O UNIVERSO LÚDICO Adriana Friedmann Completamos uma década do século XXI e nunca é demais observar com cuidado alguns fenômenos que apontam mudanças significativas no cotidiano humano. Episódios lúdicos, obras de arte, brincadeiras e vivências ajudam, pela sensibilidade que despertam, a traçar alguns questionamentos à respeito deste fenômeno que constitui o jogo. Fenômeno, porque desde que temos notícia, já desde a antiguidade, existem registros arqueológicos e artísticos da existência do lúdico nas diversas culturas; fenômeno que atravessa as mais distantes regiões do mundo e, até o presente, os diversos períodos históricos. O jogo tem acompanhado o homem e servido de canal de expressão religioso, artístico, poético, literário, emocional; tem sido motivo de festas, quermesses, encontros socioculturais; tem sido motivo de debates educacionais, inspiração de escritores, filósofos, pensadores; inspiração de criadores, políticos, economistas; atenção de psicólogos e outros profissionais das áreas de saúde. Enfim, o universo lúdico é imensamente amplo e, desde há mais de um século, motivo de estudos, pesquisas, cursos, simpósios e publicações. Fenômeno que percorre o mundo e, apesar de um mercado e de uma indústria marcados por interesses nesta área, o jogo prescinde de objetos sofisticados para existir. Assim como filósofos, escritores, pesquisadores, compositores, poetas e pintores, Sergio Centurión também reflete, devaneia e retrata nas suas obras a brincadeira espontânea, livre, as brincadeiras populares nascidas nos grupos de qualquier bairro do mundo: palavras e imagens que transmitem uma ‘linguagem’ que pode ser lida e compreendida por qualquier pessoa em qualquer lugar, sobretudo, porque, independentemente da condição sócio-econômica ou da idade, todo ser humano pode se reencontrar nestas manifestações, pois brinca ou já brincou em algum momento da su vida. Apreciar uma obra de arte, como as de Sérgio, observar nossos filhos brincando, assistir uma performance, mergulhar no universo das histórias, ouvir uma música, viver nosso tempo de ócio de forma criativa, constituem situações de vida que nos convidam a abrir uma fresta do fundo do nosso baú de lembranças, que acordam inúmeras emocões, afetos, lugares que, instantaneamente, tomam vida. Estes pedacinhos da nossa história pessoal, importantíssimos registros de quem fomos e em quem nos tornamos, constituem marcas impossíveis de serem apagadas do nosso percurso humano: nossa passagem por este mundo, retratada nas relações construídas, nos desafios superados, nas frustrações e nas vitórias, insignificantes talvez para um observador externo, vitais para cada um de nós nos sus episódios lúdicos. Quantas vezes tentamos definir o que seja ‘felicidade’? E quem sabe se relembrar o tesouro que eram nossas cinco pedrinhas, nossa bola velha e rasgada, a transgressão de chegar mais tarde em casa para não perder o final de outro jogo de bola: não seriam estes 'retalhos de vida' um pleno sentimento de felicidade? O desafio de pular o elástico, cada vez mais alto, ou esconder-se e esperar minutos intermináveis sem respirar e com muito medo de fazer qualquer barulho que pudesse nos delatar frente ao nosso ‘captor’; a boneca ou o amigo invisível que eram nossos mais confiáveis confidentes nos momentos de alegria ou de tristeza; aqueles sapatos e roupas enormes da nossa avó, que vestíamos para imitá-la; o perfume do seu colo, o cheiro da sua comida, seu abraçoo e sua voz entoando cantigas que alimentavam nossa alma: não seriam esses os momentos que definen o que seja ser pleno, estar inteiro? Não podemos deixar de citar a importante contribução que os estudos de educadores, psicólogos e outros especialistas, inclusive das neurociências, têm trazido através de inúmeras observaçõe e pesquisas; a importância que tem o brincar na socialização das crianças, na possibilidade de aprendizagens diversas, no desenvolvimento psíquico, mental e físico de crianças, jovens e adultos. Não existem dúvidas à respeito de todas estas contribuições que o universo lúdico traz ao ser humano. Mas temos que observar também que, apesar do mercado de fabricantes de brinquedos ter encontrado, já desde a era da industrialização, um nicho para responder às demandas lúdicas y emocionais de crianças, pais e educadores, existe também una perversidade no uso que se faz neste mercado: marketing psicológico que convida ao consumo desmesurado em tempos em que os brinquedo e os jogos eletrônicos passam a ser a principal companhia e consolo de crianças e jovens; manifestações de afeto, instrumentos de ensino, incentivo a novos desafios. Talvez, em muitos casos, salva-vidas em um mundo de seres resilientes. Obras como as de Sergio Centurión podem constituir um caminho inspirador para acordarmos para estas questões, através das portas das lembranças que abremse para desenterrar sentimentos, muitas vezes subterrâneos, que nos convidam a reavaliar o que seja verdadeiramente significativo em nossas vidas. Adriana Friedmann, Doutora em Antropologia, Mestre em Metodologia do Ensino e Educadora, coordena o curso de Pós Graduação em Educação Lúdica no Instituto Superior de Educação Vera Cruz. É consultora de fundações e ONG´s, co-fundadora e membro do Conselho Consultivo da Aliança pela Infância e tem diversos livros publicados na área da infância e do brincar. Sergio Centurión 'La rueda'