REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADO NA MATEMÁTICA
ESCOLAR
Patrícia Lima da Silva¹
Brunna Sordi Stock²
RESUMO
No segundo semestre do ano de 2009, em uma das disciplinas obrigatórias do currículo
de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
promovemos a Oficina de Matemática para os alunos da 7ª série do Colégio de Aplicação da
UFRGS. Nesta oficina, nosso objetivo era tirar dúvidas sobre a matéria e auxiliar na
compreensão de conceitos de matemática, trabalhando juntamente com a professora titular da
série e com um professor orientador da Universidade. Ao abordarmos o conteúdo de
geometria plana, relacionado pontualmente ao cálculo de áreas e perímetro de retângulos e
triângulos, percebemos a dificuldade de alguns alunos em discernir o que era a altura de um
triângulo, para então calcular a sua área. A partir desta dificuldade buscamos refletir sobre
maneiras para que conseguíssemos relacionar a Matemática escolar com a do dia-a-dia, para
levar a noção de altura que os alunos já possuíam para dentro do contexto matemático, mais
especificamente para a identificação das alturas em triângulos.
Nesse artigo discutiremos como tentamos construir o conceito de altura com esses
alunos à partir do seu conhecimento prévio do conceito de altura, ilustrando situações que
ocorreram durante as oficinas e também analisando os materiais produzidos pelos alunos.
Mostraremos os resultados de nossa experiência com reflexões sobre a produção de
significados, de como é feita a apropriação de conceitos pelo aluno, como deve ser o
intermédio do professor e também questionamos a didática utilizada em sala de aula.
Para o estudo descrito a seguir buscamos apoio teórico tanto em leituras clássicas da
área de Educação Matemática, como no livro “Na vida dez, na escola zero” (Carraher, T. N.,
Carraher, D. W., E Schliemann, A. D., 1988), assim como em textos mais atuais, como as
reflexões sobre os diferentes ambientes de aprendizagem em “Cenários para investigação”
(Skovsmose, Ole, 2000). Além das ótimas referências já citadas acima, lemos outros
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excelentes textos para auxiliar as nossas reflexões. No período em que escrevemos esse artigo
contamos com a orientação do professor orientador da nossa Oficina no Colégio de Aplicação
da UFRGS, Doutor Marcus Vinícius de Azevedo Basso, a quem agradecemos por toda a
ajuda nesse estudo.
Esperamos que nosso estudo de caso e nossas observações acerca do assunto promovam
a reflexão de todos sobre a possibilidade de melhorias para a educação, especialmente a todos
os educadores para que ponderem sobre o andamento de sua aula e busquem ser críticos com
as experiências pelas quais passam diariamente, buscando sempre aprimorar o ensino em
qualquer disciplina do conhecimento.
PALAVRAS CHAVE: Significado; Matemática; Aprendizagem.
INTRODUÇÃO
“A descoberta pode não ser o caminho mais curto ou rápido para o ensino, mas é o mais
eficiente para a aprendizagem. É interessante notar que a descoberta possibilita a reconstrução
do conhecimento, quando necessário, porque valoriza a compreensão” (Lorenzato, 2006, p.
82).
A aula expositiva, utilizada na maioria das disciplinas tanto no Ensino Médio quanto no
Ensino Fundamental, é um tópico amplamente abordado nas discussões sobre didática e
processos de aprendizagem. Acreditamos que essa modalidade de aula possui prós e contras
para o professor e para o aluno, mas a questão que nos toca é: o aluno realmente reflete sobre
o que está sendo dito/escrito, ou apenas recebe palavras que não constituem significado?
Quando um conceito passa a ter significado?
O atual curso de Licenciatura em Matemática da UFRGS possui disciplinas nas quais,
para muitos, começa a nossa experiência em docência, acompanhados por um professor
orientador. Uma destas experiências foi realizada no Colégio de Aplicação da UFRGS onde,
no 2º semestre de 2009, desenvolvemos a oficina de Ensino de Matemática para alunos da 7ª
série do ensino fundamental.
A OFICINA DE MATEMÁTICA – DESENVOLVIMENTO E REFLEXÕES
Com o propósito de auxiliar o aluno a compreender conceitos de Matemática, o trabalho
nessa oficina pode ser feito de diferentes maneiras. Dada as dificuldades dos alunos com a
disciplina, muitas vezes optamos por utilizar listas de exercícios para trabalhar os conteúdos
vistos em aula, com a orientação da professora da turma, para esclarecer dúvidas pontuais da
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matéria. Aqui relatamos duas aulas onde utilizamos uma abordagem diferente, como
descreveremos a seguir.
Em um determinado momento do trabalho realizado na oficina, os alunos estavam
aprendendo a calcular áreas de figuras geométricas planas com ênfase em retângulos e
triângulos quando lhes era dado o valor da base e da altura. Para calcular a área de outras
figuras eles as dividiam nas figuras já conhecidas.
Figura 1: Divisão de área feita por uma aluna.
Em uma das oficinas, levamos moldes de figuras planas, com a medida dos lados e da
altura sendo números inteiros, feitas com papel, para que os alunos calculassem as suas áreas
utilizando régua e esquadro. Após terem concluído essa etapa, em grupos, os alunos
elaboraram problemas matemáticos sobre as figuras para os colegas resolverem.
Figura 2: Exemplos de moldes utilizados em aula.
Ao término desta oficina, notamos, porém, que os alunos tiveram dificuldade para
calcular a área dos triângulos. O mais intrigante, para nós, era que essa dificuldade não era
atribuída ao cálculo da área da figura, mas sim à identificação do que era a altura e a base da
mesma. Muitos alunos utilizavam um dos lados, que não era perpendicular à base, como
sendo a altura para efetuar o cálculo. Visto que consideramos fundamental para compreender
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a geometria plana visualizar a altura relativa a uma das bases de um triângulo, neste
momento, sentimos a necessidade de retroceder e fazer um trabalho de identificação de alturas
em triângulos.
Figura 3: Questão elaborada pelo aluno. Note que o cálculo efetuado indica que o aluno
utilizou a medida 15 como altura da figura.
Discutimos com nossos colegas, com nosso professor e com a professora da 7ª série
sobre como poderíamos fazer com que os alunos compreendessem o que é a altura de um
triângulo, pois, para nós, essa dúvida não deveria existir, uma vez que eles sabem o que é a
altura deles mesmos e a de algum objeto qualquer, mas, aparentemente, não conseguem
relacionar/abstrair essa noção para trabalhar com triângulos. Percebemos, então, que
poderíamos utilizar esta noção de altura que eles já possuíam para construir a definição de
altura de um triângulo.
Na Oficina seguinte, levamos fitas métricas para a sala de aula e propusemos aos
alunos, divididos em trios, calcular, primeiro, a altura de cada integrante do grupo e depois a
altura de mais três objetos da sala. Para calcular a altura dos colegas, não houve dúvidas:
primeiro o colega encostava-se na parede e outro componente do grupo indicava a marcação
da altura, logo acima da cabeça, com a mão. Logo após, media-se com a fita métrica a
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distância do chão à marcação feita. Quando foi medida a altura dos objetos foram escolhidos a
mesa, o quadro negro, a caixa do extintor de incêndio, o monitor do computador, entre outros.
Notamos que um dos grupos, ao tentar medir a altura da mesa, mediu o lado desta.
Após terem colhido os dados que pedimos, fizemos então a seguinte pergunta: para
calcular a altura de uma pessoa eles posicionaram a fita métrica oblíqua ao chão? Eles nos
responderam que, obviamente, não. Isso gera o seguinte questionamento: por que com os
triângulos seria diferente? Neste momento ficou ainda mais evidente que o real problema dos
alunos era o não estabelecimento de uma relação entre um conceito básico (altura), que eles já
conheciam, a uma aplicação matemática. Para ilustrarmos esta situação, colocamos dois
exemplos que foram criados pelos alunos durante a Oficina:
Figura 4.1 – Figura original (as linhas pontilhadas não estavam desenhadas originalmente).
Figura 4.2 – Cálculo da área da figura original.
Ao propormos aos alunos que calculassem a área dessa figura esperávamos que os
alunos a dividissem em um retângulo e em dois triângulos como fizemos na figura 4.1, o que
somente foi feito com a ajuda do professor. Note que a área do retângulo foi calculada
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corretamente. Porém ao calcularem as áreas dos triângulos esperávamos que eles escolhessem
a linha que mede 16cm como base de ambos triângulos, por este ser o único lado com o valor
sendo um número inteiro. Porém, ao contrário do que as contas e o desenho indicam, houve
um arredondamento dos valores dos outros lados para efetuar o cálculo. Ainda, supomos que
os alunos imaginaram que ambos os triângulos eram retângulos pela lógica que
desenvolveram.
Figura 5.1 – Figura original.
Figura 5.2 – Cálculo da área da figura
original.
Figura 5.3 – O exercício elaborado.
Figura 5.4 – Resolvendo o exercício.
No segundo exemplo, o grupo sabia as medidas da figura original e calculou a área da
mesma. Percebemos que o losango foi dividido em dois triângulos e foi calculada a área de
um deles, e esse valor foi multiplicado por dois, apesar desse cálculo não estar explicito nas
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figuras acima, ele fica claro ao observarmos os cálculos contidos na figura 5.2. Logo após,
elaboraram o problema e o resolveram com os dados fornecidos para conferir o resultado.
Questionamo-nos: somente ao trabalhar áreas temos esta situação? Pesquisamos e
percebemos que não. Em “Na vida dez, na escola zero” (Carraher, Carraher & Schliemann,
1988, p. 45-67) outro exemplo mostra uma situação semelhante: crianças que trabalham com
os pais, no comércio, fazem operações com números decimais com rapidez e precisão. Porém,
na escola, erram o mesmo cálculo por terem que efetuá-lo com um algoritmo e não usando
seu conhecimento empírico.
A pergunta natural que surge é: porque isso acontece? O que não está sendo trabalhado
corretamente para gerar essa dúvida?
Ao pensarmos novamente na nossa Oficina sobre o tema Medições de Alturas, vemos
que, após os alunos pensarem por si o que era “altura”, fez mais sentido pensar no que era a
altura de uma figura. Ou seja, usando a experiência dos alunos, foi possível fazer uma ligação
para criar um conceito com significado dentro da Matemática escolar. Este é o grande desafio:
utilizar o que o aluno já sabe ao invés de mostrar o nosso caminho para chegar ao resultado
que queremos, pois como afirma David Carraher (1986, p. 25), “nosso ensino é bom na
medida em que incentiva a criança a pensar e a raciocinar ao invés de imitar”.
Porém, podemos observar que são raras as salas de aula onde o professor trabalha com o
conhecimento do aluno, pois há uma visão errônea de que o aluno não possui conhecimento,
mas sim perguntas; e o professor, respostas.
Ao professor, justamente, cabem as perguntas que instigam o aluno, que perturbam o
seu mundo que estava bem estruturado para, assim, o aluno refletir sobre as suas certezas e
aproveitá-las ou reinventá-las. Fazendo a pergunta correta, o professor possibilita a
transformação daquele aluno passivo em sujeito ativo, que constrói afirmações com o que já
possuía e o que é novo, um aluno que descobre conceitos e relações.
Na nossa experiência, após a tentativa de gerar um significado para o conceito de altura
através da experiência do aluno, propusemos a eles que traçassem as alturas de seis diferentes
triângulos, para que pudessem aplicar na Matemática escolar o conceito gerado pela
experiência anterior. Disponibilizamos esquadros para isso. Nossa expectativa, dessa vez, era
de não fosse haver dúvidas quanto a como traçar a altura desses triângulos, uma vez que
tínhamos feito a atividade inicial da aula e depois tínhamos discutido com eles o que era a
altura do triângulo, relembrado como traçá-la e enfatizando que é perpendicular à base.
Porém, cada aluno é um individuo singular, sendo assim, a interpretação do conceito ocorreu
de modo diferente para cada um, o que fica claro nos exemplos a seguir.
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Um aluno pediu ajuda, pois ainda não tinha compreendido como faria para traçar a
altura de um triângulo. A professora tentou relembrar que a altura tem que ser perpendicular à
base e passando pelo vértice, de modo que para cada base existiria apenas uma altura. Após a
professora falar algumas vezes em “perpendicular” o aluno interrompe com a pergunta “– o
que é perpendicular mesmo?”. Nós vínhamos falando em perpendicular desde o início da
aula, pois esse conceito já fora usado e partimos do pressuposto de que era familiar aos
alunos. Esse foi o único caso em que um aluno expressou não saber o que isso significava,
com o restante da turma não notamos essa dúvida. Posteriormente, ao refletir sobre esse fato
percebemos que também temos que ter cuidado com definições que pensamos que o aluno já
sabe, pois aprendemos com a experiência que ver um conceito em aula não significa ter
entendido o mesmo.
Em outro momento, observamos uma situação muito interessante de uma aluna
explicando para sua colega como traçar a altura do triângulo. A altura que ela pretendia traçar
era relativa à hipotenusa do triângulo. A colega, que percebeu a dificuldade, disse para ela
pensar que havia uma pessoa com a cabeça coincidindo no vértice do triângulo, pois assim
não haveria dúvida de onde era a altura.
Figura 6: A interpretação sobre o conceito de altura
(imagem baseada no desenho da aluna).
Para além do que foi observado até aqui, de modo geral, há uma separação entre a vida
escolar e a vida não-escolar do aluno: a relação entre a sala de aula e o que há fora dela se
resume a trabalhos e temas. Porém, sabemos que existe muito mais do que isso. A Matemática
da sala de aula, como é ensinada hoje, não é propícia à utilização do conhecimento prévio do
aluno porque ela trata de problemas, como classifica Ole Skovsmose (2008, p. 7), de uma
semi-realidade. O aluno não precisa pensar na vida fora da escola para resolver ou criar um
exercício, ele só precisa ater-se às informações dadas no enunciado, mesmo que elas não
façam sentido ou sejam absurdas. Se quisermos utilizar o conhecimento não-escolar do aluno,
precisamos incentivar isso dentro da sala de aula tanto no momento de criar conceitos quanto
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para resolver problemas. Ao propormos aos alunos que elaborassem questões com as figuras
trabalhadas na Oficina, encontramos o seguinte exemplo:
7.1 – Figura original.
7.2 – Divisão feita pelo grupo.
7.3 – O exercício elaborado.
Na figura 7.2, vemos que o grupo dividiu a figura em diversos triângulos e retângulos,
como estavam acostumados a fazer, sendo algumas das figuras sem as informações
necessárias para o cálculo. Assim que o grupo notou a dificuldade para calcular a área da
figura, pediu auxílio para um professor, momento em que foi mostrado o uso do esquadro
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para dividir a figura novamente. Aqui podemos observar um erro no cálculo das áreas na
execução do exercício: o grupo não percebe que o valor total da base da figura é 20cm, e ao
dividir a figura, as bases das figuras I e III, como o grupo chama, medem 5cm cada uma, e a
base da figura II mede 11cm, logo, pela divisão feita por ele, o valor total da base seria 21cm.
Ainda quando calculam a área da figura I e III, fazem a conta 15x5 e encontram como
resultado 35. Além disso, notamos que o grupo escreveu “Descubra os valores de x” e depois
esclareceu que “x no caso são as áreas”, logo há mais de um valor para “x”.
Podemos observar que os exercícios elaborados pelos alunos seguem um padrão, todos
terminando com uma pergunta exclusivamente sobre a incógnita e que, em geral, não tem
relevância para a situação inicial do problema. Neste exemplo vemos ainda que a situação
proposta foge da realidade e sua única utilidade é criar um exercício com incógnitas.
No exemplo das alturas a que nos referimos, por que não, após determinar o que é
altura, fazer o aluno calcular áreas de objetos da sala? Por que não incentivar os alunos a criar
uma situação problema onde se utilize a modelagem matemática? Por que não ensinar a
Matemática na forma de pesquisa em vez de informação? Por que não utilizar Projetos de
Aprendizagem com a Matemática? Ao trabalharmos com pesquisa, o aluno acaba por escolher
a maneira de abordar o assunto como mais o interesse, transformando o tópico estudado mais
instigante para ele. Além disso, acaba por acontecer uma relação natural entre a Matemática e
o mundo, e essa relação é muito questionada pelos alunos no momento de estudo.
CONCLUSÕES
Nesta linha de pensamento, percebemos que a nossa aula utilizando fitas métricas
deveria ter ocorrido antes da introdução do conceito de altura para depois relacionarmos à
noção de área, e não no sentido inverso como foi feito, para que os alunos estabelecessem o
conceito de altura através da associação e da descoberta. Realmente, nas oficinas seguintes
vimos que alguns alunos continuavam fazendo a troca entre altura e lado, o que nos faz crer
que a nossa tentativa de relacionar a altura de objetos com a altura de triângulos após a
formulação do conceito foi válida, mas não totalmente eficiente.
Após essa reflexão, é nossa obrigação questionar: o que nos cabe como professores?
Sabemos o que precisa ser feito e o que precisa ser melhorado, mas como fazê-lo? Não
estariam os nossos conceitos de aula e aprendizagem construídos de maneira errônea? Se o
nosso objetivo é proporcionar uma educação de qualidade, não cabe somente ao aluno deixar
de ser passivo; mas também nós temos que ser professores ativos.
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REFERÊNCIAS:
CARRAHER, DAVID. Educação Tradicional e Educação Moderna. Em: Carraher,
Terezinha Nunes (Org.). Aprender pensando: contribuições da psicologia cognitiva para a
educação. Petrópolis : Vozes, 1986.
CARRAHER, T. N., CARRAHER, D. W., e SCHLIEMANN, A. D.Na vida dez, na
escola zero. São Paulo: Cortez, 1988.
LORENZATO, SÉRGIO. Para aprender matemática. Campinas: Autores Asssociados,
2006.
SKOVSMOSE, OLE. Cenários para investigação. In: Bolema. Rio Claro, SP Vol. 13,
n. 14 (2000), p. 66-91
¹ Estudante do curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. E-mail para contato: [email protected].
² Estudante do curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. E-mail para contato: [email protected].
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