GESTRA - Gestão de Trabalhos para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias. Volume 2, 2012.
ISSN 2176-8994
O cômico em Macunaíma de Mário de Andrade - Luciana Almeida Santos
O cômico em Macunaíma de Mário de Andrade
Luciana Almeida Santos1
1- Introdução
“Todos nós herdamos, do sangue
lusitano, uma boa dosagem de lirismo,
... além da sífilis, é claro!”
(Chico Buarque & Rui Guerra, “Fado tropical”).
O presente trabalho possui como escopo, dar continuidade à análise de procedimentos e funções do cômico na obra Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, estando
intimamente atrelado ao projeto PIIC (Programa de Inclusão em Iniciação Científica), do
qual fui bolsista sob a orientação da Profa. Dra. Jacqueline Ramos2 no período compreendido entre 2011-2012. Neste artigo, nosso estudo foca a pluralidade de procedimentos e funções da comicidade para fazer jus à dimensão do livro, como também promove
um estudo arrolado em pormenores de uma obra que ultrapassa gerações, que é lida
e relida, estudada, criticada e que ainda assim, não para de envolver e instigar o leitor.
Entretanto, cabe ressaltar que a recepção de Macunaíma foi problemática e monopolizada por críticas, em sua grande maioria, mal interpretadas, ocorrências que deixavam
Mário macambúzio, tendo como base suas correspondências epistolares.
Apresentando uma breve síntese da obra, Macunaíma é negro e índio da tribo Tapanhumas3 e, a princípio convive com sua mãe, seus irmãos Maanape e Jiguê e Sofará,
mulher deste. “O herói de nossa gente” possui características virtuosas e reprováveis e,
inclusive, é a alegoria do próprio brasileiro que não tem ainda um caráter amadurecido
e que só pensa em se deleitar nos prazeres carnais e aventuras da vida. Ele acaba matando sua mãe por engano, envolve-se com várias mulheres e, finalmente, apaixona-se
por Ci a Mãe do Mato, que após seis meses tem um filho seu que não demora muito a
morrer, fazendo-a seguir o mesmo destino. A perda da muiraquitã dada por Ci desencadeia uma série de ações que culminam na ida a São Paulo, afinal de contas, o herói
marioandradiano tem que sentir o ar paulistano, que seu criador primeiramente inspirou
em 1893 e deu seu último suspiro em 1945. Sendo na metrópole brasileira que o índio
Graduanda em Letras- Português pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), bolsista do Programa de Inclusão
em Iniciação Científica (PIIC) intitulado “O cômico na obra Macunaíma de Mário de Andrade” sob a orientação da
Profa. Dra. Jacqueline Ramos. E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5223360112790744
1
2
Professora Adjunta III da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e orientadora deste trabalho.
3
Significa negro.
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conhece a máquina e todas as inovações trazidas pela revolução tecnológica.
No decorrer da pesquisa, ocorreu-me a necessidade de desvelamento de outras
teorias, as quais seriam rijamente pertinentes para o estudo que pretendia dar curso.
Dentre os suportes teóricos que guiam essa proposta temos Bergson (1983) em que o
cômico é considerado um elemento de correção social ajustando a conduta do indivíduo que vai de encontro com as regras sociais; Freud (1977) que considera o cômico
sob a ótica do alívio de tensões, num sentido libertário; Duarte (2006) no tocante à ironia e Bakhtin (2000) no que se refere ao grotesco, outra face da dimensão humana.
2- Macunaíma: a moldura cômica da sociedade brasileira
Conforme Bosi (1988), compreender Macunaíma é perscrutar as motivações de
narrar, de interpretar. Compreender o não compreensível do herói é deixarmos nos
desdobrar em várias direções pelos Brasis que coexistem dentro de uma unidade chamada nação brasileira, mas que juntos incorporam uma “fusão de regionalismos”. Ora,
não são regiões dispersas, são regiões que se ligam e formam “um Brasil só” e, que,
no entanto, nos fornece uma antologia do que somos por meio da perspectiva cômica.
Mário ainda diz que sempre imaginou “fazer um poema se ocupando dos homens sem
caráter nenhum, produto mesmo do caos humano, mexendo-se no abismo brasileiro,
reflexo de elementos disparados da arritmia gostosa a indicar o maravilhoso destino de
nossa gente” (ANDRADE apud LOPEZ, 1978, p. 267). Em Macu, como seu criador o
chamava, subjaz o desejo incômodo de justapor todas as ideias que sobrevoavam sua
consciência, exteriorizadas por uma célebre osmose nos papéis que ao final de “seis
dias ininterruptos” contabilizavam uma labuta imponente.
Em suma, o capítulo inicial lança mão da descrição do nascimento do herói juntamente com uma sintética amostra de sua caracterização física e moral. Esta, por
exemplo, pouco se alterará adiante:
no fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era
preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de
Macunaíma. (ANDRADE, 2007, p. 13)
Inicialmente, os índios habitavam nossas terras e, em seguida, chegam os portugueses corrompendo a cultura indígena com seus vícios, costumes e valores. O lugar
em que nasce Macunaíma, num “mato-virgem’’, leva a pensarmos numa relação com os
primórdios dessa época colonial. Esse lugar é o nosso Brasil antes da chegada dos euGrupo de pesquisa em Linguagem, Enunciação e Discurso para o ensino da língua portuguesa (LED) - http://led-ufs.net
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ropeus, espaço ainda não “civilizado”. A mãe de Macunaíma possuída pelo silêncio da
noite e pelo susto que a escuridão lhe provocara dá a luz a uma “criança feia” e, como
lembra Fischer, “a comicidade interessa-se pelo feio, em qualquer uma de suas manifestações’’ (apud FREUD, 1977, p. 22). Assim, o que for feio, produzirá comicidade, pois
o feio encontra-se no âmbito do ridículo, do que é repudiado. Dialogando com Bergson,
para este os defeitos alheios também nos fariam rir, na medida em que expressam uma
incompatibilidade com determinado grupo. Com o nosso herói, essa incompatibilidade
é notória, pois ele é a saturação de características negativas, é quem rouba várias
vezes as mulheres de seu irmão Jiguê, joga trapaças e instaura corriqueiras mentiras
para com os dois irmãos.
Numa outra cena, são evidenciadas outras características cômicas do herói: “Já
na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: Ä Ai! que preguiça...!” (ANDRADE, 2007, p.13). A
respeito disso, há pouco comentamos o que Bersgon nos diz a respeito dos defeitos,
pois estes são tidos como algo não habitual. No caso do protagonista, o que nos provoca o riso não é apenas o fato de ele não falar, mas sim, falar apenas “Ai! Que preguiça!’’.
A função do cômico aqui nos orienta para uma revelação por parte dessa expressão,
que ele é preguiçoso. Isso seria revelador no caso brasileiro? Talvez o intento do autor
seja o de ressaltar uma das nossas marcas, algo que, se observarmos, encontra-se
cristalizada na Bahia, dirigindo-se aos baianos, ou até mesmo como os paulistas costumam chamar os cariocas.
Estabelecendo um paralelo com o excerto acima, certa vez o herói
matutou matutou e resolveu. Fazia coleção de palavras- feias de que
gostava tanto. Se aplicou. Num átimo reuniu milietas delas em todas as
falas vivas e até nas línguas grega e latina que estava estudando um bocado. A coleção italiana era completa, com palavras pra todas as horas
do dia [...]. (ANDRADE, 2007, p. 71)
Para um indivíduo que nasce e passa seis anos para finalmente falar, sendo
que quando o faz responde nada mais que “ai, que preguiça”, expressão que no decorrer do livro transformar-se-á em bordão, parece um tanto impactante que ele torne-se
um poliglota, ainda que estude bastante. Sob o prisma do nonsense, detectamos um
estranhamento que, na realidade, soa como absurdo. Entretanto, o cômico presente
“nas características intelectuais e mentais é também, evidentemente, o resultado de
uma comparação entre essa pessoa e meu próprio eu, embora, bastante curiosamente,
essa comparação produza, via de regra, um resultado oposto àquele no caso de um
movimento ou ação cômica” (FREUD, 1977, p. 221). Por isso a geração de comicidade
decorre da distinção, seja em menor ou elevado grau, daquele que aparenta intelectuGrupo de pesquisa em Linguagem, Enunciação e Discurso para o ensino da língua portuguesa (LED) - http://led-ufs.net
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alidade e aquele que a assiste.
Encontramos também aqui o que Bergson chama de “mecânico calcado no vivo’’,
pois no decorrer do livro Macunaíma tende a repetir essa expressão evidenciando uma
acentuada automaticidade, procedimento que, por seu turno, já foi explorado anteriormente. Como Mário afirmara em cartas, as percepções registradas no livro são pessimistas, sendo o livro uma sátira, havendo uma intenção propícia em ressaltar características negativas do brasileiro e é desse modo com a preguiça, algo que se reprova e
se ridiculariza.
A descrição, a seguir, delata que o herói além de mandrião, é distraído, esquecido: “Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de
mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha,
espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.” (ANDRADE, 2007, p.13). Tal esquecimento é
ocasionado pelo “desvio” sobre o qual Bergson discorre:
Alguém, a correr pela rua, tropeça e cai: os transeuntes riem. Não se riria
dele, acho eu, caso se pudesse supor que de repente lhe veio a vontade
de sentar-se no chão. Ri-se porque a pessoa sentou-se sem querer. Não
é, pois, a mudança brusca de atitude o que causa riso, mas o que há
de involuntário na mudança, é o desajeitamento. Talvez houvesse uma
pedra no caminho. Era preciso mudar o passo ou contornar o obstáculo.
Mas por falta de agilidade, por desvio ou obstinação do corpo, por certo
efeito de rigidez ou de velocidade adquiridas, os músculos continuaram
realizando o mesmo movimento, quando as circunstâncias exigiam coisa diferente. Por isso a pessoa caiu, e disso é que os passantes riram.
(BERGSON, 1983, p.9)
Tal desvio desenfreia ações inconscientes, necessitando-se de uma “elasticidade” para conseguir contornar situações desse tipo evitando que elas aconteçam. Essa
distração implica numa rigidez, que ocasiona uma acomodação muitas vezes, característica natural de serem encontradas em crianças e que, por sucederem com elas,
são passíveis de aceitação. Nesse caso, o comportamento ideal envolveria “tensão” e
“elasticidade”, variantes que permitem uma relação consensual entre o indivíduo e a sociedade. A tensão seria a capacidade de estar atento a todos os acontecimentos ao seu
redor, sem se deixar cair numa situação constrangedora, de estar num estado de vigília, preparado para qualquer coisa que venha a acontecer. A elasticidade relaciona-se à
capacidade de adaptação que as situações exigem, isto é, é preciso estar enquadrado
ao meio social, atendendo às regras que são impostas. Dessa forma, se o indivíduo
age atento e conscientemente, não será objeto de riso e ainda estará preenchendo os
requisitos primordiais que a sociedade impõe para estabilizar a ordem.
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Ao “mijar”, Macunaíma estabelece uma imagem grotesca, mas natural ao ciclo
da vida. Sobre isso Bakhtin vai nos dizer que “é em atos tais como o coito, a gravidez,
o parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais, que o
corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites” (BAKHTIN, 2010, p. 23). Aqui se encontra presente o grotesco, que está
relacionado a elementos orgânicos do corpo, ao baixo. O ato de “mijar” conduz ao fato
de que o corpo é incompleto, pois ele precisa estar constantemente satisfazendo suas
necessidades naturais, sendo aqui que percebemos a incessante construção do corpo,
indo além dos seus limites.
O corpo descobre seu lugar no mundo e faz com que a sua interioridade esteja
em contato com esse mundo externo. Então, Bakhtin vem nos mostrar uma forma de
entender a dimensão humana, que somos corpo, mas não estáveis, estamos em constante transformação. Não temos a estabilização do corpo, e é justamente esse mundo
do baixo que o cômico vai retratar. Nós negamos o nojento e o grotesco em troca de um
ideal como se ele fosse superior. Repudiamos essas coisas e somos grotescos, pois
acabamos na podridão, no nada. Já no tocante a esse sonho envolvendo “imoralidades
estrambólicas”, Bahktin vai discutir que:
As grosserias e obscenidades modernas conservaram as sobrevivências
petrificadas e puramente negativas dessa concepção do corpo. Essas
grosserias (nas suas múltiplas variantes) ou expressões como “vai à...”,
humilham o destinatário segundo o método grotesco, isto é, elas o enviam para o baixo corporal absoluto, para a região dos órgãos genitais e
do parto, para o tumulo corporal (ou os infernos corporais) onde ele será
destruído e de novo gerado. (BAKHTIN, 2010, p. 25)
Essas grosserias e obscenidades correspondem às imoralidades que perpassam
nos sonhos do herói que, por conseguinte, estão se referindo a alguém ou algo e transportam esse objeto alvo que não sabemos qual seja, para regiões inferiores do corpo,
momento em que ocorre a geração de um círculo vicioso, onde tudo desaparece, mas
ressurge novamente, semelhantemente à vida. Partindo desse pressuposto, Proença
infere que “o que existe em Macunaíma é uma sátira à imoralidade. O próprio herói
termina vítima de seus ímpetos sexuais, e morre sem glória, os amores esquecidos,
exceto o que não teve companheiro porque foi amor primeiro” (PROENÇA, 1977, p.17).
Enfatizando-se essa característica particular e corriqueira em todo o caminho do livro,
o herói é a caricaturização do homem garanhão, viciado nos prazeres carnais, que se
presta às imoralidades sem nenhum pudor, apenas se interessando em suprir seus
desejos, independente de qual seja sua natureza. Esse comportamento deturpado vai
de encontro às regras de uma sociedade em que o sexo ainda é considerado tabu, acabando por desequilibrá-la. O riso então surgiria para Bergson como um elemento que
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serviria para a correção social a fim de reestabilizar a ordem vigente.
Já que a intenção é de rebaixar o imoral, preenchendo essa afirmação o que
seria mais imoral? A cidade que transforma todos em coisa, que reduz o ser humano
a uma máquina ou um índio que é puro desejo inocente e que faz o que bem pretende
sem deixar ser manipulado por outrem? O herói é baseado na inocência e a cidade na
cobiça de adquirir um vultoso poder econômico à custa do trabalho e da alienação do
ser humano.
Ainda com relação ao sonho, Freud em seu livro intitulado A interpretação dos sonhos
cita o conteúdo do sonho imoral, a partir de uma observação realizada por Jessen, dizendo que este,
acredita que as representações involuntárias, tanto nos sonhos como no
estado de vigília, e também nos estados febris e outras situações de delírio, “têm o caráter de uma atividade volitiva que foi posta em repouso e de
uma sucessão mais ou menos mecânica de imagens e representações
provocadas por impulsos internos”. Tudo o que um sonho imoral prova
quanto à vida mental do sonhador é que, segundo a visão de Jessen, em
alguma ocasião ele teve conhecimento do conteúdo de representações
em questão; certamente não constitui evidência de um impulso mental
próprio do sonhador. (apud FREUD, 1900, p. 75)
Percebe-se que esse tipo de sonho imoral, se pauta numa vontade interior que,
num certo momento, foi cessada, mas que é acompanhada por essa “sucessão mecânica de imagens” que seria o hábito contínuo das situações imorais que passam no sonho
acontecerem na vida real. Essas “representações provocadas por impulsos internos”
são na verdade, um desejo do protagonista e que acaba por se realizar no seu sonho.
Dessa forma, o sonho imoral está ligado a algo que se processa ou já se processou
frequentemente na vida do protagonista e que acaba deixando certos “vestígios”, fazendo-o reproduzir a cena novamente, no âmbito dos sonhos, isto é, pode-se obter uma
vontade reprimida, mas que é apreendida.
Ao dar patadas no ar, Macunaíma age de modo infantil, pois esse é um comportamento típico de crianças, uma imagem que, por sua vez, representa o oposto do conteúdo de seus sonhos. Encontra-se aqui, uma contraposição, entre o inocente e o malicioso. Será que é possível caracterizarmos um caráter que se mostra com elementos
tão distintos? Esses elementos incompatíveis agregados num mesmo corpo, num mesmo caráter é o reflexo de um Brasil de contradições, no qual começa a despontar com
a industrialização e a intensificar suas desigualdades sociais e disparidades regionais.
Com isso, a nosso ver, Mário à época que escreveu Macunaíma, parecia desmotivado,
triste diante dos problemas que assolavam o Brasil, por isso a visão pessimista, durante
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todo o decurso do livro que ele crava, tendo em vista que toda a sua vida repousava
numa visão positiva do brasileiro, como o próprio afirmara.
É plausível esse olhar pessimista se analisarmos os problemas que nasciam e
se agravavam no Brasil à época do livro, como os que Mário coloca em pauta durante
o enredo, conseguindo visualizar consequências futuras, como no momento em que
ele diz que “em breve seremos novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do
Norte” (ANDRADE, 2007, p. 106), pois estávamos entre a 1ª e a 2ª guerra, sendo que, a
essa época, quem despontava como a nação belicamente potente era a Inglaterra, então ele se apropria disso para criar uma brincadeira com algo que realmente aconteceu.
Somos controlados por esses povos até hoje, prova que demonstra que o folclorista já
estava vislumbrando esse movimento de influência, de domínio, o qual iria se refletir
nas décadas posteriores.
Agindo constantemente sob a égide de seus impulsos e caprichos, sinal esse
que aponta para uma prematuridade presente em várias atitudes do herói, certa vez
ele “pediu pra mãe que largasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma
choramingou o dia inteiro” (ANDRADE, 2007, p. 14). A obstinação veemente do herói,
só cessando suas vontades e manias quando tem seus desejos satisfeitos, confirma a
semelhança comum às atitudes infantis. Uma criança que está em fase de desenvolvimento, ainda está submetida à formação de seu caráter, pois essa paulatina formação
tenderá a aplicar modificações no decorrer de sua vida, amadurecendo-a, até formá-la
completamente. O que vemos no protagonista especificamente é essa característica
precoce, daí o fato de não haver um caráter propriamente dito, desempenhando atitudes que somente se justificam em se tratando de uma criança e que, “quando permanece fiel à sua natureza infantil, sua percepção fornece-nos um prazer puro que talvez
nos evoque levemente o cômico” (FREUD, 1977, p. 252).
Freud ainda estabelece que o duplo sentido ou jogo de palavras ocorre quando
não há fragmentação de sílabas, pois esse procedimento se dá do mesmo modo em
que essas palavras se encontram, sem alteração alguma em sua estrutura, e devido
a essas características, é possível que essas palavras expressem dois significados
distintos (FREUD, 1977, p. 52). O duplo sentido, no episódio citado acima, destina-se
a desenvolver uma similaridade entre a mandioca e o falo, condicionada mediante a
forma exterior que esses dois elementos contêm, criando assim, um teor jocoso que se
prolonga ao percebemos a persistência da mãe em não desgrudar da raiz.
O encontro com Ci é marcado por conflitos e estranhamento. O herói tenta seduzi-la, porém ela se irrita, lhe aplica uma sova e ocorre uma infestação de imagens
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grotescas, com sangue e gritos por todos os lados. Porém, a valentia de Ci não é prolongada e logo se rende aos braços do herói. E “nem bem seis meses passaram e a
Mãe do Mato pariu um filho encarnado” (ANDRADE, 2007, p. 34). A figuração de uma
mulher grávida, segundo Bakhtin (2010) é um dos pontos primordiais da imagem grotesca do corpo, na medida em que exibiria “dois corpos em um”. Na cena transcrita, há a
construção de uma imagem que nos leva a imaginar o estado no qual esses corpos se
embatem, em que “do primeiro se desprende sempre, de uma forma ou outra, um corpo
novo” (BAKHTIN, 2010, p. 23).
Destarte, Ci passa a ser idolatrada por gente de todos os cantos do Brasil e seu
filho de “cabeça chata”, adquire o fenótipo do pai. Para completar, Macunaíma achatava
a cabeça do curumim constantemente, embutindo na mentalidade do menino a necessidade de crescimento rápido para algo que é incrustado no pensamento de muitos brasileiros que sonham elevar-se aquisitivamente: “ir para São Paulo ganhar muito dinheiro”
(ANDRADE, 2007, p. 34). Cavalcanti Proença, em seu estudo sobre o livro, aborda que
conheceu a origem da cabeça achatada dos nordestinos “(...) o pai nordestino achata a
cabeça do filho batendo nela carinhosamente” (PROENÇA, 1977, p. 138).
Não demora muito e uma Cobra Preta suga o único peito de Ci e envenena o
curumim, quando este chupa o peito, acabando por morrer. Sobre isso, Bakhtin destaca
que “(...) o corpo é sempre de uma idade tão próxima quanto possível do nascimento ou
da morte: a primeira infância e a velhice, com ênfase posta na sua proximidade do ventre ou do túmulo, o seio que lhe deu a vida ou o que sepultou” (BAKHTIN, 2010, p. 23).
A análise desse autor mostra-se fortemente válida, visto que, assim como o peito de Ci
provavelmente serviu para alimentar seu curumim e proporcionar-lhe a vida, foi ele que
o tirou desse bem supremo, pois assim se manifesta o corpo, próximo aos dois ciclos
naturais: vida e morte, e que, portanto, são dois corpos inseridos num só, achando-se
simultaneamente.
Como forma de satisfação e lembrança eterna, Ci dá uma muiraquitã para o
homem que a transformara em mãe, subindo ao céu através de um cipó, virando uma
estrela: a Beta do Centauro. Por intermédio dessa circunstância, há um embate entre os
dois corpos: o que produz a vida e o que é gerado. A vida de Ci não fazia mais sentido
sem seu filho, por isso novamente deparamo-nos com o estágio circular pelo qual tudo
caminha: vida/morte/morte/renascimento. Berriel (1987) cita o dicionário do Folclore
Brasileiro de Câmara Cascudo, segundo o qual conceitua Ci como “a origem e hoje
preside ao destino das coisas que dela se originaram. O indígena não concebe nada
do que existe sem mãe” (CASCUDO apud BERRIEL, 1987, p. 20). No lugar em que é
enterrado o filho de ambos, nasce o guaraná, planta que se consumida, serve como
estimulante, causando mais ânimo e trabalhando melhor o cérebro. Tal ponto de vista
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tem a conotação de que a planta forneceria a intrepidez necessária para enfrentar as
moléstias que se encravavam no país, a título de exemplo, a erradicação total da febre
amarela.
Com a partida da mãe do mato o herói se acha enfeitiçado por ela, não conseguindo se envolver com nenhuma das icamiabas, pois elas “são sistematicamente virgens tanto que Jiguê um mulhereiro não consegue moçar nenhuma” (ANDRADE apud
LOPEZ, 1978, p. 250). Como alguém corajoso, que enlaça e domina todas as mulheres
que vê, vira alguém tão covarde? Aí é que está outra contradição cômica. Essa frequência com que nos deparamos com as contradições no livro é pelo fato de que “Macunaíma é uma contradição de si mesmo. O caráter que demonstra num capítulo, ele desfaz
noutro” (ANDRADE apud LOPEZ, 1978, p. 255). Conceitos como poder, independência,
podem ser centrais para caracterizá-la, tornando-se assim, sinônimos de Imperatriz,
Mãe do Mato. Atuando diferentemente das outras que o herói lançou, ela não se enreda
de imediato com o herói, mas subjuga-o com sua força.
Mais adiante, não obtendo a ajuda dos irmãos para construir uma casa na intenção de que todos pudessem residir, o protagonista acaba se enfurecendo e ordena a
metamorfose da colher num bichinho pondo-o dentro do pó de café propositalmente,
já que Maanape adorava a bebida quente. De primeiro, seu terno cuidado parece se
dar como legítimo, oriundo dos laços afetivos familiares, mas sua tênue boa vontade é
imediatamente revelada. Assim, ele manda que a “colher” morda o irmão quando ele
se aproximasse para ingerir o líquido. Logo Maanape chega à pensão e bebe o café,
enquanto que a colher já transformada em bichinho machuca sua língua e ele reage
dizendo: “Ai!”. O herói pergunta e afirma descaradamente e ironicamente: “— Está doendo, mano? Quando bichinho me pica não dói não” (ANDRADE, 2007, p. 63).
Examinando-se a cena, podemos ver que o empenho e preocupação de construir um lar para que todos pudessem conviver não é reconhecido e faz o herói se opor,
colocando atitudes condenáveis em prática. Ao imaginamos a dor que Maanape sente,
deparamo-nos com a crueldade do herói e seu evidente cinismo em afirmar algo que,
na realidade, processa-se em sentido contrário, pois sua atitude revela alguém não satisfeito com os hábitos dos irmãos, decidindo agir inescrupulosamente por meio de uma
vingança planejada. A esperteza em arquitetar seu projeto vingativo, articulando cada
passo, faz dele um trapaceiro ávido. Sua segunda réplica é, portanto, uma visível ironia,
sobretudo, porque é uma “recepção que perceba a duplicidade de sentido e a inversão
ou a diferença existente entre a mensagem enviada e a pretendida” (DUARTE, 2006,
p. 19). Assim, a compreensão surge quando comparamos o desejo real e a camuflação
desse desejo sob as vestes do sarcasmo.
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Como foi necessário perceber nas cenas aqui descritas, o gênero cômico desponta veementemente na obra marioandradiana, construindo inúmeras interfaces através
dos vários procedimentos que encontramos diante do que aqui foi exposto. Abarcando
uma série de funções, seja criticando dando a ver o que as pessoas não conseguem
visualizar na sociedade, mas de uma maneira descontraída, jocosa, que, de forma séria, reprimir-se-ia, como nos mostra outro lado da realidade humana com a presença do
grotesco, causa-nos uma sensação libertária e ridiculariza o reprovável.
Referências
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Ancona Porto Lopes, Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos; São Paulo, Secretaria
da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.
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BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Tradução de
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BERRIEL, Carlos Eduardo. Dimensões de Macunaíma: Filosofia, Gênero e Época. Tese
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PROENÇA, Manuel Cavalcanti, 1905-1966. Roteiro de Macunaíma. 4ª Ed. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília; INL, 1977.
Grupo de pesquisa em Linguagem, Enunciação e Discurso para o ensino da língua portuguesa (LED) - http://led-ufs.net
Texto disponível em: http://led-ufs.net/gestra/II/?file=12-Luciana-Almeida-Santos
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O cômico em Macunaíma de Mário de Andrade