Braz. J. Food Technol., Campinas, v. 13, n. 2, p. 133-140, abr./jun. 2010 DOI: 10.4260/BJFT2010130200018 Revisão Aspectos da aplicação de culturas starter na produção de embutidos cárneos fermentados Review Aspects of the application of starter cultures in fermented meat sausage production Autores | Authors Sabrina BERNARDI Bruna Brigatti GOLINELI Universidade de São Paulo (USP) Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ) Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição (LAN) e-mail: [email protected] [email protected] Carmen Josefina CONTRERAS-CASTILLO Universidade de São Paulo (USP) Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ) Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição (LAN) Av. Pádua Dias, 11 Caixa Postal: 9 CEP: 13418-900 Piracicaba/SP - Brasil e-mail: [email protected] Autor Correspondente | Corresponding Author Recebido | Received: 05/11/2008 Aprovado | Approved: 01/12/2009 Resumo Embutidos cárneos fermentados podem ser definidos como uma mistura de partículas de carne, gordura, sal, agentes de cura e temperos, entre outros componentes, que são dispostos em envoltórios, fermentados, secos e maturados em câmaras com temperatura e umidade controladas. Esse tipo de alimento é importante por promover e preservar nutrientes, além de apresentar uma ampla diversidade de flavors, aromas e texturas que enriquecem suas características sensoriais. Atualmente, a aplicação de culturas starter na fermentação de embutidos cárneos é utilizada em escala industrial. Além de assegurar a qualidade microbiológica do produto pela produção de bacteriocinas e pela redução do pH devido à formação do ácido lático, esta aplicação também assegura uma proteólise e uma lipólise mais intensa, e um perfil mais complexo de compostos voláteis. Pouco se sabe a respeito do exato modo de ação de cada cultura, já que as modificações no produto variam de acordo com a matéria-prima, a formulação e as condições de processo empregadas. Com isso, para uma maior padronização, novas culturas vêm sendo desenvolvidas a fim de reduzir o tempo de fermentação, alterar e padronizar os atributos sensoriais, aumentar a qualidade microbiológica dos produtos através da utilização de culturas produtoras de bacteriocinas e promover benefícios à saúde através de efeitos positivos na microbiota intestinal com o uso de culturas com propriedades probióticas. Alguns aspectos devem ser considerados para a seleção da cultura starter mais apropriada às características sensoriais desejáveis ao produto, já que cada uma apresenta uma forma de atuação no alimento. Com isso, o objetivo principal deste trabalho foi revisar o modo de ação, os aspectos e as alterações causadas pelas principais culturas atualmente aplicadas em embutidos cárneos fermentados. Além disso, objetiva-se evidenciar algumas das principais tendências desse mercado. Palavras-chave: Culturas starter; Fermentação; Embutidos; Segurança; Qualidade. Braz. J. Food Technol., Campinas, v. 13, n. 2, p. 133-140, abr./jun. 2010 DOI: 10.4260/BJFT2010130200018 Summary Fermented meat sausages can be defined as mixtures of meat particles, fat, salt, curing agent and spices, among others, which are filled into casings, fermented, dried and matured in chambers with controlled temperature and humidity. This type of food is important to promote and preserve nutrients while maintaining a wide variety of flavours, aromas and textures that enrich their sensory characteristics. Currently the application of starter cultures in the fermentation of meat sausages is used on an industrial scale. Besides ensuring the microbiological quality of the product by producing bacteriocins and reducing the pH by producing lactic acid, it also results in more intense proteolysis and lipolysis and hence a more complex profile of volatile compounds. Little is known about the exact mode of action of each culture, since the changes in product vary with the raw material, formulation and process conditions employed. Therefore, for greater standardization, new cultures were developed to reduce the fermentation time, modify and standardize the sensory attributes, increase the microbiological quality of the products through the use of bacteriocin-producing cultures and promote health benefits due to positive effects on the intestinal flora by the use of cultures with probiotic properties. Some aspects should be considered in order to select the most appropriate starter to produce desirable sensory characteristics in the product, since each presents its own form of action in the food. Thus, the aim of this study was to review the mode of action, aspects and changes caused by the main cultures currently applied in fermented meat sausages, and highlight some of the major trends of this market. Key words: Starter cultures; Fermentation; Sausages; Safety; Quality. www.ital.sp.gov.br/bj Revisão: Aspectos da aplicação de culturas starter na produção de embutidos cárneos fermentados BERNARDI, S. et al. 1 Introdução A fermentação é uma das práticas mais antigas de conservação de alimentos utilizadas pelos seres humanos, sendo que os alimentos fermentados são importantes por promoverem e preservarem nutrientes que enriquecem a dieta humana e por apresentarem uma ampla diversidade de flavors, aromas e texturas que promovem características sensoriais particulares ao produto (STEINKRAUS, 1994). Assim sendo, a biotecnologia moderna constitui uma ciência importante no desenvolvimento de culturas starter seguras, assim como intensifica a exploração de microrganismos utilizados em alimentos fermentados (COOK, 1994). Atualmente, as culturas starter são geralmente comercializadas compostas por mais de um tipo de microrganismo, visando somar suas ações para se obter o efeito desejado no produto final, sendo utilizadas em escala industrial (SIMONOVÁ et al., 2006; JESSEN, 1995). Os microrganismos utilizados são, normalmente, divididos em dois grupos: bactérias láticas, responsáveis pelo processo de acidificação via glicólise e os microrganismos que desenvolvem o aroma, o flavor e a cor, frequentemente capazes de reduzir nitrato a nitrito (JESSEN, 1995; FERNÁNDEZ et al., 2000, SIMONOVÁ et al., 2006). Sua utilização não envolve apenas a questão de higiene, mas visa também assegurar uma proteólise e uma lipólise mais intensa, e um perfil mais complexo de componentes voláteis (DI CAGNO et al., 2008). Alguns fatores – inclusive ambientais – podem afetar a estabilidade da cultura selecionada, como: temperatura e umidade relativa do ambiente, pH, teor de cloreto de sódio e características da matéria-prima e dos demais ingredientes. Com isso, para se obter um desempenho ideal da cultura starter selecionada, é necessário entender o produto como um todo e as propriedades requeridas para propiciar um adequado desenvolvimento desses microrganismos (HANSEN, 2002). Nos últimos anos, as culturas starter vêm sendo desenvolvidas a fim de reduzir o tempo de fermentação, garantindo um baixo teor residual de nitritos no produto final. Busca-se, também, padronizar as características sensoriais, uma vez que cada cultura apresenta um comportamento diferente nos processos de fermentação, proteólise e lipólise (TOLDRÁ et al., 2001), e aumentar a qualidade dos produtos através da utilização de culturas produtoras de bacteriocinas (AYMERICH et al., 1998) e com propriedades probióticas (LEROY et al., 2006). Neste contexto, esta revisão tem como objetivo mostrar os principais aspectos do modo de ação das culturas starter empregadas atualmente na produção de embutidos cárneos fermentados, assim como as principais alterações ocasionadas nos produtos. 2 Culturas starter Culturas starter podem ser definidas como preparações que contêm microrganismos vivos ou em estado latente que se desenvolvem pela fermentação de um determinado substrato presente no meio (HAMMES e HERTEL, 1998). Geralmente, são empregadas com o propósito de alterar de forma benéfica as propriedades dos alimentos, dentre os quais, as carnes e os produtos cárneos. A adição desses microrganismos apresenta quatro objetivos principais desejáveis: (1) melhorar a segurança do produto através do controle de patógenos pela competição entre eles, (2) estender a vida útil do produto pela inibição de microrganismos deteriorantes, (3) diversificar o produto, modificando a matéria-prima, a fim de se obterem novas propriedades sensoriais, e (4) promover benefícios à saúde através de efeitos positivos na microbiota intestinal (LÜCKE, 2000). A Tabela 1 mostra os principais grupos de microrganismos utilizados no processo de fermentação e os efeitos desejáveis nos produtos cárneos fermentados. Na fermentação dos produtos cárneos, as bactérias láticas geralmente melhoram a segurança e a estabilidade e desenvolvem as propriedades sensoriais características de cada produto, enquanto outros microrganismos – como os cocos catalase positiva (Staphylococcus e Micrococcus), as leveduras (Debaryomyces) e os bolores (Penicillium) – normalmente estabilizam essas propriedades sensoriais desejáveis (LÜCKE, 2000). Em qualquer tipo de embutido cárneo fermentado ocorre uma interação física, química e bioquímica Tabela 1. Culturas starter utilizadas em embutidos cárneos fermentados (LÜCKE, 1994). Grupo de Espécies utilizadas Efeitos desejáveis nos produtos microrganismos como starter cárneos fermentados Bactérias láticas Lactobacillus plantarum, Fermentação lática, inibição de bactérias patogênicas e L. pentosus, L. sake, L. curvatus, deteriorantes, aceleração da formação da cor e do Pediococcus pentosaceus, P. acidilactici processo de secagem. Cocos catalase Staphylococcus carnosus, S. xylosus, Formação e estabilização da cor, formação do aroma positiva Micrococcus varians (proteólise e lipólise) e redução de nitrito/nitrato. Leveduras Debaryomyces hansenii Retardo da rancidez e formação do aroma. Bolores Penicillium nalgiovense Estabilidade da cor, retardo da rancidez, formação do aroma. Braz. J. Food Technol., Campinas, v. 13, n. 2, p. 133-140, abr./jun. 2010 135 www.ital.sp.gov.br/bj Revisão: Aspectos da aplicação de culturas starter na produção de embutidos cárneos fermentados BERNARDI, S. et al. muito complexa entre as frações de proteína, gordura e carboidratos, sejam provenientes da própria carne ou da atividade microbiana, o que determina a qualidade microbiológica e sensorial desse produto (DEMEYER e STAHNKE, 2002). De acordo com as características que se deseja obter, os microrganismos podem ser incorporados separadamente ou em conjunto no embutido, sendo que esta última forma de uso pode auxiliar na obtenção de produtos com características mais estáveis e de qualidade superior (HANSEN, 2002). 2.1 Bactérias láticas As bactérias láticas são usadas para assegurar a acidificação, com consequente redução do pH, e evitar a contaminação por patógenos e outros microrganismos indesejáveis que poderiam proliferar na ausência de competidores (LÜCKE, 1985). Algumas culturas, em ação conjunta com os sais de cura (nitrato e nitrito de sódio), podem inibir o desenvolvimento de microrganismos indesejáveis, como o Staphylococcus aureus e coliformes, em embutidos cárneos fermentados (SPRICIGO e PIANOVSKY, 2005). Geralmente, as bactérias láticas utilizadas como culturas starter pertencem aos gêneros Lactobacillus e Pediococcus. As espécies L. sakei e L. curvatus são os microrganismos psicrotróficos mais competitivos no ambiente. L. plantarum e Pediococcus spp. são mesófilos e, portanto, têm seu desenvolvimento favorecido em fermentação com temperatura entre 30 e 35 °C. O papel principal desenvolvido pela bactéria lática está relacionado com o metabolismo do carboidrato que resulta na acidificação da massa cárnea, com formação de ácidos orgânicos – geralmente o ácido lático – e consequente redução do pH. Com isso, este processo apresenta diversos efeitos positivos: (a) assegura a estabilidade higiênica do produto, (b) transmite características ácidas ao sabor, (c) causa coagulação das proteínas da carne (em pH de 5,4 a 5,5), reduzindo a capacidade de retenção de água, fato que, consequentemente, facilita a secagem e aumenta a consistência do produto, e (d) contribui para o desenvolvimento da cor vermelha desejável e característica em produtos curados, pelo favorecimento da reação do óxido nítrico com a mioglobina, formando o composto nitrosomioglobina (TOLDRÁ et al., 2001). Porém, usualmente, as bactérias láticas não apresentam ação proteolítica e lipolítica acentuada em produtos cárneos, embora certo grau de atividade das enzimas peptidase e lipase seja verificado em algumas linhagens (LEROY et al., 2006). Outros estudos mostram que o crescimento de starter comercial composta por L. plantarum e P. pentosaceus não preveniu o desenvolvimento de altas contagens da microbiota não-starter em salame, fator que pode ser importante na determinação da Braz. J. Food Technol., Campinas, v. 13, n. 2, p. 133-140, abr./jun. 2010 qualidade microbiológica desse tipo de embutido cárneo fermentado (COVENTRY e HICKEY, 1991). Este fato pode ser decorrente da baixa competitividade desses microrganismos (LEROY et al., 2006). Outra pesquisa evidencia que o L. plantarum pode originar produtos com acidez excessiva, característica indesejável pelo mercado consumidor (GARRIGA et al., 1993). Na própria carne, também podem estar presentes espécies de Lactobacillus heterofermentativos que produzem outros compostos além do ácido lático, tais como o ácido acético, o ácido fórmico e o gás carbônico. O principal defeito causado pelo gás carbônico é a formação de cavidades no interior dos embutidos (KUNZ, 1986). 2.2 Bolores e leveduras O s b o l o re s e l e v e d u r a s s ã o a d i c i o n a d o s principalmente para prevenir o crescimento de fungos produtores de micotoxinas, garantindo o aparecimento de bolores desejáveis na superfície, e também para acelerar e intensificar o desenvolvimento do flavor e estabilizar a cor nos embutidos fermentados (LÜCKE, 1985; HAMMES e HERTEL, 1998). A contribuição para o aroma típico dos produtos fermentados baseia-se em seus metabólitos primários e secundários, assim como nas enzimas lipases e proteinases (HAMMES e HERTEL, 1998). Em embutidos fermentados, o crescimento de bolores geralmente é espontâneo na superfície, sendo que os gêneros Penicillium e, em menor extensão, os Aspergillus são os mais comuns (GRAZIA et al., 1986). Também desempenham ação regulando a desidratação e dificultando a penetração do oxigênio no embutido durante o processo de secagem, evitando-se, assim, a ocorrência de processos oxidativos indesejáveis (TERRA, 2003). Neste grupo de microrganismos, destaca-se o Debaryomyces hansenii, espécie caracterizada por ser tolerante ao sal (JESSEN, 1995), com metabolismo fermentativo aeróbico e crescimento tanto na superfície quanto no interior dos embutidos cárneos (TOLDRÁ et al., 2001). Bolores e leveduras apresentam pouco efeito na produção de compostos voláteis e, em grandes concentrações, podem formar quantidades consideráveis de ácidos, mascarando seus efeitos positivos (LEROY et al., 2006). Outros destaques deste grupo são os Penicillium nalgiovense e P. chr ysogenum, que contribuem principalmente para a aparência, o flavor e a segurança dos produtos cárneos fermentados. Por terem metabolismo aeróbio, apresentam desenvolvimento restrito na superfície dos embutidos (TOLDRÁ et al., 2001). No caso do P. nalgiovense, este tem se mostrado eficiente no controle de fungos filamentosos, naturalmente presentes em câmaras de maturação de salames, apresentando 136 www.ital.sp.gov.br/bj Revisão: Aspectos da aplicação de culturas starter na produção de embutidos cárneos fermentados BERNARDI, S. et al. desenvolvimento rápido e colonização quase completa das peças (CASTRO et al., 2000). O micélio desses microrganismos pode penetrar no produto em diferentes profundidades (GRAZIA et al., 1986). Dessa forma, a aplicação de espécies de bolores e leveduras selecionados contribui principalmente para a estabilização da cor e a formação de flavor por meio de sua atividade catalítica e lipolítica, respectivamente. Os bolores também metabolizam ácidos orgânicos resultantes da fermentação lática, por meio da qual, juntamente com a atividade da enzima deaminase, reduzem o nível de acidificação e o sabor picante. Já a incorporação de leveduras exerce efeitos de proteção contra a ação do oxigênio e da luz, tais como a descoloração e a rancificação, além de propiciar uma secagem mais uniforme (TOLDRÁ et al., 2001). 2.3 Cocos catalase positiva Kocuria e Staphylococcus são comercializadas como cultura starter; no entanto, este último é mais competitivo, principalmente devido à sua atividade metabólica em condições anaeróbias. As principais funções deste grupo envolvem a formação e a estabilização da cor e o desenvolvimento do aroma devido às suas atividades catalítica e nitrato redutora (TOLDRÁ et al., 2001). Outros autores indicam que a atividade nitrato redutase de microrganismos destes gêneros não permite uma previsão direta da taxa de formação de nitrosomioglobina, principal pigmento cárneo formado em produtos cárneos curados (GØTTERUP et al., 2008). Algumas espécies como o S. carnosus, por exemplo, são sensíveis a pH baixo, podendo ser inativadas no processo de fermentação dos embutidos (COVENTRY e HICKEY, 1991). Microrganismos da família Micrococcaceae também participam do desenvolvimento e da estabilização da cor vermelha pela atividade nitrato redutase, o que auxilia na formação de nitrosomioglobina. Estes podem contribuir para a formação do aroma por apresentarem enzimas proteolíticas e lipolíticas, formando peptídeos, aminoácidos e ácidos graxos, além de prevenir a oxidação lipídica devido à sua atividade catalítica (MAURIELLO et al., 2004). 3 Seleção de culturas starter As culturas starter devem ser selecionadas de acordo com as características específicas da formulação do produto e a tecnologia da fermentação, a fim de se obter um número limitado de linhagens que sejam competitivas o bastante para dominar o processo (REBECCHI et al.,1998). A combinação mais apropriada de microrganismos na formulação de starter é de fundamental importância para se obterem produtos com Braz. J. Food Technol., Campinas, v. 13, n. 2, p. 133-140, abr./jun. 2010 a qualidade esperada. Além disso, a adequação da cultura starter deve ser questionada antes da produção, uma vez que um determinado tipo de cultura pode não ser recomendado para todos os tipos de produtos (LEROY et al., 2006). Para a seleção, as espécies de microrganismos usados como culturas starter devem ser “geralmente considerados como seguros” (GRAS), de acordo com a legislação de cada país, pois são considerados aditivos alimentares. Dentre as principais características das culturas, apontam-se: não devem ser patogênicas, tóxicas nem alergênicas; devem possuir fenótipo e genótipo estáveis; devem ser competitivas em condições típicas do processo (tolerância ao sal, nitrito, baixo pH e atividade de água, temperatura de processo) devem fornecer alguns benefícios tecnológicos (na acidificação, preservação, formação do flavor, garantia da qualidade), e ser identificáveis por métodos específicos (TOLDRÁ et al., 2001; HAMMES e HERTEL, 1998). Espécies como o Bacillus subtilis e B. pumilis podem desempenhar um papel positivo no desenvolvimento da textura e de características sensoriais, como o flavor e o sabor, em embutidos cárneos fermentados, na medida em que apresentam atividade proteolítica e lipolítica, e capacidade de produzir ácido, contribuindo para o processo fermentativo (BARUZZI et al., 2006). Embutidos fermentados com Staphylococcus xylosus mostraram ter um aroma mais pronunciado quando produzidos a baixas temperaturas (15 °C), correlacionando-se com a presença de etil ésteres, alcanos e com uma maior contagem desse microrganismo. Quando adicionados de nitrito, glicose, Pediococcus pentosaceus e fermentados em temperaturas mais altas (25 °C), os embutidos apresentaram um aroma mais ácido (STAHNKE, 1995). Os processos de proteólise e lipólise também podem ocorrer com a adição de S. xylosus com L. curvatus na fermentação de embutidos (CASABURI et al., 2008). As leveduras Debaryomyces spp. apresentaram um efeito importante na formação de compostos voláteis e de qualidade sensorial durante a maturação de embutidos secos fermentados através da inibição de produtos da oxidação lipídica e da formação de etil ésteres, que contribuem para o aroma característico desses embutidos (FLORES et al., 2004). A adição de uma microbiota fermentativa favoreceu a manutenção do flavor e da cor e, controlou a ação de microrganismos naturalmente presentes na carne, em salames artesanais (SPRICIGO e PIANOVSKY, 2005). 4 Tendências na aplicação de culturas starter Com a finalidade de melhorar e padronizar cada vez mais a produção dos embutidos cárneos fermentados 137 www.ital.sp.gov.br/bj Revisão: Aspectos da aplicação de culturas starter na produção de embutidos cárneos fermentados BERNARDI, S. et al. pelo emprego de culturas starter, diversas pesquisas vêm sendo realizadas para acelerar o processo produtivo e aumentar a vida útil do produto, assim como empregar culturas funcionais (produtoras de bacteriocinas ou com propriedades probióticas) ou com o intuito de substituir aditivos sintéticos. Assim sendo, pesquisas de novas linhagens e misturas de culturas starter para aplicação em embutidos cárneos fermentados estão sendo desenvolvidas. 4.1 Aceleração do processo Pesquisas para acelerar o processo de secagem de embutidos cárneos fermentados tiveram início na década de 1990. A redução do tempo de secagem significa mais água retida no embutido, além de redução dos custos de produção e de capital investido, que são fatores econômicos importantes para produtos com alto valor agregado (BLOM et al., 1996) e que podem proporcionar um maior lucro e competitividade no mercado atual. Diferentes estratégias têm sido analisadas com esse propósito, o que inclui a secagem em temperatura mais elevada, a utilização de culturas starter geneticamente modificadas, assim como a adição de enzimas (FERNÁNDEZ et al., 2000). Para evitar problemas referentes à segurança do produto com menor tempo de processo, também se podem utilizar culturas starter produtoras de bacteriocinas (ARNAU et al., 2007). Além disso, a produção acelerada e em larga escala requer a aplicação de técnicas para reforçar o flavor, sendo que o uso de temperatura entre 30 e 40 °C na fermentação constitui a abordagem mais simples para atingir esses objetivos. Porém, esta prática pode implicar riscos higiênicos, na medida que favorece o crescimento de microrganismos patogênicos e deteriorantes, que podem estar presentes na massa embutida quando não manipulada higienicamente (TOLDRÁ et al., 2001). Para enfrentar esses riscos, podem-se utilizar enzimas (HAMMES e HERTEL, 1998; DÍAZ et al., 1997; ZAPELENA et al., 1998) ou combinações de culturas starter novas ou modificadas. Outra estratégia consiste na redução do teor de água da carne crua, pela secagem por congelamento antes da fermentação, ou na redução da capacidade de retenção de água da massa, pela inclusão de carne suína pálida, macia e exudativa (PSE) (ARNAU et al., 2007; BLOM, et al., 1996). Bolumar et al. (2006) estudaram a adição de extrato de células livre de D. hansenii e L. sakei em embutidos secos fermentados com o objetivo de acelerar a produção de flavor neste produto e, consequentemente, acelerar o processo produtivo. Os autores verificaram que os compostos voláteis formados derivaram da oxidação lipídica e da fermentação do carboidrato. Braz. J. Food Technol., Campinas, v. 13, n. 2, p. 133-140, abr./jun. 2010 4.2 Culturas funcionais As culturas starter funcionais são aquelas que oferecem funcionalidade adicional quando comparadas com as culturas clássicas e representam uma alternativa para melhorar e otimizar o processo de fermentação dos embutidos, obtendo produtos mais saborosos, seguros e saudáveis. Neste exemplo, incluem-se microrganismos que formam compostos do aroma, bacteriocinas ou outros antimicrobianos, como endopeptidases, reuterina e reutericiclina, contribuem, ainda, para o desenvolvimento da cor, apresentam características probióticas e não apresentam propriedades negativas, como a produção de aminas biogênicas e compostos tóxicos (LEROY et al., 2006; AMMOR e MAYO, 2007). Diversas bactérias láticas associadas a produtos cárneos fermentados são importantes produtoras naturais de bacteriocinas, peptídeos ou proteínas antimicrobianas que inibem o crescimento de microrganismos deteriorantes e patogênicos (LEROY et al., 2006). Tais bactérias podem proporcionar o consumo de embutidos cárneos mais naturais, através da substituição dos aditivos potencialmente tóxicos, e também auxiliar na extensão da vida útil desses produtos. Para o uso de linhagens com essas características, deve-se considerar que determinada linhagem se desenvolva adequadamente no produto, que seja competitiva e que não altere negativamente os atributos sensoriais característicos de cada produto (AYMERICH et al., 1998). Entretanto, nem sempre é possível encontrar a melhor ação antimicrobiana na melhor cultura starter. Culturas probióticas consistem em microrganismos vivos que quando ingeridos em quantidades suficientes trazem benefícios ao hospedeiro através da melhora da microbiota do trato gastrointestinal. Essas culturas, quando aplicadas em embutidos, devem ser resistentes ao processo fermentativo, competidoras e se desenvolver adequadamente para ter efeito positivo na promoção da saúde. Deve-se verificar também, se as propriedades sensoriais não são afetadas negativamente quando linhagens de origem não cárneas são utilizadas (LEROY et al., 2006). Linhagens probióticas de Lactobacillus rhamnosus GG, LC-705 e E-97800 têm sido utilizadas para a produção de embutidos fermentados, sendo que a E-97800 apresentou um processo mais rápido de crescimento e, consequentemente, de acidificação no embutido (ERKKILÄ et al., 2001). Porém, como a carne apresenta diferentes ambientes para o crescimento desses probióticos, mais pesquisas são necessárias para comprovar o efeito benéfico à saúde neste tipo de produto. Além disso, as linhagens devem tolerar as condições de processo, o que pode incluir a fermentação e a secagem, assim como o trato gastrointestinal do ser humano, ou seja, as evidências de seu efeito benéfico 138 www.ital.sp.gov.br/bj Revisão: Aspectos da aplicação de culturas starter na produção de embutidos cárneos fermentados BERNARDI, S. et al. à saúde devem ser comprovadas (HAMMES e HERTEL, 1998). 4.3 Substituição de aditivos Algumas culturas, como é o caso do Lactobacillus fermentum, têm sido aplicadas com o objetivo de formar nitrosomioglobina na massa cárnea, sem a adição dos sais de cura nitrito ou nitrato. A formação da cor rósea característica apresentou intensidade comparável aos embutidos curados com a adição de nitrito, sem efeitos negativos no flavor e na textura. A combinação do microrganismo com a adição de baixo teor de nitrito pode assegurar a formação da cor no caso de variações na atividade do L. fermentum (ZHANG et al., 2007). No entanto, mais pesquisas devem ser realizadas para verificar a estabilidade oxidativa e a vida útil do ponto de vista microbiológico desses produtos sem a adição de nitrito. 5 Conclusões Embora as culturas starter sejam utilizadas rotineiramente pelas indústrias processadoras de embutidos cárneos fermentados, ainda não se conhecem os detalhes da interação entre a cultura selecionada e as características desejadas em cada alimento. Com isso, faz-se necessário um grande esforço em pesquisa para estudar mais profundamente os aspectos a serem considerados para a escolha de uma cultura para cada embutido, uma vez que, atualmente, é grande a diversidade desses produtos. Além disso, o desenvolvimento de novas linhagens ou misturas pode auxiliar na melhora da padronização e da qualidade dos embutidos fermentados. 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