1 GRUPO DE TRABALHO 4 CIDADANIA, CONTROLE SOCIAL E MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS VIOLÊNCIA POLICIAL COMO TEMA PÚBLICO: O CASO DA “CHACINA DO ALEMÃO” Tomás Coelho Garcia 2 VIOLÊNCIA POLICIAL COMO TEMA PÚBLICO: O CASO DA “CHACINA DO ALEMÃO” Tomás Coelho Garcia1 Resumo O presente trabalho é parte de uma dissertação com o título provisório de “Crítica e justificação da violência policial no Rio de Janeiro” a ser defendida sob a orientação do professor Luiz Antônio Machado da Silva (IUPERJ-UCAM). Tem por objetivo o estudo de diversas produções de sentido em torno da temática da “violência policial”. Para isto, utiliza-se do instrumental da Teoria da Justificação desenvolvida por Luc Boltanski e Laurent Thévenot que possibilita o estudo de condições situadas de denúncias públicas de injustiça. Em pesquisas anteriores, tendo como fonte relatórios de Direitos Humanos de organizações nacionais e internacionais, identificou-se o predomínio (embora não exclusividade) do mundo cívico com acionamentos de dispositivos jurídicos formais para a construção de denúncias contra a violência policial. No presente trabalho, trata-se de um estudo sobre as condições concretas e situadas de denúncia de casos de violência policial num evento que recebeu certa repercussão no cenário carioca, a “Chacina do Alemão” ocorrida em junho de 2007. Atribui-se relevância às possibilidades limitadas de tornar uma agressão ocorrida em um fato juridicamente relevante. Também se salienta o acionamento de dispositivos extra-jurídicos pertencentes a outras ordens morais. Os resultados desta pesquisa permitem, portanto o diálogo com a literatura jurídica, sociológica e antropológica específica ao tema da produção da verdade judicial. A Gramática da Violência Urbana Nas ultimas décadas, na discussão sobre segurança pública tem dominado uma linha de argumentação que foi resumida pelos seus adversários como “metáfora da guerra” (Leite, 2000). Trata-se de um discurso baseado na ameaça de uma noção de “violência urbana”. Esta noção é amparada pelo aumento dos índices de criminalidade violenta unificados, no plano do discurso (sobretudo jornalístico), na entidade do “Tráfico”. Tratamos aqui a representação da “violência urbana” como uma gramática, no sentido de que, sem reificar esta representação em determinados atores ou instituições, ela está constituída por um conjunto de dispositivos a serem acionados por diferentes atores em diferentes situações2. Assim, a gramática da violência urbana constitui um modo coletivo de construção do problema da expansão do crime violento nas cidades brasileiras. 1 Mestrando em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Agradeço a contribuição teórica de Luiz Antônio Machado da Silva, Gláucia Mouzinho e Roberta Pedrinha. Os equívocos são evidentemente de minha responsabilidade. 2 Seguindo linha teórica da Sociologia Pragmática Francesa a qual este trabalho se identifica, o termo gramática é tomado evidentemente de empréstimo da lingüística. Trata-se de um esforço de construir “modelos que dêem conta da especificidade das ações observadas, identificando nas ações seus traços pertinentes quanto aos dispositivos que as sustentam e às competências que as produzem” (Bénatouïl, 1996, pp. 298, tradução própria). É importante ressaltar que o uso do termo contrapõe-se a qualquer tentativa de descrever uma “estrutura objetiva”, pois privilegia as competências da ação em situação. 3 O argumento central a ser examinado nesta gramática é de que o aumento da criminalidade violenta necessita ter uma contrapartida representada pelo aumento do caráter repressivo do Estado. No caso, a repressão vem na forma de uma polícia reduzida a sua dimensão repressora, o que não exclui uma colaboração das forças armadas3. O uso da força policial, neste enquadramento, está localizado entre o que está sendo ameaçado e o que está ameaçando. O que está sendo ameaçado constitui o bem mais precioso de uma sociedade - a “paz”. Logo, medidas drásticas devem ser tomadas. Quem está ameaçado é um grupo com uma organização capaz de enfrentar os aparelhos policiais - o “Tráfico”. De novo, medidas drásticas devem ser tomadas. A imagem de uma guerra pode ser identificada em dois pontos: 1. Não se pode garantir direitos para os que ameaçam a sociedade (“direitos humanos para seres humanos”, “bandido bom é bandido morto”,...). 2. Caracterização do inimigo como uma entidade equiparável ao Estado (“Estado paralelo”) não só por deter força repressora, mas também por ser territorializável. Promove-se uma confusão entre “território da pobreza” (em geral a favela e loteamentos) e “território do crime”. A todos aqueles que estão neste território aplica-se o ponto “1”. Cabe acrescentar que esta gramática é composta por vítimas de atuações policiais que não ameaçam a sociedade (“trabalhadores honestos”). As vítimas são consideradas um efeito colateral: “em toda guerra morrem civis”, “em toda guerra há baixas dos dois lados”, “para fazer um omelete é preciso quebrar ovos”, “quantas pessoas inocentes os bandidos estão matando?”... A demanda pelo aparato policial neste contexto é justificada pela ameaça que o crime violento promove sobre direito à pessoa e à propriedade. A “cidadania” está ameaçada. Num plano mais subjetivo, a criminalidade violenta promove insegurança e ameaça um “mítico ordenamento da vida cotidiana, calmo e previsível” (Machado da Silva, 2006, pp.77). É importante notar que o direito à pessoa e à propriedade é um estreitamento não apenas da discussão de cidadania, mais também de sua parcela - os direitos civis. A ressignificação da noção de cidadania, reduzida a um apelo de segurança e repressão a um grupo difuso que pode, no seu sentido mais lato, englobar habitantes de “territórios da pobreza”, permite elucidar a relação entre a gramática da violência urbana e uma gramática cívica4. 3 Para o estabelecimento geral do quadro dessa discussão conferir Machado da Silva, 2006. O mundo cívico é um entre 7 mundo morais identificados por Boltanski, Thévenot e Chiapello o grupo de pesquisadores a ele associados. O termo “gramática” geralmente é utilizado por este autor para definir o regime de justificação, sob qual é possível realizar críticas, denúncias e justificações (Boltanski. Thévenot, 1991 e Boltanski; Chiapello, 1999). No presente trabalho estamos salientando a oposição entre a gramática da violência urbana e o mundo cívico, o que permite tratar este último como uma gramática. Não trabalharemos aqui com denúncias atribuídas a outros mundos morais, o que não quer dizer que não sejam acionados no debate público carioca. 4 4 Em estudo anterior, utilizando como material empírico os Relatórios de Direitos Humanos, buscou-se explicitar quais são os dispositivos que compunham um mundo cívico, particularmente no que diz respeito ao tema da segurança pública5. O debate cívico, dentre outros elementos, se constitui na sua relação com a gramática da violência urbana de um ponto de vista crítico ao denunciar a “violência policial” e reivindicar por “Direitos Humanos” – duas categorias centrais para a inserção no tema cívico. O mundo cívico, tal qual conceituado por Boltanski e Thévenot (1996), tem como dispositivo principal a lei, objeto que assegura seu princípio de justiça: a vontade geral. Deste ponto de vista, os relatórios propõem-se a pensar como a lei deve ser formulada de um ponto de vista inclusivo – em contraposição a restrição à “segurança” presente na gramática da violência urbana. Igualmente discutem modos em que instituições, particularmente a polícia, podem ter a lei como princípio de orientação de seu funcionamento. No presente trabalho, ao invés de se debruçar acerca de princípios abstratos que conformam um mundo cívico, tratar-se-á de observá-los acionados sob uma situação concreta de denúncia de casos de violência policial em evento que recebeu certa repercussão no cenário carioca, a “Megaoperação do Alemão”, ocorrida em junho de 2007. A Operação do Complexo do Alemão O Complexo do Alemão, de 65 mil habitantes, compreende 13 favelas em área compreendida entre 5 bairros: Olaria, Bonsusesso, Inhaúma, Ramos e Penha6. Por ela passa a Avenida Brasil, uma das principais vias de acesso da cidade. Junto com o Complexo da Maré e outras favelas, compõe uma região considerada como a “Faixa de Gaza” pela Secretaria de Segurança Pública7. A ocupação de forças policiais começou em 2 de maio de 2007 como resposta por parte da polícia militar às mortes de 2 policiais atribuídas a membros de uma facção criminosa que operava na Vila Cruzeiro, favela pertencente ao Complexo do Alemão. No entanto, o volume crescente de policiais revelou um planejamento superior a um objetivo de retaliação. No mês de julho do mesmo ano seriam celebrados os Jogos Pan-Americanos na cidade, evento que mobilizou os governos federal, estadual e municipal em diferentes instâncias, dentre elas, políticas de segurança pública. Na ocasião, tratava-se de realizar uma política que fosse um “marco na segurança pública”8, que servisse de exemplo para outras políticas, assim como tivesse um efeito dissuasivo para a 5 Este estudo fará parte da dissertação de mestrado já referida. Segundo o Instituto Pereira Passos da Prefeitura do Rio de Janeiro tendo como fonte o Censo Demográfico de 2000 (http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/). 7 “Faixa de Gaza na mira da segurança pública” , reportagem publicada no jornal O Globo em 10/05/2007. 8 “Operação é considerada um marco”, reportagem publicada no jornal O Globo em 29/06/2007, 6 5 criminalidade da cidade, demonstrando que não haveria espaço para demonstrações de força não oficiais durante o período dos Jogos. A operação do Complexo do Alemão de fato foi um marco, não por conta de uma inovação da concepção militarizada de segurança pública, mas pela intensidade do uso do aparato policial. Entre o dia 2 de maio e 17 de agosto de 2007, foi levada a cabo uma operação policial, envolvendo 1350 policiais, militarias civis e a recém criada Força Nacional de Segurança (FNS). Nesta operação foram mortas 44 pessoas e mais de 81 ficaram feridas (Centro de Defesa de Direitos Humanos de Petrópolis et al., 2007). Embora a operação tenha durado meses, o dia que ficou para a memória da população carioca foi o da “Mega-operação”. Em um dia, 27 de junho, durante 8 horas foram mobilizados 1.350 policiais – de uma só vez – das forças supracitadas, cercando o Complexo. 19 pessoas foram mortas, cerca de 60 pessoas foram feridas. A Mega Operação recebeu apoio de diferentes personagens públicos9. Houve denúncias por parte da população do Complexo acerca dos diferentes abusos por parte da polícia durante este evento, o que envolvia, dentre outros delitos, casos de execuções sumárias. Um grupo de entidades de Direitos Humanos realizou uma visita à favela para recolher relatos do evento. Dentre as entidades constam: Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, a ONG Justiça Global, a ONG Projeto Legal, dentre outros. Neste trabalho acompanharemos a tentativa de tornar públicos casos de execução sumária ocorridos no Complexo do Alemão. Apresentando os obstáculos para a publicização do caso uma vez que, de início foi adotada uma estratégia jurídica. Denúncias Públicas Seguindo a Teoria da Justificação de Bostanski (2000) e seus colaboradores, tornar pública uma situação de injustiça é o mesmo que torná-la um problema geral, generalizá-la. Para tanto, é preciso transcender seus aspectos singulares,ou seja, “des-singularizar”. Os autores em questão estudaram diferentes situações de denúncia em que os atores envolvidos, ao acusarem uma situação 9 "Tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem jogando pétalas de rosas. A gente tem que enfrentar sabendo que eles muitas vezes estão mais preparados do que a polícia, com armas mais sofisticadas. A gente tem que enfrentá-los sabendo que a maioria das pessoas de lá é gente trabalhadora, gente de bem, que não pode ficar refém de uma minoria" (Declaração de Luis Inácio Lula da Silva registrada em “Lula dá 1,6 bilhões à favelas para „competir‟ com o tráfico” , reportagem publicada no jornal O Globo em 03/06/2007). “Quando governo do estado decide retomar o controle de territórios, nós damos sustentação” (Declaração de Tarso Genro, Ministro da justiça registrada em “Operação é considerada um marco”, reportagem publicada no jornal O Globo em 29/06/2007). “Se alguém tiver uma outra solução para o caso, estamos abertos a sugestões. O problema é que alguém tem que demonstrar força. E, nessa situação, o estado tem que suplantar as forças destes marginais” (Declaração de Luiz Fernando Corrêa, Secretario Nacional de Segurança Pública, registrada em “Secretário Nacional defende enfrentamento”, reportagem publicada no jornal O Globo em 07/07/2007. 6 de ser injusta acionam dispositivos para tornar um acontecimento singular em uma demanda geral por justiça. Numa gramática cívica isto implica o acionamento de diversos dispositivos legais que permitam definir uma situação como uma infração à lei. No caso de abusos por parte de policiais, observamos que diversos atores estão questionando a possibilidade da polícia funcionar como um dispositivo capaz de realizar provas de grandeza cívica, usando termos mais correntes, reconhecer indivíduos como sujeitos de direitos. O “mal funcionamento” da polícia enquanto dispositivo cívico em muito se deve ao seu ajustamento a uma gramática da violência urbana no qual a seletividade do uso da força da polícia se encontra comprometida. Temos observado que o caminho para a denúncia pública de um caso de violência policial perpassa a construção de uma denúncia judicial10, ou seja, a denúncia de violência policial aciona um conjunto de instituições especificamente judiciais como dispositivos de des-singularização. Uma vez constatado esta prática, neste estudo estará presente uma interface entre o instrumental teórico da Teoria da Justificação e o instrumental da Antropologia do Direito. A questão central deste trabalho é que na conformação jurídica brasileira a polícia, particularmente a polícia civil, é uma peça central para a produção de uma verdade jurídica seguindo os termos de Kant de Lima (1995), através de uma tradição jurídica chamada de sistema de inquérito. A polícia civil é, portanto, uma das principais portas de entrada para o um acontecimento situado seja ressignificado como um “fato”11 que faça parte de um “mundo jurídico”. Se é certo que uma denúncia judicial é importante para a construção de uma denúncia pública de violência policial, é preciso questionar-se sobre os percursos que um conjunto de atores traçam para denúncia pública de um caso de violência policial, uma vez que a polícia está sendo o objeto da denúncia. Os “Fatos” Para qualquer ocorrência que envolva crime em que esteja presente uma força de segurança pública (civil, militar,...) deve ser elaborado um registro de ocorrência (RO) numa delegacia da Polícia Civil da área correspondente. “Nos casos de mortes violentas, como por exemplo, as decorrentes de confrontos armados, deve-se abrir obrigatoriamente um Inquérito Policial na Polícia 10 Utilizaremos o termo “denúncia judicial” para designar especificamente a etapa do processo penal em que um crime é denunciado por promotores públicos dando início à fase de julgamento. Reservamos o termo “denúncia pública” para o conceito de denúncia da Teoria da Justificação. 11 Colocaremos o termo “fato” entre aspas para indicar seu uso como categoria tal qual Geertz o faz para definir o direito como uma forma de saber local: “A descrição de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo, nada mais é que um processo de representação (...).Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que acontece aos olhos do direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma época a outra, então o que seus olhos vêem também se modifica”, 1997, pp. 259. Conferir também Figueiras, 2008. 7 Civil para apurar o fato” (Cano, 1997). No caso de um policial envolvido ser da Polícia Militar, requere-se também uma averiguação interna de cunho administrativo (sem implicações judiciais). O inquérito policial dá início a um processo de construção jurídica de um acontecimento. A polícia civil investiga um evento “tendo em mente que essa investigação pressupõe uma interpretação do evento como crime –, está preocupada em produzir informações sobre a existência do crime – materialidade – e de quem é o seu autor – autoria” (Figueiras, 2008, pp. 34, grifos do autor). Casos em que há mortes provocadas por um policial ficam classificados nos registros de ocorrência como “autos de resistência”, termo não existente no código penal. Estudos indicam que estes inquéritos de autos de resistência são sistematicamente arquivados e policiais são eximidos da responsabilidade mesmo em casos de indícios de execução (Cano, 1997). A categoria “auto de resistência” indica uma presunção por parte de polícia civil de que as mortes promovidas por policiais foram todas em confronto. Veremos que esta presunção perpassará pela produção dos indícios. Dias após o incidente houve divulgação na imprensa das fichas criminais das pessoas mortas na operação. Dos 19 mortos, 11 tinham ficha criminal12. Este dado não contribui para elucidar como estas pessoas morreram no dia 27 de junho. No entanto, a qualificação dos mortos como criminosos tem um duplo efeito, um reforçando o outro: dentro da gramática da violência urbana reforça-se uma construção da imagem dos mortos como “bandidos” a serem subjugados; a mesma categoria “bandido” tem efeitos jurídicos, pois comumente a existência de “antecedentes criminais” permite a realização de uma construção moral dos mortos que reforça a presunção de confronto. A qualificação dos mortos também pode ser uma estratégia de denúncia pública contra a polícia. A denúncia não sai do enquadramento da gramática da violência urbana. É o caso em que se denuncia a morte de “trabalhadores”, “estudantes”, “crianças”, “mães”,... em oposição a morte de “bandidos”. Estes casos são tentativas de romper com presunção de confronto pela construção biográfica de vítimas, com sucesso limitado, pois a mesma gramática que prevê “bandidos” também prevê “vítimas de balas perdidas”13. Um elemento importante para a produção da verdade é a realização de testemunhos. É de se salientar que nenhum familiar prestou queixa à delegacia de polícia da localidade, 22ª DP, Penha. Este “fato” foi utilizado pelo Chefe da Polícia Civil, Gilberto Ribeiro como suspeita de que as vítimas da operação não eram inocentes14. No entanto, outras motivações são possíveis como a ameaça permanente de moradores diante da presença de policiais, possivelmente os mesmo que “De 19 mortos, 11 tinham antecedentes criminais” , reportagem publicada no jornal O Globo em 03/07/2007. “... é evidente que nós gostaríamos de ganhar esta guerra sem derramamento de sangue, mas não há a ação sem estresse” (Declaração de Sérgio Cabral, Governador do estado do Rio de Janeiro, em “Cabral diz que vencerá guerra contra o crime”, reportagem publicada no jornal O Globo em 30/06/2007). Conferir também a declaração de Lula na nota 8. 14 “De 19 mortos, 11 tinham antecedentes criminais” reportagem publicada no jornal O Globo em 03/07/2007. 12 13 8 praticaram violações no local e a descrença na capacidade de investigação da polícia. São motivações que sem dúvida merecem ser postas em questão uma vez que familiares e demais moradores relataram incidentes para entidades de Direitos Humanos, embora estes relatos não equivalham juridicamente às queixas registradas nos autos. No dia 30 de junho, uma comitiva da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Jurídica da OAB-RJ (CDHAJ, a partir de agora), acompanhada de uma comitiva de Deputados da ALERJ e outras entidades de Direitos Humanos realizaram uma visita à sede da associação de moradores do Complexo do Alemão e seguiram em caminhada até a região da Grota local em que o conflito bélico foi mais intenso. Dia 17 de junho, a CDHAJ entregou uma Notitia Criminis para o SubProcurador Geral de Direitos Humanos do Ministério Público do Rio de Janeiro contendo um relato dos moradores de delitos relatado durante a referida caminhada. “Neste trajeto foram interpelados diversos moradores, que relatavam os episódios dos crimes e excessos ocorridos no dia da operação, tais como: ameaças, violações de domicílios, danos, furtos e extorsões. O conteúdo das declarações se repetia quase que em sua integralidade, ao longo de todo o percurso”. (CDHAJ, 2007, pp. 3) Dentre os vários delitos relatados pelos moradores, os que receberam maior atenção dos grupos de Direitos Humanos foram os casos de execução sumária por parte de policiais. Analisarse-á o levantamento de indícios de execuções sumárias, pois cremos que não apenas a atrocidade da prática foi motivo de destaque das denúncias de abusos por parte da polícia. Um fator crucial foi a possibilidade de construir um “fato juridicamente relevante” através de peritos. Execuções Sumárias A Notitia Criminis também relata como foram feitos os laudos dos 19 mortos. Nos dias seguintes às mortes o CDHAJ, solicitou ao IML a indicação “de um perito selecionado pela CDHAJ”, pedido este negado pela direção do instituto. O mesmo documento faz várias referências à necessidade de “assegurar uma apuração consistente e isenta” (Idem, idem, pp. 3). Uma vez prontos os laudos cadavéricos15, para “certificar-se da isenção das perícias, questão imprescindível em um Estado Democrático de Direito, a comissão solicitou a um perito independente, Dr. Odoroilton Larocca Quinto” (Idem, idem, pp. 8). Houve certas discrepâncias entre os resultados da análise do IML e os relatos de familiares e moradores do Complexo do Alemão. Nos relatos de execuções, moradores revelaram detalhes importantes que não constam no exame pericial, dentre elas, o uso de arma 15 Sob a responsabilidade dos peritos-legistas Drs. José Henrique Lopes Gouveia, Ivanir Martins de Oliveira, Fernando Antonio de Almeida Gaspar e Zuleika Ribeiro Sauaia Kubrusly 9 branca (faca) em algumas execuções. O “parecer crítico” realizado pro Dr. Quinto também questiona as conclusões dos laudos: “O parecer crítico (conforme documento em anexo) analisou os laudos do IML das 19 mortes ocorridas no complexo de favelas do Alemão, em virtude desta mega-operação realizada no dia 27 de junho. O relatório aponta que, pelo ângulo dos disparos, de cima para baixo, algumas vítimas estavam sentadas ou ajoelhadas. Ainda de acordo com o documento, as vítimas apresentavam "inúmeros ferimentos" nos braços, resultantes de uma "autodefesa", além de tiros na nuca e pelas costas à curta distância. Ou seja, no momento dos disparos fatais, elas procuraram, com braços e mãos, proteger cabeça e tórax, indicando, ainda, que as mesmas se encontravam desarmadas, o que se confirma na dissonância entre o número de armas encontradas (14) e o número de mortes produzidas pela Força Policial (19)” (Idem, idem, pp. 8). A pedido da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da presidência da República enviou 3 peritos para prestarem uma “cooperação técnica a órgãos do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro nas investigações sobre eventuais excessos cometidos na morte de civis durante operação policial-militar no denominado Complexo do Alemão” (SEDH, 2007, pp.1). Quanto à ocorrência de execuções, as conclusões foram: Caso houvesse evidências de execução sumária, teriam de ser relatadas nos laudos do IML, conforme prescrito no 4º quesito da seção de “Conclusão”: “Se foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por meio insidioso ou cruel (resposta especificada)?”. A resposta a este quesito foi uniforme em todos os 19 casos: “Sem elementos para responder, por desconhecerem a dinâmica do evento” (Idem, idem, pp.12). Isto indica que, para os peritos do IML qualquer ilação sobre a ocorrência de execuções sumárias só poderia ser feita com uma perícia no local do incidente. Segundo SEDH, no exame dos corpos é possível encontrar indícios de execução sumária: Os argumentos para embasar a afirmação da existência de execução sumária e arbitrária, quando analisados em conjunto, são: o Grande número de orifícios de entrada na região posterior do corpo (vide item 27, folha 6); o Numerosos ferimentos em regiões letais (vide item 29, folha 7); o Elevada média de disparos por vítima (vide item 32, folha 7); o Proximidade de disparos (vide item 31, folha 7); o Seqüenciamento de disparos em rajada (vide item 30, folha 7); o Armas diferentes utilizadas numa mesma vítima (Laudo N° ICCE-RJ-SPAF004056/2007) o Ausência de indicativos de condutas destinadas à captura destas vítimas; o Ausência de indicadores de condutas defensivas por parte destas vítimas. (SEDH, 2007, pp. 13). 10 O relatório segue fazendo críticas aos procedimentos (ou a falta deles) realizados no IML ou antes dos corpos chegarem ao instituto: todos os corpos chegaram despidos no Instituto Médico Legal; não foram feitas radiografias nos corpos; não foram coletados estojos (cápsulas das balas) no local; não forma coletadas amostras de sangue das vítimas; etc; Os médico convidados pelo SEDH, não deixaram de constatar a necessidade de uma perícia de local. Mas desta vez questiona esta ausência: “Saliente-se a presença de repórteres, fotógrafos, populares e cinegrafista no local dos eventos, o que não justifica a ausência da perícia de local” (Idem, idem, pp. 12). Processo Penal Diante dos indícios (não provas, retornaremos a este ponto) de execução o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro passou a participar das investigações. Os promotores responsáveis são Gianfilippo Pianezzola e a promotoria Vera Regina de Almeida 28ª Promotoria de Investigação Penal. Os promotores declararam o desejo de acompanhar os inquéritos de todos que haviam morrido nos meses da operação e não só apenas as 19 mortes ocorridas no dia 27 de junho16. Por ocasião de uma reunião com o Delegado titular da 22ª DP (Penha) Alcides Iantorno, Piannezola declarou que: “a investigação criminal no Brasil é sempre difícil, mas acredito que não seja impossível chegar a uma conclusão, apesar das peculiaridades deste caso. Vamos trabalhar e analisar todos os elementos. A nossa presunção é de que as mortes ocorreram em confronto. Se não foi isso que ocorreu, o Ministério Público agirá”17. No processo penal brasileiro, o Ministério Público possui a atribuição produzir uma denúncia judicial, isto é, promover uma acusação formal. “A denúncia [judicial] inicia-se com a identificação dos acusados, agora denunciados e, em seguida, o promotor narra a dinâmica do evento, narra os „fatos‟. Então, quando o promotor „narra os fatos‟ – interpretados previamente como criminosos – ele está realizando uma interpretação do discurso policial sobre o crime e seu autor”. (Figueira, 2008, pp. 37). Segundo Figueira, esta fase da construção jurídica é marcada por uma dependência do promotor ao que foi escrito no inquérito policial e pelo princípio do livre convencimento do promotor de avaliar possibilidade indícios e provas se tornar uma denúncia. Ainda está em progresso nesta pesquisa a averiguação de como estão encaminhadas do ponto de vista criminal os inquéritos resultantes da operação (se foram arquivados, houve denúncia judicial,..). De modo preliminar, é interessante constatar em conversas com atores engajados com a 16 17 “Cabral: 19 mortos no Alemão eram bandidos” reportagem publicada no jornal O Globo em 06/07/2007. “Confronto no Alemão deixa um homem morto”, reportagem publicada no jornal O Globo em 11/07/2007. 11 denúncia pública das execuções sumárias, um desconhecimento do andamento dos inquéritos ou processos criminal. De fato ao entrevistar um ex-membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB e atual diretor administrativo da ONG Instituto de Defesa de Direitos Humanos (IDDH), este alegou que um processo criminal estaria sobre a égide de um paradigma da punição, ao ter com indiciados policiais ou o comando da polícia. O mais importante seria responsabilizar o Estado através de um processo civil que está tramitando sob a responsabilidade do Escritório Jurídico de João Tancredo (ex-diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB, atual diretor do IDDH). “Não se trata de deixar incólume, uma situação como esta, mas de dar um encaminhamento que possa de fato ter uma solução estrutural. E aí a idéia de responsabilizar o Estado... Trabalhar na instância civil é esta. A ação civil é trabalhar em duas vertentes: primeiro reconhecer a responsabilidade do Estado, o Estado responsável por aquela violação; e segundo permitir que estas famílias possam de alguma maneira ter algum grau de tranqüilidade, porque o reflexo que tem a vida de um familiar que perdeu um ente querido numa situação como esta é brutal. Mães não conseguem trabalhar, a depressão profunda realmente então é praticamente uma invalidez...” (Soares, 2009) Situação de Injustiça e Produção da Verdade Jurídica A decisão de instaurar um processo civil ao invés de um processo penal pode ser interpretada como uma alternativa de segunda ordem perante as dificuldades do sistema judiciário. No entanto, queremos apresentar que a denúncia judicial é parte de uma estratégia de denúncia pública em que no curso da ação os atores selecionam dispositivos jurídicos a serem acionados, assim como recorrem a outros dispositivos18. Para demonstrar este argumento utilizaremos o quadro de relações entre actantes19 estabelecido pro Boltanski para teorizar a respeito das denúncias públicas. Este quadro privilegia o grau de des-singualrização de todos os envolvidos numa denúncia – a saber, o denunciante, a vítima, o perseguidor e o juiz (Boltanski, 2000, pp. 248). No caso da escolha entre um processo penal ou civil a questão que é colocada é a quem deve ser atribuída a “responsabilidade” pelos abusos policiais: os policiais envolvidos, o comando da operação, a secretaria de segurança pública ou o Estado? Neste caso trata-se de um processo de dessingularização do perseguidor. Isto tem importância ao tratar a questão como um problema geral A análise do “Caso Alemão” como um processo de denúncia pública em muito se deve a uma pesquisa de Doutorado de Roberta Pedrinha em fase de andamento (2007). Agradeço a oportunidade de ter lido o projeto por ocasião das reuniões periódicas do grupo de orientandos do professor Luiz Antônio Machado da Silva. 19 “O termo actante é usado na sociologia no sentido dado por Latour. Apresenta o interesse de denominar os seres que intervêm na denúncia com o mesmo termo, quer se trate de pessoas individuais ou pessoas coletivas constituídas ou em vias de constituição, e inclusive coletivos que figuram em enunciados sem nenhum caráter de objetividade (por exemplo, os “homens de bem”, “todos os que sofrem”, etc.). um dos interesses que apresenta o uso do conceito de actante reside na sua capacidade de substituir oposições discretas e remeter à diferenças tratadas como substanciais (por exemplo, ente os “indivíduos” e os “grupos”) por meio de diferenças de tamanho” (Boltanski, 2000, pp. 247, tradução própria). 18 12 (“a atual política de segurança pública”) ou singular (“corrupção de alguns policiais”). Por outro lado, o mesmo processo civil tem o inconveniente de singularizar a vítima: as três famílias que estão movendo o processo civil. No que diz respeito especificamente a este trabalho, considera-se interessante observar a importância de instituições que participam construção de um “fato jurídico” para a um processo de des-singularização. A emissão dos Laudos pelo o IML; a contratação de um perito “independente” pela CDHAJ; a elaboração de uma Notitia Criminis por parte da mesma organização para o Ministério Público; a participação do Ministério Público no inquérito policial; a requisição por parte da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ por perito enviados pela Secretaria especial de Direitos Humanos; e outro acontecimentos contribuíram para que uma situação de “guerra” entre “policiais” e “bandidos” pudesse também ser enquadrada como uma situação de injustiça num mundo cívico. Assim, iniciou-se um processo em que denunciantes e vítimas deixaram de ser indivíduos singulares para ser tornarem seres gerais como: moradores de favelas, organizações de Direitos Humanos, Judiciário (de modo incompleto). Uma mesma situação pode ser analisada à luz da antropologia do direito e da Teoria da Justificação. No presente estudo de caso é o que ocorre com a questão das análises periciais. Esta situação pode ser interpretada à luz da antropologia direito como uma forma alternativa de produção de um “fato jurídico”. Assim, uma análise pericial constituiria uma prova de materialidade de um crime produzida por peritos em concorrência ao inquérito policial. No entanto, a análise dos laudos ainda fica a depender do livre convencimento dos promotores do MP para que estes decidam que indícios podem ser considerados provas de uma denúncia judicial e, assim, se estabelecer um julgamento penal (Figueira, 2008, pp. 37). Sob o olhar da Teoria da Justificação, põe-se em relevo o acionamento de laudos e relatórios periciais para definição de uma situação como injusta em um mundo cívico (“a lei foi descumprida”) e desta forma possibilitar uma denúncia pública. Isto tem uma especial importância num contexto de violência em que vítimas, familiares e moradores do Complexo do Alemão vivem sobre constante ameaça do uso da força, o que dificulta bastante a realização de uma denúncia pública. Neste contexto, diferentes atores possuem diferentes níveis de generalização para tornar este problema um problema público. Dito de outro modo, quando diferentes instituições, movimentos sociais, ONG‟s, familiares,... estão discutindo uma prova de materialidade de um crime, identifica-se com um modo coletivo de construir uma situação como um problema público. 13 Considerações Finais Uma das vantagens de analisar o debate em torno da segurança pública sob o viés da Teoria da Justificação é de poder utilizar o mesmo instrumental teórico para estudar seja repercussões jurídicas de uma denúncia públicas, seja repercussões mais comumente entendidas como “políticas”. Dentre estas últimas, ficarão de fora pontos importantes como: a repercussão jornalística das denúncias de violência policial; a exoneração do diretor da CDHAJ e o apoio dado pelos seus colegas que pediram demissão, assim como outras entidades de Direitos Humanos; Manifestações populares contra a ocupação; e outros pontos20. Afirmar que dispositivos jurídicos constituem estratégias de des-singularização não significa que o processo de construção de uma denúncia pública foi bem sucedido. Para isto, ainda são necessárias mais pesquisas. Mas acreditamos que esta relação entre denúncia judicial e denúncia pública por si só abre um bom caminho de investigação 20 Para esta discussão, conferir a pesquisa já mencionada de Pedrinha, 2007. 14 Referências Bibliográficas BENATOUÏL, T. “Critique et pragmatique en sociologie. Quelques principes de lecture”. Annales HSS, Paris, v.54, n.2, p.281-317, 1996. BOLTANSKI, Luc. 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