de Nova York: “Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso ia ter raiva de viver. Não ia querer que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário”. Mais que espetáculos artísticos, Caulfield assiste principalmente o teatro da vida dos jovens de seu tempo: o estudante C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 46 47 SEÇÃO TEMÁTICA CORSO, D. L. Um adolescente de meio século. atleta que se entrega a carícias ousadas no carro com as moças, o jovem feio que vence na vida como comerciante, o intelectual estufado que só escuta a si mesmo, a moça burra e bonita, a inteligente que cede ao assédio do medíocre bonitão, assim como todo tipo de coitado que sofre por não conseguir se inserir nestes papéis. Estes são personagens da narrativa de Caulfield, mas ele não quer ser nada disso, não quer provar nada para ninguém, quer ficar no armário, ir para uma cabana na floresta. A vivência individual dos impasses do adolescente não é suprimida por nenhum tipo de aglutinação grupal. Caulfield pode ser visto indo ao teatro, com amigos num bar, dançando, saindo com uma garota, visto de fora parece que tudo corre normalmente. Por dentro, porém, ele se sente caindo. O livro intitula-se a partir da resposta que Holden dá à sua irmã sobre o que vai querer ser quando crescer. “Eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que eu tenho que fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo.” Ao longo destes dias ele freqüenta constantemente esta borda, mas ninguém está lá. Como em toda história adolescente, os pais e professores não estão, ou, se estão, não parecem falar a mesma língua. Só uma criança, a irmãzinha Phoebe, se dispõe a escutá-lo. A ausência dos pais faz parte da vivência adolescente, quando o jovem se separa, mas se sente expulso. Porém, só isso não explica toda a solidão, é preciso buscála na dificuldade de suportar o que ele sente e diz. O jovem fala de tristeza, vontade de desistir, quando o que esperamos dele é vigor juvenil, potência, hormônios em euforia. A tristeza é o outro lado da moeda do desejo. Para aquele que se lastima, nem nada, nem ninguém será capaz de produzir a felicidade, tristeza é a falta de felicidade. Somos capazes de qualquer negócio para suprimila: crenças místicas, auto-ajuda, remédios, placebos e analgesias, tudo menos enfrentar as questões que ela nos assopra aos ouvidos. É dela que fala o adolescente, quando escutado a sós, fala da tristeza dele e da de todos nós, de um potencial de covardia, de insatisfação que quando amadurecermos será adormecido mas nunca eliminado. O adolescente fala daquilo que o adulto experiencia sob a forma de depressão. “Começou a acontecer um negócio um bocado fantasmagórico. Cada vez que eu chegava ao fim de um quarteirão e descia o meio-fio, tinha a sensação de que nunca chegaria ao outro lado da rua. Pensava que ia caindo, caindo, caindo, e nunca mais ninguém ia me ver”, descreve Caulfield. O psicanalista inglês D.W. Winnicott fazia referência a necessidade de que os adultos não abdiquem de sua condição, de que sobrevivam, no sentido de manter vivas suas premissas éticas, ao processo dos adolescentes com que convivem. Com isto este autor lembra que o nosso adolescente interior está sempre pronto para nos perguntar “será que precisa mesmo tudo isso?”, e nós adultos estamos sempre prontos para desistir. Por isso a tristeza é nosso maior fantasma e a adolescência sua mais clássica encarnação. Fala-se incansavelmente da incomunicabilidade de Salinger, o autor, por outro lado sabemos que o “Apanhador” tem atravessado gerações. Interessante que possamos dizer que está incomunicável alguém que escreveu algo que continua tão vivo meio século depois... Em verdade não há contradição entre o autor e sua obra. O livro é como a adolescência: depois de adulto não se tem com ela mais comunicação direta, tentativas de reeditá-la não passam de acessos caricaturais de mania. Ela fica lá, quieta, muda, eremita. Mas o que nela vivemos, sofremos e aprendemos está como um livro na estante. Se o consultarmos de tanto em tanto ele será eloqüente, sempre pronto a apresentar um parágrafo que não tínhamos visto antes. Se chegamos à idade adulta é porque tinha alguém na borda do precipício disposto a nos apanhar, é bom lembrar disso, porque temos que estar lá quando for nossa vez de cumprir este papel. Como diz Holden Caulfield, este é o trabalho mais importante que um adulto tem a fazer. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 48 49 SEÇÃO DEBATES SIBEMBERG, N. Reforma Psiquiátrica e legislação. REFORMA PSIQUIÁTRICA E LEGISLAÇÃO o dia 6 de abril deste ano, o presidente da república sancionou a lei federal nº 10216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. A data tem sua relevância pelo tempo transcorrido entre a apresentação do projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado e a aprovação da lei no Congresso Nacional, com sua posterior sanção. Foi mais de uma década. É de se perguntar o porquê de tanta demora, quando o ministério da saúde já vem adotando a política de mudança do modelo assistencial hospitalocêntrico para outro constituído por uma rede de serviços substitutivos (CAPS, NAPS, Hospital-Dia, etc) com diferentes níveis de complexidade, através da edição de portarias que redirecionam a distribuição de verbas para o novo modelo desde 1992, dando relevância a outras formas de intervenção que não apenas a consulta psiquiátrica. A resposta para essa questão encontramos em um poderoso lobby que defende os interesses daqueles que buscam o lucro fácil, recebendo verbas do Sistema Único de Saúde para custear leitos psiquiátricos, muitas vezes em instituições que não apresentam condições mínimas toleráveis para tratamento. São aqueles que seguem defendendo a manutenção de um modelo segregacionista e iatrogênico no trato do doente mental. É importante lembrar que as Sociedades de Psiquiatria tem debatido com freqüência a Reforma Psiquiátrica desde a Conferência de Caracas em 1990, quando a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-americana da Saúde debateram a reestruturação da atenção psiquiátrica na América Latina, priorizando os sistemas locais de saúde e salvaguardando a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis dos usuários, a partir de modelos alternativos centrados na comunidade e suas redes sociais. As internações psiquiátricas deveriam se dar, quando necessárias, em hospitais gerais. No entanto, a aprovação desta lei deve-se a um vigoroso movimento social, que reuniu gestores, técnicos, usuários, familiares, parlamentares e organizações profissionais, promotor de um debate esclarecedor para a opinião pública da inadequação do modelo manicomial. Movimento este que teve sua primeira conquista legislativa em 1992 com a aprovação da lei estadual, no Rio Grande do Sul, que regulamenta as internações psiquiátricas compulsórias e abre as instituições manicomiais para fiscalização de suas ações e condições de funcionamento. O texto da tão aguardada nova lei estabelece direitos aos que padecem de sofrimento psíquico que vão além do acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades. Prescreve a garantia de sigilo das informações prestadas, o acesso as informações sobre sua doença e tratamento e a possibilidade de defender-se juridicamente dos excessos de restrição dos direitos civis que a perversidade do modelo hospitalocêntrico oportunizava, entre outros. Podemos vislumbrar nestes direitos um respeito maior que deve ser dado a palavra dos usuários dos serviços de atenção à saúde mental. Não obstante o valor que deve ser dispensado à nova lei, não encontramos o artigo que constava no projeto de lei original que revogava o decreto lei nº24559 de 1934 do código civil, o qual versa sobre a interdição dos direitos civis dos loucos de todo gênero. Nem sequer fica questionado o código penal quando trata da inimputabilidade penal do doente mental, reservando àqueles que ofereceriam perigo à segurança social a possibilidade de tratamento em instituições como o manicômio judiciário. A coexistência deste grupo de leis guarda uma contradição. Ao mesmo tempo que se busca inovar o modelo assistencial e a postura ética diante dos que padecem dos males da mente, não se altera dispositivos legais que remontam a lógica do movimento alienista e higienista do tempo do império. O artigo 5º do decreto lei 24559 diz: São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 Nilson Sibemberg N 50 51 SEÇÃO DEBATES SIBEMBERG, N. Reforma Psiquiátrica e legislação. I.Os menores de dezesseis anos. II.Os loucos de todo gênero III.Os surdos-mudos que não puderem exprimir a sua vontade. IV.Os ausentes, declarados tais por ato do juiz. O artigo 446 dispõe da sujeição à curatela também aos loucos de todo gênero. No código penal temos o artigo 26 que disserta sobre a imputabilidade penal: É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Em se verificando periculosidade no agente, devem ser tomadas medidas de segurança que corresponde a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, o que, em outras palavras, significa a internação no manicômio judiciário. Diga-se de passagem, tais medidas têm durado a vida toda para muitos dos que ingressaram nestas instituições, apesar da possibilidade do tratamento ambulatorial e das revisões da perícia psiquiátrica que devem ser anuais. Se a perícia médica não contestar a periculosidade atestada, a internação se dá por tempo indeterminado. Isso acontece, muitas vezes, por receio do médico perito em arcar com a responsabilidade de libertar alguém que ele não pode definir absolutamente que não voltará a cometer algum ato delituoso. Enfim, o louco continua incapaz, perigoso e inimputável, segundo essa legislação. Alguém não responsável pela sua palavra e por seus atos, mas perigoso e sujeito a uma custódia que pode ultrapassar o tempo de pena que teria de pagar se fosse julgado como os outros. Sua palavra perde valor de representação social pela ausência de reconhecimento por parte do Outro. O efeito subjetivo e social corresponde a impossibilidade de fazer uma elaboração discursiva de seu ato, ao tempo de sua estigmatização e segregação social. O debate em torno das questões legislativas na reforma psiquiátrica deveria ser mais aprofundado. O que se preconiza com a nova lei é a consti- tuição de direitos de cidadania para o louco de todo gênero, incluindo aí o direito a um tratamento digno que não o afaste de sua comunidade de origem ou pertença, mas o que a manutenção das antigas leis revela é que não se questiona das condições subjetivas dessas pessoas para o exercício de sua cidadania. Segue valendo a velha lógica alienista. Não obstante a importância de seguirmos lutando pela ampliação da rede de serviços substitutivos, não mais em oposição ao velho manicômio, mas na sua positividade política, administrativa e técnica, se faz também importante levarmos em consideração os efeitos clínicos e sociais que correspondem a uma determinada legislação. Neste campo, assim como no anterior, a psicanálise tem muito a contribuir dentro de um debate interdisciplinar. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 52 53 SEÇÃO DEBATES CHNAIDERMAN, M. Existe uma cidade não... EXISTE UMA CIDADE NÃO INSTITUCIONALIZADA QUE É PRECIO APRENDER A VER1 O curta metragem “Dizem que sou louco” (1994, 12') é o primeiro filme dirigido pela psicanalista Miriam Chnaiderman. Em 1992 ela ga nhou o Prêmio Estímulo da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Ela, que sempre se interessou e até mesmo escreveu sobre cinema, disse que sonhava um dia colocar a mão na massa e realizar filmes. Miriam acaba de ganhar mais um Prêmio da Secretaria, projeto no qual ela pretende documentar como vivem as pessoas que trabalham com a morte. Entrevistador: “Dizem que sou louco” trabalha com esta figura que você tem chamado de “louco de rua”, não é? Miriam: Na pesquisa para a realização deste filme nós nos deparamos com a realidade desta personagem, o louco de rua. Ele é um solitário e é discriminado pelos outros moradores de rua e pelos “bebuns”. Ele busca um jeito de ser o que ele é. Tenho insistido nisso sempre que sou chamada para conversar com profissionais que trabalham com moradores de rua na Prefeitura de São Paulo, que tem um serviço muito legal. Na pesquisa, nós fomos indo devagar e conseguimos chegar perto daquelas pessoas que nos interessavam para o filme. Saíamos geralmente em grupo, sempre com um gravador discreto e uma câmera de vídeo na mão. Pedíamos sempre a ajuda das pessoas. Descobrimos que existia em geral uma solidariedade para com eles e isto foi um estímulo. Ora, todos querendo muito fazer alguma coisa para aquelas pessoas, quando elas percebem que existe alguém fazendo algo, elas ajudam, se interessam. Como as imagens foram colhidas? A gente percebe que há vários tipos de câmera e de suporte, vídeo, 16mm, foto. Os diferentes comportamentos entre câmera e personagem levam ao heterogêneo. Isto depende da personalidade de cada um, o enfocado e o camera-man, que também mudava. Mas você conseguiu uma postura bem marcada no conjunto, tratando as personagens igualmente, dando-lhes voz. Eles expuseram seus delírios não dando tempo para a câmera cultivar e embarcar neles. Você não deu trela pra eles, para que fizessem uma mise-en-scène particular (aquilo que alguns cineastas fazem, por exemplo, o Augusto Sevá em Gilda)? Eu não queria um filme didático, pedagógico, de um lado. Eu queria entender a cidade e a loucura. E de outro lado, não me preocupei com a questão do louco maluco, com a situação psiquiátrica. Eu quis marcar uma postura de cinema pela estética, que eu gosto. É uma escolha de não estigmatizar as pessoas, é uma coisa meio socada, bagunçada. Eu queria algo esparramado mesmo. Escolhi não folclorizar, nem pedagogizar a loucura e a cidade. De qualquer jeito eu queria muito estilhaçar, de todo modo eu ia tentar chegar nisto. Entrevista (publicada no Jornal “O Popular” em 15/12/1999) com Miriam Chnaiderman (cineasta, psicanalista, autora de “Ensaios em Psicanálise e Semiótica”, Escuta, 1989. SP, entre outros) por Noemi de Araujo (pedagoga e psicanalista) e Rubens Machado Jr. (Professor de Teoria do Cinema ECA-USP). E aí, qual era a cidade do louco? Isto foi ficando claro nas conversas com a equipe e no que fomos conseguindo. Eu sempre tive o desejo de ter tido mais dinheiro pra fazer este filme. Mas não sei, se eu tivesse tido, não sei se eu ia gostar tanto do resultado. Com os recursos que a gente tinha: uma câmera caseira que nem sei o nome, num outro dia saíamos com uma 16mm, outro dia com a Beta... O suporte foi uma injunção da realidade, mas eu gosto porque é a cidade. A cidade é isto. Com o equipamento Beta, mais pesado, muda total o modo com que as pessoas vão se comportar. Teve uma coisa de gravadorzinho na mão, a câmera pequena na cidade, chegando às praças, aos muros, aos desenhos da cidade. Eu gosto dessa bagunça no filme. Dentro dele aparece a questão da diferença, da diversidade nas posturas, nos comportamentos. Ele passou no festival de Brasília mas não foi selecionado, e nem em Gramado. Porque eu consegui não fazer nada de pedagógico. Agora, o filme tem sido reconhecido e tem sido buscado no contexto da luta anti-manicomial. É C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 1 54 55 SEÇÃO DEBATES CHNAIDERMAN, M. Existe uma cidade não... a coisa do filme cumprir um papel de intervenção na sociedade, dentro de uma proposta de não dizer o que é a loucura ou deixa de ser. É isto aí, e vamos ver o que a gente faz disto. Gostaríamos que falasse um pouco da história da produção do filme. Encampei o argumento do Reinaldo Pinheiro, que queria realizar um filme a partir do poema de Paulo Leminski que diz que “todo bairro tem um louco que o bairro sabe quem é”. Ganhei o prêmio e convidei a Estação, uma equipe de psicanalistas, acompanhantes terapêuticos, que naquele momento estava preocupada com questões da loucura e da cidade. Eles trabalhavam fazendo uma mediação, entre o mundo interno e o externo, com aquelas pessoas que estavam com muita dificuldade de ir para o mundo. Com a Estação montei uma equipe que passou um ano e meio na rua pesquisando. Muito embora a minha preocupação fosse exatamente o avesso do problema que eles enfrentavam: eu estava buscando pessoas que já estavam no fora, no mundo, o tempo todo. vamos abordar estas pessoas? Como vamos saber quem é louco na rua? Onde foram parar os loucos da cidade do interior? Ora, descobrimos que, para sobreviver, existe um código ético super rígido na rua. Eles se arrebentam entre eles para não brigar com as pessoas da rua. Entre eles têm um esquema comunitário do tipo da década de 70, onde se divide tudo. Tudo. Fui filmar uma personagem na Praça Buenos Aires e observei que os moradores de rua vão chegando com latas de comida, pinga, cobertor e colocando tudo lá; e depois tem uma pessoa responsável pela divisão. E os loucos ficam rondando e tentando pegar alguma carona. Nisto, os outros ficam bravos com eles. Neste universo, o dito louco de rua tem uma coisa que é manter o mundo do delírio, que são as histórias que eles montam no meio de uma luta pelo básico. É muito impressionante como eles conseguem uma grande produção simbólica. Nota-se no filme, nas próprias falas deles, produções muito lindas! Demonstrando que no meio dessa batalha pelo mínimo eles conseguem manter uma poesia via loucura. A loucura é um sofrimento atroz, estas pessoas deveriam ser ajudadas, só que não vai adiantar internar. Mas este trabalho de pesquisa, no que consistia? Eu ando muito à pé, vou caminhando para o consultório. Uma vez vi um cara muito estranho aqui na esquina com um bastão e eu fiquei com medo. E aí eu parei e pensei: eu não vou fazer um filme com estas figuras? Por que eu vou ter que fazer o que sempre faço, que é desviar porque a gente sente medo? Me aproximei, então, de um senhor que trabalha no estacionamento ao lado de casa e disse que estava fazendo um filme sobre os loucos de rua e eu precisava da ajuda dele para conversar com aquele homem do bastão. A conversa com ele não rendeu muito, hoje eu penso que se tratava de um bebum. A partir daí o garagista começou a me contar sobre os loucos de rua que ele conhecia; e aí a pesquisa começou. Ora, foi preciso perguntar sobre estes loucos para as pessoas que trabalham na rua, e fomos percebendo que as figuras iam se repetindo, mesmo nesta megalópole. Saímos à rua com muitas questões: Em quê o louco de rua é diferente do mendigo, do bebum? A miséria enlouquece? O estar na rua enlouquece? Como é que Este “não adianta internar”, você consegue passar no filme? Como ele tem sido acolhido pelo mundo dos psi, pelas instituições? Creio que temos que repensar a rua e poder ver que muitas vezes ela atua como se fosse um remédio para estas pessoas, como um neuroléptico, um antipsicótico. O Seu Arlindo, por exemplo, era a terceira vez que ele estava na rua. Quando ele ouve vozes e o barulho da rua, externo, alivia-se o barulho interno dele. Em 1995 me convidaram para falar sobre este filme no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC-SP). Já fui preparada para receber críticas, dentro da linha “negligência psiquiátrica”. Surpreendentemente, os psiquiatras presentes acharam que antes a rua do que um pavilhão de crônicos. Como fazer, então, para a rua poder acolher estas figuras dando-lhes condições melhores de vida, sem institucionalizar, sem prender, respeitando seu nomadismo? A partir do meu trabalho comecei a me perguntar: porque não fazer atendimentos na rua? C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 56 57 SEÇÃO DEBATES MELMAN, C. A psicanálise é uma questão de estado? O que você tem pensado como alternativa? Escutar é uma baita de uma intervenção. Eles ficam muito felizes, isto fica claro no filme. Eu escrevi a respeito no meu texto com a Regina Hallack, “Estranhas urbanidades” (Na sombra da cidade, 1995, Escuta). Tenho pensado muito em equipes itinerantes, atendimentos e oficinas de arte na rua. Porque não instrumentar estas pessoas? O senhor que conserta cadeira de palhinha na rua, oficinas de costura com carrinho, sei lá... a pessoa sai andando com o carrinho e pode reformar ou consertar roupa. Penso muito nestas alternativas como uma das formas de intervenção. Não creio que com isto eu esteja fazendo a apologia da rua. Muito menos idealizando a loucura. A loucura é um sofrimento atroz e merece ser tratado. Penso noutras formas de trabalho com estas pessoas, diferentemente daquelas práticas tradicionais de reclusão. Ora, penso a rua como um espaço que precisa ser recuperado, como um espaço em que podem acontecer coisas. Isto do medo da violência, eu também sentia muito medo e é normal que o sintamos, é algo desse momento e faz parte de uma luta pela cidadania resgatar o espaço da rua. Fiquei me imaginando na rua, eu não sobreviveria um mês. Estas pessoas estão há anos na rua e isto é uma força de vida impressionante! Trata-se de um jeito que elas encontraram de poder ser elas mesmas. Elas escolheram estar na rua? Sei lá se é escolha. Elas não podem estar noutro lugar e encontraram este jeito de estar na vida. Em vários momentos deste trabalho, eu me sentia na rua como se estivesse invadindo casas. E aprendi a ver que existe uma cidade não institucionalizada que a gente tropeça sem se dar conta. Onde eu vou, eu falo de uma mudança na cabeça da gente que tem que acontecer em relação à rua. Creio que a rua só poderá ser diferente se houver uma mudança política-econômica, mas acho que uma das frentes de luta política é batalhar pela existência do espaço da rua. Para que ele volte a ser público. A PSICANÁLISE É UMA QUESTÃO DE ESTADO?1 Charles Melman2 A o término desta Jornada eu me encontro em um estado de sofrimento psíquico. Felizmente existem terapeutas na sala… O único problema é que, ao mesmo tempo, é o que me inquieta! Porque logo que eu procuro compreender e saber o que eles fazem, qual é sua prática, evidentemente eu me interesso pela sua literatura que é abundante, bastante precisa, eu percebo que – para dizer as coisas simplesmente e diretamente – eles fazem… qualquer coisa! É certamente o que caracteriza o seu agrupamento. Parece que existem 19 escolas ou grupos reunidos. Na essência não há, entre elas, nenhuma comunidade de referência teórica. Há uma linguagem que se inspira mais ou menos corretamente em Freud, está claro – às vezes mesmo habilmente, eu reconheço, mas, em todo o caso, não há necessidade de ser muito forte para saber que isso tem o gosto do Canada dry… Ou seja, práticas das quais é preciso dizer que são qualquer coisa, um saber teórico do qual é preciso dizer que é qualquer coisa. Na minha carreira, que agora já não é mais tão curta assim, eu conheci muitas… Eu conheci muitas evoluções de psicoterapias, e de modas, e de modos de psicoterapias; eu conheci bem Moreno, por exemplo. Isto não diz nada a vocês? Eu afirmo que ele era um personagem considerável em seu tempo! Houve Jdanov… o «grito primal», isso nos faria bem! Nós o escutamos recentemente, ele estava aposentado, na Côte d’Azur, nós o escutamos dizer que se divertiu muito. Enfim! Não é preciso fazer assimilações abusivas, nem excessivas, nem muito rápidas, mas eu me fio no que eu leio, e também no que escuto, pois no decorrer da Jornada, ninguém ainda me disse… o que é a psicoterapia! 1 2 58 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 Conclusão da Jornada de 25 de março de 2000 da Fundação Européia pela psicanálise. Tradução Ester Trevisan. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 59 SEÇÃO DEBATES MELMAN, C. A psicanálise é uma questão de estado? Então eu vou pensar que é uma comunidade de objeto, que o que reúne estes diversos grupos… Finalmente, com métodos diferentes como houve em medicina e como ainda há, diversos modos de proceder: isso visa curar. Vejam então, tratam-se de pessoas bem intencionadas e que procuram, através dos meios que são os seus, curar. O único problema é que precisaria que eles quisessem nos dizer o que é a cura psíquica. O que é? Porque o sentimento de bem-estar psíquico varia eminentemente segundo os períodos, segundo as culturas, segundo as religiões, segundo as línguas, segundo os meios sociais no interior de uma mesma cultura. O que faz com que falar em cura psíquica merece evidentemente que se venha a dizer o que se entende por isto… Há em Freud – pois evidentemente eu me voltarei em direção a Freud para tentar ter uma suposição quanto a isto – uma proposição que merece nosso interesse: finalmente, o que podemos considerar como sobressaindo de uma cura psíquica, é uma espécie de acordo entre estas três instâncias que constituem o Eu[moi], o Super-eu[surmoi] e o Isso[ça]; e que, no interior de um mesmo indivíduo, estas três instâncias funcionem de modo mais ou menos harmonioso. É uma definição que me parece interessante porque, eu devo dizer, acho-a um pouco otimista. Um pouco otimista na medida em que nós verificamos que se o Isso representa o conjunto das pulsões e dos desejos inconscientes, o Eu tem o péssimo hábito de, com muito prazer, sacrificar seus desejos e suas pulsões para satisfazer o Super-eu. Isto parece estar no princípio dos funcionamentos psíquicos mais comuns, como se o índice do bem-estar psíquico fosse este acordo do Eu e do Super-eu; como se o fato de poder me imaginar articular o que seria a mesma linguagem, a mesma proposição, o mesmo discurso, exprimir as mesmas vontades que ele, fosse o que seria suscetível de me dar este sentimento de conforto psíquico, o sentimento de estar no meu direito, de ser sustentado, e, então, ao mesmo tempo, de estar bem – mesmo que isto possa me custar o sacrifício dos desejos inconscientes. O que eu quero dizer com isto é que se nós prestamos um pouco de atenção a esta formulação de Freud, seremos levados a constatar que nun- ca nós nos sentimos tão bem psiquicamente como quando estamos mais alienados; dito de outro modo, animados por isto o que nós chamamos o discurso do Outro – ou o que nós emprestamos ao Outro. E é bem tudo o que nos propõe a religião, é também o que nos propõem todas as ideologias, compreendido aí inclusive o campo psicanalítico: com este sentimento de conforto que podem experimentar os alunos a retomar como convém, como se deve, o propósito de seu mestre… Aqui só há um pequeno passo a fazer para ressaltar que este acordo do Eu com o Super-eu, que parece dar este sentimento de bem-estar, mesmo que o seja em detrimento do Isso. Certas formas de organização política, social, encontram-se na mesma posição de fornecer e de propor uma solução coletiva a esses pequenos incômodos individuais. Na falta de se referir ao que seria para cada um o discurso do que para ele constitui uma referência privada, por que não ter uma referência coletiva, que se trate de uma ideologia, ou que se trate do conformismo ao meio social? Eu evoco muito diretamente todas estas formas de regime político, estes regimes políticos que foram, que são e que serão eminentemente populares (pois não podemos utilizar um outro termo), que justamente não propõem aos seus concidadãos desgraçados, em situação de dificuldade, com um Eu exposto a tudo o que vocês quiserem – eu não vou entrar nisso – nada além do acordo restabelecido com uma instância ideal coletiva e com os efeitos inegáveis de alívio psíquico e de conforto psíquico que isso pode trazer! Hoje, entre nós, há esta o-utra fórmula que chamamos de um termo rápido o “politicamente correto”: trata-se, em todo o caso, de ser conforme ao que parece ser a média dos julgamentos morais da sociedade à qual pertencemos e com conseqüências que podem ser graves para aquele que deles se afaste… Se o que eu ressalto aqui é exato, isto poderia dizer que, finalmente, as psicoterapias, qualquer que seja a diversidade dos seus procedimentos ou de suas referências teóricas, têm pelo menos uma média comum. Uma média que nós conhecemos, Freud encontrou-a na origem do seu percurso e se interessou por ela, ele foi a Nancy por isto. Isto se chama a sugestão. A C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 60 61 SEÇÃO DEBATES MELMAN, C. A psicanálise é uma questão de estado? sugestão, isto quer dizer estar em condições de se dispensar de sua existência miserável e dos problemas que ela pode colocar para somente ter que se remeter aos imperativos de bondade que vão se encarregar de guiar a existência de vocês. Eu só peço para ser contestado sobre esse ponto, por aqueles psicoterapeutas que estariam em condições de fornecer aqui objeções válidas. Eu só peço para fazer um melhor julgamento quanto a isso, mas não me pareceria ilegítimo dizer que quaisquer que sejam os procedimentos, não se trata, em última instância, de nada se não do recurso à sugestão e de um reforço da alienação enquanto ela dissimularia isto que o sujeito, abandonado à sua solidão, poderia esperar, exigir: o que nós chamamos também de um certo modo e em outro lugar, a pulsão invocante. Então, sobre a questão do diploma, o problema mais imediatamente teórico e prático que ele põe é o seguinte: podemos ser psicoterapicamente corretos? Podemos sê-lo, quando sabemos que o que caracteriza a vida psíquica, o que faz seu preço, é justamente a sua incorreção? O inconsciente é o incorreto por excelência, os desejos do inconsciente são regularmente e sistematicamente não corretos, não conformes. E, na medida em que o pouco de vida que temos é sustentado por estes desejos inconscientes – que é sinônimo, que vai junto – querer ser psiquicamente correto, quer dizer, conforme a qualquer coisa que seja, só pode significar a extinção deste resto de vida, que está lá a se debater, a se interrogar, a se questionar, a propor, a duvidar, a hesitar, a sofrer. Já que, em suma, há esta parte de sofrimento que se revela interna à existência e nós sabemos muito bem de que modo cada um pode colocar aí um fim. Então, o que acontece hoje conosco, com isto que ressaltaram aqueles que fazem a profissão de psicoterapeutas, é certamente ir na direção de uma preocupação ministerial que, de minha parte, acho legítima: testemunhar aos cidadãos que o governo não vai deixar se repetir os golpes-baixos no campo da saúde, que o governo está sempre alerta, que os cidadãos vão ser rigorosamente defendidos contra – parece – os charlatões… Este movimento destes que nós chamamos os psicoterapeutas, eu diria o nome que lhes dou, este movimento é perfeitamente homogêneo, congruente – por que não dizê-lo – com a multiplicação das religiões: ou seja, com a idéia de que há, na população, uma necessidade de religiões, e que as igrejas arcaicas, antigas, constituídas, dogmáticas, sofisticadas, tudo isso, toda a parafernália ideológica, estas igrejas esclerosadas não respondem mais a esta necessidade – que é qual? Que cessemos de expô-lo ao silêncio de Deus! Chega! Agora somos suficientemente grandes, suficientemente sábios, suficientemente fortes, ricos o bastante para dizer a ele como deve fazer; as boas respostas, elas estão aqui. Há pouco um amigo de Strasbourg me dizia: mas nós estamos muito atrapalhados para distinguir as seitas das religiões! Eu devo dizer que não vejo nenhuma diferença. As religiões são fundadas sobre o amor. Então, o amor é interessante porque implica o ódio, a dúvida, o receio, o engano, a infidelidade… Enquanto que as seitas são fundadas sobre a paixão. E a paixão, nós sabemos onde isto se trata – aqui, por exemplo, no Saint-Anne. A paixão é uma outra questão! Estes grupos psicoterápicos apresentam-se, assim, em um momento onde existem tantos neste dominiozinho privado, mesmo que ele constitua um campo em que podemos ainda crescer, aumentar; trata-se de responder às “necessidades” da população. Estes psicanalistas, com seus procedimentos centenários! Vocês se dão conta? As velharias! Enquanto hoje é preciso ser rápido, preciso, curto, eficaz. A técnica de Freud era boa para a época, o início do caminho de ferro… Hoje é preciso estar em condições de ir adiante, de responder… Porém, responder o quê? Responder a que? Responder como? De minha parte, não estou muito surpreso com isto que surge neste momento em que vivemos. Parece-me, eu não sou muito hábil em política, escuto muito atentamente meus amigos quando eles fazem prova de sabedoria quanto ao modo de se conduzir frente a tudo isto, mas eu penso que importaria na questão que nós chamamos as psicoterapias, que os psicanalistas se situem claramente: “psicoterapia” não é nada senão o quê? Uma palavra, senão isto não tem existência; uma palavra, um significante sob o qual vocês enfiam qualquer coisa! E esta palavra é hoje suscetível de respon- C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 62 63 SEÇÃO DEBATES RESENHA der à espera e à necessidade de um certo número, de um grande número de pessoas… Vai haver sempre alguém para curar vocês! Vocês falam de um velho fantasma! Aí está, isso infla3… mas qual é a natureza, qual é o caráter, qual é o espírito disto que vem inflar aqui? É preciso que os psicanalistas digam – e é a isto que pessoalmente eu me empregarei, com o limite dos meus próprios meios – sobre a questão das “psicoterapias” entre aspas, que eles digam do que se trata claramente. É sobre o que os deputados, reputados cultos, vão ser levados a se pronunciar, é sobre o que um pessoal administrativo, que por outro lado têm muitas qualidades e saber, vai ser levado a se pronunciar. É preciso, eu acho, em todo o caso é o que me parece, especificá-lo muito bem; não há nada aí, por detrás disso, senão uma intenção, que se possa julgá-la boa ou má, pouco importa! Em todo o caso uma intenção que não tem nem os meios nem o saber de seu fim. Obrigado pela atenção de vocês. 3 Em francês a expressão utilizada é «ça mousse». 64 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 PERTO DAS TREVAS STYRON, William. Perto das trevas. Rio de Janeiro: Rocco,1991, 91p. Tradução de Darkness Visible (1990), por Aulyde Soares Rodrigues. “Numa noite gelada de Paris, no fim de outubro de 1985, me dei conta pela primeira vez de que a luta que travava com a perturbação da minha mente – uma luta que vinha acontecendo há meses – poderia ter um desfecho fatal.” A ssim William Styron, escritor norte-americano consagrado, nascido em 1925, inicia seu depoimento acerca de sua experiência com a depressão. Num relato vívido e enxuto ele apresenta e discute vários aspectos relevantes da questão, articulando a leitura de sua própria experiência com a discussão de elementos que circundam essa experiência, dela formando parte e, assim, extravasando o âmbito individual em que ela se dá. Em todo o relato suas qualidades de ficcionista sobressaem, pois ele vai apresentando os elementos da narrativa como fios de uma trama que engenhosamente vai tecendo, tornando o leitor cúmplice e refém do destino do personagem/autor, preso da primeira à última linha, não raro emocionado com a densidade da experiência que testemunha, assim como com a qualidade da narrativa que se desenrola. Da leitura do texto pode-se extrair elementos clínicos relevantes, tendo por referência a teorização psicanalítica acerca da questão melancolia/ depressão. O eixo base apontado por Freud e ressituado por Lacan caracteriza um movimento de retorno a si, que remete à constituição do eu e, portanto, à relação eu-outro, na perspectiva da relação especular do eu. Freud afirma que, no processo de constituição do eu, a identificação narcísica é a C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 65 RESENHA RESENHA etapa preliminar da escolha de objeto – primeira modalidade pela qual o eu se distingue de um objeto. Lacan afirma a dimensão narcísica do eu contrapondo-se ao eu percepção-consciência, que encontra uma elaboração decisiva na formulação da fase do espelho, na qual o conceito de eu será vinculado ao de imago: o eu se constitui através da imagem do corpo próprio. Nesta perspectiva, podemos acompanhar no texto de Styron uma progressiva problematização da imagem corporal até chegar à falência generalizada do corpo em suas funções vitais. “Sentia uma espécie de anestesia, uma apatia, mais especificamente uma estranha fragilidade – como se meu corpo tivesse se tornado fraco, hipersensível e de certo modo, desajeitado, sem a coordenação normal. (...) A libido fez uma retirada precoce (...) A comida, como tudo o mais na área dos sentidos, não tinha sabor algum. A perturbação de instintos mais dolorosa foi a do sono, ao lado da ausência completa de sonhos.” Da mesma forma, a articulação entre a imagem e a agressividade encontra tanto em Freud como em Lacan formulações produtivas. Em “Luto e melancolia” (1915), Freud enuncia: “Se o amor pelo objeto – um amor que não pode ser abandonado, ao mesmo tempo que o objeto o é – se refugiou na identificação narcísica, o ódio entra em ação neste objeto substitutivo, insultando-o, humilhando-o, fazendo sofrer e ganhando neste sofrimento uma satisfação sádica.” No seminário sobre a transferência, ao referir a posição conflituosa do pequeno ser diante daquilo que é ao mesmo tempo ele e o outro, que o espelho tão vividamente veicula, Lacan refere: “Existe uma certa dimensão de conflito, que não tem outra solução além de um ou ..., ou... É necessário a ele ou tolerar o outro como uma imagem insuportável, que o arrebata de si mesmo, ou quebrá-lo imediatamente, inverter, anular a posição à frente, a fim de conservar aquilo que ele é, naquele momento, centro e pulsão de seu ser, evocado pela imagem do outro, seja ela especular ou encarnada. O laço entre a imagem e a agressividade é, aqui, inteiramente articulável.” Nesta perspectiva é possível observar o elemento de agressivização da relação ao outro presente em Styron através da ironia, que produz a mobilização do pulsional, com efeitos palpáveis sobre seu estado geral, pro- 66 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 duzindo uma gradativa apropriação do si mesmo: “À medida que eu melhorava, procurava me distrair com a rotina do hospital, com seus espetáculos institucionalizados. Dizem que a terapia de grupo tem um certo valor. Não pretendo negar qualquer conceito comprovadamente eficaz para certos indivíduos. Mas a terapia de grupo não me ajudou em nada a não ser me deixar furioso, talvez porque era dirigida por um odioso e jovem psiquiatra, dono da verdade, com uma barba escura em forma de espada (der junge Freud?) que, enquanto tentava fazer com que revelássemos as sementes das nossas misérias, alternava a condescendência com a provocação e ocasionalmente reduzia um ou dois pacientes, tão desamparados com seus quimonos e rolinhos nos cabelos, a uma crise de choro que para ele era extremamente satisfatória. (O resto da equipe psiquiátrica era exemplar no trato e na compaixão.)(...) Posso dizer mais ou menos a mesma coisa da terapia da arte, que não passa de infantilismo organizado. Nossa classe era dirigida por uma jovem delirante, com um sorriso fixo e infatigável, evidentemente saída de uma escola que oferecia cursos de Ensino da Arte aos Doentes Mentais. Nem mesmo uma professora de crianças retardadas muito novas seria capaz de distribuir, sem ordens definidas, aquela orquestração de risadinhas e arrulhos. Desenrolando metros de papel de parede escorregadio, ela nos mandava fazer com crayon desenhos de nossa criação. Por exemplo, A Minha Casa. Eu obedecia humilhado e furioso, desenhando um quadrado com uma porta e quatro janelas vesgas, uma chaminé no alto com uma espiral de fumaça. Ela me inundava de elogios e com o passar das semanas minha saúde melhorava e com ela meu senso de comédia. Comecei a trabalhar, feliz, com massa colorida, esculpindo primeiro uma horrenda caveira verde que a professora definiu como uma réplica esplêndida da minha depressão. Passei então pelos estágios intermediários da recuperação até chegar a uma cabeça rosada e angelical com um sorriso de Um Bom Dia para Você! Por coincidir com a época da minha alta, essa criação encantou minha instrutora (de quem acabei gostando, mesmo contra a vontade) pois, segundo ela, era o símbolo da minha cura e portanto, mais um exemplo do triunfo da Terapia da Arte sobre a doença. Estávamos então no começo de fevereiro e embora ainda abalado, eu acabava de emergir para a luz. Não me sentia mais como um sabugo, mas como um corpo no qual recomeçavam a circular algumas das doces seivas vitais. Tive meu primeiro sonho em C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 67 RESENHA RESENHA muitos meses, confuso, mas inesquecível. Havia uma flauta, um ganso selvagem e uma dançarina.” Um outro elemento produtivo a ser destacado nesta leitura é o do lugar da sublimação. No texto “O eu e o isso” (1923), Freud introduz um enlace entre a melancolia e a sublimação, apontando que a transformação da libido de objeto em libido narcísica determina um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização, espécie de sublimação: “Na verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do eu, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo.”1 No relato de Styron é possível pensar a escrita como destinação/ desdobramento viável do pulsional, reconhecendo os efeitos subjetivos deste ato de transformação do vivido em narrativa. “Revoltado com tudo aquilo, escrevi um artigo curto para a página op-ed do Times. Meu argumento era claro e simples. A dor da depressão grave não pode ser imaginada por quem não a experimentou e ela mata, muitas vezes, porque a angústia torna-se insuportável. (...) Expus meus pensamentos naquele pequeno artigo para o Times, apressada e espontaneamente, e a resposta foi igualmente espontânea – e extraordinária. (...) Foi a única vez em minha vida em que valeu a pena permitir que minha privacidade fosse invadida e passasse ao domínio público. Pensei então que, para aproveitar aquele impulso, e com minha experiência em Paris como um exemplo detalhado do que ocorre durante a depressão, seria útil tentar a descrição cronológica das minhas experiências com a doença; talvez estabelecendo no processo um quadro de referência do qual pudessem ser extraídas conclusões valiosas. Essas conclusões, devo acentuar, devem ser baseadas apenas na experiência de um indivíduo.” 1 Remetemos o leitor ao artigo de Urania Peres em Melancolia.(Vários autores) São Paulo: Escuta, 1996. 68 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 Finalmente, chegamos à questão apontada tanto por Freud como por Lacan da perda como central na melancolia e no luto depressivo, com suas diferenciações. Ao analisar os efeitos subjetivos de uma perda real, Lacan precisa que no luto o buraco no real faz apelo à ordem significante, o que sugere uma diferença entre a depressão neurótica e a melancolia, esta como uma impossibilidade de recobrimento ao nível da própria constituição estrutural do sujeito. No relato autobiográfico de Styron acompanhamos a referência a uma perda do objeto na puberdade (a morte da mãe), momento em que se reedita a relação de objeto na problemática edípica. Em passagens de grande beleza ele descreve uma associação decisiva para ele entre a música e a mãe, no que pode-se ler uma referência ao fusional da experiência musical, magistralmente trabalhada por Didier-Weill em seu livro “Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical”. “Bem tarde, numa noite fria, quando me convenci de que não teria forças para viver o dia seguinte, sentei na sala de estar enrolado em cobertores. Tinha acontecido alguma coisa com o aquecimento. Minha mulher estava deitada e me obriguei a assistir o tape de um filme no qual a atriz que havia trabalhado numa das minhas peças fazia um pequeno papel. Em certa parte do filme, passado em Boston, no final do século XIX, os personagens caminhavam pelo corredor de um conservatório de música, ouvindo uma passagem da Rapsódia para contralto de Brahms, executada e cantada por músicos e por uma cantora, invisíveis. O som, como toda música – na verdade como todos os prazeres – ao qual eu estava indiferente há meses, atingiu meu coração como uma adaga, e numa torrente de rápida lembrança pensei em todas as alegrias que aquela casa havia conhecido. As crianças que tinham corrido por ela, as festas, o amor e o trabalho, o sono honestamente merecido, as vozes e vivacidade, a tribo eterna de gatos, cães e pássaros...Compreendi que tudo isto era mais do que eu podia abandonar, assim como o que eu tão deliberadamente resolvera fazer era mais do que eu podia infligir àquelas lembranças, e a todos aqueles, tão chegados a mim, aos quais essas lembranças estavam ligadas. E com a mesma força compreendi que eu não podia cometer aquela profanação de mim mesmo. Recorri a um último lampejo de sanidade para perceber as apavorantes dimensões do horror mortal no C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 69 RESENHA RESENHA qual havia mergulhado. Acordei minha mulher e vários telefonemas foram dados. No dia seguinte dei entrada no hospital. (...) Até o ataque que sofri e a recuperação, eu nunca havia pensado no meu trabalho em termos de sua ligação com o inconsciente – uma área de investigação que pertence aos detetives da literatura. Mas quando recuperei a saúde e consegui pensar no passado à luz do meu sofrimento, comecei a ver claramente que há muitos anos a depressão espreitava à margem da minha vida. O suicídio é um tema persistente nos meus livros – três dos meus personagens principais cometem suicídio. Relendo, depois de muitos anos, trechos dos meus livros – passagens em que as heroínas trilham o caminho da desgraça final – verifiquei atônito a exatidão com que eu havia criado uma paisagem depressiva nas mentes daquelas jovens, descrevendo instintivamente as imagens de um inconsciente já eivado de perturbações, o desequilíbrio psíquico que as levava à destruição. Desse modo, a depressão, quando me dominou, não era uma estranha, nem mesmo uma visitante completamente inesperada. Há décadas ela batia à minha porta. Terminei por me convencer de que a condição mórbida tinha origem nos meus primeiros anos de vida – no meu pai, que lutou contra o monstro durante grande parte da sua vida e que foi hospitalizado, quando eu era menino, depois de uma rápida descida em espiral que, em retrospecto, acho muito parecida com a minha. As raízes genéticas da depressão aparentemente estão agora acima de qualquer controvérsia. Porém, estou certo de que o fator mais importante foi a morte da minha mãe, quando eu tinha treze anos. Esse abalo, essa dor precoce – a morte ou desaparecimento de um progenitor, especialmente da mãe, antes da puberdade, ou durante essa fase da vida – aparece repetidamente na literatura sobre depressão como um trauma que pode criar um caos emocional quase irreparável. O perigo é mais aparente quando o jovem atravessa o que chamam de ‘luto incompleto’ – isto é, não consegue a catarse da dor e carrega no íntimo, por toda a vida, um misto de raiva e culpa, aliado à dor não liberada, a semente em potencial da autodestruição. (...) Assim, se essa teoria do luto incompleto tem alguma validade, e eu acho que tem, se é verdade também que no mais recôndito abismo do comportamento suicida a pessoa está ainda sob a influência de uma perda imensa, procurando anular seus efeitos devastadores, então minha vitória contra o suicídio foi uma homenagem tardia à minha mãe. Sei que naquelas últimas horas, antes de me libertar, quando ouvi o 70 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 trecho da Rapsódia para contralto, de Brahms – que eu a ouvira cantar – ela estava toda na minha lembrança.” Tomar este relato como uma experiência significa referir que diz respeito a todos nós. A partir de uma referência a Paracelso, médico e alquimista suíço da Idade Média, Urania Peres interpreta talentosamente a articulação essencial entre a tristeza e a alegria na constituição subjetiva, por via da relação especular ao outro, situada pela psicanálise: “Adão, primeiro homem, é depositário da tristeza e será Eva o primeiro semelhante, o outro especular que lhe trará a alegria. É ao contemplar o outro e nele se reconhecer que o júbilo faz a sua aparição na ‘fase do espelho’. Em Adão e Eva, o primeiro encontro especular, a tristeza e a alegria fizeram sua presença.” Lucy Linhares da Fontoura PS.: Agradeço a Gilson de V. Ferreira ter feito chegar às minhas mãos este pequeno grande livro e à escuta fraterna dos integrantes do Espaço de Estudos Psicanalíticos de Ijuí/RS, com quem formulei esta leitura. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 71 AGENDA Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.) Criação da capa: Flávio Wild - Macchina SETEMBRO – 2001 Dia Hora 05, 12, 14h30min 19 e 26 13 21h 10 e 24 20h30min 11 e 25 20h30min 11 e 25 20h30min 21h 27 Local Sede da APPOA Atividade Reunião da Comissão de Eventos Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva Reunião da Comissão do Correio da APPOA Reunião da Comissão de Biblioteca Reunião do Serviço de Atendimento Clínico Reunião da Mesa Diretiva aberta aos membros da APPOA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE GESTÃO 2001/2002 Presidência - Maria Ângela Brasil a 1 . Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira 2a. Vice-Presidência - Jaime Alberto Betts 1o. Tesoureira - Grasiela Kraemer 2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes 1o. Secretária - Carmen Backes 2a. Secretário - Gerson Smiech Pinho MESA DIRETIVA Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Analice Palombini, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de Sousa, Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Liliane Fröemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira. EXPEDIENTE Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS Tel: (51) 333 2140 - Fax: (51) 333 7922 e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956 Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda. Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355 PRÓXIMO NÚMERO PSICOSSOMÁTICA 72 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 Comissão do Correio Coordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira Integrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luis Roberto Benia, Luzimar Stricher, Marcia Helena Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein S U M Á R I O EDITORIAL NOTÍCIAS SEÇÃO TEMÁTICA DEPRESSÃO É MAIS DO QUE SENTIMENTO Eduardo Mendes Ribeiro LUTO IMPOSSÍVEL, MELANCOLIA INSTAURADA Robson de Freitas Pereira LUTO, MELANCOLIA, DUPLO, DESAMPARO Marta Pedó A DOR EMUDECIA NA ANOREXIA E NA BULIMIA Rosane Monteiro Ramalho TRAUER UND MELANCHOLIE: TRADUZINDO OS NOMES DO EU Liliane Seide Fröemming UM ADOLESCENTE DE MEIO SÉCULO Diana Lichtenstein Corso SEÇÃO DEBATES REFORMA PSIQUIÁTRICA E LEGISLAÇÃO Nilson Sibemberg EXISTE UMA CIDADE NÃO INSTITUCIONALIZADA QUE É PRECIO APRENDER Miriam Chnaiderman A PSICANÁLISE É UMA QUESTÃO DE ESTADO? Charles Melman RESENHA “PERTO DAS TREVAS” AGENDA 1 3 9 N° 94 – ANO IX SETEMBRO – 200 1 10 17 24 31 38 45 50 50 54 59 65 65 72 OS NOMES DA TRISTEZA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA