LIVRE ARBÍTRIO E COMPATIBILISMO Prof. Claudio F. Costa - UFRN O PROBLEMA DO LIVRE ARBÍTRIO: surge com a idéia do DETERMINISMO: todos os eventos do universo são completamente determinados por causas. Pierre Laplace (1812): “se uma inteligência suficientemente poderosa conhecesse todas as leis da natureza e todos os estados de coisa do universo em um dado instante, ela poderia prever todo o futuro do universo e retrodizer todo o seu passado”. 1. Ex.: Big-Bang... 2. Ex.: dentista A idéia já existia entre os primeiros atomistas (Leocipo e Demócrito): o universo é constituido de átomos cujo movimento é totalmente determinado por causas. O acaso não existe. A crença nele é fruto da ignorância humana. (W.K.C. Guthrie) O problema do livre arbítrio – tal como ele tem sido considerado em filosofia – surge propriamente com Epicuro, um atomista posterior, pensava que a alma humana também seria composta de átomos, só que mais finos e capazes de continuar existindo após a destruição do corpo. - Problema: como então explicar a liberdade humana? Ou seja: como é possível o livre arbítrio, se somos totalmente determinados por leis causais? ! Para tal ara solucionar tais problemas, Epicuro sugeriu a hipótese do DESVIO DOS ÁTOMOS: DESVIOS (CLÍNAMEN) RANDÔMICOS DOS ÁTOMOS: Átomos saltam aleatoriamente... Produzindo liberdade! Como o epicurista Lucrécio (De rerum natura) escreveu: “Se todo movimento é sempre interconectado, o novo surgindo do velho em uma ordem determinada – se os átomos nunca se desviam de modo a originar o novo movimento que cortará os laços do destino, a contínua seqüência de causa e efeito – qual é a fonte do livre arbítrio possuído pelas coisas sobre a terra?” Foi assim que surgiu o problema do livre arbítrio: - A posição de Lucrécio/Epicuro (Agostinho, Kant...) chama-se LIBERTARISMO. Segundo ela somos livres porque capazes de nos subtrair ao determinismo em nossas decisões e ações. - O oposto disso é o DETERMINISMO (ceticismo). Segundo o qual o livre arbítrio é uma ilusão (D’Holbach, Skinner, Blanchard, Hospers...) Problemas para o libertarismo: 1) A objeção principal (Hume...) é: Se há um indeterminismo causal, por que isso nos tornaria mais livres? (+) acaso = (+) arbitrariedade => (-) liberdade! (acaso, acasualidade, caos, aleatoriedade, randomicidade...) Ex: se eu subir sobre a mesa e cantar o hino nacional. Sou + livre? Não... 2) Além disso: o libertarista crê que o indeterminismo é importante para salvaguardar a responsabilidade moral, pois se fossemos mecanicamente determinados, não poderíamos ser moralmente responsabilizados. Problema similar: se passo a me decidir ao acaso, não parece que possa ser responsabilizado por mais nada do que faço... 3) Objeção: NÃO é difícil encontrar causas de nossas decisões. Ex: por que Hitler decidiu invadiu a Rússia? Várias causas... Impasse no fronte inglês, reservas naturais, teoria do espaço vital, desejo de impressionar os seus correligionários... ................................................................................................................... - Resposta: o libertarista não nega isso! as causas são talvez necessárias, mas não são suficientes para a decisão ou ação... (necessário mas não suficiente, para ser suficiente entra a alma simples, primo motor, causa incausada, na opiniao de Chisholm) --------------------------- A prova disso, dirá, é que sempre ao decidirmos temos um SENTIMENTO DE LIBERDADE, de que estamos acima e além do que nos está causando a decisão... Temos o sentimento de que poderíamos ter ESCOLHIDO DE OUTRO MODO, se quiséssemos... Críticos do libertarismo (ex: deterministas) acham esse sentimento dúbio. 1)Quando agimos livremente, não costumamos olhar para trás (Blanchard). - Mas podemos agir com atenção às causas e mesmo assim nos sentirmos livres... 2) Psicanálise: não temos consciência das causas reprimidas de nossas ações. Ex: sugestão pós-hipnótica (Hospers). - O problema com essa idéia é que muitas ações não parecem inconscientemente determinadas. Ex: escovar os dentes ao acordar. 3) A solução que proponho apela às TEORIAS REFLEXIVAS DA CONSCIÊNCIA. O sentimento de liberdade de agir de outro modo se deve simplesmente à natureza da consciência. Segundo Rosenthal: a consciência se deve aos HOT (metacognições) Segundo Armstrong: as cognições de segunda ordem teriam função causal, de MONITORAR os processos de primeira ordem... Os HOT seriam, pois, fatores causais... Mas não poderiam ser conscientes, pois “a cognição que está no topo permanece sempre além do alcance da consciência” (Rosenthal). Pela sua própria natureza a consciência não nos permite um conhecimento completo dos fatores causais subjetivamente envolvidos, o que produz um ilusório sentimento de que nossas decisões estão acima e além Owen Flanagan sugeriu que “o libertarismo advém de um ADOECIMENTO DE NOSSA IMAGEM MANIFESTA DO MUNDO ENRAIZADO NA RELIGIÃO E CULTURA OCIDENTAIS. A aceitação da idéia de que somos causalmente determinados opõe-se a idéia de que somos almas que transcendem o mundo físico e as leis causais Além disso, a Bíblia diz que Deus criou o universo do nada, como causa incausada. E ela também diz que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Logo, devemos ser também causas incausadas. transcendendo as leis causais. Além disso, se fossemos causalmente determinados em nossas decisões, ficaria difícil justificar idéias como as de pecado, recompensa e danação eternas, com seus tons retributivistas... a não ser por uma cruel arbitrariedade divina. Só o libertarismo nos tornaria responsáveis nesse sentido absoluto...” Diante das dificuldades do libertarismo, a solução historicamente proposta foi a do DETERMINISMO CÉTICO: O LIVRE ARBÍTRIO NÃO EXISTE; ELE É UMA SIMPLES ILUSÃO (Hospers, Blanchard...) O problema com essa posição é que falamos o tempo todo de ações e decisões livres x constrangidas e limitadas em sua liberdade. Devemos prescindir desse discurso? Não seria isso uma grande perda? ---------------------------------------------------------------------------------------- A alternativa que surgiu com Hobbes e foi classicamente defendida por Locke e Hume, sendo aceita hoje por provavelmente a maioria dos filósofos consiste em REDEFINIR O LIVRE-ARBÍTRIO EM TERMOS QUE NÃO TEM MAIS NADA A VER COM O DETERMINISMO. Essa alternativa se chama COMPATIBILISMO PARA O COMPATILISTA: SER LIVRE (Df.) = NÃO SER RESTRINGIDO (limitado, constrangido) EM SUAS DECISÕES E AÇÕES. A definição compatibilista está dicionarizada: Liberdade = “condição daquele que não se acha submetida a qualquer força constrangedora, física ou moral” (Houaiss) Hobbes: “uma pessoa é livre quando se determina a si mesma, nada a impedindo fazer o que ela quer”. Mais sofisticado é Sidney Hook: Os homens são livres quando as suas ações são determinadas por sua própria vontade e não pela vontade de outros, ou por fatores que nos levam a dizer que as suas ações são involuntárias. Na medida em que existem condições que previnem um homem de agir como ele quer (ex: ignorância, incapacidade física, constrangimento usado sobre o seu corpo ou mente) ele não é livre. - Assim, dizemos que um jovem livrou-se da opressão familiar porque ele agora se sente menos restringido (impedido, constrangido) pelos pais. - Falando de liberdade de ação, dizemos que o escravo alforriado tornou-se livre por não se ver mais restringido (impedido, coagido, forçado) em suas ações. - E também dizemos, por analogia, que após terem destruído a barragem, as águas correram livremente rio abaixo, querendo dizer com isso que elas deixaram de ser restringidas (limitadas, bloqueadas) em seu curso. ............. Essa maneira de ver torna o livre-arbítrio neutro em relação a questão do DETERMINISMO: mesmo em um mundo determinista as pessoas serão livres se não forem constrangidas, e mesmo em um mundo indeterminista elas não serão livres se forem constrangidas. E como fica aqui a responsabilidade moral? R: ela é atribuída quando a pessoa é CONSCIENTE da decisão. Nesse caso ela é capaz de modificá-la com base na moral. Para o compatibilista a ação incorreta precisa ser punida, não por RETRIBUIÇÃO (vingança), mas apenas para impedir que a pessoa repita ações semelhantes no futuro – REABILITAÇÃO – ou para desencorajar outras pessoas de fazerem o mesmo – DISSUASÃO. E a ação correta deve ser recompensada para reforçar comportamentos corretos da pessoa e de outros... Ex. libertarismo em Kant: sociedade que se desfaz em uma ilha, antes disso condenados devem ser enforcados para que a justiça se faça. Contra-exemplos a df. Compatibilistas tradicionais: 1) Um jovem é tímido demais para cortejar a mulher que deseja; a timidez reduz a sua liberdade. Mas aqui não temos claramente satisfeitas definições, pois ele age voluntariamente não sendo externamente impedido e não há sequer constrangimento externo sobre a sua mente. 2) uma pessoa não bebe nem come carne de porco porque a sua religião não permite. Muitos de nós dirão que ela é menos livre nesses aspectos. Mas confrontados com as definições, vemos não ser o caso de a pessoa estar sendo impedida de fazer o que quer, pois ela própria nos dirá que não há nada a restringir suas ações. Quem seria, afinal, melhor testemunho da liberdade pessoal do que o próprio agente? 3) Um neurótico obsessivo lava as mãos trinta vezes por dia. Embora ele insista que faz isso livremente, tenderemos a dizer que a sua neurose diminui a sua liberdade. Mas ele não está sendo restringido nem forçado. Meu objetivo é refinar a df. compatibilista tradicional usando a teoria causal da ação e algumas poucas categorias adicionais. Para tal, a primeira distinção que quero introduzir é entre Duas FORMAS de restrição (Ex. Taylor) Duas ORIGENS da restrição LIMITAÇÃO CONSTRANGIMENTO EXTERNAS INTERNAS (Df.) Livre-arbítrio: ausência de restrição por limitação e/ou constrangimento externa e/ou interna. Além disso quero introduzir a noção de LEQUE DE ALTERNATIVAS: A ausência de restrição é sempre entendida dentro de um LEQUE DE ALTERNATIVAS RAZOÁVEIS que depende do CONTEXTO. Exs. dedo, jantar no Tour D’argent, entrar em órbita. ____! A1 A2... ...An !___ ______________________________________________ alternativas razoáveis para o contexto Limitações e constrangimentos FECHAM o LEQUE DE ALTERNATIVAS (Df.) Livre arbítrio = ausência de limitação ou restrição externa ou interna dentro de um leque de alternativas razoáveis para o contexto. Conclusão: Não existe liberdade fora de um leque de alternativas, a liberdade ABSOLUTA, independente do contexto. Disso emerge também explicação compatibilista para a confusão libertarista: Para o libertarismo é uma confusão causada pelo fato de que em situações caóticas as opções aumentam e com isso a liberdade. Isso + sentimento de liberdade, nos dá a impressão de que livre arbítrio tem a ver com indeterminação da decisão e ação. Segundo a teoria causal da ação, a forma mais complexa de ação (que engloba as demais) é a ação raciocinada. Ex.: digamos que meu médico me tenha prescrito exercícios físicos. Decido então fazer exercícios físicos por uma razão: quero permanecer saudável. A razão é composta de um desejo (de permanecer saudável) e de uma crença (de que permanecerei saudável se fizer exercícios). Uma vez formada, a razão causa um querer prévio: decido a partir de amanhã fazer exercícios. O querer prévio causa o querer ativo (decido sair caminhando). O querer ativo, por sua vez, causa movimentos corporais. Eis o esquema da ação raciocinada: Desejo + = Razão -> Querer -> Querer -> Movimentos -> efeitos Crença prévio ativo Corporais desejados Searle (libertarista): “gaps”, lacunas causais... Minha sugestão é que em cada elo causal da ação raciocinada pode haver restrição da liberdade, e que essa restrição é por limitação e/ou constrangimento, externa e/ou interna dentro de um leque de alternativas razoáveis proporcionado pelo contexto. Ou seja: Desejo + = Razão -> Querer -> Querer -> Mov. -> eventos Crença prévio ativo corporais deseî (-) î (-) î (-) î (-) jados Desejo î î î î + = Razão -> Querer -> Querer -> Mov. -> eventos Crença físicos (causas restritivas limitadoras/constrangedoras, externas/internas) Exemplos esclarecerão melhor: 1) NÍVEL FÍSICO (liberty): - Pessoa amarrada em um poste (limitação externa, nível físico) - Juiz forçado a engolir o apito (constrangimento externo, nível físico) contrações -> musculares movimento corporal (-) î -> efeito físico (-) î limitações ou constrangimentos físico externos Restrição da liberdade de ação (freedom of action) 2) NÍVEL VOLICIONAL ( querer): -Soldado que não consegue atirar no inimigo (limitação interna). -Alcoólatra bebe álcool de limpeza (constrangimento interno) - ameaça: constrangimento ou limitação externa querer prévio -> querer ativo -> movimento î (-) î (-) corporal -> QUERER PRÉVIO -> QUERER ATIVO Restrição da LIBERDADE DA VONTADE (FREE WILL) 3) NÍVEL DE RAZÕES (livre arbítrio p.d.): -Um esquizofrênico não come porque crê que a comida esteja envenenada (limitação racional interna) -Assassino racista crê que deve matar tantos negros quanto for possível (indução racional interna) -Pessoa por razões religiosas não bebe nem come carne de porco (limitação racional externa, causada por uma desejos e crenças advindas de outras pessoas) -Discípulos de Jim Jones, que se suicidaram por ordem do mestre (indução racional externa, causado pelos desejos e crenças advindas da doutrinação). Desejos + = RAZÃO -> (decisão)querer Crenças î (-) î (-) RESTRIÇÃO DA FORMAÇÃO DE RAZÕES ATRAVÉS DE RAZÕES COMPETITIVAS O último exemplo de Jim Jones exemplifica o que Robert Kane chamou de CONTROLE NÃO-COERCIVO ENCOBERTO (covert non-constraining control): Em que as pessoas fazem por vontade própria aquilo que os seus controladores desejam. ex.: Mulher que faz gastos excessivos devido ao meio no qual vive (coerção racional externa) O qual é um impedimento importante do livre arbítrio . É importante notar que nesses casos a própria pessoa se considera livre. A sua falta de liberdade é avaliada por outras pessoas ou, tempos depois, por ela mesma. Essa constatação pode levar ao RELATIVISMO: o livre arbítrio da razão depende do S que avalia!-------------------------------------------------------Penso que esse risco pode ser contornado pelo recurso a SITUAÇÃO IDEAL DE FALA (Habermas) – na qual condições como = acesso a informação, = competência, = liberdade de diálogo, = intenção heurística – são satisfeitas. O sujeito avaliador de direito será aquele que em uma situação ideal de fala tiver a última palavra, i.e. aquele que for capaz de nessa situação conduzir a decisão a seu favor pela comunidade linguística dela participante (a situação pode ser apenas virtualmente considerada) Com isso chegamos a uma definição mais completa do livre arbítrio da vontade (liberum arbitrium voluntatis): Chamando de S a pessoa que avalia (assumindo que S teria a última palavra em uma situação ideal de fala), e chamando o agente de P temos: (Df.Pl) A pessoa P é livre para S see Para S, dentro de leques de alternativas contextualmente determinados A não é submetido a restrições nem externas nem internas nem por coerções nem por limitações, sejam elas de ordem física, motivacional ou racional. Podemos também definir a liberdade de decisão ou ação como: (Df.Al) Uma decisão ou ação A de P é livre para S see para P, A é realizada sem restrição externa nem interna nem limitadora nem constrangedora dentro de um leque de alternativas contextualmente razoável, quer seja no nível físico, volicional ou racional. Essa definição nos permite identificar um número muito maior de casos de restrição de livre arbítrio do que as definições tradicionais e mesmo as definições hierárquicas. Comparação com a DEFINIÇÃO COMPARIBILISTA HIERÁRQUICA DE LIVRE ARBÍTRIO de Harry Frankfurt. Para Frankfurt, característico dos seres humanos são: 1)Desejos de primeira ordem, 2)Desejos de segunda ordem. Ex.: um psiquiatra pode ter o desejo de ter o desejo de um dependente de droga (mas ele não quer que esse desejo seja o seu querer!) O WANTOM seria um ser dominado apenas por seus desejos de primeira ordem Os desejos de 1ª e 2ª ordem podem entrar em conflito, ex.: alcoólatra que não deseja beber... Df: Uma pessoa é livre quando consegue fazer com que o desejo que lhe move à ação – o seu querer – corresponda ao seu desejo de 2ª ordem. Quando ela TEM O QUERER QUE ELA QUER TER. Df: Uma pessoa não é livre quando não consegue fazer com que o querer que lhe move à ação corresponda ao seu desejo de 2ª ordem Quando ela NÃO TEM O QUERER QUE ELA QUER TER Problemas: 1. Homem-bomba: movido pelas suas convicções fanáticas ele está carregado de desejos de 2ª ordem, que estão em consonância com o seu desejo de 1ª ordem de explodir a bomba. Pela definição de Frankfurt: ele é livre, pois ele QUER O QUE QUER QUERER. Ele consegue fazer com que o seu desejo de segunda ordem seja a sua vontade... Mas parece correto dizer que ele NÃO É LIVRE, que o seu fanatismo CONSTRANGE A SUA LIBERDADE. (Além disso, parece que Frankfurt não consegue explicar por que temos de nos identificar com o desejo de 2ª ordem e não com os de 1ª...) Nossa respostas: 1. O caso do fanático pode ser explicado como uma indução da razão e subseqüentes volições causada por razões externas. (Pouco importa o fato do fanático se identificar com o seu desejo de 2ª ordem, transformando-o em volição de 2ª ordem no dizer de Frankfurt. Nós identificamos as razões que causam essas volições como sendo restritivas.) 2. O caso do alcoólatra é explicado como um constrangimento que conduz à ação, o qual é mais forte do que a vontade da pessoa de não beber, dano início a uma cadeia causal que conduz à ação que não aconteceria se a pessoa fosse livre. Referências: C.F. Costa: “Livre arbítrio para compatibilistas”, in: Critérios de realidade e outros ensaios (London: College Publications 2010). C.F. Costa: “Free Will and the Soft Constraints of Reason”, Ratio, 2006.