Por: André Luiz Avelino - Graduando em Filosofia FFLCH/USP
Dos Dois Tipos de Desigualdades.
Desigualdade Física ou Natural – Estabelecida pela natureza (idade, força corporal,
saúde); É homem despojado de tudo o que é adquirido no convívio social Concepção hipotética obtida por reflexão distanciada dos conceitos científicos,
baseada na natureza, anteriormente à história; Homem bípede, medindo a natureza
com os olhos; Ágil, forte e robusto devido às vicissitudes como o clima e ferocidade
dos animais; Limitado pela infância e velhice, mas não por doenças, por esta ser mais
condizente com o estado civil e não com o estado natural; Criatura livre e dispersa
entre as outras; Guiado por 2 princípios ou sentimentos naturais, o amor de si –
desejo ardente pelo próprio bem estar – e a piedade – repugnância ao ver qualquer
ser sensível perecer, principalmente os semelhantes. Desses dois princípios, sem que
seja necessário o da sociabilidade, decorrem todas as regras do direito natural, regras
que a razão é forçada a restabelecer sobre outros fundamentos quando com seus
desenvolvimentos sucessivos sufoca a natureza. Possui em estado latente, enquanto o
meio externo permanecer imutável, a perfectibilidade – faculdade peculiar de se
aperfeiçoar em função das circunstâncias, desassociada da razão, já que as únicas
operações da alma humana no estado natural são perceber e sentir, querer e não
querer, desejar e temer; O homem natural desejava apenas a alimentação, a fêmea e o
repouso; seus males eram a fome e a dor; Difere dos outros seres sensíveis pela
liberdade e pela perfectibilidade e não pela racionalidade, suas ideias eram muito
simples; Seu estado é propício à paz. A tranquilidade de suas paixões o impede de agir
mal. Neste estado as diferenças são, tão e somente, físicas.
Desigualdade Moral ou Política – Privilégio que uns usufruem em prejuízo de outros;
Consentida pelos homens. A conclusão a propósito deste estado é obtida por reflexão,
estabelecida pelo preenchimento da lacuna existente entre o estado de natureza e a
desigualdade evidente no estado civil por meio de conjecturas auxiliada pela história, e
na ausência desta a filosofia.
Do Estado Natural ao Estado Político.
Mudanças iniciais – A variação do clima, a necessidade de proteção contra os animais,
à procura por alimentos propiciam os primeiros desenvolvimentos adquiridos por meio
da perfectibilidade. Das primeiras aquisições surge o apego aos objetos que causam a
comodidade. As relações tornam-se mais comuns, devido à proximidade estabelecida
pela busca do comodismo, propiciando a constituição da família que faz do homem um
ser mais fraco fisicamente. Os homens ao conviverem mais próximos passam a se
apreciar mutuamente e se lhes forma no espírito a ideia de consideração e cada um
pretendeu ter direito a ela. Saíram daí os primeiros deveres de civilidade.
O primeiro grau de desigualdade – O primeiro que cercou um terreno e atreveu-se a
dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o
verdadeiro fundador da sociedade civil; Houve reivindicação das terras e divisão
destas justificada pelo trabalho e tempo empreendido nelas, devido o
desenvolvimento da agricultura e da metalurgia. Os que ficaram sem terras
submeteram-se aos que tinham através do trabalho. Nasce a primeira grande
desigualdade: a pobreza e a riqueza.
Os que não obtiveram terra e nem trabalho não tiveram alternativa que não roubar.
Da riqueza surge a cobiça, a ambição, o desprezo, a vergonha, sentimentos que ferem
o amor próprio – sentimento que leva cada um a fazer mais caso de si do que de
qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e
que é a verdadeira fonte da honra, sentimento inexistente no estado de natureza.
Os ricos percebendo-se impotentes em preservar suas posses propõem um projeto
que consistia em transformar seus adversários, os pobres, em seus defensores. Por
meio de um discurso enganador mostram aos pobres o horror daquela situação de
conflito e insegurança, e sugeri uma união de forças para garantir a cada o que lhe é de
direito através de leis que defendam a todos sem exceção. Com as leis estabelecidas –
primeiro pacto – o homem perde sua liberdade natural, e a lei da desigualdade e da
propriedade fixam-se.
O segundo grau de desigualdade – Da primeira desigualdade surge a segunda: a
necessidade de um governo, a instituição da magistratura, pacto concebido entre o
povo e o chefe eletivo, onde ambos se obrigaram a observar as leis estipuladas. Esses
cargos, de eletivos passaram a ser hereditários, e de funcionários, os chefes passaram
a ser proprietários do Estado, subjugando aqueles a quem deveriam representar. O
poderoso e o fraco, ou seja, os que mandam e os que obedecem é o segundo grau de
desigualdade estabelecido pela magistratura.
O terceiro grau de desigualdade – O despotismo - É a evolução do segundo grau de
desigualdade, ocasionado por um governo mal constituído.
A desigualdade de consideração e de autoridade forçou os homens que viviam em
sociedade a compararem-se e a tomar conhecimento de suas diferenças. E aqueles
que promovem a distinção através da qual os homens se medem tornam os homens
rivais.
Em resultado desta desordem Rousseau conclui que o povo não teria mais chefe, e o
poder estaria nas mãos dos tiranos, que fazem prevalecer à vontade pela força. Logo o
estado perderia sua legitimidade. Por sua vez o tirano é destituído do poder, passando
a valer a lei do mais forte, não existindo mais pacto, dando origem a senhores e
escravos. E assim os homens são jogados a um segundo estado de natureza, o estado
político, diferente do primeiro, o estado natural, que era puro, sendo o segundo
resultado da corrupção.
Da razão.
Desenvolvimento da razão – O progresso do entendimento é proporcional à
necessidade. A constância das coisas no estado de natureza permite a não necessidade
de prudência e curiosidade. Mas, a partir das primeiras mudanças, a necessidade
surge, e desperta as paixões, que por sua vez, desperta o entendimento. Quanto mais
violentas as paixões, maior a necessidade de leis para contê-las.
A piedade e o amor próprio, e a critica a razão - A reflexão é um estado contra a
natureza; é a razão que produz o amor próprio, sufocando o sentimento de piedade
que faz às vezes da lei, no estado de natureza. A piedade concorre para a conservação
da espécie sem o auxilio da reflexão. Esta é uma crítica, de Rousseau, à Sócrates que
preconiza a aquisição da virtude por meio da razão. Para Rousseau, o costume, o
hábito da piedade, produz a virtude e não a razão.
A piedade modera o amor próprio – sentimento que leva cada um fazer mais caso de si
do que de outro, inexistente no estado de natureza, nascido na sociedade pela
comparação entre os homens; No estado de natureza os homens estão dispersos, o
que impede as comparações. Mas, a racionalidade o produz o amor próprio, a filosofia
isola a piedade.
Origem das ideias - As ideias gerais são oriundas do discurso, apreendidas somente
com o auxilio da linguagem. Motivo porque os animais não possuem a perfectibilidade,
eles não possuem a linguagem que lhes possibilitariam o desenvolvimento de suas
ideias. As ideias particulares originam-se nas sensações e as ideias gerais são de
origem intelectual, concebidas por meio do discurso. Os animais também possuem
ideias, já que possuem sentidos, diferindo dos homens apenas na intensidade. É
preciso falar para se ter ideias gerais.
Origem da Linguagem – A primeira linguagem do homem é o grito da natureza, a
imitação dos sons da natureza. Tendo o filho muito mais a explicar a sua mãe, devido
as suas necessidades, do que esta a ele, é bem possível que isto tenha auxiliado na
criação de um idioma; os sons eram interpretes das ideias.
Perfectibilidade – É ela quem tira o homem de sua condição originária; É a fonte de
todas as desgraças do homem; faculdade distintiva; desenvolve todas as outras
faculdades.
Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, de
Jean-Jacques Rousseau.
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A obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de
Jean-Jacques Rousseau, é dividido em três partes: a primeira é a Dedicatória, seguida
do Prefácio e por último o próprio Discurso.
1. Dedicatória
O Discurso foi publicado em 1750, período em que Rousseau ainda contava com
grande prestígio na sociedade - pois é a partir da publicação desta obra que começa a
formar-se "o grande complô" do qual Rousseau sentia-se vítima – portanto sua
dedicatória aos cidadãos de Genebra e aos representantes do Estado é natural e
aparentemente sincera, pois para ele sua pátria era "...a imagem mais aproximada do
que pode ser um Estado virtuoso e feliz, democrático e solidamente estabelecido...".
A louvação a seu pai e uma exaltação do papel das mulheres dentro da sociedade
completam o contido na dedicatória.
2. Prefácio
Neste item Rousseau apresenta o método que irá utilizar para desenvolver o
pensamento que servirá de resposta à pergunta da Academia: a priori tem-se que
descobrir o que é o homem; "Como conhecer, pois, a origem da desigualdade entre os
homens, a não ser começando por conhecer o próprio homem?" Para realizar tal
empreitada é necessário se chegar ao homem natural, e neste ponto surge um
paradoxo, pois para se alcançar o homem natural é necessário despir-se do
conhecimento do homem civilizado, ou seja, quanto mais utilizamos a razão para
entender o homem natural mais distante nos colocamos dele. Para resolver este
problema Rousseau propõe uma meditação "...sobre as mais simples realizações da
alma humana". Através desta meditação Rousseau chega a conclusão de que mesmo
antes da razão, dois princípios básicos regem a alma humana: um é o sentimento de
autopreservação e o outro é o sentimento de comiseração.
3. O Discurso
1ª parte - Rousseau inicia o discurso fazendo uma distinção das duas desigualdades
existentes: a desigualdade natural ou física e a desigualdade moral ou política. A
desigualdade natural (sexo, idade, força etc.) não é o objetivo dos estudos de
Rousseau, pois como o próprio nome já afirma, esta desigualdade tem uma origem
natural e não foi ela que submeteu um homem a outro. A origem da desigualdade
moral ou política é o que interessa para Rousseau.
Jean-Jacques trata em toda a primeira parte do Discurso sobre o homem natural
rebatendo as teses de Hobbes, Buffon e outros que tratam do mesmo assunto, mas
que enxergavam o homem natural a partir da visão do homem social (o homem do
homem). Partindo de sua teoria dos dois princípios básicos que regem a alma humana,
Rousseau descreve o homem natural como um ser solitário, possuidor de um instinto
de autopreservação, dotado de sentimento de compaixão por outros de sua espécie, e
possuindo a razão apenas potencialmente. O sentimento de comiseração pode ser
visto também como instinto ou um mecanismo de autopreservação da espécie.
Rousseau não vê na vida do homem natural, motivos que o levem à vida em
sociedade. O homem natural vive o presente, é robusto e bem organizado, apesar de
não possuir habilidades específicas, pode aprendê-las todas, é inocente não possuindo
noções do bem e do mal e possui duas características que o distingue dos outros
animais que são a liberdade e a perfectibilidade. A perfectibilidade é um neologismo
criado por Rousseau para exprimir a capacidade que o homem possui de aperfeiçoarse.
Utilizando como exemplo o estudo sobre a origem da linguagem, Rousseau tenta
demonstrar a falta de ligação entre o homem natural e o homem social. Termina esta
parte afirmando que a passagem do homem natural ao homem social, que é a origem
das desigualdades, não pode ser obra do próprio homem, mas sim de algum fator
externo.
2ª parte - Após descrever o homem natural, Rousseau utiliza uma história hipotética
para descrever como se deu à passagem do estado natural para o estado social,
mostrando desta forma como surgiu a desigualdade entre os homens. A idéia de
perfectibilidade está na base de todo esta transformação.
O homem natural tinha como única preocupação sua subsistência, contudo à medida
que as dificuldades do meio se apresentavam ele era obrigado a superá-las adquirindo,
portanto novos conhecimentos. O homem natural aprendeu a pescar, caçar e por
vezes a associar-se a outros homens, tanto para defender-se como para caçar, mas
estas associações eram sempre aleatórias. Neste ponto é que surge a primeira
"revolução": a construção de abrigos. O surgimento das casas faz com que o homem
natural permaneça mais tempo em um mesmo lugar e na companhia de seus
companheiros, nascendo assim as famílias e com elas os "...sentimentos mais ternos
que são conhecidos dos homens, o amor conjugal e o amor paterno". Ao passo que as
pessoas passam a viver por mais tempo juntas começa a surgir formas de linguagem.
Uma noção precária de propriedade passa a fazer parte deste novo universo. Por
motivos de segurança, hábitos alimentares e influência do clima, as famílias passam a
conviver próximas surgindo as primeiras comunidades.
Para Rousseau este era o estágio no qual o homem deveria ter parado. Vivendo em
sociedade, com poucas necessidades e com condições de atendê-las o homem teria
tudo para ser feliz. Mas a perfectibilidade não o permitiu. A pequena comunidade
sentada a volta da fogueira cantando e dançando começa a se enxergar. Os homens
passam a se compararem: o melhor caçador, o mais forte, o mais bonito, o mais hábil
começa a se destacar, e o ser e o parecer tornam-se diferentes. Os homens agrupados
ainda sem nenhuma lei ou líder têm como único juiz a sua própria consciência. E cada
qual sendo juiz a sua maneira tem inicio o estado de guerra de todos contra todos.
Paralelamente surge a agricultura e a metalurgia, evento ao qual Rousseau nomeia de
"a grande Revolução". Com estes eventos surge a divisão do trabalho, a noção de
propriedade se enraíza e passa a existir homens ricos e homens pobres, que
dependeram doravante uns dos outros. É dentro desta situação caótica que os homens
resolveram estabelecer leis para se protegerem; uns para protegerem suas
propriedades e outros para se protegerem das arbitrariedades dos mais poderosos.
Rousseau passa a indagar que tipos de governos podem ter surgido. De antemão
descarta a possibilidade de um governo despótico ter sido o iniciador do processo, pois
o sentimento de liberdade do homem não o permitiria. Jean-Jacques diz que os
governantes devem ter surgido de forma eletiva, isto é, se em uma comunidade uma
única pessoa era considerada digna e capacitada para governá-la surgiria um estado
monárquico; se várias pessoas gozavam ao mesmo tempo de condições para tal
surgiria um estado aristocrático, porém se todos as pessoas possuíam qualidades
homogêneas e resolvessem administrar conjuntamente surgiria uma democracia. O
desvirtuamento dessas formas de governo pela ambição de alguns é que deram
origem a estados autoritários e despóticos.
Rousseau conclui mostrando como os acontecimentos citados deram origem as
desigualdades entre os homens. O surgimento da propriedade divide os homens entre
ricos e pobres, o surgimento de governos divide entre governantes (poderosos) e
governados (fracos) e o surgimento de estados despóticos divide os homens entre
senhores e escravos.
Como homem de seu tempo (século XVIII), Rousseau procura realizar uma análise
científica da sociedade, e a exemplo dos físicos que criaram a teoria dos gases
perfeitos, que em natureza não existe, mas servem para o estudo de todos os outros
gases através do método de comparação, Rousseau utiliza a "noção de estado de
natureza", que nunca existiu efetivamente, mas que serve de patamar de comparação
para verificarmos o quão distante uma sociedade está do estado natural.
Rousseau tem uma preocupação lateral no Discurso que esta ligada a sua religiosidade.
Em alguns pontos lembra que o homem natural é uma ficção criada por ele para
explicar sua teoria, que tal homem não existiu em época alguma da história, portanto
seu texto não estaria desta forma contrariando as escrituras sagradas.
No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
Rousseau nos mostra um problema – a degeneração social provocada pelo
distanciamento
que
o
homem
social
está
do
homem
natural.
Ao escrever o Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens, Rousseau concebeu dois tipos de desigualdade na espécie humana: a
desigualdade natural ou física e a desigualdade moral ou política. A primeira é
estabelecida pela natureza e a segunda autorizada pelo consentimento dos homens.
Para entender o motivo que levou os homens a abandonar (ou a se verem forçados a
abandonar) a felicidade do estado de natureza pelo flagelo da vida social, recorreu à
seguinte estratégia:
Em primeiro lugar, procurou identificar, através de uma série de meditações, o que
era, essencialmente, o estado de natureza; despojando o homem de tudo que, no seu
entender, é artificialmente adquirido no convívio social. Em segundo lugar, certo de
que os primeiros desenvolvimentos do espírito humano só surgiram em virtude de
causas externas, empenhou-se em “aproximar os vários acasos que puderam
aperfeiçoar a razão humana” e “trazer o homem e o mundo ao ponto em que o
conhecemos”. Como recurso metodológico, situou a descrição do estado de natureza
num estágio anterior à história, como se o tempo estivesse parado, e introduziu as
causas externas que provocaram os primeiros progressos no espírito humano
posteriormente.
O estado de natureza
A origem natural do homem é uma história hipotética que Rousseau desenvolve
através de uma cadeia de raciocínios afastando a autoridade dos fatos e dos livros
científicos, buscando respostas na própria natureza, que segundo ele, “jamais mente”.
Suas primeiras considerações recaem sobre a constituição física do homem natural.
Devido às incertezas que os naturalistas de sua época tinham a respeito da anatomia
do homem primitivo, Rousseau o supõe tal como o conhecemos hoje: bípede,
utilizando as mãos para manipular coisas e objetos e medindo com os olhos a extensão
da natureza à sua volta. As intempéries da atmosfera obrigaram esse homem a
suportar o calor e o frio; para se defender de outros animais ferozes, ele se viu
obrigado a correr, pular, subir em árvores e em determinadas situações, lutar. Por
esses motivos, Rousseau imagina esse homem como uma criatura ágil, forte e robusta.
Sobre a infância, a velhice e as doenças, que obviamente poderiam impor certas
limitações, afirma que os dois primeiros estão em conformidade com a natureza; já o
terceiro tem mais a ver com a vida em sociedade em virtude da extrema desigualdade
na maneira de viver.
Guiado por dois princípios, o amor de si, responsável por sua conservação; e pela
piedade, que consistia num certo estranhamento ou incômodo pelo sofrimento alheio;
o homem natural era uma criatura solitária, livre e dispersa entre as outras criaturas,
preocupado apenas com suas necessidades físicas imediatas. Ao descrevê-lo sobre o
ponto de vista psicológico, Rousseau introduz um novo conceito, a perfectibilidade.
Trata-se de uma faculdade do gênero humano em aperfeiçoar-se em função das
circunstâncias. No entanto, esta capacidade de reagir permanece latente enquanto o
meio externo permanecer imutável. Essencialmente, a perfectibilidade e a liberdade
são as qualidades que tornam o homem singular entre os animais. Quando os
terremotos, cataclismos, tempestades e outras transformações naturais afetaram a
Terra e o homem, essa característica lhe teria assegurado a sobrevivência. É preciso
esclarecer, porém, que a perfectibilidade não está associada ao uso da razão, uma vez
que as únicas operações presentes na alma do homem natural resumiam-se a
perceber e sentir, querer e não querer. “Os únicos bens que conhece no universo são a
alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor e a fome”. Há
nessa idéia um rompimento com o pensamento tradicional pois, acreditava-se que os
homens se distinguiam dos animais por fazerem uso da razão. Mas Rousseau afirma
que as idéias desses homens eram muito simples; nessa época, o homem era incapaz
de acumular ou comunicar qualquer tipo de conhecimento; a espécie se multiplicava
sem qualquer progresso.
Mantendo sua discordância com o pensamento tradicional, Rousseau reserva para o
estado de natureza uma situação propícia à paz e não à guerra de todos contra todos
conforme propôs Hobbes. Os conflitos existentes nesse estado não eram significativos,
não passavam de pequenas disputas pela posse de um alimento e que dificilmente
tinham conseqüências sangrentas. O homem natural era um ser pacífico pois não tinha
necessidade nem disposição para a maldade. “A tranqüilidade das paixões e a
ignorância dos vícios o impedem de agir mal”.
Dessa primeira parte da narrativa conclui-se que apesar da desigualdade existir no
estado natural, ela limitava-se à esfera física e não tinha realidade nem influência. Já
na segunda parte, veremos como os primeiros desenvolvimentos do homem foi
moldando suas características fazendo nascer novos sentimentos e determinando
preferências em seu espírito.
A passagem para o estado civil
Vejamos então as mudanças que propiciaram a evolução do homem para o estado
civil. Essas mudanças sempre estiveram presentes na natureza e estão sendo narradas
agora para facilitar a via metodológica proposta por Rousseau. Como a descrição do
estado de natureza é uma abstração, ele adverte que é muito difícil falar de um estado
que não mais existe e que talvez não tenha existido, portanto é necessário ter noções
justas.
O método usado nessa segunda parte tem como pontos de partida dois fatos: o estado
de natureza e a desigualdade que está instaurada em seu tempo. Para preencher a
lacuna entre eles, Rousseau fará conjecturas recorrendo à história, e na falta dessa, à
filosofia. Sobre os fatos, por exemplo, a origem das línguas, a sociedade, a propriedade
privada, o governo, entre outros, não há o que questionar. Quanto ao que foi
apresentado no estado de natureza, Rousseau deve ser fiel ao que relatou.
Os primeiros desenvolvimentos surgem com as dificuldades. Era preciso se proteger
das feras, procurar alimentos, abrigar-se das tempestades, etc. A mudança das
estações provavelmente determinou a abundância ou a escassez em determinadas
regiões; a variação dos climas impôs restrições que foram vencidas pelo homem
empregando a sua perfectibilidade. Longos foram os anos para que surgissem os
primeiros instrumentos e progressos. Das primeiras aquisições, nasceu o apego aos
objetos que causavam comodidade, tornando o homem escravo desse sentimento. As
relações entre os homens se tornaram mais freqüentes, propiciando o surgimento das
famílias. No seio dessas famílias, o homem foi deixando sua ferocidade e tornando-se
mais fraco fisicamente e distante de sua natureza solitária. “Assim que os homens
passaram a apreciar-se mutuamente e se lhes formou no espírito a idéia da
consideração, cada um pretendeu ter direito a ela e a ninguém foi mais possível deixar
de tê-la impunemente. Saíram daí os primeiros deveres de civilidade...”.
No entanto, o primeiro grau de desigualdade assinalado por Rousseau manifestou-se
durante o desenvolvimento da agricultura e da metalurgia, quando os homens
passaram a dividir a terra e reivindicar sua posse como um direito legítimo. Se, por um
lado, houve aqueles que argumentaram ser a terra um bem pertencente a todos os
homens que a habitavam; por outro, haviam aqueles que justificavam sua posse em
virtude do trabalho e do tempo empreendido no cultivo. Mesmo que o suposto
proprietário tivesse direito legítimo apenas aos frutos de seu trabalho, as colheitas se
sucediam com o passar dos anos e a permanência acabava por garantir-lhe a posse
definitiva. A despeito de se imaginar a abundância de terras, houve ocasiões de
escassez, e, aqueles que ficaram sem terra, não tiveram outra alternativa para prover
sua subsistência senão roubar ou trabalhar para os que foram mais previdentes. Dessa
situação nasceu a primeira grande desigualdade, dividindo os homens em duas classes:
ricos e pobres. Da riqueza surge a ambição e os piores sentimentos possíveis como a
inveja, a vergonha, o desprezo e a injúria que fere de forma contundente o amorpróprio do homem. Nesse período os conflitos são sangrentos. O rico percebe sua
impotência em preservar sua posse recém conquistada, pois era necessário a
comunhão de muitas forças para impedir que suas terras fossem roubadas, ou então,
que delas fosse destituído. Rousseau estabelece um paralelo com Hobbes afirmando
que esta sim é uma situação de guerra de todos contra todos, porém, nessa etapa, o
homem já está muito afastado de seu estado original.
Para apaziguar os ânimos e assegurar suas terras o rico propõe “o projeto que foi o
mais bem refletido que já passou pelo espírito humano”. Esse projeto consistia em
transformar seus adversários em seus próprios defensores. Apossando-se de um
discurso enganador, mostrando aos pobres o horror daquela situação de conflito e
insegurança, o rico propõe uma união de forças para garantir a cada um o que lhe é de
direito através de leis que defendam a todos sem exceção. “Todos correram ao
encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade…”. Segundo Rousseau, os
homens, quando consentiram nesse pacto absurdo, talvez não contassem com
experiência suficiente para prever os perigos e abusos que ali se encontravam em
potência; além disso, os que poderiam prever, movidos pela ganância de um dia,
usufruir dele, também se calaram. Quando as leis são estabelecidas, o homem perde
sua liberdade natural e a lei da desigualdade e da propriedade fixam-se de forma
irremediável.
Do primeiro pacto surge necessariamente o segundo em função da necessidade de um
governo. Esse pacto é concebido como um contrato entre o povo e os chefes que esse
escolhe, através do qual as duas partes se obrigam a observar as leis estipuladas.
Rousseau faz um relato das formas de governo em função do grau de desigualdade
instituído na sociedade reconhecendo a monarquia, a aristocracia e a democracia.
Segundo ele, nesses governos todas as magistraturas eram eletivas. Ao magistrado
cabia utilizar o poder que lhe era confiado, segundo a intenção dos que confiaram
nele. Mas, uma vez que este cargo tornou-se hereditário, os chefes passaram a
considerar-se de meros funcionários, proprietários do Estado e a subjugar aqueles a
quem deveria representar. Emerge desse mar de vaidade o segundo grau de
desigualdade, estabelecido agora entre os que mandam e os que obedecem. Da
evolução dessa situação segue o 3º grau de desigualdade – o despotismo.
O despotismo é o resultado inevitável de um governo mal constituído. A desigualdade
de consideração e autoridade forçaram os homens que viviam numa sociedade a
comparar-se e tomar conhecimento de suas diferenças. Entre os vários tipos de
desigualdade, aqueles que promovem a distinção através da qual os homens se
medem - a riqueza, os títulos de nobreza e o mérito pessoal -, tornam os homens rivais
e inimigos. “Da extrema desigualdade das condições e das fortunas, da diversidade das
paixões e dos talentos, das artes inúteis, das artes perniciosas, das ciências frívolas,
surgiria uma multidão de preconceitos, igualmente contrários à razão, à felicidade e à
virtude; ver-se-ia fomentado pelos chefes tudo o que desunindo-os, pudesse
enfraquecer os homens reunidos, tudo o que pudesse dar à sociedade um ar de
concórdia aparente e nela implantar o germe da divisão real.” Como resultado dessa
desordem, Rousseau conclui que o povo não mais teria chefes, e o poder estaria nas
mãos de tiranos, que fazem prevalecer sua vontade pela força. Logo, o Estado perderia
sua legitimidade, pois não há ordem política possível onde há força. O tirano pode ser
destituído pelo mesmo motivo que o mantinha no poder. Como tudo passa a ser
governado pela lei do mais forte, há, por assim dizer, a dissolução do pacto e os
homens são jogados num segundo estado de natureza, diferente do primeiro, já que o
primeiro é um estado puro, e o segundo, resultado da corrupção.
Ao Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens cabe uma genealogia dos
sucessivos progressos do homem. Sua fonte é o indivíduo, mas seu discurso abrange
toda a humanidade. Rousseau cria uma história para explicar tanto as aquisições
materiais quanto as psicológicas e morais. Como um quebra-cabeças gigante ele tenta
encontrar as peças principais que comporiam a imagem da sociedade e, mesmo lhe
faltando algumas, o quadro final seria a idéia mais próxima da realidade. Essa história
não é um “romance” conforme pretendiam classificar seus críticos, que pareciam mais
contagiados pelo clima de euforia que ostentava o Iluminismo do que com a verdade.
Voltaire chegou a caçoar de Rousseau afirmando que “ninguém jamais pôs tanto
engenho em querer nos converter em animais” e que ler Rousseau faz nascer “desejos
de caminhar em quatro patas”. Aqueles que apontaram a falta de rigor científico em
seus escritos, não levaram em consideração o rigor lógico de uma alma esclarecida
pela razão.
Créditos: Adivaldo Sampaio de Oliveira, Formado em História pela Universidade de São
Paulo (USP) | Diana Patricia Ferreira de Santana, licenciada em Matemática e
bacharelanda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, ambos da
Universidade de São Paulo.
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Por: André Luiz Avelino - Graduando em Filosofia FFLCH/USP Dos