Sobre a violência policial: discursos, situações e gramáticas1
Tomás Coelho Garcia (Doutorando IUPERJ/UCAM)
Introdução
Poucos temas têm alcançado tanto espaço na opinião pública das grandes
metrópoles como a violência. Presente em discussões cotidianas de diversos veículos –
rodas de conversas, internet, seminários... –, há até segmentos da imprensa dedicados
exclusivamente a este tema. Como parte destas discussões há as intervenções de
instituições estatais, órgãos públicos por excelência, no combate a criminalidade.
No entanto, violência é uma noção ampla demais, guardando inúmeros
significados, nem todos tendo um alcance público que intuitivamente poderíamos achar
que teriam. É possível afirmar que diferentes tipos de violência ganham notoriedade
segundo as qualidades do praticante, do ato, e da vítima da violência (voltaremos a este
ponto) ou de quem denuncia. Este trabalho dedica-se a denúncia de um tipo de violência
específico que possui grandes dificuldades para tomar repercussões públicas, a violência
policial. Estudar este tipo manifestação ajudará a melhor entender a conjuntura carioca no
que diz respeito à conformação social da opinião pública sobre o tema da violência e da
segurança e alternativas de alteração da mesma opinião.
Este trabalho estará divido em 3 partes. Primeiro se apresentará brevemente a
metodologia para análise de problemas públicos, que guiou a nossa definição de duas
gramáticas que enquadram o tema da segurança pública nas ultimas décadas. Segundo,
comparar-se-á dois casos de denúncia de violência policial. Por fim teceremos algumas
considerações sobre as estratégias e as dificuldades da denuncia a violência policial.
As gramáticas do público
Os pressupostos teóricos do trabalho decorrem da chamada sociologia pragmática
francesa, particularmente do Grupo de Sociologia Política e Moral coordenado por Luc
Boltanski. Trata-se de uma sociologia da ação que se propõe a seguir os atores no curso
de sua ação e a identificar competências e dispositivos que constituem as situações, em
contraposição a qualquer tentativa de buscar “explicações” fora do curso da própria ação.
Utilizando uma metáfora advinda da lingüística, é possível caracterizar os sociólogos
1
Este artigo tem por base a dissertação de mestrado do autor: Garcia, 2009.
1
pragmáticos como elaboradores de gramáticas, ou seja, como dedicados a um trabalho
de modelização de regras seguidas “em situação” (Boltanski, 2000, pp. 55, Bénatouïl,
1999, p. 298-300). Para essa corrente de pensamento, não é possível definir um ator com
base em uma gramática externa à ação; só é possível, então, estabelecer uma gramática
que foi seguida ou não em uma determinada situação.
Ao dedicar-se ao problema da construção de denúncias públicas, Boltanski (2000)
interrogou-se sobre o processo em que um problema individual passa a ser um problema
que afata a todos indiscriminadamente. É uma passagem dos singular para o geral –
similar ao da abstração discutida em termos filosóficos. No enanto, a passagem é incerta,
não dá para definir a priori que problemas permanecerão singulares e quais se tornarão
gerais. Neste ponto, o autor críticou as sociologias que já tomam como dado a existência
de atores como “grandes”, e problemas como “públicos” sem levar em conta as
estratégias de engradecimento ocorridas na sociedade. Estudando estas estratégias, é
possível definir gramáticas em que as pessoas orientam em diversas situações tendo em
conta o público e podem denunciar ou criticar ações tendo em vista o bem comum.
Há uma pluralidade de formas de qualificar ações, pessoas e objetos segundo um
princípio bem comum. Na obra “De la Justification” Boltanski e Thévenot (1999)
constroem um grande modelo que compreende as competências necessárias para
construir uma ordem moral (a cité, na conceituação dos autores) baseada no bem
comum. Devido à brevidade deste trabalho não nos dedicaremos à pluralidade de formas
de construção do bem comum. Daremos privilégio a uma das formas, a ordem cívica, que
identificamos em denúncias contra violência policial e que foi possível modelizar na
pesquisa por meio da análise de 7 Relatórios de Direitos Humanos publicados nos anos
2000 (Garcia, 2009, capítulo 1). Os relatórios nos auxiliaram então a identificar uma
gramática cívica de denúncia contra violência policial.
A ordem cívica, tal qual conceituada por Boltanski e Thévenot (1996), tem como
dispositivo principal a lei, objeto que assegura seu princípio de justiça: a vontade geral. Do
ponto de vista dos relatórios, a lei é o dispositivo de inteligibilidade e avaliação moral da
atuação da polícia. Logo, a própria polícia enquanto instituição é entendida como um
dispositivo que tem por características: 1) a função de defesa da lei; 2) esta própria
função está juridicamente formulada, portanto, a legalidade da função é parte integrante
dela mesma. A dissociação entre o uso da força e a lei tem por efeito a “arbitrariedade”
nas diversas situações da atuação da polícia e é esta a definição da “violência policial”,
categoria central neste modo de denunciar situações injustas.
2
Em contraposição a esta gramática, há outro modo de enquadrar o tema da
segurança pública de maior predominância na conjuntura carioca, a gramática da
violência urbana. Para defini-la utilizamos dos estudos do professor Machado da Silva e
de seus colaboradores.
“Violência urbana” é uma categoria do senso comum carioca e brasileiro que
Machado da Silva tomou de empréstimo dos mais diversos debates de segurança pública
– dos “grupos de confiança” montados pela pesquisa ao discurso de instituições públicas
e matérias de jornal. As práticas situadas às quais a categoria “violência urbana” pode ser
indexada são inúmeras e não caberia aqui a tarefa de listá-las. Estamos aqui tratando do
movimento histórico acima referido como “aumento dos índices de criminalidade”. No
entanto, apesar do uso corrente do termo “crime”, a “violência urbana” não se caracteriza
pelo descumprimento da lei, mas sim por uma ameaça às relações interpessoais que
conferem continuidade às rotinas diárias e garante um sentimento de segurança pessoal”
(Machado da Silva, 2009). Por exemplo: estelionato é uma atividade criminosa e
dificilmente será enquadrado na gramática da violência urbana. Uma rebelião em um
presídio tem dificuldade de receber um enquadramento legal, mas facilmente é
enquadrada como “violência urbana”.
Do mesmo modo com que práticas de violência são enquadradas de acordo com a
ameaça de uma segurança pessoal em detrimentos do seu enquadramento legal, a
atuação policial é enquadrada pela preservação da segurança pessoal em detrimento do
seu enquadramento legal. Isto dá aos aparatos policiais uma autonomia perante a lei.
Seguindo uma tradição militar de polícia, a atuação da polícia na gramática da violência
urbana é descrita como uma guerra, a “metáfora da guerra” nas palavras de Márcia Leite
(2000). Para os fins deste trabalho sublinharemos três desdobramentos importantes desta
metáfora:
1. Não se podem garantir direitos para os que ameaçam a sociedade (“direitos humanos para
seres humanos”, “bandido bom é bandido morto”,...);
2. Caracterização do inimigo como uma entidade equiparável ao Estado (“Estado paralelo”),
não só por deter força repressora, mas também por ser territorializável. Promove-se uma
confusão entre “território da pobreza” (em geral, as favelas e os loteamentos) e “território
do crime”. A todos aqueles que estão neste território aplica-se o ponto “1”.
3. Vítimas de atuações policiais que não ameaçavam a sociedade (“trabalhadores honestos”)
são considerados um efeito colateral: “em toda guerra morrem civis”, “em toda guerra há
baixas dos dois lados”, “para fazer um omelete é preciso quebrar ovos”, “quantas pessoas
inocentes os bandidos estão matando?”
3
Uma vez apresentados as duas gramáticas podemos observar situações concretas
de denúncia à violência policial. O que apresentaremos na próxima seção é a
conformação de dois “casos”, no sentido que este termo é dado por Boltanski e Clavérie
(2007). A forma caso é uma denúncia de um acontecimento singular no que ele revela de
característica geral da sociedade, de modo que condenar tal acontecimento é condenar
um procedimento corrente de uma sociedade. Convoca-se a população para julgar e
tenta-se promover uma reforma do quadro moral vigente. Deste modo, o julgar um caso é
aceitar o condenar um determinado acontecimento, mas, ao mesmo tempo, dividir a
sociedade entre conservação e mudança e. Nos presentes casos, tratam-se de situações
de oposição das duas gramáticas.
Dois casos de violência policial
O Caso Alemão
O Complexo do Alemão, de 65 mil habitantes, é constituído por 13 favelas que
conformam uma área que permeia 5 bairros: Olaria, Bonsucesso, Inhaúma, Ramos e
Penha2. Por esse complexo passa a Avenida Brasil, uma das principais vias de acesso da
cidade. Junto com o Complexo da Maré e outras favelas, compõem uma região
considerada como a “Faixa de Gaza” pela Secretaria de Segurança Pública3.
Em 2 de maio de 2007, ocorreu uma ocupação por forças policiais que começou
como resposta às mortes de 2 policiais, atribuídas a membros de uma facção criminosa
que operava na Vila Cruzeiro, favela pertencente ao Complexo do Alemão. No entanto, o
volume crescente de policiais revelou um planejamento superior a um objetivo de
retaliação.
No mês de julho do mesmo ano, seriam celebrados os Jogos Pan-Americanos na
cidade, evento que mobilizou os governos federal, estadual e municipal em diferentes
instâncias, dentre elas, políticas de segurança pública. Na ocasião, tratava-se de realizar
uma política que fosse um “marco na segurança pública”4, que servisse de exemplo para
outras políticas, assim como tivesse um efeito dissuasivo para a criminalidade da cidade,
demonstrando que não haveria espaço para demonstrações de força não oficiais durante
o período dos Jogos. A operação do Complexo do Alemão foi, de fato, um marco. Não por
conta de uma inovação da concepção militarizada de segurança pública, mas pela
2
Segundo o Instituto Pereira Passos da Prefeitura do Rio de Janeiro, tendo como fonte o Censo Demográfico de 2000
(http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/).
3
“Faixa de Gaza na mira da segurança pública” , reportagem publicada no jornal O Globo em 10/05/2007.
4
“Operação é considerada um marco”, reportagem publicada no jornal O Globo em 29/06/2007.
4
intensidade do uso do aparato policial. Entre os dias 2 de maio e 17 de agosto de 2007,
foi levada a cabo uma operação policial, envolvendo 1350 policiais, militarias civis e a
recém-criada Força Nacional de Segurança (FNS). Nesta operação, foram mortas 44
pessoas e mais de 81 ficaram feridas (Centro de Defesa de Direitos Humanos de
Petrópolis et al., 2007).
Embora a operação tenha durado meses, o dia que ficou para a memória da
população carioca foi o da “Mega-operação”. Em um dia, 27 de junho de 2007, durante 8
horas, foram mobilizados 1.350 policiais – de uma só vez – das forças supracitadas,
cercando o Complexo: 19 pessoas foram mortas, cerca de 60 pessoas foram feridas. A
Mega-Operação recebeu apoio de diferentes personagens públicos5.
Dias após o incidente houve divulgação na imprensa das fichas criminais das
pessoas mortas na operação. Dos 19 mortos, 11 tinham ficha criminal6. A qualificação dos
mortos como criminosos tem o efeito de reforçar, dentro da gramática da violência urbana,
a construção da imagem dos mortos como “bandidos” a serem subjugados. Some-se a
isto o fato de que nenhum familiar prestou queixa à delegacia de polícia da localidade, 22ª
DP, Penha. Este “fato” foi utilizado pelo Chefe da Polícia Civil, Gilberto Ribeiro, como
suspeita de que as vítimas da operação não eram inocentes7.
Uma comissão de entidades de Direitos Humanos8 redigiu um manifesto conta a
Mega-operação e realizou uma visita à sede da associação de moradores do Complexo
do Alemão e seguiu em caminhada até a região da Grota local em que o conflito bélico foi
mais intenso. Também solicitou a um perito independente, Dr. Odorilon Loracca Quinto,
uma avaliação do material recolhido pelo IML. No dia 17 de julho, a CDHAJ entregou uma
Notitia Criminis para o Sub-Procurador Geral de Direitos Humanos do Ministério Público
do Rio de Janeiro, contendo um relato dos moradores de delitos praticados por policiais.
5
"Tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem jogando pétalas de rosas. A gente tem que enfrentar
sabendo que eles muitas vezes estão mais preparados do que a polícia, com armas mais sofisticadas. A gente tem que
enfrentá-los sabendo que a maioria das pessoas de lá é gente trabalhadora, gente de bem, que não pode ficar refém de
uma minoria" (Declaração de Luis Inácio Lula da Silva registrada em “Lula dá 1,6 bilhões à favelas para ‘competir’
com o tráfico” , reportagem publicada no jornal O Globo em 03/06/2007).
“Quando governo do estado decide retomar o controle de territórios, nós damos sustentação” (Declaração de Tarso
Genro, Ministro da justiça registrada em “Operação é considerada um marco”, reportagem publicada no jornal O Globo
em 29/06/2007).
“Se alguém tiver uma outra solução para o caso, estamos abertos a sugestões. O problema é que alguém tem que
demonstrar força. E, nessa situação, o estado tem que suplantar as forças destes marginais” (Declaração de Luiz
Fernando Corrêa, Secretario Nacional de Segurança Pública, registrada em “Secretário Nacional defende
enfrentamento”, reportagem publicada no jornal O Globo em 07/07/2007.
6
“De 19 mortos, 11 tinham antecedentes criminais” , reportagem publicada no jornal O Globo em 03/07/2007.
7
“De 19 mortos, 11 tinham antecedentes criminais” reportagem publicada no jornal O Globo em 03/07/2007.
8
Os grupos que compuseram inicialmente a comissão foram: Justiça Global, Raízes em Movimento, Observatório de
Favelas, Ordem dos Advogados do Brasil, Núcleos de Estudos Criminais, Grupo Tortura Nunca Mais, Centro de defesa
dos Direitos Humanos de Petrópolis, Movimento Direito pra Quem, Central de Movimentos Populares, Projeto Legal,
NPC – Núcleo Piratiniga de Comunicação, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, O Fórum de
Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH), IBASE e Mandato de Deputado Estadual Marcelo Freixo.
5
A pedido da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, a Secretaria Especial de
Direitos Humanos da presidência da República enviou 3 peritos para prestarem uma
“cooperação técnica” à perícia estadual. Tanto o parecer dos 3 peritos, quanto a Noticia
Criminis relatam indícios fortes da ocorrência de execuções sumárias ou arbitrárias: o uso
de armas brancas (faca), ângulo de disparos de cima para baixo, ferimento nas mãos nos
braços indicando auto-defesa, tiros na nuca e nas costas à curta distância, etc.
Apesar dos indícios, não ocorreu denúncia judicial, permanecendo o caso até os
dias atuais em estágio de inquérito. O Caso Alemão tornou-se até então o caso mais
“emblemático” de violência policial no estado do Rio de Janeiro dos últimos anos. No
“Relatório da Sociedade Civil para o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções
Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais”, várias páginas estão dedicadas somente a ele. No
final de 2008, entre os dias 4 e 6 de dezembro, foi realizado o “Tribunal Popular de
Julgamento do Estado Brasileiro”, na USP, São Paulo; evento que contou com
organizações de Direitos Humanos de todo o Brasil. A programação, dividida em seções,
envolvia diversas formas de “violações aos direitos humanos”. O Caso Alemão foi
“julgado” na seção dedicada à violência policial.
O caso obteve repercussão na imprensa, embora com destaque secundário em
relação a própria Mega-operação. Porém, é importante salientar que as manifestações
públicas foram quase exclusivamente de participantes de entidade de Direitos Humanos.
A própria população do Complexo do Alemão teve possibilidades restringidas de
manifestação devido à continuidade da operação policial que durou até 17 de agosto de
2007. Uma manifestação púbica foi realizada contra a operação, porém no Estádio do
Maracanã por ocasião do início dos Jogos Pan-Americanos.
Cabe, por fim, destacar o protagonismo do CDHAJ que, com a divulgação da
Noticia Criminis, passou por um processo de divergência com a direção da OAB-RJ,
organização a qual pertencia. João Tancredo, diretor do CDHAJ, foi exonerado do cargo
e, dias depois, 43 colegas pediram demissão em apoio. Posteriormente, este grupo de
pessoas viria a formar uma ONG chamada Instituto de Defesa dos Direitos Humanos
(IDDH).
O Caso Providência
6
O Morro da Providência, de 3443 habitantes, encontra-se no bairro da Gambôa,
Zona Portuária do Rio9. O morro possui uma grande importância simbólica e histórica
para cidade do Rio de Janeiro. Por muitos é considerada a primeira favela, embora não
há evidencias historiográficas suficientes para sustentar esta tese. A origem mítica do
morro da Providência exerceu um papel crucial nas intervenções estatais referentes a
esta favela. Foi o caso do projeto Cimento Social formulado pelo senador Marcelo Crivella
em 2007. Tratava-se de um projeto de reforma de casas populares, especificamente
fachadas e telhados. O projeto tinha um custo de R$ 12 milhões e previa a participação
de moradores em mutirão. A licitação das obras ficou a cargo do Exército numa parceria
entre o Ministério das Cidades e da Defesa10. Em um documentário propagandístico do
projeto, o locutor chega a afirmar que “vamos fazer com que todo brasileiro, quando
chegar ao Rio de Janeiro e olhar para os morros, continue de cabeça erguida”11.
No dia 14 de junho de 2008, três rapazes (David Wilson da Silva, 24 anos,
Wellington Gonzaga da Costa Ferreira, 19 anos e Marcos Paulo Rodrigues Campos, 17
anos) foram abordados por militares – embriagados, segundo moradores – na praça
Américo Brum, no alto do morro. Os jovens foram levados para o quartel de Santo Cristo
onde a mãe de um dos rapazes tê-los-ia visto, ensangüentados, pela ultima vez. No
mesmo dia, policiais subiram o Morro da Mineira, seguindo uma denúncia anônima de que
os rapazes lá se encontravam12. No entanto, os rapazes só foram encontrados no dia
seguinte, mortos, no Aterro Sanitário do Gramacho, em Caxias. Segundo laudos periciais
feitos posteriormente, os três tinham evidências de tortura. Wellington recebera 19 tiros,
um deles no olho direito; David, 26 tiros e tivera as pernas quebradas; e Marcos: 1 tiro e
fora arrastado pelas ruas13.
No dia do desaparecimento, houve um grande protesto na favela e nas
proximidades. Ônibus foram incendiados e depredados, o que tumultuou o trânsito de
toda a região. No dia seguinte, um grupo de 50 pessoas se reuniu em frente ao Quartel de
Santo Cristo. Após um incremento de mais 50 pessoas, o grupo seguiu em passeata até o
Comando Militar do Leste (Palácio Duque de Caxias)14. Moradores reivindicavam a prisão
dos soldados envolvidos e a saída do exército da favela. Faixas pretas foram penduradas
no morro, inclusive uma bandeira do Brasil, posta no início das obras, foi substituída por
uma bandeira preta.
9
Dados extraídos do Relatório Sabren.
“Parentes viram jovens no quartel”, reportagem publicada no jornal O Globo em 15/06/2008.
11
“Senador fez segredo sobre ação do exército”, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/08/2008.
12
“Exército é acusado de desaparecimento de jovens”, reportagem publicada no jornal O Globo em 15/06/2008.
13
“Polícia indicia 11 militares por triplo homicídio”, reportagem publicada no jornal O Globo em 20/06/2008.
14
“Protestos se estendem do morro ao asfalto”, reportagem publicada no jornal O Globo em 16/06/2008.
10
7
O maior protesto foi realizado no dia do enterro dos jovens, dois dias depois. Cerca
de 300 moradores e membros de entidades de Direitos Humanos compareceram ao
enterro com faixas, ostentando os dizeres: “Exército brasileiro: mão amiga ou inimiga?”;
“Ordem e progresso, ou desordem e desprogresso?” e palavras de ordem como: “Crivella,
se manda, pilantra”. Do cemitério, os moradores seguiram em ônibus para frente do
Comando Militar do Leste. Cinco minutos após a chegada dos moradores, quando alguém
joga pedras na direção dos 50 soldados, estes utilizaram bombas de efeito moral, spray
de pimenta e disparo de armas não letais. Manifestantes queimaram uma farda de
camuflagem.
Em diversas matérias, o jornal O Globo questionou o fato de que o exército estava
realizando uma função de segurança pública, também questionava o caráter “eleitoral” do
projeto Cimento Social. De fato, o ano de 2008 foi um ano de eleição para cargos
executivos e legislativos municipais e o senador Marcelo Crivella (PRB) era pré-candidato
a prefeito do Rio de Janeiro. Outros pré-candidatos intervieram publicamente,
condenando o projeto como tentativa de campanha eleitoral antecipada. Alguns desses
pré-candidatos, como Fernando Gabeira, Chico Alencar e Alessandro Molon possuíam
cargos parlamentares e incentivaram denúncias no Senado, na Câmara Federal e na
Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Destas denúncias resultou um pedido feito pela
Câmara Federal para que o Ministério Público Federal (MPF) investigasse o projeto
Cimento Social, além do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) para que se investigasse o uso
da máquina pública15.
A Presidência da República, por meio de sua Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, articulou uma comissão para acompanhar os inquéritos do crime, fazendo
parte a OAB nacional e regional, a Procuradoria Geral da República e a Procuradoria
Federal dos Direitos do Cidadão16. À pedido do Presidente, o Ministro da Defesa Nelson
Jobim, visitou a favela para pedir desculpas, junto como o General Mauro Lorena Ciol, da
9ª Brigada da Infantaria Motorizada, responsável direto pelo projeto Cimento Social17.
Os 11 militares suspeitos de terem entregado os jovens aos traficantes do Morro da
Mineira tiveram prisão (de 10 dias), decretada no dia 16 de junho de 2008, sendo levados
para o 1º Batalhão de Infantaria Motorizada. Todos passaram por um interrogatório
15
“Parlamentares suspeitam de uso eleitoral de Exército”, reportagem publicada no jornal O Globo em 19/06/2008.
“Ofensiva contra o exército”, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009.
17
“Quero dizer que, quando cheguei aqui, ouvi a expressão uníssona de vocês clamando por justiça, tenham todos
vocês, lideres comunitários e em especial as mães, parentes e namoradas desses rapazes, o nosso compromisso nas
busca por justiça para que paguem pelo que fizeram. É compromisso assumido” (Declaração de Nelson Jobim,
Ministro da Defesa, em “Jobim pede desculpas em nome do governo”, reportagem publicada no jornal O Globo em
18/06/2009).
16
8
conduzido pelo delegado Dominguez. Em entrevista à imprensa, o delegado relatou que
os militares confessaram ter deixado os jovens nas mãos de traficantes da facção ADA
(rival da facção Comando Vermelho, que atua na Providência). Todavia, para a “surpresa”
do delgado, não demonstravam “arrependimento” com o desfecho trágico que os rapazes
tiveram. Os militares teriam dito que a idéia de entrega dos rapazes havia partido do
tenente Vinícius Ghidetti, que desejava aplicar um “corretivo” nos jovens; estes, por sua
vez, teriam cometido um “desacato”18.
No mesmo inquérito, foram levantadas as fichas criminais das vítimas. De acordo
com a 4ª DP, David Florêncio teve passagem pela policia por corrupção de menores e
porte de armas. Wellinton Gonzaga da Costa esteve na DPCA por ter recebido ligações
no celular de traficante da providência durante uma abordagem policial. A mãe de Marcos
da Silva teve passagem por tráfico de drogas.
O inquérito policial foi concluído no dia 19 de junho de 2008 e entregue para ao
promotor da 3ª Vara Criminal do Tribunal do Júri. Os militares foram indiciados por triplo
homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio cruel e sem chance de defesa para
as vítimas). O juiz Edmundo Franca de Oliveira, da 2ª auditoria da justiça militar, decretou
prisão do tenente, de 1 sargento e 2 soldados19. O Ministério Público Federal solicitou à 7ª
Vara Criminal que requisitasse à Justiça Estadual o inquérito policial que apura o caso. O
pedido foi deferido pelo juiz da 10ª Vara Federal no Rio, e o processo passou a correr em
âmbito federal20.
Quem matou? Quem morreu?
O caso do Alemão e da Providência foram dois exemplos de como situações
ajustadas à gramática da violência urbana podem ser postas em questão, criticadas e
publicizadas pelo acionamento de dispositivos cívicos. Passaram de mortes singulares
para casos de “violência policial” a serem denunciados e combatidos. No entanto, há
substanciais diferenças entre os casos.
Uma primeira diferença é o andamento do inquérito: o caso Alemão não se tornou
um processo judicial, diferentemente do Caso Providência. Podemos observar esta
diferença na natureza dos indícios produzidos. No Caso Alemão a maioria dos indícios foi
produzida fora dos meios correntes: IML e Polícia Civil. Enquanto que no segundo Caso
18
“Sem arrependimento”, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/06/2009.
“Polícia indicia 11 militares por triplo homicídio qualificado”, reportagem publicada no jornal O Globo em
20/06/2009
20
“Justiça manda exército ficar em apenas uma rua”, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009.
19
9
é possível observar a gama de indícios possíveis de serem produzidos segundo o Código
de Processo Penal. Foram colhidos e divulgados, na imprensa, depoimentos de
suspeitos, testemunhas oculares, demais testemunhas e exames periciais. No
depoimento dos suspeitos, produziu-se um indício especial, a confissão, mesmo sendo
uma confissão desprovida de uma intencionalidade do ato criminoso (“arrependimento”).
Acreditamos que a compreensão da diferença da produção de indícios está na
articulação de elementos importante do processo judicial, sobretudo a polícia civil, mas
também IML, Ministério Público na gramática da violência urbana em uma das situações,
o que pode não ocorrer sempre. Na Mega-Operação do Alemão, foi possível fazer uma
associação entre diversas instituições – não apenas as diretamente policiais, mas
também o Governo do Rio de Janeiro e o Governo Federal – engajados na gramática da
violência urbana. De 2 de maio a 17 de agosto de 2007, ocorreu uma série de eventos de
“guerra aos bandidos” em que todos os dispositivos possíveis ao repertório foram
acionados. Deste ponto de vista, nas próprias peculiaridades do inquérito, foi possível
encontrar investimentos enquadrados nesta gramática como o “auto de resistência”,
“presunção de confronto” e “mortos com ficha suja”. A isto se soma o fato de que, no
mesmo período, foram constantes os confrontos armados na região, dificultando qualquer
mobilização de vítimas ou investigação policial.
No inquérito da providência, não foi possível discernir a mesma gramática através
das notícias. Isto se deu por vários problemas:
1. Por mais que a presença do exército fosse justificada para dar segurança às obras, não
estava clara sua presença no restante do morro e, particularmente, no local onde os jovens
foram abordados;
2. Também não houve uma associação com as policias civil e militar, principais “portadores” da
gramática da violência urbana. Havia uma suspeita de negociação entre militares e traficantes
do morro da mineira, o que desestabilizou a polarização discursiva entre policiais e bandidos,
tão cara à mesma gramática;
3. Por último, mas não menos importante, o próprio motivo do exército estar no morro foi
substancialmente deslegitimado como eleitoreiro.
Deste modo, ficam parcialmente identificadas causas para a ausência de
dispositivos como “presunção de confronto” e “auto de resistência” no inquérito da
Providência assim como a presença de outros dispositivos como um “homicídio
triplamente qualificado”.
10
Apresentado estas diferenciação de gramáticas no próprio âmbito do inquérito, fica
clara a diferença na conformação dos casos. No Caso do Alemão, atores denunciantes
foram constrangidos a criticar a própria condução do inquérito e apresentar novos
indícios, enquanto no caso do Providência, na maior parte da seqüência de eventos, pôde
acionar os próprios indícios produzidos pela Polícia Civil. Isto não quer dizer que os atores
denunciantes do Caso Providência não precisaram criticar o processo judicial como um
todo – vide o atual documento da Rede de Movimentos Contra a Violência (2009).
Aparentemente, o desfecho pode ter parecido relativamente mais favorável para o
desdobramento do Caso Providência. No entanto, quando observamos os dois casos sob
a perspectiva da construção de um problema público, o caso Providência teve maior
dificuldade de se consolidar como um caso. A forma “caso”, tal como conceituada por
Clavérie e Boltanski, depende da generalização de todos os atores envolvidos numa
disputa. Quando se questiona quem matou em quem morreu no Caso Providência temos
um menor nível de generalização se confrontarmos com o Caso Alemão.
Quem matou no Caso Providência? Soldados, sargentos e tenentes? Os
comandos? A polícia e o exército? O governo? O Estado? O desfecho satisfatório do
inquérito na Providência tem um efeito “singularizador”, quando se pensa na construção
social de uma denúncia, pois a responsabilidade dos assassinatos recai sobre alguns
membros do exército, e não sobre a corporação. E mesmo se recaísse sobre a
corporação, esta pode ser criticada somente pelo seu uso “eleitoral”, não se questionando
a política de segurança pública. Mesmo com estas dificuldades o problema pode ser
parcialmente contornado quando o abuso promovido pelo exército é enquadrado nos
“sucessivos casos de violação de Direitos Humanos na comunidade da Providência pelas
forças militares que a ocupam” (Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência,
2008).
O problema fica mais claro quando se compara com o Caso Alemão. Embora não
tenha havido processo penal, houve um processo civil, o que poderia ser interpretado
como um “pelo menos”, uma solução de segunda ordem. Entretanto, ao entrevistar um
ex-membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB e atual diretor administrativo da
ONG Instituto de Defesa de Direitos Humanos (IDDH), este alegou que um processo
criminal estaria sob a égide de um “paradigma da punição”, ao ter como indiciados
policiais ou o comando da polícia. O mais importante seria responsabilizar o Estado,
através de um processo civil que está tramitando sob a responsabilidade do Escritório
Jurídico de João Tancredo (ex-diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB, atual
diretor do IDDH). Por outro lado, o mesmo processo civil tem o inconveniente de
11
singularizar a vítima: as três famílias que estão movendo o processo civil, ao invés de
personagens de maior tamanho: “moradores de favela”, “pobres”, “direitos humanos”,...
Contudo, foi a realização do “Tribunal Popular” que permitiu contornar vários
problemas de generalização: Quem matou foi o “Estado”, quem morreu foram “vítimas de
violência policial”, quem devia julgar é a “população”. O assassino, o Estado por meio dos
seus agentes, ainda cometia um grande crime, a “Mega-operação” que, segundo a
definição anteriormente citada, envolve “incursões policiais nas favelas que contam com
um grande número de agentes das forças de segurança estadual e/ou federal, além de
uma ampla cobertura dos meios de comunicação” (Tribunal Popular, 2008, p. 14).
Considerações finais
As constatações tiradas dos dois casos indicam mais caminhos para futuras
pesquisas do que propriamente conclusão. Primeiramente, faz-se necessário, analisar a
dificuldade da construção da crítica a atuação da polícia devido à precariedade social em
que vivem a maior parte de suas vítimas. Tanto no Complexo do Alemão quanto na favela
da Providência a constante ameaça de incursões policiais impõe uma atmosfera de medo
e tensão que dificulta ou impede qualquer manifestação pública pelo medo de seus
efeitos. Este fato é apenas parcialmente superado pela atuação de entidades de Direitos
Humanos com atuação dentro e fora das favelas, os principais locais de violência policial.
Ainda sim, faz-se necessário entender melhor a relação que estas entidades mantêm com
o “seu público”.
Outro caminho de pesquisa são as possibilidades de instituições do aparato
repressivo do Estado articularem-se ou não dentro da gramática da violência urbana. Uma
das vantagens da sociologia pragmática é não vincular automaticamente, atores às
gramáticas. Deste modo a Polícia Militar pode ter ações ajustadas à gramática da
violência urbana em determinadas situações e ajustadas a outras gramáticas em outras
situações. Este foi o caso do Exército que no Caso Providência não conseguiu legitimarse na “Guerra ao Tráfico”. Isto tem por conseqüência o fato de que a condenação dos
membros da corporação indicar um ausência da gramática da violência urbana, mas
dificilmente podem ser caracterizados como uma virada na conjuntura – um reforço da
gramática cívica.
Por fim, é possível estabelecer como hipótese para futuras investigações a
existência de uma dualidade quando se pensa no julgamento dos casos de “violência
policial”: a realização de um julgamento penal tende a engrandecer a vítima; a ação civil
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ou uma manifestação política tende a engrandecer o perseguidor. Esta dualidade não se
manifesta como uma oposição – a não ser que um ator envolvido na critica tenha que
traçar uma estratégia imediatamente prioritária.
O debate sobre segurança pública carioca tem um caráter bastante dinâmico.
Novos processos iniciam-se como a perseguição policial a milícias, e a instituição de
Unidades de Polícia Pacificadora. Ainda sim para um segmento da população vulnerável
ao aparato repressor é de grande importância de questionar situações de injustiça e
contornar as dificuldades de tornar pública de modo a conseguir mobilizar cada vez mais
pessoas na busca de soluções.
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Sobre a violência policial: discursos, situações e gramáticas1