Suplemento Pedagógico APASE 1 Alfabetização Matemática Desvendando o Tabu Editorial “O que eu sou para vocês me assusta, mas o que sou com vocês me conforta” (São Paulo) O Sindicato-APASE, mais uma vez, atento aos interesses e necessidades de seus associados, apresenta neste suplemento de aculturamento e principalmente de reflexão, um dos assuntos que tocam profundamente a prática supervisora, em específico neste número, a aprendizagem da Matemática e suas implicações no letramento. Para tal, o presente enfoque traz os artigos, na seção Abordagem, dos Professores Nílson José Machado e Katia Stocco Smole. Machado apresenta o cenário atual do ensino da Matemática e a questão da formação do profissional educador; e, na sequência, Smole aborda as implicações para ensino e aprendizagem da matemática escolar. Complementando esta publicação, contamos com o trabalho do Professor José Carlos Miguel que nos fala, com muita propriedade da Alfabetização Matemática, na seção Depoimento. A Diretoria e a Comissão responsável, em conjunto, ouvidos os profissionais interessados, entenderam ser oportuno retomar o assunto tão debatido hoje em dia por todos que se dizem interessados em educação e nós, educadores de fato, que apesar de condições de trabalho que margeiam a indignidade, levamos adiante o firme propósito de garantir uma educação de qualidade a nossa população. Desnecessário lembrar a caótica carência de mão de obra, isto é, de professores de Matemática nas escolas, e que as aulas, principalmente dessa disciplina, têm sido ministradas por Eventuais, muitas vezes, habilitados (se por sorte forem) em qualquer outro componente curricular que não a matéria em questão. Os responsáveis pelo status quo, que, por falta de interesse em desenvolver uma política pública de educação de fato, vêm impondo projetos e programas não só descontinuados, mas também antagônicos entre si, sem deixar de ressaltar suas intenções insistentes de desqualificar os profissionais da educação, principalmente, por meio de uma revoltante política de salários que tem esvaziado a categoria. Na atualidade, antecedidos de grande estardalhaço (beirando o folclore), os dados relativos às diversas avaliações são divulgados, e esses resultados, muitas vezes, carecem de base na realidade local (haja vista a supracitada falta de professores de matemática) e vêm descolados de uma análise aprofundada sobre as condições e variáveis pertinentes de cada caso e o que é pior, sem que sirvam para intervenções significativas a serem promovidas numa verdadeira Política Educacional voltada honestamente para uma Educação de qualidade. Na última seção, encontram-se as resenhas das obras: Para aprender matemática, de Sérgio Lorenzato; Educação Matemática: da teoria à prática, Ubiratan D’Ambrosio; Matemática Escolar e Matemática da Vida Cotidiana, de José Roberto B. Giardinetto; produzidas pelas Supervisoras Cleide Comi, Maria José A. R. Rodrigues da Costa e Gisele Kemp G. Dantas. Desta forma, colegas, propomos esta reflexão, que seja útil para discussão e estudo, no cotidiano, com os pares da equipe de supervisão e com as equipes escolares. Boa leitura! ATENÇÃO - Solicitamos a colaboração de todos no registro de sua opinião no impresso Avaliação do Suplemento Pedagógico, última página, e seu envio à sede APASE, a fim de subsidiar futuras produções. Comissão organizadora: 3 Albino Astolfi Neto; 3 Aparecida Antonia Demambro; 3 Gisele Kemp Galdino Dantas; 3 Maria Clara Paes Tobo; 3 Maria Conceição Macedo Alves Ferreira de Paula; 3 Maria José Antunes Rocha Rodrigues da Costa; 3 Maria Lúcia Morrone; 3 Neli Cordeiro de Miranda Ferreira; e 3 Rosângela Aparecida Ferini Chede. 28 - Julho de 2012 Ano XIII nº 28 - Julho de 2012 28 - Julho de 2012 2 Suplemento Pedagógico APASE Abordagem O Ensino de Matemática e a Formação do Professor Nílson José Machado (*) Dificuldades com o ensino de Matemática: Cenário A anomalia nos resultados com o ensino de Matemática nos diversos níveis escolares é amplamente reconhecida. Um aparente consenso quanto à existência de problemas não significa, no entanto, uma convergência nos diagnósticos. Alguns afirmam que as dificuldades resultam de certas características intrínsecas da Matemática. Sendo um tema que envolve, constantemente, o recurso a abstrações, ela exigiria de seus aprendizes e praticantes algumas aptidões peculiares, inatas. Outros pretendem que a origem dos problemas é de natureza didática e está associada a metodologias arcaicas, hoje inadequadas. O que se observa, no entanto, é que muitas das novas metodologias representam apenas modificações periféricas nas práticas tradicionais, revestidas de uma linguagem mais atraente. Há quem culpe os currículos, acusando-os de insuficiente atualização, o que conduziria a uma cristalização nos conteúdos apresentados. Mas as sucessivas propostas curriculares, nos mais diferentes países, não têm sido suficientes para alterar significativamente o panorama. Há os que concentram as críticas na insuficiente apresentação de aplicações práticas para os conteúdos ensinados, mas as crianças continuam a gostar muito de contos de fadas, distantes da vida cotidiana, e a fazer pouco caso dos conceitos matemáticos. Há ainda os que depositam suas fichas na falta de interesse dos alunos, ou em dissonâncias psicológicas na aprendizagem escolar, mas os alunos não são inapetentes em todos os temas, demonstrando grande entusiasmo com certos temas extraescolares. Questão fundamental: Encantamento Metodologias, epistemologias, psicologias, modernizações curriculares relacionam-se efetivamente com os problemas no ensino e na aprendizagem de Matemática, mas existe um território, na região de confluência de todas essas vertentes, que nos parece merecedor de uma atenção especial. Consideramos que a maior fonte de dificuldades com a Matemática resulta da falta de entusiasmo dos alunos pelo tema. Injustamente associada apenas a operações com números, ou a técnicas de fazer contas, a Matemática perde grande parte de seu encanto. É certo que as ferramentas matemáticas nos ajudam a lidar com a realidade concreta. Seu uso reiterado no dia a dia e sua importância como linguagem das Ciências, em todas as áreas, são indiscutíveis. Mas há algo na Matemática que escapa a qualquer sentido prático/utilitário, que expressa relações, às vezes surpreendentes, e nos ajuda a construir o significado do mundo da experiência, no mesmo sentido em que um poema o faz. Um poema nunca se deixa traduzir em termos de utilidade prática: ele nos faz sentir, compreender, instaura novos sentidos, dá vida a contextos ficcionais. Não vivemos de ficções, mas não vivemos sem a abertura propiciada pelo fictício. A Matemática partilha com a poesia esse potencial para criar novos mundos, inspirados na realidade, mas cheios de encantamentos. Para enfrentar as dificuldades com o ensino de Matemática, mais do que despertar o interesse pelas suas aplicações práticas, é fundamental desvelar sua beleza intrínseca, sua vocação para a apreensão dos padrões e das regularidades na natureza, suas relações diretas com os ritmos, com a música, com as artes de modo geral. É preciso compreendê-la como um sistema básico de expressão e compreensão do mundo, em sintonia e em absoluta complementaridade com a língua materna. É necessário pensar e sentir, consumir e produzir, compreender e fruir os temas que estudamos. Como na vida cotidiana, é inevitável deparar com mistérios, com questões complexas demais para certezas ingênuas, tão comuns aos muito jovens ou aos muito loucos. Em outras palavras, é preciso reencantar a Matemática. Contar, contar histórias É fato conhecido que, em quase todas as línguas, o verbo “contar” tem duas acepções convergentes: enumerar e narrar. Em português, “contar uma história” ou “fazer de conta” revelam indícios de tal proximidade. A linguagem matemática é plena de suposições. Uma sentença matemática típica é do tipo “se A, então B”, ou seja, supondo que A seja verdade, então B também o será. Em alemão, zahl, zahlen, erzahlen significam, respectivamente, número (na contagem), enumerar, narrar. Em inglês, tale, tall, talk também decorrem do alemão arcaico tal, que deu origem a zahl. As expressões “Contos de Fadas” ou “Fairy Tales” nos ajudam, pois, a lembrar de uma importante acepção do verbo “contar”. Contar uma história é construir uma narrativa, uma temporalidade que mimetiza de modo fantástico a sucessão dos números naturais. Os alunos adoram uma história bem contada, uma narrativa fabulosa, um enredo sedutor. Mas em todas as faixas etárias, gostamos de nos encantar, de soltar a imaginação, de nos maravilhar. Histórias como Harry Potter, O Senhor dos Anéis, entre tantas outras, seduzem os leitores e atraem a atenção. A construção do conhecimento em todas as áreas também apresenta aspectos sedutores, dimensões maravilhosas, que exigem narrativas bem arquitetadas para se constituir. Mas as histórias que nos contam na escola, especialmente nas aulas de matemática, são frequentemente desprovidas de encantamento. Mesmo quando os conteúdos servem de suporte para uma apresentação de natureza fabulosa, os professores costumam subestimar a força inspiradora do roteiro, da narrativa, e logo querem nos ensinar a moral da história. As explicações, muitas vezes, antecedem as perguntas: quebram o encantamento, não favorecendo a fruição tácita das relações, o diálogo entre contextos, a transferência de estruturas, a extrapolação das percepções. A formação do professor de Matemática Para encantar os alunos com a Matemática, o professor precisa ele mesmo estar encantado, o que, frequentemente, não ocorre. Sobretudo entre os que se dirigem às séries iniciais, é muito mais comum o desamparo do que o encantamento diante do tema. Como lidar com isso? Certamente as ideias alinhavadas a seguir não são consensuais entre os formadores de professores de Matemática, e é possível que provoquem alguma polêmica. O fato de enunciá-las não representa uma exortação no sentido de seu acolhimento, mas apenas a intenção de colocá-las em discussão entre os formadores de professores. Sem medo de ferir suscetibilidades ou tangenciar posições “politicamente incorretas”, vamos à chuva. As séries iniciais Na formação dos professores das séries iniciais, os currículos de Pedagogia são tais que o conteúdo de Matemática ocupa muito pouco espaço. Predomina uma formação genérica, com destaque para uma didática geral, relativamente independente dos conteúdos a serem ensinados. Nada parece mais caricato do que o professor de tudo ou o professor de nada: todo professor precisa de um chão disciplinar, tem que conhecer bem o que ensina. A língua materna, a matemática e a psicologia da criança são conteúdos fundamentais nesse nível de ensino. Longe de nós a ideia de que basta saber os conteúdos disciplinares para ser um bom professor. Mas sem conhecê-los, não há como sê-lo. Falar o tempo todo de metodologias, de política educacional, de economia da Educação etc., subestimando a importância da realidade Suplemento Pedagógico APASE Os cursos de Licenciatura Nos cursos de Licenciatura em Matemática, que visam à docência na segunda parte do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, o centro de gravidade do currículo deveria estar nos conteúdos de Matemática. Para encantar os alunos, os licenciandos precisam de cultura profissional. Devem estudar toda a Matemática possível, na escala adequada ao tempo disponível, e não apenas os conteúdos que deverão ser ensinados nos níveis fundamental e médio. Em um modelo de 8 semestres de formação, 4 semestres deveriam ser dedicados a ideias fundamentais de disciplinas como Cálculo, Física, Álgebra, Álgebra Linear, Probabilidade, Estatística, Geometria, Topologia, Computação, História da Ciência, entre outras. Outros 2 semestres seriam enraizados em disciplinas da área de Educação, como Metodologia da Matemática, Didática da Matemática, Currículos de Matemática, Filosofia Ciência e da Matemática, entre outras. Disciplinas com temas de matemática elementar examinados na perspectiva da matemática superior também têm muita importância, no sentido de estabelecerem pontes entre os conteúdos escolares e os programas das disciplinas acadêmicas. Os últimos 2 semestres deveriam ser voltados, inteiramente, a atividades realizadas no “chão da fábrica”, ou seja, em escolas básicas, sob a orientação de professores experientes, articulados com os docentes das universidades. A Residência Profissional A formação do professor de Matemática não pode prescindir de uma etapa final que seria algo como a antiga Residência Médica. Não há meias palavras: em sua forma mais frequente, o estágio supervisionado é uma brincadeira de mau gosto. Mesmo com toda a seriedade da parte dos envolvidos, o estágio atual não cumpre as funções básicas a que se destina, em razão, sobretudo, da absoluta indisponibilidade dos alunos, uma vez que são raras as situações em que ele é inserido na grade horária dos licenciandos. Assim como nem todos os hospitais se prestam à Residência Médica, nem todas as escolas deveriam servir para a realização dos estágios. Seria desejável uma articulação estreita entre os professores do curso de licenciatura e os das escolas credenciadas para receber os licenciandos residentes. Os professores da Educação Básica deveriam ser remunerados pela supervisão/orientação dos estágios, não devendo ter tais encargos simplesmente incluídos em suas tarefas ordinárias. O magistério no ensino superior Os alunos que se destinam aos cursos de bacharelados, ou ao magistério no ensino superior, também precisariam de de atividades profissionais, e tem as características de uma formação continuada: um retorno periódico aos bancos escolares é uma condição de possibilidade de uma atuação bem sucedida no universo do trabalho. Assim, toda formação profissional é apenas uma formação inicial, devendo deixar abertas portas nítidas para retornos após períodos como 2 ou 3 anos de efetivo exercício profissional. No caso específico do professor, a necessidade de uma formação permanente sempre foi nítida: quem acha que nada mais tem a aprender é porque certamente perdeu a capacidade de ensinar. Os currículos dos cursos de formação de professores ainda não incorporaram devidamente tal ideia. Integração entre os níveis de docência uma preparação para o ensino. Após os 4 semestres iniciais de formação, que deveriam ser idêntidos para bacharéis e licenciados, um semestre deveria ser dedicado a disciplinas de conteúdos na área de Educação. Nos três semestres seguintes, teriam cursos que constituiriam aprofundamentos na formação matemática inicial, estudando disciplinas como Análise, Geometria Diferencial, Teoria da Medida etc., como uma preparação para o ingresso nos cursos de pós-graduação. Formação continuada e em serviço Atualmente, há um razoável consenso relativamente ao fato de que a formação sempre se completa no exercício efetivo A identidade dos cursos de formação de professor passa necessariamente por uma integração muito maior entre as carreiras dos professores da Educação Básica e do Ensino Superior. Ser professor é o fundamental; o nível de ensino em que se atua é a circunstância. A classificação dos professores não pode ser confundida com a de queimaduras, que são ordenadas por grau, sendo tanto mais sérias quanto maior o grau. Uma via de mão dupla deveria ser construída para o trânsito de docentes de um nível para outro. Se um professor da rede pública, por exemplo, faz um mestrado ou um doutorado em uma universidade pública, ele deveria ter mecanismos legais para voltar a sua sala de aula recebendo o salário de mestre ou doutor da Universidade. Simetricamente, um professor da Universidade deveria ter meios legais para lecionar regularmente em uma escola pública durante certo período – um ou dois anos – sem qualquer prejuízo de seus vencimentos ou de sua carreira acadêmica. Simbolicamente, tais possibilidades são muito fortes e poderiam ser decisivas no sentido de uma real valorização da atividade do professor e dos cursos de formação de professores. O círculo vicioso formação/ remuneração Quando se discute a formação de professores, é comum a emergência de um círculo vicioso: o professor é mal remunerado porque não é bem capacitado, e é mal capacitado porque não é bem remunerado. Na verdade, a despeito de pisos salariais recém conquistados, as condições de trabalho do professor da Educação Básica são precárias, para se dizer o mínimo. Mantidas tais condições, quanto mais bem formado é o professor, quanto mais se capacita, mais ele se afasta do ensino básico, em busca de melhores circunstâncias, nas universidades ou nas escolas privadas. Para romper tal círculo, é fundamental melhorar significativamente as condições de trabalho do professor da Escola Básica, o que passa pela melhoria salarial, mas não se esgota nela. Muitos docentes qualificados afastaram-se, progressivamente, das salas de aula, ao longo de várias décadas, numa busca legítima de melhores condições de remuneração e reconhecimento em outras atividades; uma nova situação profissional certamente atrairia grande parte deles de volta. Conclusão: uma certeza Para concluir, retornemos ao início: os problemas com o ensino de Matemática decorrem menos de deficiências tópicas no ensino de conteúdos específicos, resultando essencialmente de um desencantamento com a disciplina. Uma correção de rumos pressupõe um professor de Matemática bem formado, mas não há consenso sobre o que isso significa. As questões até aqui arroladas constituem uma tentativa de alimentar o debate sobre tal formação. Em meio a eventuais polêmicas, uma convicção nos anima: o reencantamento do ensino da Matemática pressupõe um professor bem formado, ele mesmo encantado com seu tema e sua profissão. Criar as condições para que isso aconteça é tarefa ingente e urgente, digna de um mutirão de todos os envolvidos com a questão, nos diversos níveis de ensino. (*) Universidade de São Paulo Faculdade de Educação [email protected] www.nilsonjosemachado.net 3 28 - Julho de 2012 da sala de aula, é um modo de esvaziar a formação do professor, alimentando caricaturas nem sempre tão inverossímeis. Abordagem Suplemento Pedagógico APASE Abordagem 28 - Julho de 2012 4 Alfabetização matemática: implicações para ensino e aprendizagem da matemática escolar A Matemática tem sido considerada como uma área do conhecimento relacionada ao desenvolvimento de saberes, habilidades e procedimentos utilizados em diferentes âmbitos sociais e científicos. Dificilmente encontramos alguma ação social, política ou científica que se faça sem que algum conhecimento matemático esteja envolvido, ou sem que sejam exigidas determinadas habilidades de pensamento matemático tais como levantamento de hipóteses, análise de possibilidades, estimativa e tomada de decisão. Não é necessário mais que uma observação atenta para perceber que a Matemática e as habilidades de pensamento que ela favorece, se constituem recursos cada vez mais necessários para o desenvolvimento do conhecimento científico, profissional e social. Cremos que poucos discordam desses aspectos apontados até aqui. Infelizmente, há outro ponto sobre o qual todos concordamos: a aprendizagem matemática dos nossos alunos deixa muito a desejar. Todas as vezes que analisamos a situação da educação brasileira é, praticamente, impossível dissociar da avaliação da qualidade da escola, das questões a respeito do ensino e da aprendizagem de Matemática. Os resultados ruins são comprovados tanto pelos dados vindos de sistemas de avaliação, quanto pelas impressões de pais, professores, alunos, empresários entre tantos outros. Não podemos negar que aqui e ali há avanços, mas eles são tímidos e não garantem a democratização do acesso ao saber matemático que, como qualquer outro saber, está garantido aos alunos por lei na Constituição Federal de 1988. Há estudos e propostas buscando as Katia Stocco Smole (*) formas de superar os problemas enfrentados pelos alunos e professores com a matemática escolar. Entre eles, de modo mais recente, tem-se falado bastante a respeito de alfabetização matemática. A ideia de alfabetização matemática ganhou espaço na reflexão dos educadores matemáticos nos últimos quinze anos, seja porque é sabido que devemos ter na escola a Matemática como uma nova linguagem a ser aprendida pelos alunos, ou porque defendemos que, nos anos iniciais da escolaridade básica, seja dada a esta disciplina atenção similar àquela que tem a alfabetização, ou ainda, devido aos trabalhos de pesquisa desenvolvidos em diferentes partes do mundo indicativos de que, se oferecermos aos alunos dos anos iniciais uma educação matemática de qualidade, maiores são as chances de que desenvolvam habilidades, noções e conceitos que lhes serão úteis para a vida toda. Embora não possamos nos desfazer de nenhum desses argumentos, eles por si só não garantem nem ao menos justificam a importância da alfabetização matemática. Para compreender melhor essa justificativa é importante tanto que tenhamos mínima clareza a respeito do que seja alfabetização matemática, quanto de como ela acontece em termos de princípios relativos ao ensino e aprendizagem da matemática. Analisar esses dois aspectos é meta deste artigo. Uma aproximação à ideia de alfabetização matemática Há muitas formas de entender a alfabetização matemática. De acordo com Montoro (2012) e Danyluk (1993), o termo alfabetização matemática pode ser entendido como o compromisso de tornar o aluno um leitor e um escritor de textos matemáticos bem como, desenvolver sua capacidade de analisar, julgar, argumentar e comunicar ideias efetivamente por meio da linguagem matemática. Quem defende esta ideia, na ação de alfabetizar em matemática considera-se que os alunos, em fase inicial de escolarização, devam conhecer a linguagem por meio dos símbolos, representações gráficas e termos específicos que compõem cada eixo organizador da matemática escolar. Pesquisas nesse sentido indicam ainda que a capacidade de comunicarse, matematicamente, se relaciona a representar ideias e conceitos matemáticos por meio da linguagem especifica dessa disciplina, bem como argumentar, analisar, julgar e comunicar ideias. Desse modo, alfabetizar em matemática nesta concepção, diz respeito a cuidar atentamente para que os alunos, desde o inicio da escolarização, compreendam e interpretem os símbolos, as representações gráficas e os termos que compõem o texto matemático relativo aos quatro eixos organizadores da matemática escolar, quais sejam, números e operações, grandezas e medidas, espaço e forma e tratamento da informação, e os utilizem nas situações em que eles se fizerem necessários. De acordo com outros pesquisadores tais como Belfort e Mandarino (2007) e Gellert et all (2001), a alfabetização matemática precisa ser entendida como a capacidade de formular, utilizar e interpretar a matemática em diferentes contextos e inclui tanto o uso de conceitos e procedimentos específicos desta área do saber, quanto o raciocínio matemático que, juntos, permitem descrever, explicar e prever fenômenos. Para os pesquisadores, Ser alfabetizado, matematicamente, implica em reconhecer o papel que a matemática desempenha no mundo, utilizá-la para formular julgamentos, resolver problemas, tomar decisões nas mais diversas situações. O tema da alfabetização matemática ganhou tamanha relevância que, recentemente, foi utilizado pelo Ministério da Educação (MEC) brasileiro para nomear os livros de matemática destinados aos alunos de 1º a 3º ano dos anos iniciais do ensino fundamental, ainda que nada haja em nossa legislação, ou em documentos oficiais, que determine a alfabetização matemática como disciplina nesses mesmos anos de escolaridade. A despeito do que possamos inferir a partir da nomeação dos livros a qual nos referimos acima, o processo de alfabetização matemática não se restringe aos primeiros anos de escolaridade básica, se estendendo por todo o ensino fundamental na verdade. Primeiramente, de fato, os alunos iniciam sua compreensão das noções, conceitos e procedimentos de matemática tendo como base as aprendizagens esperadas para os cinco primeiros anos do ensino fundamental. Mas, este processo será ampliado e continuado por toda escola, especialmente no que diz respeito à entrada da linguagem algébrica que se dá partir do 7º ano. Assim, não é equivocado concluir que alfabetizadores de matemática somos todos que ensinamos matemática ao longo da vida escolar dos alunos, muito especialmente da educação infantil ao 9º ano. Caminhos para alfabetização matemática Analisado o que expusemos até aqui, precisamos agora pensar a respeito de quais fatores interferem para que a alfabetização matemática se efetive. Aparentemente a ideia de levar os alunos a se apropriarem do conhecimento matemático a ponto de utilizá-lo na resolução de problemas e terem acesso à linguagem matemática, parece uma ideia simples. E é. De fato, nada há de complicado em se imaginar que quem aprende uma disciplina na escola, precisa se apropriar das formas de pensar desta Suplemento Pedagógico APASE analisar cada um desses pontos. Clareza de aonde se quer chegar Alice in Wonderland (1951) - Walt Disney Puictures Em uma clássica passagem de Alice no País das Maravilhas, Alice está perdida e encontra o Gato. Ela olha para cima e vê o sorriso e o rabo inequívocos do Gato. Ela olha para ele lá em cima e diz assim: "Você pode me ajudar?" Ao que ele responde: "Sim, pois não." "Para onde vai essa estrada?", pergunta Alice. Ele responde com outra pergunta "Para onde você quer ir?". Ela disse: "Eu não sei, estou perdida." Ela afirma. Ele, então, professor atua junto aos alunos. Todas as decisões tomadas estão demarcadas em um contexto sócio cultural, acontecem em um local, se relacionam com as concepções de ensino, aprendizagem, aluno e escola que temos como educadores que somos. O ensino de matemática e, por consequência, a alfabetização matemática estão longe de acontecer em um terreno asséptico e neutro. Portanto, para que a alfabetização matemática ocorra, há pressupostos, ou condições a serem cuidadas pela escola que dizem respeito ao que ensinar, ao porque ensinar e ao como ensinar para que os alunos aprendam de fato. Nossa intenção é, ainda que brevemente, diz assim: "Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve." Esta passagem da literatura é uma metáfora interessante para começarmos a refletir a respeito da importância de termos clareza do que desejamos que os alunos aprendam em cada ano da escolaridade básica, ou ainda, das expectativas de aprendizagem que temos para os alunos com os quais trabalhamos. Arriscamos dizer que, como educadores, perdemos o foco do que é essencial que um aluno aprenda de matemática em uma determinada série quando de um extremo no qual havia um programa rígido a ser cumprido, usado arbitrariamente para selecionar e mesmo excluir alunos que não aprendessem nos tempos apertados da escola, fomos para outro com tempo alargado demais, com limites quase inexistentes entre a aprendizagem esperada entre um ano e outro. Corremos o risco de, como Alice, não saber para onde ir. Apesar de concordarmos com o fato de que aprender exige esforço, leva tempo e que a aprendizagem nem sempre acontece concomitantemente ao tempo de ensino do professor, é importante termos expectativas definidas por e para cada série que orientem o olhar da avaliação do educador a respeito da aprendizagem dos alunos. As expectativas de aprendizagem não se confundem com o programa que os professores desenvolverão, não constituem tudo que os alunos aprenderão, uma vez que eles sempre aprendem mais do que o suposto nas expectativas. No entanto, elas definem parâmetros para que não se trabalhe sempre as mesmas coisas com os mesmos focos em séries distintas, auxiliam a ter um olhar sobre quais são, em essência, as aprendizagens esperadas (noções, conceitos, procedimentos, habilidades) em uma determinada fase escolar e contribuem para organizar o ensino entre as diferentes etapas da escola básica. Como bem disse Mandarino (2011, p. 9): Definir expectativas de aprendizagem é elaborar uma espécie de ‘carta náutica’ para professores e gestores conduzirem o trabalho pedagógico. Não navegar sem rumo. E, para isso, não basta indicar o ponto final da viagem, é fundamental conhecer direções e sentidos alternativos para dar conta dos desafios específicos de alunos, turmas, escolas, redes. É nesse sentido de mapeamento dos focos de aprendizagem, para cada disciplina, em cada um dos anos iniciais do ensino fundamental defendemos que expectativas estejam claras. Ainda que elas não tenham sido estabelecidas nacionalmente, como previsto no artigo 210 da Constituição de 1988, há muito material disponível que pode ser usado pelo grupo de educadores de uma escola para criar o mapa. Das propostas curriculares, passando pelos guias dos livros didáticos e matrizes dos sistemas de avaliação em larga escala, tudo por servir para estabelecer o caminho para onde se deseja ir com e pela aprendizagem matemática dos alunos. Um ensino organizado por eixos, tem como meta que os alunos aprendam estabelecendo relações entre diferentes conceitos e procedimentos matemáticos e que, por isso, ao estudar um eixo, ampliem a compreensão de outros. Isso pode ser exemplificado com o estudo de medidas de comprimento com o qual os alunos ampliam sua compreensão sobre números fracionários e decimais e as operações. Por outro lado, ao compreender o significado da multiplicação, os alunos ganham recursos para entender o cálculo da área de retângulos. Nossas metas ao explorar a matemática segundo seus eixos são favorecer para o aluno uma visão integrada do conhecimento matemático, a criação de relações entre conhecimentos e procedimentos matemáticos, a compreensão de diferentes representações de conceitos e procedimentos e o uso e a valorização das relações entre diferentes tópicos da Matemática Sabemos que o estabelecimento de relações, ou conexões entre noções e conceitos de Matemática é um processo interno dos alunos, isto é, ocorre no cérebro. No entanto, assumimos que esta aprendizagem mais integrada é favorecida se o professor, por meio das atividades e do material didático que utiliza, for capaz de organizar o planejamento percebendo as possíveis ligações entre temas, de modo que sua aula ajude aos alunos a terem pistas sobre como um tema se relaciona com outro, auxiliando-os a fazerem sínteses e fechamentos para explicitar as relações percebidas. Nesse processo, temos favorecida a alfabetização matemática no sentido exposto anteriormente. Resolução de problemas Podemos afirmar, sem risco de exageros que, em se tratando de 5 28 - Julho de 2012 disciplina, bem como dos conhecimentos e linguagem inerentes a ela para que possa ler, falar e escrever sobre ideias, relações e percepções que se façam necessárias em situações as mais diversas. Por outro lado, se fosse assim tão simples, o cenário não seria sofrível como esse que se apresenta nacionalmente. Ocorre que, o ensino de matemática que se desenvolve nas aulas, como em qualquer outra disciplina aliás, depende de um grande número de fatores. Desde a clareza daquilo que se espera que os alunos aprendam em cada ano de escolaridade até a forma pela qual o Abordagem 28 - Julho de 2012 6 Suplemento Pedagógico APASE Abordagem matemática, um aluno será levado à alfabetização matemática somente confrontando-se, regular e intensamente, com situações problematizadoras que mobilizem diversos tipos de conhecimentos e habilidades. A resolução de problemas não é uma situação qualquer, focada em achar uma resposta única para um problema numérico, de forma rápida, mas deve colocar o resolvedor diante de uma série de decisões a serem tomadas para alcançar um objetivo previamente traçado por ele mesmo ou que lhe foi proposto, mas com o qual ele interage, se desafia e envolve. Considerando as preocupações com alfabetização matemática conforme exposto no presente texto,, a resolução de problemas está centrada na ideia de superação de obstáculo pelo resolvedor devendo, portanto, não ser de resolução imediata pela aplicação de uma operação ou fórmula conhecida, mas oferecer uma resistência suficiente, que leve o resolvedor a mobilizar seus conhecimentos anteriores disponíveis, bem como suas representações, e seu questionamento para a elaboração de novas ideias e de caminhos que visem solucionar os desafios estabelecidos pela situação problematizadora gerando assim novas aprendizagens e formas de pensar. Nesse sentido, a aula é vista como um espaço problematizador, no qual os alunos se deparam com desafios constantes, por meio dos quais buscam regularidades, formulam, testam, justificam ou refutam hipóteses, refletem a partir de experiências bem sucedidas ou não, defendem suas ideias por meio de argumentações e discussões com seus pares. É um espaço que auxilia os alunos a desenvolverem um fazer matemático indo além do mero domínio de técnicas e exercícios típicos. Dessa forma, um problema não acaba na conferência da resposta, porque exige a discussão das soluções, a análise dos dados e, finalmente uma revisão e questionamento da própria situação inicial. Por isso, ao resolvedor deve ficar claro que a resposta correta é tão importante quanto o processo de resolução. Ele deve perceber ainda que podem surgir diferentes soluções, que precisam ser comparadas entre si e justificadas em relação àquilo que se desejava resolver. Porque tem espaço para falar, se expressar de diversas formas, o aluno desenvolve e amplia formas de falar e escrever sobre matemática. A linguagem matemática é exigida, assim como capacidades de argumentação, análise e reflexão. Itens essenciais da alfabetização matemática. Comunidade de trabalho e discussão sobre Matemática Para que esse processo se desenvolva plenamente, é importante favorecer um ambiente de aprendizagem que simule na sala de aula uma comunidade matemática onde todos possam participar, opinar, comunicar e trocar informações e experiências. Nessa comunidade os alunos mediados por um professor que questiona, instiga a análise, valoriza a troca de impressões e opiniõesdesenvolvem um conhecimento matemático que lhes permite identificar, selecionar e utilizar estratégias adequadas ao resolver situações-problema por meio de diferentes processos de resolução em detrimento das respostas mecânicas para problemas sem sentido para eles. Além disso, ganha força a opção pelo processo de socialização da aprendizagem, pautado em trabalhos em grupo, estratégia fundamental na formação de um ambiente matemático. As discussões entre pares permitem que o resolvedor-aluno analise várias alternativas, o que é essencial para o desenvolvimento das ideias matemáticas, e a percepção de que aprender Matemática não é uma tarefa solitária. Em todos os sentidos o que se busca é que os alunos exerçam maior e melhor controle sobre o seu fazer e seu pensar matemático, adquirindo sistemas de controle e autorregulação que os auxiliem a escolher ou optar por determinada estratégia, abandoná-la ou buscar outra que melhor se ajuste à situação e, ao final, avaliar o processo vivido. No espaço que alfabetiza matematicamente, tal qual se faz em língua portuguesa, é importante que, na aula, os alunos tenham espaço para criarem suas próprias representações em matemática, o que pode ser feito se deixarmos que eles resolvam problemas usando procedimentos pessoais de representação da solução que criaram; representem vivências e aprendizagens por desenhos entre outras possibilidades. Neste espaço, é interessante que analisem e dialoguem a respeito de diferentes representações matemáticas, sejam as convencionais ou aquelas criadas por eles mesmos, o que é possível conseguir com, por exemplo, um painel com diferentes representações para uma dada situação problema. Outro ponto de destaque é a análise, com a intervenção e acompanhamento do professor, das escritas matemáticas produzidas em sala, de modo que possam perceber o que é válido ou não em uma escrita matemática. Isso nos remete ao papel do educador. O papel do educador O enfoque apresentado até agora implica um repensar o ensino de matemática, sua concepção e as situações didáticas propostas visando ao processo de aprendizagem que, para ocorrer, atribui ao professor um papel essencial. Cabe ao professor escolher bons problemas, planejar formas de explorálos para que os alunos sejam colocados em situação de ver e confrontar diferentes pontos de vista, explicitar o que é difícil, justificar como pensou uma solução, avaliar o processo vivido, valorizar a análise de erros entre tantas outras ações. Em síntese, o educador proporciona uma aula problematizadora na qual serão propostas diversas situações em que os alunos serão convidados a elaborar problemas. Nesse caso, solicita-se do aluno habilidades mais sofisticadas uma Suplemento Pedagógico APASE Finalmente, entendemos a função de intervenção relativa ao processo avaliativo, que pode ser percebido sempre que orientamos para que sejam repensadas as ações inicialmente planejadas, em função dos avanços ou dificuldades apresentadas pelos alunos. Isto é, sempre que adequamos o planejamento inicial às percepções que temos da classe e dos alunos. O planejamento é um mapa para a prática e a avaliação o elemento que orienta os direcionamentos e elaboração do mapa. no que se refere à aprendizagem matemática. Atualmente, não há dúvida de que é preciso e possível fazer com que os alunos se apropriem de ideias e desenvolvam habilidades matemáticas importantes na escola e fora dela. A preocupação com alfabetização matemática é uma boa metáfora na defesa de uma aprendizagem matemática de qualidade para todos os alunos. No entanto, mais que intenções é importante agir para fazer com que o cenário trágico atual se modifique. Aliados no caminho de ensinar e aprender Em se tratando de fazer um ensino para que a aprendizagem ocorra, compreendemos a sala de aula como um espaço de conhecimento compartilhado, no qual os saberes veiculados estão voltados a ajudar cada aluno a aprender mais e melhor as noções e conceitos de matemática. Nesse processo, o professor coordena e articula as ações, para que a aula tornese um local em que cada aluno sinta-se participando de uma proposta que também lhe pertence, encontrando segurança para duvidar, tentar, recomeçar se for necessário, expressar opiniões e, consequentemente, aprender. Nesse sentido, planejar e avaliar são itens inegociáveis. A avaliação tem caráter diagnóstico, todas as vezes que ouvimos e observamos o aluno, permitindo que ele registre de algum modo o que sabe ou pensa que sabe sobre uma situação e os conceitos nela envolvidos. Há ainda um principio de acompanhamento do processo de aprendizagem, quando da observação, do registro, ou da explicação por parte do aluno a respeito do que fez, como fez, o que não entendeu entre outras coisas. Aliado às expectativas de aprendizagem e à avaliação, o planejamento tem sentido e direção. Não seremos desprezados pelo Gato, porque sabemos onde ir e como ir. Considerações finais Quando pensamos em uma das metas que o Brasil persegue, há décadas, em se tratando de educação, a alfabetização plena como um direito de todos figura, claramente, como um projeto de vulto. Pensar em alfabetização matemática traz para a escola e os educadores um debate similar Nesta modificação, definição de expectativas de aprendizagem, clareza do papel do aluno, a importância da aula problematizadora, dos registros, do planejamento e da avaliação são elementos essenciais. Mas, porque são sistêmicos, precisam ser encaminhados conjunta e sistemicamente. Mudar a estratégia da aula, sem alterar o foco do planejamento, ou sem ter clareza de metas não altera os resultados de fato. O convite que deixamos é para que, cada escola, cada educador pense, seriamente, em qual sua responsabilidade e margem de ação na direção de um ensino de matemática de qualidade para todos. Não há mais tempo para buscar culpados, o tempo agora é de assumir responsabilidades. Podemos começar agora mesmo. Referências BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: matemática. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. 142 p. DANYLUK, Ocsana S. Alfabetização Matemática: O cotidiano da vida escolar. Caxias do Sul. EDUCS,1993. GELLERT, U et all. Mathematical literacy and common sense in Mathematics Education. In ATWEH, B e outros (orgs). Socio cultural aspects of Mathematics Education. New York: Lawrence Eribaum, pp.57-73, GORGORIÓ, Núria, DEULOFEU, Jordi e BISHOP, Alan (org). Matemáticas y educación: retos e câmbios desde uma perspectiva internacional. Barcelona: Graó, 2000. MANDARINO, Mônica, BELFORT, Elizabeth. Implementação do Próletramento em matemática. Rio de Janeiro, I. M. – UFRJ Faculdade de Educação – UNIRIO, 2007 (*) Profa. Dra. Katia Stocco Smole, Coordenadora do Mathema 7 28 - Julho de 2012 vez que será preciso criar o contexto da história do problema, controlar as informações e a pergunta, tudo isso de modo articulado e que possa ser lido e compreendido por outras pessoas. Ao identificar e propor problemas o aluno vivencia parte essencial do “fazer matemática” em aula. Além da resolução de problemas, as atividades que envolvem observação, registro e comunicação auxiliam na aprendizagem da matemática. A comunicação aqui entendida como a capacidade de comunicar processos e resultados do trabalho matemático, das aprendizagens e dúvidas que surgiram desse mesmo trabalho tanto oralmente, quanto por escrito com a apropriação progressiva da linguagem matemática e portanto, um dos aspectos visados para a alfabetização matemática. Abordagem 28 - Julho de 2012 8 Suplemento Pedagógico APASE Depoimento Alfabetização Matemática: Relações entre Oralidade e Escrita no Contexto de Episódios de Numeramento José Carlos Miguel Introdução O presente estudo resulta de ações voltadas para a articulação entre ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas no contexto de projetos de intervenção na rede pública de ensino fundamental. As ações têm como escopo o processo de formação de conceitos matemáticos e as relações entre oralidade e escrita no movimento constitutivo da alfabetização matemática. São comuns os relatos sobre situações de aula nas quais os educandos revelam habilidade no cálculo mental, verbalizam o raciocínio desenvolvido para resolver um problema, mas revelam dificuldade para registrar as ações desenvolvidas. No caso dos educandos adultos, sabemos das limitações que têm para explicitar heurísticas postas em prática. E das dificuldades dos professores para consecução da transposição didática, isto é, os professores percebem essa distância entre o mental, o oral e o escrito, mas não conseguem, na prática, transformar a Matemática para ensiná-la. No caso das crianças, desde muito cedo influenciadas pela Matemática escolarizada e com dificuldade para expressarem as suas incompreensões, o diálogo fica muito restrito. Isso praticamente inviabiliza o processo de negociação de sentidos e significados de aprendizagem. É nosso propósito analisar algumas heurísticas expostas em situações de aula e em reuniões de orientação pedagógica de professores em processo de formação inicial ou contínua. Em nossa compreensão, a análise dessas heurísticas é fundamental para o rompimento com algumas práticas que não contribuem para o desenvolvimento nos educandos da capacidade de relacionar adequadamente informações, conhecimentos e habilidades para a resolução de situações matemáticas. Por esse critério, considerável parcela dos educandos conclui o ensino fundamental e não está alfabetizada matematicamente. Por certo, as dificuldades com a aprendizagem da Matemática constituem uma síntese de múltiplas determinações. Dentre elas, as diferenças entre o saber matemático vivenciado cotidianamente e a matemática escolarizada, indefinições relativas ao projeto político-pedagógico da escola, concepções espontâneas negativas com relação à Matemática e obstáculos de natureza didática ou epistemológica podem conduzir os alunos a um contexto de conhecimento matemático formalizado, distante dos modos de pensar e agir até então desenvolvidos quando necessitavam de quantificação de dados da realidade imediata, criando dificuldades de assimilação dos conceitos. Sob o nosso ponto de vista, isso impõe a formação de um professor epistemologicamente curioso, isto é, capaz de constatar, interpretar e considerar as heurísticas desenvolvidas pelos alunos e que busque nas teorias de conhecimento as explicações plausíveis para uma ação didático-pedagógica consequente. Pressupostos teóricos e metodológicos: ação colaborativa Partimos da hipótese de que a reflexão dos educadores sobre as manifestações orais da ação mental desenvolvida para a resolução de problemas exerce papel fundamental para a representação matemática na forma escrita. Daí, a importância de uma ação pedagógica voltada para as dificuldades na compreensão do enunciado, incentivando estratégias de solução desenvolvidas a partir da interação e da troca de ideias entre os sujeitos acerca dos resultados obtidos. Trata-se de proposta que deve pressupor ação colaborativa com perspectiva de intervenção na realidade escolar. Cabe colaborar, buscar em conjunto as soluções dos problemas que afligem a comunidade pesquisada. Desde logo se estabeleceu que a pesquisa-ação seria ideal para a tarefa visto que as orientações desse tipo de pesquisa, no tocante à concepção dos sujeitos, organização e participação deve contemplar o desejado uma vez que para atuar, colaborativamente, junto a um determinado grupo é necessário respeito pelas individualidades, comprometimento e envolvimento como o conjunto de interesses e objetivos, isto é, todos estão em processo de desenvolvimento, aprendizagem e/ou aperfeiçoamento. O problema a ser resolvido deve ser comum às partes. Nesse sentido, a pesquisa-ação é um processo investigativo que serve para direcionar e pontuar a atuação no cotidiano escolar bem como nas reflexões decorrentes da intervenção. Daí, a necessidade de analisar os textos dos alunos, o discurso, as histórias orais, enfim, as heurísticas que desenvolvem para aprender e que poderiam fundamentar o processo de elaboração matemática pelos alunos em processo de alfabetização. Por isso, é importante a conscientização do educador com relação aos objetivos educacionais propostos para se utilizar a linguagem matemática com a finalidade de atingir os objetivos propostos para a alfabetização. Ou seja, a Matemática desempenha papel fundamental no suporte aos processos de leitura e de escrita; trata-se de uma componente do amplo processo de letramento. Entende-se que a formação do ser humano é decorrente das interações sociais e, à medida que se apropria do conhecimento, modifica seu contexto sociocultural na mesma medida em que é modificado por esse contexto. Lorenzato considera que a criança adentra a escola com uma gama relativamente ampla de conhecimento (*) decorrente de seu contexto social que deve ser explorado e sugere que se inicie o desenvolvimento de conceitos básicos “por onde as crianças estão e não por onde gostaríamos que elas estivessem” (LORENZATO, 2005, p. 24), fazendose, assim, uma exploração dos conhecimentos já construídos pelos educandos e relacionando-os aos conceitos e noções de espaço, número e medidas, para nortear o plano de ensino. A exploração dessa linguagem, que os educandos trazem para a sala de aula, integra a base para a formação do conceito, pois eles já sabem o significado, bastando buscar exemplificar, empiricamente, para formar o conceito básico de matemática para as informações fornecidas. Em síntese, dar um sentido para a aprendizagem. Por vezes, as escolas possuem bom acervo de recursos para o desenvolvimento desse trabalho exploratório. Porém, é necessário disponibilidade do educador para a realização das atividades em sala de aula, abrindo espaço para o diálogo, discussões e registros conceituais. Esse processo dialógico de aprendizagem requer, segundo Nacarato, Mengali & Passos, um “[...] ambiente de dar voz e ouvido aos alunos, analisar o que eles têm a dizer e estabelecer uma comunicação pautada no respeito e no (com)partilhamento de idéias e saberes” (NACARATO; MENGALI; PASSOS, 2009, p. 42), propiciando uma melhor apropriação do conhecimento pelos educandos. Sobre a relação dialética entre o oral e o escrito na aprendizagem matemática É a atividade matemática, enquanto uma atividade de produção, que nos interessa pensar como tema da sala de aula, o que ainda não é consenso na educação matemática, posto que ainda notamos quem se concentre em Suplemento Pedagógico APASE conceitos espontâneos (desenvolvidos por contatos com fatos e situações da sua ação cotidiana, dos quais o sujeito não tem, por vezes, consciência) e os conceitos científicos (sistematizados e transmitidos intencionalmente, em geral, na situação escolar), as investigações de Vygotsky e colaboradores atribuem papel decisivo para a ação do professor, ou do parceiro mais experiente, considerando que a aprendizagem mediante demonstrações pressupõe reconstituição de um modelo dado socialmente, não por imitação pura e simples, mas por uma ação que supõe uma experimentação construtiva, impondo transformações ao modelo, em processo que resulta na internalização de sua compreensão. É essa experimentação o objeto de estudo deste artigo e esclarecemos que foram feitas adequações para a norma culta no discurso dos sujeitos, mantidos o conteúdo e o sentido das falas. soluções. São emitidas algumas indicações, quase todas no sentido de “tentativa e erro” até que AME propõe que comecem registrando as soluções com as notas maiores. TAS questiona: “Por que começar pelas notas maiores?” AME resmunga que é “porque fica mais fácil”. TAS desenha na lousa uma tabela e explica aos alunos que, em cada quadrícula, devem indicar o número de notas correspondente: “Se fossem dez por cento dariam vinte e um centavos porque preciso de vinte moedas de dez centavos para formar dois reais e de dez moedas de um centavo para formar dez centavos. Então, um por cento é pouca coisa além de dois centavos e quatro por cento dá mais ou menos oito centavos. No total, são vinte e nove centavos”. Refletindo sobre alguns episódios de numeramento Parece consenso que o espaço social da sala de aula deve configurar-se como condição para a produção de conhecimento. Assim, o objetivo principal da atividade matemática é conduzir o sujeito a transcender o que é imediatamente sensível. Em dada aula, a situação matemática proposta para os educandos em processo de escolarização inicial era: “Quais são as maneiras diferentes de formar R$ 12,00 usando notas de R$ 10,00; R$ 5,00; R$ 2,00 e moedas de R$ 1,00”? De pronto, MAR sugere “uma nota de 10 e uma nota de 2”. ELI, na seqüência, indaga se podem repetir notas e propõe “seis notas de 2”. JUS levanta o braço e diz que sabe um monte: “12 notas de 1”; “duas notas de 5 e duas moedas de 1”; “cinco notas de 2 e duas moedas de 1 real”; etc. Aparecem várias outras soluções, algumas repetidas. TAS, educadora da turma, intervém, indagando se eles já tinham resolvido o problema, se tinham a certeza de que não faltava nada e se não haveria uma forma organizada de resolver a questão, que não permitisse o esquecimento de algumas trata de um iletrado, na prática. Pedreiro de ofício, lida bem com cálculos elementares, com as medidas, com o espaço e formas geométricas, na forma oral. Segundo ele, “faz tudo de cabeça”, isto é, desenvolveu na sua prática cotidiana uma fantástica capacidade de cálculo mental. Em geral, o registro e análise de situações de aula nas quais se envolve se revelam muito interessantes, como a sua proposta verbal de solução para calcular 14% de suposto reajuste no preço do transporte coletivo em Marília, de R$ 2,10 à época. Ao responder, rapidamente, que seriam R$ 0,29, explicou com muita segurança o que fizera para chegar ao resultado: Além da rica discussão sobre a forma de resolver o problema e da análise percuciente sobre o significado do número, TAS pode explorar sentenças matemáticas que, por vezes, se mostram sem sentido para os alunos tais como as expressões numéricas. Por exemplo, 5 + 2 X 2 + 3 X 1 agora significa “uma nota de 5, mais duas notas de 2 e mais três moedas de 1 real”, no dizer de AME. E permite entender porque as multiplicações devem ser efetuadas antes das adições ou subtrações. Em outro episódio, FRA, cinquenta e quatro anos de idade, e que ingressou na EJA apenas “desenhando” o nome, enfatiza sempre que, apesar disso, nunca é ludibriado. Segundo ele, faz tudo o que as demais pessoas de seu convívio praticam. Muito lúcido, revela perspicácia no trato com as pessoas e uma sabedoria acerca da vida que custa acreditar que se Provoco-o, dizendo que ficara muito clara a conclusão pelos nove centavos, mas que não entendera os vinte centavos, e indago, então, sobre como concluiu acerca deles e porque a analogia com as vinte moedas. Foi impressionante a segurança da sua argumentação: “Muito fácil: formei dez grupinhos de duas moedas de dez centavos e já sei que cada grupinho são dez por cento. Se tivesse moedas de vinte centavos era mais fácil”. Questiono, então, sobre o uso social desse conhecimento, isto é, se em situações da vida prática, usava essa estratégia de cálculo com percentuais. Ele responde, de pronto: “É a Matemática que mais uso. Sabe, professor, existe uma prática de calcular a quantidade de revestimento a ser usada num serviço e depois temos que colocar sempre os dez por cento em cima”. Por que tem colocar os dez por cento, eu indago. 9 28 - Julho de 2012 comunicar alguns resultados sob a forma de comunicação de técnicas isoladas. Nesse caso, desconsidera-se a necessidade de pensar numa gênese escolar que conduza os educandos a uma ação de reconstrução de idéias matemáticas. Bakhtin (1986, p. 92) considera que o locutor serve-se da língua para as suas necessidades enunciativas concretas, ou seja, para o locutor a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala, vale dizer, necessitamos da língua para o exercício da linguagem e da linguagem, para a existência da interação social. Na base desse pensamento, o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem, isto é, interagindo através da linguagem, os sujeitos organizam e sistematizam seus conhecimentos de modo que toda atividade cognoscitiva ao atingir a sua maturidade se expressa por meio da linguagem (escrita ou falada). Vale dizer, a atividade de conhecer também é determinada pelo mundo exterior. A teoria histórico-cultural já estabeleceu que o signo mediatiza não apenas o pensamento, mas o próprio processo social humano. Isso inclui, entre os signos, a linguagem, os sistemas de contagem, os esquemas, diagramas, mapas, desenhos, os sistemas simbólicos algébricos, as técnicas mnemônicas e todo tipo de signos convencionais. A ideia básica é que, ao empregá-los, o homem modifica as suas próprias funções psíquicas superiores. Partimos do pressuposto de que a atividade da qual o pensamento emerge é sempre heterogênea, o que implica que o pensamento é sempre heterogêneo, independentemente da cultura ou da época, fato há muito tempo reconhecido nas ditas ciências da cultura, mas que não tem sido considerado, como deveria, na pesquisa. Considerar que uma atividade envolve, engendra ou determina um tipo específico de pensamento significa adotar uma abordagem desenvolvimental e investigar o potencial mediacional da linguagem oral ou escrita, como instrumento, ou seja, explicitar o modo como os sistemas simbólicos ao serem apropriados interagem com os sistemas já desenvolvidos e quais são os papéis desempenhados. Estabelecendo a distinção entre Depoimento 28 - Julho de 2012 10 Suplemento Pedagógico APASE Depoimento “Porque tem as quebras, os recortes, algumas peças com defeito”. Solicito que FRA resolva o problema na forma escrita. Ele pensa um pouco, coça a cabeça e fala: “Essa Matemática nem sempre dá muito certo para mim”. Incentivo-o a resolver o problema e mostrar onde “não dá certo”. Ele afirma que a professora ensinara que, para calcular um percentual sobre determinada quantidade, bastava multiplicar esses fatores entre si e eliminar duas casas decimais. Segundo ele, sempre se atrapalhava e não entendia porque tinha que “cortar” as duas casas decimais. Com alguma dificuldade, depois de apagar várias vezes, chega ao resultado 2940. Pergunto a ele se não falta algo: “Xii, esqueci de cortar as duas casas”. Mas, no resultado são 29 centavos, reais ou o quê, eu questiono. Fazer Matemática impõe pensar em como conceber um cenário no qual os traços essenciais do trabalho na disciplina sejam respeitados, levando-se em conta os conhecimentos dos alunos. Isto implica que um processo de produção do conhecimento matemático se desenvolve com os conhecimentos e instrumentos de que se dispõe, ou seja, há que se considerar a noção de provisoriedade da concepção de conhecimento que sustentamos. Note-se que, ao fazer dez agrupamentos de vinte centavos e depois estender esse raciocínio para dez grupos de um centavo, FRA constrói um processo de redução à unidade para depois tentar uma generalização que resolva o problema em definitivo. Assim, as heurísticas desenvolvidas por FRA A partir das heurísticas desenvolvidas por ANT seria possível explorar também a seguinte situação relacionada com a noção de percentual em sua representação fracionária: 14% = 14/100 e 14/100 X 2,10 = 29,40/100 = 0,294 = R$ 0,29. Outra situação a ser explorada seria o arredondamento, destacando-se que, tanto neste caso como no anterior, a confusão com o corte de casas não se coloca e seria possível trabalhar ainda a idéia de que: 14% = 14/100 = 0,14 e 0,14 X 2,10 = 0,2940 = R$ 0,29. A situação didática analisada aponta para o fato de que a experiência cotidiana do educando posto em relação dialógica parece enriquecer os fatos matemáticos de significado. Nesse sentido, a oralidade e a dialogia exercem o papel importante podem ser exploradas usando-se as noções de singular e plural: 1% = 2,10 : 100 = 0,021 e 14% = 14 X 0,021 = 0,294 ou seja, R$ 0,29. Seria uma boa oportunidade para explicitar o significado das casas decimais após a vírgula e o fato de que, no singular, (um) a ordem dos milésimos pode não fazer diferença, mas que numa situação de plural (muitos) o cálculo percentual pode implicar na desconsideração de que dez milésimos no sistema monetário correspondem a um centavo e alterar o resultado. Isso é comum, por exemplo, na aferição do preço dos combustíveis nos postos, o que permitiria uma discussão política muito interessante acerca da justiça dessa terceira casa decimal, levando-se em conta que o sistema monetário funciona com reais (inteiros) e centavos (centésimos). de facilitar a compreensão dessas heurísticas por parte do educador, sendo que o próprio significado do problema encaminha o desenvolvimento de uma estratégia informal, próxima à concepção que o educando tem da situação matemática, mas que respeita as propriedades básicas do modelo matemático em questão. A abordagem constante de situações dialogadas dessa natureza poderia eventualmente levar à generalização de um procedimento, fazendo da lógica da técnica operatória algo mais transparente para o educando. NIL é outro educando da EJA que lida bem com os fatos matemáticos, enquanto cálculo mental, mas que tem dificuldade para lidar com a representação formal. Ao acompanhar a sua tentativa de resolver um problema sobre esse conteúdo, verificamos como era perspicaz e perseverante na busca de “Pois é, eu sempre me confundo. Sei que são 29 centavos porque já fiz de cabeça. Ah, esqueci de contar duas casas e pôr a vírgula, depois”. Observe-se que, no final dessa situação, a matemática escolarizada constitui-se em verdadeiro ritual. Esquecido um detalhe, o resultado não confere. Infelizmente, episódios como esses não são raros nas aulas de Matemática de ensino regular ou de EJA. E evidenciam consequências para a organização do trabalho pedagógico. Num sentido, a oralidade permite expressar e interpretar o que se vê, ouve ou se lê de forma aproximada ou precisa. Noutro, os elos de raciocínio matemático apoiam-se na língua materna, na sua organização sintática e em seu poder dedutivo. O estabelecimento de uma relação dialógica na sala de aula de ensino fundamental deve partir do pressuposto de que não basta a reprodução mecânica dos procedimentos escolares e nem a paciência para explicar, novamente, se usarmos os mesmos recursos didáticos e argumentos científicos. É fundamental que os educandos sejam envolvidos num processo de ressignificação dos conceitos, estabelecendo ligações entre o sentido e o significado dos conceitos matemáticos, tenham domínio sobre eles e que possam relacioná-los com aqueles que, juntamente com seus colegas, utilizam nas atividades não escolares. soluções. O problema era o seguinte: “Um garoto vende cachorro-quente a R$ 3,00 a unidade e bauru a R$ 4,00 a unidade. Certo dia ele vendeu um total de 12 lanches e arrecadou R$ 41,00. Quantos lanches de cada tipo ele vendeu?” A solução que ele desenvolve é inusitada, mas lógica: “Como são 12 lanches, imagino que todos são cachorros-quentes, a 3 reais dão 36. Os 5 reais que sobram eu sei que tenho que pôr um real a mais em cada bauru. São 7 cachorrosquentes e 5 baurus”. Na prática, o que ele verbaliza poderia ser traduzido, na forma aritmética, como segue: 12 X 3 = 36; para 41, faltam 5; então, são 7 cachorros-quentes (7 X 3 = 21) e 5 baurus (5 X 4 = 20), isto é, uma heurística decorrente de 41: 12 = 3 (resto 5). Note-se que se valendo de argumentos meramente aritméticos, esse problema poderia ser trabalhado inclusive com as crianças das séries iniciais do ensino fundamental. Tratase de considerar que, geralmente, o conhecimento anterior tem alcance limitado e que os “erros” têm papel a desempenhar na constituição do conhecimento novo. Essa maneira específica de conhecer, esse “conhecimento anterior” quase sempre bemsucedido em determinado domínio de ações, mas em outros, não, é a fonte dos erros que possibilitam a manifestação dos obstáculos. Essa possibilidade somente se concretiza nos limites de uma ação dialogada que considere as relações entre o oral e o escrito na aprendizagem matemática e que possa permitir, inclusive, a experimentação inicial através do levantamento e da verificação de hipóteses num esquema de tentativa e erro para, a posteriori, desenvolver o modelo algébrico como generalização. Por exceder no simbolismo e na tentativa de desenvolvimento precoce do pensamento algorítmico perdem-se oportunidades excelentes para o incentivo à criatividade, ao pensar autônomo, ao jogar com a Matemática, enfim, inviabiliza-se o pleno desenvolvimento do raciocínio lógicoabstrato tão alardeado nos planos de ensino, além de se perder uma dimensão Suplemento Pedagógico APASE Considerações Finais Envolver um educando num processo de alfabetização matemática não se resume em fazê-lo armazenar resultados na mente mediante procedimentos repetitivos, previsíveis e treinados. Mais Resenhas Para aprender matemática LORENZATO, S. 140 págs., Campinas, SP: Ed. Autores Associados, 2010. O livro baseia-se no reconhecimento de que a metodologia de ensino empregada pelo professor é determinante para o desempenho de seus alunos, tanto cognitiva como afetivamente. O autor afirma que dar aulas é diferente de ensinar, pois ensinar é dar condições para que o aluno construa seu próprio conhecimento; salienta a concepção de que há ensino somente quando, em decorrência dele, houver a aprendizagem. Fala que é possível dar aula sem conhecer, entretanto não é possível ensinar sem conhecer; decorre daí que, ninguém aprende com aquele que dá aulas sobre o que não conhece. Deixa claro que, não conhecer o assunto a ser ensinado não gera direitos ao professor de omiti-lo, mas sim, o inevitável dever de aprender ainda mais. Enfoca alguns princípios educacionais gerais fundamentais a toda prática docente e oferece várias sugestões de atividades e de materiais didáticos, com a intenção de deflagrar no leitor, uma reflexão sobre sua própria prática pedagógica voltada, tanto aos professores que ensinam matemática como aos cursos de formação de professores para os ensinos fundamental e médio. Afirma que, valorizar a experiência do magistério, além de insubstituível, é também necessário para aqueles que desejam aprender, de modo significativo, a arte de ensinar e que, ao ensinar, inevitavelmente ele aprende com seus alunos. Este livro nasceu das dificuldades vivenciadas por docentes em operacionalizar princípios didáticos fundamentais à prática pedagógica como: aproveitar a vivência elaboração do conhecimento matemático. É pela valorização das elaborações dos alunos que o professor pode compreender melhor como se desenvolve o raciocínio do educando, o que pode facilitar a preparação das aulas e a proposição de atividades consentâneas ao seu desenvolvimento intelectual. Quando tratados isoladamente no currículo, os fatos matemáticos não são plenamente compreendidos e nem são incorporados pelos educandos como instrumentos apropriados para a resolução de problemas do cotidiano e para a formação de outros conceitos de uso social, úteis para a melhoria da formação intelectual. As conexões que os educandos logram estabelecer entre os diversos temas da Matemática, destes com as demais áreas do conhecimento e com as situações do cotidiano é que vão determinar o significado da atividade matemática. Impõe-se, então, ao educador matemático a certeza de que a alfabetização matemática é uma atividade social, cuja objetivação deve contemplar a interação entre os sujeitos em diversas formas de comunicação e expressão, isto é, respeitando-se as diferentes lógicas e formas de pensar. Referências BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1986. LORENZATO, S. Educação infantil e percepção matemática. Campinas, Autores Associados, 2005. NACARATO, A . M. ; MENGALI, B. L. da S.. & PASSOS, C. B. A Matemática nas séries iniciais do ensino fundamental: tecendo os fios do aprender. Belo Horizonte, Autêntica, 2009. THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo, Cortez, 2008. (*) Departamento de Didática FFC – UNESP – Campus de Marília dos alunos, favorecer a experimentação e a descoberta, historiar o ensino, valorizar erros e dúvidas do aluno, ensinar integradamente aritmética, geometria e álgebra, respeitando as diferenças individuais, enfatizando os porquês dos alunos, explorando as aplicações de matemática. Explica que, antes de lidarem com objetos matemáticos, as pessoas precisam lidar com objetos físicos e que, não começar o ensino pelo concreto é ir contra a natureza humana e que fazer é mais forte que ver ou ouvir e, para se alcançar a abstração é preciso começar pelo concreto, sendo este o caminho para a formação de conceitos e, só então, ir ao registro escrito do que foi vivenciado; finalmente vem a linguagem matemática, com seus símbolos próprios. Explica que a descoberta é fundamental no ensino da matemática, pois, quando o aluno consegue fazer descobertas, surge, então, o gosto pela aprendizagem, sendo este o caminho mais eficiente para atingi-la, já que a descoberta possibilita a reconstrução do conhecimento, valorizando a compreensão. O emprego da descoberta como recurso didático eficiente para a aprendizagem tem sido recomendado por inúmeros e famosos educadores, por reconhecerem que aprender é ato a ser realizado pelo aprendiz. Este livro apresenta vários exemplos de situações verídicas, de atividades já testadas em sala de aula e de materiais didáticos facilmente reproduzíveis por alunos e docentes; sua linguagem é simples, direta e dispensa conhecimentos prévios da matemática. Finalizando, o autor lembra que: “a qualidade da aprendizagem dos alunos depende muito da qualidade do ensino que lhes é proporcionado”. Cleide Comi - Supervisora de Ensino - São Paulo 11 28 - Julho de 2012 fundamental do pensamento matemático que é o seu aspecto lúdico, de jogar com as relações matemáticas. Na verdade, os alunos por vezes até se apropriam da situação matemática, mas mesmo os que conseguem resolvê-la com alguma competência não compreendem o seu significado, transferindo esse conhecimento para situações práticas de resolução de problemas. do que isso, significa prepará-lo para participar do processo que possibilita o estabelecimento do conhecimento. Por sua vez, é a relação dialógica que permite a negociação do espectro de significados com vistas à reelaboração de procedimentos aritméticos de modo a torná-los mais gerais, menos dependentes de variáveis contextuais e menos sujeitos a erros de diversas naturezas. Ter clareza de que o aluno desenvolve o raciocínio lógico participando de atividades, agindo e refletindo sobre a realidade que o cerca, usando ativamente as informações de que dispõe constitui-se em um importante passo nessa direção. Nesse sentido, a alfabetização deve se pautar em situações matemáticas capazes de possibilitar a participação ativa na Depoimento 28 - Julho de 2012 12 Resenhas Educação Matemática: da teoria à prática D’AMBROSIO, U. 120 págs., Campinas, SP: Papirus, 2010. Docente em Educação Matemática do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da UNESP de Rio Claro, o mestre Ubiratan D’Ambrosio, neste livro apresenta o seu modo de ver, interpretar, de relacionar matemática com educação. Ele utiliza-se da abordagem holística para propor uma educação matemática para a paz. Nesta direção, D’Ambrósio faz referência a vários autores, entre eles Julio Cesar de Melo e Souza que usa o pseudônimo de Malba Tahan e se utiliza da matemática como veículo de ensinamentos superiores de moral, amor e respeito pelo diferente, ao contrário de alguns matemáticos que usam o trinômio de 2.o grau para ensinar a trajetória de um projétil de canhão. O enfoque holístico do autor incorpora o sensorial, o intuitivo, o emocional e o racional à vontade individual de sobrevivência e transcendência. Trata-se de uma constância perceptiva que, nos primeiros meses de vida, suave e inconscientemente constitui a complexa aquisição de conhecimento. Essa aquisição teve início quando, passada a fase de sobrevivência, o homo sapiens, pelo intercâmbio com os outros e pela comunicação, adquiriu a capacidade de captar e processar informações de uma mesma realidade. O que faz do homem um ser especial na natureza é que este relacionamento com o outro, vital para aquisição do conhecimento, é também a fonte para a formação da identidade. Apresenta ainda a história da matemática ocidental desde a pré-história até o século XX, passando pela Antiguidade Mediterrânea, Grécia, Roma, Idade Média e Islã, Renascimento, formação de colônias e de impérios até a era de industrialização. Graças às obras de Sócrates, Platão e Aristóteles, conhecemos a matemática grega, de grande relevância por possuir elementos que os gregos desenvolveram a partir desses filósofos. Pitágoras e Tales de Mileto nos anos 600 a 400 a.C. foram os pioneiros nos avanços da matemática grega. No final do século IV a.C., Euclides escreveu uma imensa obra, ou seja, organizou em treze livros toda a matemática até então conhecida. Quanto à fase atual da civilização, em que os meios de comunicação e a informática são instrumentos indispensáveis na vida humana, o autor defende um ensino de matemática com base na história da contextualização dessa ciência, com utilização dos meios de comunicação modernos e vínculo na realidade. Para D’Ambrosio, atingir a paz total através do respeito, solidariedade e cooperação é a missão maior dos educadores, em especial dos matemáticos. Temas como currículo, avaliação, pesquisa, ética, política, globalização e educação indígena são também tratados nesta obra. O professor de matemática interessado na seleção de conteúdos e desenvolvimento de novas metodologias voltadas para o contexto social e criatividade do educando, na medida em que pensa e se direciona para a matemática do futuro, encontra na abordagem de Ubiratan D’Ambrosio a fundamentação para um estilo novo, que substitui o ensino-aprendizagem baseado apenas em causa-efeito e torna a aula mais moderna e interessante, tanto quanto a TV, o computador e outros tantos recursos da informática. Maria José A. Rocha R. da Costa - Supervisora de Ensino - Sorocaba Suplemento Pedagógico APASE Matemática Escolar e Matemática da Vida Cotidiana GIARDINETTO, J. R. B. 129 págs., Campinas, SP: Autores Associados, 1999. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; V 65). O ensino de matemática se tornou um tema polêmico que aguça os pesquisadores da educação e assusta os políticos, pois os índices obtidos em quaisquer avaliações são insatisfatórios e/ou desastrosos, gerando descontentamento quanto ao ensino hodierno. Diante dessa realidade, o livro “Matemática Escolar e matemática da vida cotidiana”, de José Roberto B. Giarinetto, publicado em 1999, revela-se uma valiosa contribuição, já que nos fornece subsídios necessários para uma reflexão aprofundada sobre a relação entre o saber escolar e o saber cotidiano, resultando na elucidação de aspectos essenciais para a compreensão dessa relação, tida pelo autor como não conflitante, vez que sua visão está ancorada numa concepção histórico-social. O autor defende a ideia de que é necessário valorizar o conhecimento cotidiano no processo pedagógico. Contudo, a polarização entre “saber cotidiano” e “saber escolar”, enfatizando-se de forma unilateral a utilização do saber cotidiano, e gerando, com isso, o fenômeno da supervalorização desse saber em detrimento da sua relação com o saber escolar, resulta esvaziamento e, consequentemente, o empobrecimento do trabalho pedagógico, uma vez que a vida cotidiana se revela um terreno propício para a alienação. Nesse sentido, o autor nos leva a perceber os equívocos gerados por se condicionar a aprendizagem escolar aos limites do cotidiano, resultando na depreciação da importância da escola e do saber elaborado e impedindo uma reflexão quanto à necessidade de se garantir a socialização do saber escolar. É, pois, papel da escola garantir a apropriação do saber sistematizado e do saber mais elaborado, devendo levar em conta o conhecimento cotidiano. Contudo, esse deve ser visto como um impulso inicial, pois senão limita o indivíduo que não conseguirá sair dos limites do pragmatismo. Em suma, a tese do autor atinge a dimensão de superação do caráter fetichizador que se faz presente no modo prático-utilitário de interpretação da realidade. Gisele Kemp Galdino Dantas - Supervisor de Ensino - DE Leste 1 Outras Sugestões - LORENZATO, Sergio – Para aprender matemática. Campinas, Ed. Autores Associados - KAMII, Constance – A criança e o número. Campinas, Ed. Papirus --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Avaliação do Suplemento Pedagógico Prezado Leitor, a Comissão Organizadora quer conhecer a sua opinião sobre esta edição do Suplemento Pedagógico intitulada “Alfabetização Matemática - Desvendando o Tabu”. Remeta esta avaliação preenchida para a sede. O Sindicato-APASE agradece a sua participação! Nome: .................................................................................................. .............................................................................................................. Cargo/função: ......................................... Aposentado: Sim ( ) Não ( ) Instituição: .................................... Município: .................................... 1- A forma de abordagem do Suplemento “Alfabetização Matemática Desvendando o Tabu”, correspondeu a sua expectativa? Sim ( ) Não ( ) Comentários: .............................................................. .............................................................................................................. .............................................................................................................. .............................................................................................................. 2- Na sua opinião, quais os pontos principais que merecem destaque? .............................................................................................................. .............................................................................................................. .............................................................................................................. 3- Ainda sobre o tema, relacione os pontos não abordados no Suplemento. .............................................................................................................. .............................................................................................................. .............................................................................................................. 4- Apresente sugestões de temas para as futuras edições do Suplemento. .............................................................................................................. .............................................................................................................. .............................................................................................................. 5- Faça um comentário desta edição do Suplemento Pedagógico. .............................................................................................................. .............................................................................................................. .............................................................................................................. 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