As implicações dos pressupostos nietzschianos na Cultura Escolar: o Bom, o Belo e o Verdadeiro Thabata Franco de Oliveira Universidade Estadual Paulista – UNESP Faculdade de Ciências e Letras - Araraquara/FCLAR Eixo temático: Filosofia da Educação Mestranda em Educação Escolar pela UNESP, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Cultura e Instituições Educacionais, tem experiência na área de Educação e em Filosofia para Crianças, atuando com diferentes faixas etárias e tipos de instituições educativas. Atualmente desenvolve pesquisa na área de Filosofia da Educação e é bolsista FAPESP. Contato: [email protected] Resumo: Tomando como referência a filosofia de Nietzsche, este artigo objetiva verificar em que medida as repercussões advindas da “filosofia do martelo” tem relações com o esvaziamento das categorias que fundamentam o exercício da educação formal. Ao considerar as categorias Bom, Belo e Verdadeiro e as transformações que estas sofreram no âmbito da cultura escolar, traçamos um percurso investigativo a partir da hipótese de que a dissolução destas instâncias transcendentais contribuíram para a fragilização das relações que o ser humano estabelecia com o outro e com o mundo. Deriva disto, conseqüentemente, a fragilização do papel das instituições, em especial da instituição escolar. Palavras-chave: Bom, Belo, Verdadeiro, Cultura Escolar, Nietzsche. Resúmen: A partir de la filosofía de Nietzsche, este artículo tiene por objetivo analizar en qué medida las repercusiones resultantes de la "filosofía del martillo" tiene relaciones con el vaciado de las categorías que subyacen en el ejercicio de la educación formal. Al examinar las categorías de Bueno, Bello y Verdadero y los cambios que han experimentado dentro de la cultura escolar, hicimos un trayecto de investigación por la hipótesis, que la disolución de esas intancias trascendentales han contribuido al debilitamiento de las relaciones que los seres humanos establecen con los demás y el mundo. Se deriva de esto, por lo tanto, la debilitacíon del papel de las instituciones, especialmente de las escuelas. Palabras llave: Bueno, Bello, Verdadero, Cultura Escolar, Nietzsche. Introdução Examinando as transformações culturais e políticas que ocorreram a partir de 1968, Prado Jr (2001, p. 89) propõe a reflexão sobre o espaço social que a escola ocupa, tendo em vista o “possível sentido moderno da educação”. Se educação formal tradicionalmente era pautada pela rigidez institucional, pelo apego aos valores coletivos e sua prioridade era articular a formação moral à formação intelectual, a partir da década de 60 assistimos à incursão de uma pluralidade de reivindicações de segmentos sociais até então excluídos, que colocou em xeque este modelo educacional de cunho burguês, sob a constatação de que a escola distribui de forma desigual o conhecimento, de acordo com as classes e os grupos sociais. Para acompanharmos as transformações que ocorreram na concepção de escola e na relação que se estabeleceu entre escola e sociedade no decorrer do século XX, resgatamos o tipo de discurso que fundamentou a educação tradicional, ou seja o discurso que legitimava a atividade escolar até então. Neste sentido, ao analisar as facetas do discurso competente, Chauí (2000) traz a seguinte contribuição: Em sua forma clássica, o discurso burguês é legislador, ético e pedagógico. Tratava-se de um discurso proferido do alto e que, graças à transcendência conferida às ideias, nomeava o real, possuía critérios para distinguir o necessário e o contingente, a natureza e a cultura, a civilização e a barbárie, o normal e o patológico, o lícito e o proibido, o bem e o mal, o verdadeiro e o falso: punha ordem no mundo e ensinava. Fazia das instituições como Pátria, Família, Empresa, Escola, Estado (sempre escritos com maiúsculas), valores e reinos fundados de fato e de direito. Por essa via, o discurso nomeava os detentores legítimos da autoridade: o pai, o professor, o patrão, o governante, e, consequentemente, deixava explícita a figura dos subordinados e a legitimidade da subordinação. Emitia conhecimentos sobre a história em termos de progresso e continuidade, oferecendo, com isto, um conjunto de referenciais seguros fixados no passado e cuja obra era continuada pelo presente e acabada pelo futuro. Era o discurso da tradição e dos moços, isto é, o discurso que se endereçava a ouvintes diferenciados por geração e unificados pela unidade da tarefa coletiva herdada. (CHAUÍ, 2000, p. 10) Deste modo, verificamos que a instituição escolar historicamente se insere neste campo de fórmulas coletivas de construção de um “corpo sistemático de representações e de normas que nos ‘ensinam’ a conhecer e a agir” (CHAUÍ, 2000, p. 3). Paulatinamente, este corpo de representações e de normas foi sendo desmantelado com as críticas advindas da filosofia e da epistemologia, fundando uma nova racionalidade que destituiu a primazia das metanarrativas, da ideia de progresso, das fronteiras culturais e dos pressupostos metafísicos e universais. Com a proclamação do fim da história e com a perda do estatuto de legitimidade do discurso científico, a modernidade convive com diferentes reivindicações em todos os terrenos e vê na dissolução das “Narrativas” a inviabilidade de um projeto societal. O reflexo desta incursão paradigmática na instituição educativa pôs em xeque seus pressupostos tradicionais, fazendo com que a escola reavalie constantemente seus discursos, conteúdos, normas e práticas, tendo em vista tanto as especificidades de sua clientela quanto as novas exigências advindas do mundo do trabalho. Consideramos que a instituição escolar tem como princípios básicos a inserção do sujeito na sociedade, a transmissão de conteúdos, a proposição das normas e dos padrões de convivência. O acento posto no local, no particular e nas diferenças culturais trouxe diversas conquistas na esfera social, política e cultural, mas merece uma análise cuidadosa no que se refere às implicações destas ênfases para a transmissão cultural, para a constituição de um legado coletivo de caráter intersubjetivo. Neste contexto, há uma profunda desconfiança da escola e de seus agentes, no sentido de que sejam capazes de promover uma formação que possibilite às novas gerações o ingresso satisfatório nas dimensões social, política, econômica e cultural. Olgária Matos (2006) caracteriza bem este contexto ao discutir as relações entre cultura e política, considerando as implicações da dissolução da tradição humanista no processo formativo do indivíduo e da sociedade. Com o advento da modernidade, uma cultura avessa à reflexão, à concentração e à diligência se delineou na civilização ocidental, concorrendo assim para a apatia, desmobilização e semiformação ética e política do sujeito contemporâneo: Tanto a mídia informativa quanto a de entretenimento visam um público consumidor, dando a consumir também os seus valores: ideologia da facilidade, rapidez na captação da mensagem, confisco do tempo da reflexão dominam e passam a impregnar a cultura e a educação através da simbiose entre mídia e indústria cultural; ambas ocuparam o espaço deixado vazio pela falência dos ideias humanistas de educação no Ocidente que, dos gregos, passando pela Idade Média e pelo Renascimento até o Iluminismo europeu, procuraram o aperfeiçoamento moral e político, para aumentar o bem-estar, aprimorar os cinco sentidos pela educação estética, desenvolver a imaginação criadora e a fantasia através da literatura, das religiões, das artes e da filosofia. (MATOS, 2006, 15-16) Hoje não é mais possível localizar as categorias fundantes e estruturantes do modo de viver, agir e pensar do ser humano. Nestas circunstâncias, a possibilidade de banalização e indiferenciação dos limites do ético e do não-ético são muito grandes. Movidos pelas questões que permeiam esta temática, objetivamos investigar no presente estudo em que medida as categorias Bom, Belo e Verdadeiro se relacionam hoje com a cultura escolar, e quais foram as consequências da dissolução destes critérios que fundamentaram até então grande parte do repertório educacional – suas normas, práticas e conteúdos. Enquanto dimensões valorativas que serviram de base para a configuração do arcabouço cultural da civilização ocidental, estas instâncias metafísicas foram suporte e referência para os processos de seleção, transmissão de conteúdos e de práticas no âmbito da educação formal. Deste modo, partimos do pressuposto de que a ruptura com a concepção tradicional destas categorias contribuiu para as transformações que ocorreram no campo simbólico a respeito dos conteúdos transmitidos pela educação escolar, uma vez que constituíam eixos norteadores para a definição do quê e como ensinar. Como perspectiva teórica adotamos os estudos em Cultura escolar, uma vez que estes oferecem um repertório analítico fecundo para a compreensão dos processos que ocorrem no âmbito da educação formal. A investigação das práticas escolares e do que ocorre no interior desta instituição é uma alternativa para a ampliação e aprofundamento dos estudos que visam compreender melhor a multifacetada relação escola-sociedade. Dentre os autores que contribuíram para constituição deste novo corpo analítico, podemos citar Julia (2001), Lahire (2002, 1998), Forquin (1993) e Chervel (1990). Apesar dos estudos históricos comporem grande parte da produção de pesquisa com o conceito de cultura escolar, acreditamos que a filosofia da educação pode prestar sua contribuição, uma vez que repensar a função da escola hoje pelo enfoque da cultura é uma tarefa necessária e aberta para as mais diversas perspectivas de análise. A partir deste referencial teórico, pretendemos pontuar algumas proposições de Nietzsche a respeito do Bom, do Belo e do Verdadeiro, uma vez que este foi o primeiro filósofo a questionar o valor da verdade e a possibilitar o campo de uma crítica da civilização ocidental. De acordo com Prado Jr, “[...] É o momento em que se começa a apontar para as raízes institucionais do saber (e não apenas para a “ideologia”) e para quão fundamente o pensamento, por mais puro e “sobrevoante” que seja, está solidamente amarrado à figura da sociedade, no que ela tem de mais arbitrário.” (PRADO JR, 2001, p. 95) Ao colocar em questão os fundamentos da civilização ocidental – a moral, as artes, o ideário sociopolítico e a religião – e ao se perguntar pelo valor desta civilização (MOURA, 2005), Nietzsche fundou um campo de análises que colocou em suspensão praticamente todos os pressupostos de âmbito metafísico. Se Nietzsche critica os princípios que erigiram esta civilização, podemos então estender sua crítica à instituição educativa, uma vez que esta está intrisecamente vinculada ao ideal de sociedade e ao que se espera das próximas gerações. Além disto, a escola sempre tem em vista fornecer modelos que articulem a ordem moral – princípios, juízos, valorações - e ordem epistemológica – conteúdos, ferramentas conceituais e saberes escolares. Por romper com a necessidade do fundamento, por realizar a crítica da pretensão de verdade e por antecipar muitas das conseqüências da modernidade, Nietzsche é considerado o precursor da filosofia pós-moderna. Seja pela proposição do método genealógico, seja pelo modelo alternativo que oferece ao colocar em causa os paradigmas de seu tempo por meio da “filosofia da suspeita”, seu pensamento se tornou referência para teóricos como Martin Heidegger, Gianni Vattimo, Michel Foucault, Jean François-Lyotard, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Jean Baudrillard, entre outros. Tal atitude desconstrucionista, que se iniciou com Nietzsche no século XIX e ganhou força a partir dos anos 60 do século XX, é o que nos leva a pensar a escola neste cenário, averiguar de que forma ela se insere neste projeto e quais são seus mecanismos de resistência e/ou de adaptação diante da multiplicidade de discursos que colocam em xeque os tradicionais pressupostos que norteiam sua atividade. Portanto, pensar o estatuto da tríade Bom-Belo-Verdadeiro sem nos remetermos à Nietzsche nos parece deixar lacunas na compreensão dos novos contornos que a mesma assumiu na condição pós-moderna. Severino (2006) ilustra o paralelo entre as proposições de Nietzsche e a educação contemporânea: O pensamento crítico contemporâneo tende a questionar radicalmente tudo aquilo que era a própria sustentação do edifício filosófico da modernidade, a pedra fundamental da racionalidade emancipadora e altaneira (Kant, 1996), arrastando consigo os ideais iluministas da ética e da política. Por isso mesmo, não podia deixar de recuperar as perspectivas dionisíacas da filosofia a marteladas de Nietzsche, bem como não poderia deixar de voltar-se para a estética, via privilegiada de resgate da corporeidade e o lugar possível do sentido encarnado. Pode-se então afirmar que a contemporaneidade cultural e filosófica, inaugurada por essa crítica, instala-se tendo como mote a paráfrase bermansiana da fala de Marx no Manifesto do Partido Comunista, de 1851: “tudo o que é sólido desmancha no ar...”. (SEVERINO, 2006, p. 630). Nota-se que não faz parte dos objetivos desse estudo apresentar ou defender abordagens específicas em relação aos pressupostos nietzschianos ou sobre questões teóricas sobre as quais não haja consenso. Partimos de algumas pistas dos principais comentadores de Nietzsche, mas não temos a pretensão de nos deter sobre questões hermenêuticas; este tipo de análise já foi amplamente realizado por diversos filósofos (Vattimo, 1990; Lefebvre, 1993; Deleuze, 1994; Heidegger, 2000; Moura, 2005; Marton, 1991, 2001, 2006), e, apesar de considerarmos que estes estudos ampliam a compreensão de sua obra, constituem para esta investigação uma dificuldade metodológica, uma vez que apresentam distintas e múltiplas interpretações acerca do sentido de suas teses. Portanto, a partir das trasformações sociais, culturais e epistemológicas que marcaram o século XX, pretendemos abordar o lugar do Bom, do Belo e do Verdadeiro na constituição da cultura escolar, tendo em vista as diferentes concepções que permearam a relação da escola com estas três categorias. A escola e a reescrita da cultura clássica A relação que a escola estabelece com a cultura clássica é antiga. Por mais que a educação formal tenha se desvencilhado dos objetivos primordialmente atribuídos aos conteúdos da cultura greco-romana, assistimos às reelaborações e às diferentes apropriações que são feitas a cada época, de acordo com os objetivos históricos de cada sociedade. Chartier (2005) assinala tais apropriações desde a educação jesuítica: “[...] os padres realizaram uma cristianização da Antiguidade, escolhendo passagens que exaltavam virtudes que poderiam ter sido cristãs. O paganismo antigo, glorificando a república romana, evidenciou-se finalmente como um instrumento muito adequado para educar os jovens nobres cidadãos do século XVII. A força desta transmissão foi tal que esse programa escolar inventado para uma educação cristã permaneceu, quando sua finalidade original já estava perdida ou renegada. [...] Durante o século XIX, a gramática e a língua eram sempre usados a serviço dos mesmos lugares comuns (glorificar a virtude e o heroísmo, atacar o vício e a covardia, lamentar os infortúnios do destino e a cegueira dos tiranos), mesmo que as preocupações diretamente religiosas tenham ficado distantes.” (CHARTIER, 2005, p. 12). Enquanto corpo de referências, tais obras serviram às mais distintas finalidades educativas, constituindo assim um marco para a elaboração de uma cultura válida e de caráter universalista. Porém, com os adventos de 1968 e com a crescente democratização do ensino, apresentar às novas gerações o mundo e a condição humana a partir destes conteúdos se tornou uma tarefa inviável, uma vez que a leitura dos clássicos ficou destituída de sentido para aqueles que acompanhavam a emergência de um novo tipo de cultura. A ilegibilidade de tais obras por parte dos alunos colocou em suspensão os eixos norteadores da cultura escolar, e impôs à ação educativa a missão de buscar novas formas de transmitir o legado cultural. Deste modo, se com o discurso tradicional/burguês a prática educativa era legitimada pela articulação das finalidades racionais, éticas e estéticas, na condição hodierna o princípio racional-técnico-científico é preponderante. Na cultura da Antiguidade vemos que o Bom, o Belo e o Verdadeiro se tratavam de valores supremos que, integrados, guiavam a ação humana. Ao reunir nesta tríade a moral, a estética e a lógica, estabeleceu-se a ligação dos campos fundamentais para a constituição de um modelo ético para o sujeito e para a sociedade: Ainda que etimologicamente ética e moral retirem seu sentido de costume (ethos, em grego, e mos, em latim) e este, por sua vez, do habitat, da moradia habitual, estrutura modal dos seres vivos de habitar o mundo, o conceito quer designar, no categorial filosófico, uma qualidade do sujeito humano como ser sensível aos valores, com um agir cuja configuração se deixe marcar por esses valores a que sua consciência subjetiva está sempre se referindo. Sensibilidade axiológica que, do ponto de vista de sua experiência pelo sujeito, é análoga à sensibilidade epistêmica da razão. Característica específica dos seres humanos, ela precisa ser cultivada e sustentada, pois, tanto quanto o conhecimento, essa experiência não é fruto da ação exclusiva das forças vitais e instintivas do ser vivo. Daí o papel primordial que é atribuído à educação: empreendimento ético-formativo, processo de autoconstituição do sujeito como pessoa ética. É a paidéia proposta no quadro da cultura clássica grega e latina. (SEVERINO, 2006, 623) Deste modo, a educação é vista como o núcleo integrador da formação moral e cultural do indivíduo, possibilitando, por meio da paideia, a potencialização da humanidade que existe em cada ser humano. Severino (2006) pontua que ao longo da Modernidade a relação entre educação e cidadania se estreitou cada vez mais, o que exigiu a aproximação do conhecimento racional empírico visando a laicização e integração do sujeito à esfera pública. A política, então, passa ser novo eixo orientador para a prática educativa. A dissolução dos referenciais clássicos Partindo destes referenciais é que nos remetemos à ética nietzschiana, a qual oferece um percurso genealógico do niilismo, identificando no platonismo e no cristianismo as raízes deste fenômeno. Uma vez que opera com a crítica e a releitura das categorias platônico-cristãs, Nietzsche configura uma nova moral fundada na superação destes valores. Nota-se que a ética nietzscheana é uma ética aristocrática, na qual a singularização é produto da afirmação da vida, não podendo ser regulada por uma moral heterônoma que cedesse lugar à homogeneização social. Isto se justifica, dentro de sua lógica argumentativa, porque a uniformidade, a padronização e a massificação consistiriam na imposição de grupos específicos sobre a vontade de potência, enfraquecendo assim a vontade dos fortes e daqueles que “se [dão] o prazer de carregar nos seus chifres o problema da existência” (NIETZSCHE apud MOURA, 2005, p. X). De acordo com Comte-Sponville (1993), ao propor a transvaloração de todos os valores, Nietzsche defende um platonismo invertido, pois enquanto em Platão avaliar corresponde a conhecer, e só o ser é cognoscível (dogmatismo), em Nietzsche conhecer corresponde a avaliar, e só pela vontade é possível a avaliação (perspectivismo). Na análise da construção argumentativa de Nietzsche, verificamos que seu discurso baseia-se na numa construção binária e opositiva para demarcar a dimensão apolínea da civilização – pressupostos platônico-socráticos - e para situar nela a dimensão dionisíaca – o caos, a embriaguez, o abismo – suprimida por esta mesma civilização. Tendo em vista a superação desta dicotomia, ele opera a partir de oposições e inversões hierárquicas das esferas valorativas, daí a apologia à Dionísio e o resgate da cultura grega como referência de um povo que se organiza em prol da afirmação da vida, constituindo assim um marco civilizatório que se contrapõe à tradição judaico-cristão. A estratégia adotada por Nietzsche para superar a articulação entre o Bom, o Belo e Verdadeiro consiste em decompor a tríade, fazendo uso do método genealógico para desconstruir os tradicionais pressupostos do campo da moral e da lógica. Em contrapartida, compõe um discurso apologético à estética. Exaltando o belo – de predominância dionisíaca - e destituindo de importância o bom e o verdadeiro, ele realiza a dissociação dos valores ocidentais e elabora um novo modelo de humanidade, pautado na afirmação do belo e do trágico. Ao realizar a crítica da moral, identifica dois tipos de moral opostas: a moral dos aristocratas, nobres e poderosos, que é afirmativa e deriva da própria força dos senhores; e a moral de rebanho, dos escravos e plebeus, fundada nos valores judaico-cristãos que, enquanto moral negativa, deriva dos ressentimento dos fracos pelos fortes. A primeira afirma a potência, a vida, a plenitude e a força, enquanto que a segunda se caracteriza pelo rancor, pelo declínio e pela degeneração da vida (NIETZSCHE, 1999). No campo da lógica – e podemos estender a crítica à ciência, Machado (1999) afirma que Nietzsche, por meio da genealogia da Vontade de verdade, pretende determinar sua origem e seu valor a partir da vontade de potência. Deste modo, entrevê na Vontade de verdade a articulação da ordem moral e da ordem epistemológica: “A crítica ao ideal de verdade, ao valor da verdade é a extensão da crítica aos valores morais dominantes que tem origem na moral judaico-cristã, cujo núcleo essencial é o ideal ascético”. (MACHADO, 1999, p. 76). Deste modo, a submissão da vida aos valores é o fundamento de um niilismo estéril que aparece como a essência de um cristianismo incapaz de afirmar a vida, já que tais valores ocultam a incapacidade de afirmar a vida como Vontade de poder. Ao identificar fé à pathos e vontade de verdade à vontade de engano, aponta a civilização ocidental como tributária de uma falsidade incurável. De acordo com Machado (1999, p.76) “[...] é a partir da força ou da fraqueza, da riqueza ou da pobreza, do excesso ou da falta que é colocada a questão do valor. Isso aconteceu com os valores morais, com a questão do bem; o mesmo acontece com os valores epistemológicos, com a questão da verdade”. Assim, a lógica e a ciência também trazem como consequência o empobrecimento da vida, compartilhando assim da moral dos escravos. Diante deste quadro, Nietzsche propõe como alternativa o resgate da dimensão estética, supervalorizando a arte e as manifestações do belo: “Para um filósofo, é vergonhoso dizer que “o bem e o belo são idênticos”; e se ele acrescentar “o verdadeiro”, deve levar uma surra. A verdade é feia. A arte nos é dada para nos impedir de morrer de verdade.” (NIETZSCHE apud COMTE-SPONVILLE, 1994, p. 91). Deste modo, atribuir exclusivamente à arte a possibilidade de apreensão do real é admitir que a ilusão é a única via de compreensão possível; de fato, para Nietzsche, a veracidade de um juízo – entendido aqui como pretensão de verdade – não determina sua validade: A falsidade de um juízo ainda não é para nós nenhuma objeção contra esse juízo: é nisso, talvez, que nossa língua nova soa mais estrangeira. A pergunta é até que ponto é propiciador da vida, conservador da vida, conservador da espécie, talvez mesmo aprimorador da espécie; e estamos inclinados por princípio a afirmar que os mais falsos dos juízos (entre os quais estão os juízos sintéticos a priori) são para nós os mais indispensáveis, que sem um deixar-valer as ficções lógicas, sem um medir a efetividade pelo mundo puramente inventado do incondicionado, do igual-a-si-mesmo, sem uma constante falsificação do mundo pelo número, o homem não poderia viver – que renunciar a falsos juízos seria uma renúncia a viver, uma negação da vida. Admitir a inverdade como condição de vida: isso significa, sem dúvida, opor resistência, de uma maneira perigosa aos sentimentos de valor habituais; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, simplesmente com isso, para além de bem e mal. (NIETZSCHE, 1999, p. 304) Verifica-se que a relação que Nietzsche estabelece com a verdade é sob o domínio do valor e da subjetividade, inviabilizando assim a busca de parâmetros reguladores para a vida coletiva. Ao destituir da arte sua possibilidade de encontro com o bom e o verdadeiro, deparamo-nos com a pura celebração da subjetividade e das pulsões: L’art pour l’art – O combate contra a finalidade na arte é sempre o combate contra a tendência moralizante na arte, contra sua subordinação à moral. L’art pour l’art siginifica “que o diabo leve a moral!” – Mas mesmo essa hostilidade denuncia a prepotência do preconceito. Depois que a finalidade de pregar moral e melhorar a humanidade foi excluída da arte, ainda está longe de se seguir que a arte é, em geral, sem finalidade, sem alvo, sem sentido, em suma, l’art pour l’art – um verme que se morde o rabo. (NIETZSCHE, 1999, P. 381-382) O desenvolvimento do senso estético é inerente ao processo de humanização do homem e, no âmbito da educação, desvincular da arte as noções metafísicas e as finalidades da obra implica na desconstrução do próprio sentido humanizador que reside na experiência estética. Neste contexto, se para Nietzsche (1945) o fato de algo ser belo é suficiente para afirmá-lo, podemos inferir que dizer que algo é “bom” ou “verdadeiro” é equivalente a negá-lo. Isto porque Nietzsche entrevê na dimensão estética a potencialidade criativa, a elaboração de novos signos, referências e valores que possam suplantar a existência idealizada, orientada pelos valores platônico-cristãos. Severino (2006) constata o fenômeno da estetização da educação e da sociedade, considerando a ênfase que a pós-modernidade atribui à dimensão estética: [...] a exacerbação estetizante é mesmo resultante do impulso da radicalidade da crítica à razão instrumental. Sua verdade está na afirmação de que uma nova referência para a educação precisa ser levantada e que nela não se faça ausente a dimensão estética do existir. Entretanto, essa dimensão estética é apenas uma parte do todo, sem dúvida aquela cuja visibilidade é de mais fácil percepção e que, por não ter sido devidamente considerada pela tradição filosófico-educacional, agora faz sua reivindicação de forma mais ruidosa e, às vezes, até mesmo acintosa. (SEVERINO, 2006, p.633) Com este panorama, acompanhamos a emergência e a sobrepossição da dimensão estética sobre a dimensão moral e lógica, o que acarreta sérias consequências para o âmbito da transmissão cultural. Nestas condições, os caracteres que propiciam formação da identidade coletiva se tornam indeterminados, genéricos, diluídos na superficialidade. Realizar a leitura do mundo e de si mesmo somente pela via estética pode tornar superficial a própria experiência do vivido. É deste modo que os ecos do discurso nietzschiano se fazem ouvir até hoje, numa época em sentimos os efeitos da tendência complacente e irrefletida em todos os segmentos da vida social. A cultura contemporânea estetizada é basicamente propagada pelos veículos midiáticos, os quais encontram na experiência imagética e na difusão de simulacros seu principal expoente: [...] Por excesso de realismo a imagem torna-se irreal. [...] As imagens são delirantes, pois é próprio do delírio excluir a consciência, não se converter à explicações lógicas; o delírio não é reversível pela prova da experiência – e quando se vive de acordo com o delírio, pelo pânico da perda do mundo e a angústia do ‘fim’, o delírio pode se tornar uma ideologia de vida. O extremo realismo procura mostrar as coisas sem qualquer mediação teórica, isto é, sem nenhum exercício de pensamento, como se o existente fosse despojado de sua essência, a realidade destituída de sua idéia. O real, a pura existência imediata é intransitivo, indubitável e ‘sem fundamento’. (MATOS, 2006, p. 30-31) É destituindo a vida de suas dimensões moral/ética e lógica/racional que se torna possível a experiência do delírio; uma sociedade guiada pela predominância da dimensão estética pode se tornar uma sociedade sem sentido. É neste contexto que se insere a escola, a qual durante muito tempo dispôs de fórmulas coletivas que orientavam suas práticas, seus ritos e suas normas. A instituição escolar ainda é uma das poucas esferas coletivas que podem colaborar no exercício do pensamento, mediar teoricamente as relações entre sujeito, sociedade e mundo. É neste sentido que reside o perigo de se confundir a escola com o mundo, de transformar a riqueza da experiência estética em pura sobrecarga dos sentidos. Considerações finais Contra o niilismo, contra os contornos que a modernidade vinha adquirindo e contra uma cultura predominantemente idealista e moralista, Nietzsche oferece como alternativa a perspectiva trágico-dionisíaca, na qual a arte ocupa posição privilegiada e é vista como dimensão superior capaz de potencializar a atividade humana. No entanto, a filosofia do martelo derrubou não só ídolos, mas instâncias tão importantes quanto a estética para a configuração do repertório simbólico do ser humano. De fato, constata-se que as críticas de Nietzsche não tem por objetivo apontar e corrigir algum desvio da civilização, ou propor alternativas para melhorá-la - diferentemente das críticas anteriores dirigidas à civilização. Deste modo, podemos depreender que seu objetivo consistia em justamente ameaçar e deslegitimar o arcabouço cultural da civilização ocidental. Se com a ruptura das instâncias metafísicas surgiu uma nova relação epistêmicacultural do sujeito com o mundo, ocorreu também a dissuasão do sujeito acerca dos princípios que o orientavam e que tornavam legível seu campo de ação. Apesar de estarmos num período em que a diluição das fronteiras culturais propicia uma nova forma de relação com o outro, na qual a convivência com a diversidade visa inaugurar um novo modelo civilizatório baseado na tolerância, no diálogo, na igualdade e no respeito, convivemos com a outra face do processo, que é a pulverização dos critérios que orientam os sujeitos, o abalo das referências sólidas e estáveis. As questões postas por estes acontecimentos escapam à sociedade e, de forma mais contudente, à lógica racionalista da instituição escolar. Ao abalar o quadro de referências que norteava seus agentes e ao destituir a escola dos pressupostos que a legitimavam, a instituição escolar não soube como responder às reivindicações que se colocavam por parte de uma juventude que acompanhava os novos contornos que a cultura adquiria. Neste contexto, Severino realiza a seguinte leitura sobre as consequências destes eventos para a educação na sociedade contemporânea: Esse panorama está em processo de mudança, agora, na contemporaneidade. Uma nova forma de se compreender a educação: nem mais sob a prevalência de uma teleologia ética nem mais sob a perspectivação política. Tanto a ética como a política estão sendo questionadas como referências básicas da educação. Como se trata de um pensamento ainda em construção, fica difícil, por falta de distanciamento, apreendê-lo em toda sua extensão, profundidade e magnitude. Essa nova orientação vem sendo designada de filosofia pós-moderna ou pósestruturalista, substrato filosófico de uma possível nova era históricocultural: a pós-modernidade. Levada a seus extremos, tal tendência cai no irracionalismo, inviabilizando qualquer alcance construtivo da racionalidade humana. (SEVERINO, 2006, p.629) Perante esta sociedade discricionária, Matos (2006) entrevê na educação humanista a reelaboração dos princípios éticos. Por meio da reinterpretação dos clássicos, ela afirma a possibilidade de compor uma tessitura de valores capazes de orientar os homens entre as gerações, em constante diálogo com a tradição e com os exemplos. Enquanto reinvenção, a cultura da sociabilidade, do gosto e da sensibilidade poderia integrar novos quadros formativos. Considera que a releitura e a reapropriação do legado humanista numa perspectiva renovada reitera a importância de se resgatar a formação do espírito – formação moral articulada à intelectual -, que hoje cedeu lugar à cultura do corpo e do hedonismo efêmero. Prado Jr. (2001) se posiciona contrário à tese de Matos, pois identifica na apologia ao humanismo o retorno insensível à filosofia das Luzes, “ao saudoso otimismo político e pedagógico que fazia, da difusão de idéias e da instrução, condição necessária e suficiente para a reestruturação da sociedade, segundo os princípios da justiça e da razão” (PRADO JR, 2001, p. 107). Nesta perspectiva, Prado Jr não se propõe a indicar percursos; ele contribui com a reflexão pedagógica na medida em que aponta as aporias da relação entre educação e política, problematizando a ausência de um marco explicativo para o lugar da escola hoje. Já Chartier (2005) problematiza de forma interessante os paradoxos que permeiam a delicada relação entre escola e cultura: Se os conteúdos escolares que eram extraídos da cultura clássica passaram a ser associados à cultura burguesa, de cunho elitista e excludente, que critério ou marco cultural deve orientar a cultura escolar na seleção dos conteúdos? A partir desta questão, a autora tece o seguinte comentário: Se o relativismo cultural passa a ser norma absoluta, nos encontramos em pleno paradoxo. Seguindo a religião da cultura no singular, seletista e elitista, que sabia enunciar seus critérios de escolha e de recusa, vem o ecletismo das culturas plurais em coexistência instável, diante das quais toda posição crítica é imediatamente desqualificada como uma intolerância etnocêntrica. Se a cultura é um conjunto de signos que no universo fechado das sociedades antigas fazem sistema, nas nossas sociedades contemporâneas, democráticas, individualistas, ela forma mais especificamente um conjunto em pedaços.[...] Uma tal concepção de cultura desqualifica por princípio qualquer projeto institucional e, mais extensivamente, toda ‘política’ da cultura. O caso é especialmente agudo quando se trata de escola, que exige um projeto escolar coletivo. (CHARTIER, 2005, p. 19-20) Diante desta e de outras questões é que a instituiçao educativa é chamada a buscar percursos e a rever os eixos norteadores de suas atividades; assinalar as especificidades da natureza desta sociedade e demarcar a posição da escola frente ao seu compromisso de transmitir o patrimônio cultural e formar pessoas no sentido ético é uma tarefa que precisa ser revista na atual configuração societária, para que a instituição escolar não se torne signatária de uma época que abdicou da construção de seus referenciais e de seus fins a ser perseguidos. Portanto, é pelo compromisso ético e racional para com a civilização que a escola tem por função transmitir o patrimônio cultural às próximas gerações. É na possibilidade de encontrar em cada ser humano a articulação entre o Bom, o Belo e o Verdadeiro que a escola deve perseverar no substrato da finalidade educativa, enquanto reparação simbólica da ausência de critérios, da semiformação cultural e moral que predomina na condição humana contemporânea. Referências CHARTIER, A. M. Escola, culturas e saberes. In: XAVIER et al (org.) Escola, cultura e saberes. Rio de Janeiro: FGV, 2005. CHAUÍ, M. S. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2000. COMTE- SPONVILLE, A. A besta-fera, o sofista e o esteta: “a arte a serviço da ilusão”. In: BOYER, A. et al. Por que não somos nietzscheanos. São Paulo: Ensaio, 1994. CORREA, L. M. Entre a apropriação e a recusa: os significados da experiência escolar para os jovens de periferia urbana de São Bernardo do Campo (SP). 2008. 292 f. Tese (doutorado em Educação Escolar) – Faculdade Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2008. DELEUZE, G. 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