Ciclo de Conferências FENPROF 2015, Faro
30 maio, 2015
Escola Secundária Pinheiro e Rosa
CURRÍCULO ESCOLAR
uma questão essencialmente política
Carlinda Leite
[email protected]
Perguntas orientadoras da intervenção
• O currículo é neutro? Podemos considerar que o que é
selecionado para os programas de Física, Matemática,
Português, Artes, … é neutro?
• Que influências sofre a política educacional no Sistema
Educativo Português?
Na política educacional e no currículo,
que lugar fica para os professores?
O currículo é neutro?
Podemos considerar que o que é selecionado para os
programas de Física, Matemática, Português, Artes, … é
neutro?
O currículo é neutro?
Johann Friedrich Herbart (1776-1841), considerado o
“pai da pedagogia científica”, estabeleceu um
procedimento para a seleção e organização dos
conteúdos de ensino que ainda hoje, em muitos casos,
marca o modo como o ensino é planificado.
Herbart previa cinco etapas para o ato de ensinar:
1. - preparação - processo de relacionar o novo
conteúdo a conhecimentos ou lembranças que o
aluno já possua;
2. - apresentação ou demonstração do conteúdo;
3. - associação – estabelecimento de comparações
com conteúdos prévios;
4. - generalização - formulação de regras globais;
5. - aplicação - mostrar utilidade do que se aprendeu.
O currículo é neutro?
Correntes tradicionais do racionalismo académico.
A escola e o currículo como espaços de inculcação - transmissão de uma cultura
pensada como única (cultura padrão).
Função da escola e do currículo: selecionar uma elite
A escolarização de massas inspirada na
racionalidade do modelo taylorista
(princípio do séc. XX)
e que,
do ponto de vista político, atribuiu ao
currículo a função instrumental de,
numa lógica empresarial, transformar o
aluno com a máxima eficácia e o
mínimo custo
recorreu à
tecnicização dos processos de gestão
curricular com designs sequenciais e
estruturados em função de objetivos
comportamentais atingíveis a curto
prazo
Correntes tecnicistas,
behavioristas e
funcionalistas (focadas na
aprendizagem instrumental
e nos objetivos
comportamentais a atingir a
curto prazo)
A função disciplinadora da
avaliação e a aculturação:
o que é importante é
o que vem nos livros …
Movimentos de oposição à neutralidade do conhecimento e do
currículo
Nos anos 70 (séc. XX), em Inglaterra, o movimento “Nova
Sociologia da Educação”, liderado por M. Young, elegeu o
currículo co mo objeto de estudo, responsabilizando-o
pelos efeitos que gera na produção das desigualdades
sociais. Na sua análise interrogou os motivos pelos quais
certos saberes são selecionados assim como os processos
por que passam até serem escolarizados.
A Nova Sociologia da Educação questiou:
Porquê umas disciplinas têm mais prestígio do que outras?
Porquê umas têm uma carga horária maior do que outras?
Porquê umas disciplinas são objecto de avaliação formal e
outras não? Que interesses de classe, profissionais e
institucionais estão envolvidos nesse jogo de poder?
Movimento reconcetualista de oposição à neutralidade do
conhecimento e do currículo
No final dos anos 70 (séc. XX), com origem nos Estados
Unidos da América e na Inglaterra e tendo como mentor
W. Pinar, desenvolveu-se o movimento reconcetualista
(também designado por reconstrucionismo social) que
considerou ser responsabilidade da educação promover
a reconstrução da cultura e a mudança positiva da
sociedade.
Este movimento, pondo em causa o entendimento do
currículo como atividade meramente técnica e
administrativa do ensino, partiu da crença de que o
desenvolvimento do espírito crítico e o questionamento
dos princípios que norteiam o currículo escolar e as
práticas do seu desenvolvimento geram mudanças de
consciência facilitadoras de novas ordens sociais que se
opõem à inculcação ideológica muitas vezes realizada
através do currículo oculto.
Movimentos de oposição à neutralidade do conhecimento e do
currículo
Ivor Goodson (1987) analisa
conflitos entre as disciplinas
por questões de status,
recursos e territórios.
Movimentos de oposição à neutralidade do conhecimento e do
currículo
Neste movimento reconcetualista, Henry Giroux,
rejeitando liminarmente a noção tradicional de
ensino como técnica ou conjunto de habilidades
neutras, produz argumentos que apontam para um
papel dos professores como intelectuais
transformativos, isto é, exercendo uma atividade com
repercussões ao nível de mudanças sociais, dado que
são responsáveis pela formação de estudantes como
cidadãos reflexivos, críticos e ativos.
"o facto de ver os professores como intelectuais
capacita-nos para começar a repensar as tradições e
condições que até agora têm impedido que os
professores assumam todo o seu potencial como
académicos e profissionais ativos e reflexivos“ (Giroux,
1990: 176).
Movimentos de oposição à neutralidade do conhecimento e do
currículo
Recorrendo à ideia de Giroux do
professor como “intelectual
transformador”, é considerado que ele se
deve esforçar por tornar o pedagógico
mais político (inserindo a educação na
esfera política e entendendo a
escolarização como luta em torno da
definição de significados e de relações de
poder) e o político mais pedagógico, isto
é, "servir-se de formas de pedagogia que
tratem os estudantes como sujeitos críticos,
tornar problemático o conhecimento, recorrer
ao diálogo crítico e afirmativo, e apoiar a luta
por um mundo qualitativamente melhor para
todas as pessoas“ (Giroux, 1990:178) .
Movimentos de oposição à neutralidade do
conhecimento e do currículo
“A ideia de uma ‘cultura comum’ com a
roupagem da tradição ocidental romantizada
dos neoconservadores ... não leva em
suficiente conta a imensa heterogeneidade
cultural de uma sociedade que extrai
tradições culturais do mundo inteiro”.
Considerando o conhecimento um ato não
só pedagógico mas também político, Apple
questiona aspetos de poder e de regulação
social, afirmando que existem processos de
ensino orientados para a igualdade e a
emancipação social, e que fazem das escolas
não são instituições de reprodução do
conhecimento e o status quo.
Movimentos de oposição à neutralidade do conhecimento e do
currículo
As escolas devem ser os locais de aprendizagem da
democracia, sendo para isso necessário respeitar
sete princípios: 1. Liberdade de opinião; 2. Crença na
capacidade individual e colectiva que as pessoas têm
para resolver problemas; 3. Recurso à reflexão e à
análise crítica na avaliação de ideias, problemas e
políticas; 4. Preocupação com o bem-estar dos
outros e com o “bem comum”; 5. Valorização da
dignidade e dos direitos dos indivíduos e das
minorias; 6. Reconhecimento de que a democracia
não é apenas um ideal a ser perseguido, mas um
conjunto de valores a ser vivido; 7. Organização de
movimentos sociais que promovam e expandam o
modo de vida democrático. (Apple & Beane)
Numa democracia, aos professores cabe a
responsabilidade de serem os fazedores da
mudança
Movimentos de oposição à neutralidade do conhecimento e do
currículo
Para Young, a ideia de White
(2007) de que as escolas
devem promover a
felicidade e o bem estar
humano não corresponde a
um objetivo específico das
escolas pois não valoriza a
importância das disciplinas
Sustentando que o
conhecimento passou a ser
um bem de consumo
comercializado, Young (2008,
2010) traz ao debate o
conceito de “conhecimento
poderoso”
Movimentos de oposição à neutralidade do conhecimento e do
currículo
Young (2011) interroga:
“Que conhecimento deve a escola transmitir?”
Reconhecendo que alguns conhecimentos são mais valiosos
do que outros, defende que as escolas servem para capacitar
jovens a adquirir o conhecimento que, para a maioria deles,
não pode ser adquirido em casa ou na sua comunidade.
Na perspetiva de Young, as escolas devem perguntar:
“Este currículo é um meio para que os alunos possam
adquirir conhecimento poderoso?”.
“PARA QUE
SERVEM AS
ESCOLAS?”
(Young, 2011)
Na resposta defende: i) o conhecimento escolar “implica que
muito do conhecimento que é importante que os alunos
adquiram não será local e será contrário à sua experiência”; ii)
“o currículo tem que levar em consideração o conhecimento
local e cotidiano que os alunos trazem para a escola, mas
esse conhecimento nunca poderá ser uma base para o
currículo”; iii) devem ser exploradas “condições para que os
alunos adquiram conhecimento poderoso … e o
conhecimento cotidiano de comunidades locais”.
Que influências sofre a política educacional
no Sistema Educativo Português?
Influências
As políticas locais
representam versões
adaptadas de outras
de nível mundial
“Agenda Global
Estruturada para a
Educação”, de uma
“Cultura Universal de
Educação”
(Dale, 2004, 2012).
Influências
“A criação das políticas nacionais é,
inevitavelmente, um processo de “bricolagem”;
um constante processo de empréstimo e cópia
de fragmentos e partes de ideias de outros
contextos, de uso e melhoria das abordagens
locais já tentadas e testadas, de teorias
canibalizadoras, de investigação, de adoção de
tendências e modas e, por vezes, de
investimento em tudo aquilo que possa vir a
funcionar.” (Ball, 2001: 102).
A lógica das políticas nacionais é o resultado
da
combinação
de
“influências
e
interdependências” (Ball, 2001: 102) entre o
global, o distante e o local. Neste sentido, as
políticas “são sempre aditivas, multifacetadas
e filtradas” (p. 103)
Influências na política educacional
A política educacional e curricular é um resultado de influências
complexas entre contextos que configuram um ciclo contínuo de
políticas (Ball, 2001).
são também
resultado
Isto significa que as políticas
curriculares não se reduzem
aos diplomas escritos
(contexto de produção),
de influências oriundas de diferentes
instâncias e órgãos com poder de
decisão, nacionais e/ou internacionais,
(contexto de influência),
e da interpretação de diferentes
“atores de terreno” que
intervêm na educação
(contexto da prática).
Na política educacional e no currículo, que
lugar fica para os professores?
Que lugar fica para os professores?
• Reconhecer que o currículo, na forma como é organizado e desenvolvido,
não é neutro: coloca em situação de desigualdade alunos pertencentes a
contextos e a famílias com capitais culturais mais afastados da cultura escolar.
• Reconhecer que as relações com o conhecimento não são apenas da esfera
do pedagógico mas também do político. Por isso, há que não ignorar as
questões de poder e de influências na regulação social que ocorrem no
sistema educativo português e nos espaços escolares.
• Recorrer a processos de contextualização/recontextualização do currículo
que permitam torná-lo significativo para todos os alunos que fazem parte da
população escolar.
• Mobilizar as experiências dos alunos e os seus conhecimentos de base como
pontos de partida e não como pontos de chegada (bilinguismo cultural).
• Recorrer a processos de trabalho colaborativo e de relações interpessoais
que possam constituir redes de apoio curriculares tanto para professores
como para alunos .
Que lugar fica para os professores?
O transbordamento de funções e de tarefas que está a ser exigido aos
professores e o desinvestimento na educação e nas condições que favoreçam
uma formação contínua tem vindo a gerar um desencanto com a profissão, e
a promover uma representação social menos positiva
O trabalho como pressão ou como castigo não só produz
efeitos destrutivos sobre o próprio trabalhador como afeta
muito negativamente a sua produtividade e a qualidade do seu
trabalho (Zabalza, 2001)
A melhoria na educação, no sentido da qualidade social, exige um grande
investimento, situação que, nos tempos que correm, não está a acontecer
O funcionamento do sistema está a gerar situações de
desentusiasmo e a empurrar muitos professores para a perda de
condições que permitam responder às exigências que a
complexidade do ato educativo, na sua dimensão social e
cognitiva, exige
Que lugar fica para os professores?
Apesar disso,
existe um
envolvimento de
muitos docentes e
de muitas escolas na
concretização de
projetos fundados
na …
• compreensão da educação escolar nas suas
dimensões sociais,
• obtenção
de
conhecimentos
sobre
especificidades culturais,
• criação de condições que socializem os
professores
a
continuamente
se
questionarem e a aprenderem a aprender
• concretização de um exercício profissional na
lógica de um professor configurador do
currículo e não de mero técnico reprodutor
do instituído
e, nestes procedimentos, estão a concretizar-se
princípios de uma educação democrática
Referências
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Ball, S. (2001). Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem fronteiras, 1(2), 99116.
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Dale, R. (2004). Globalização e Educação: Demostrando a existência de uma cultura educacional mundial comum
ou localizando uma agenda globalmente estruturada para a educação? Educação & Sociedade, 25(87), 423-460.
Dale, R. (2009). Contexts, constraints and resources in the development of European Education Space and
European Education Policy. In R. Dale & S. Robertson (Eds.), Globalisation & Europeanisation in Education. Oxford:
Symposium Books.
Dale, R. (2010). A Sociologia da Educação e o Estado após a Globalização. Educação & Sociedade, 31(113), 10991120.
Dale, R. (2012). The social condition of higher education: globalisation and (beyond) regionalisation in Latin
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Giroux, H. & Simon, R. (1995). “Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o
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Giroux, H. (1986). Teoria crítica e resistência em educação, Petropolis: Ed. Vozes.
Giroux, H. (1990). Los professores como intelectuales. Hacia una pedagogia crítica del aprendizage. Barcelona: Ed.
Paidós/M.E.C.
Giroux, H.(1992), “Mas alla de la teoria de la reproduccion. Hacia una pedagogia de la política de la diferencia”, in
GIROUX, H. & FLECHA, R. Igualdade educativa y diferencia cultural, Barcelona: El Poure, pp. 57-93.
Young, M. (2010). Currículo e conhecimento. Do sócio-construtivismo ao realismo social na sociología da educação.
Porto: Porto Editora.
Young, M. (2011) What are schools for?, Educação, Sociedade & Culturas, 32, 145-155.
•Zabalza, M. (2004). O ensino universitário: Seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed.
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O currículo é neutro?