O AMOR CORTÊS E SUBLIMAÇÃO: ALGUNS EXTRATOS SOBRE PSICANÁLISE E AMOR Willian Pereira da Silva Wilson Camilo Chaves O que a psicanálise tem a dizer sobre o estatuto do amor? Neste trabalho, procuramos discutir algumas pontuações da psicanálise sobre esta questão do amor, analisando, para tanto, a interface entre a problemática da sublimação e o paradigma suscitado pelo amor cortês. A sublimação é listada na teoria freudiana como um dos destinos pulsionais e implica toda uma reorientação da pulsão na consecução de suas metas - um desvio de uma meta sexual para uma meta não sexual. Contudo, a definição da sublimação na obra freudiana se dá através de sua indicação ao lado de outros conceitos, tal como formação reativa, inibição quanto à meta, idealização e recalque. A sublimação, com todos os problemas que ela suscita, nos remete, antes de tudo, a uma problemática da pulsão e aí reside a dificuldade de sua teorização (LACAN, 1988). No pano de fundo desta teorização, podemos localizar pontos indicadores de um cunho tanto metapsicológico quanto ético da sublimação na sua referência à pulsão. De fato, a teoria das pulsões constitui a mitologia freudiana e o conceito reflete o que é essencial na experiência analítica como tal. “Algo distingue Freud de todos os analistas que vieram depois dele: não repetia uma teoria, elaborava-a de forma autêntica a partir do próprio discurso de seus pacientes”. (MILLER, 1987, p. 57-58). Considerando este enlace entre teoria e práxis, é a plasticidade e o que Freud disse de mais profundo sobre a natureza das pulsões o que permite ao sujeito a possibilidade de satisfação de mais de uma maneira, deixando a via aberta para a sublimação. Na discussão aqui traçada, nos apoiamos na definição lacaniana do processo sublimatório como elevação de um objeto à dignidade da Coisa freudiana, das Ding. Tendo por base a dimensão da Coisa, Lacan procura esclarecer a questão da valorização social dos produtos da sublimação, valendo-se de considerações sobre uma anamorfose do amor cortês bem como de ilustrações através da metáfora do vaso. O vaso presentifica o vazio, ou melhor, ele traz em si mesmo o próprio vazio. Todas as coisas criadas pelo homem em relação com a Coisa são do registro da sublimação. E essa Coisa será sempre representada por um vazio, justamente “pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa - ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa” (LACAN, 1988, p.162). Por isso, em toda forma de sublimação, o vazio é determinante. Nesse contexto ainda se situam os grandes termos da sublimação, as criações humanas: a religião, a arte e a ciência, como modos de organização em torno do vazio central da Coisa. Esta Coisa pode ser entendida como o ponto crucial a partir do qual a sublimação é possível; o campo em que se projeta algo mais além da cadeia significante; lugar em que tudo da ordem do ser é posto em causa. Ela indica justamente esta dimensão crucial na psicanálise, em que o desejo se encontra evidenciado, indiciado pela sua indestrutibilidade e marcado pelo impossível. O núcleo desta retomada lacaniana da Coisa freudiana é a problemática do desejo, cerne da interrogação psicanalítica acerca de uma ética. Isso foi o que instigou Freud desde os primórdios da psicanálise, quando se deparou com a histeria, com um sujeito cindido, mas sempre referenciado ao desejo, tido como inconsciente. A partir disso, perguntamos em que medida o amor cortês nos permite elucidar melhor o problema ensejado pela sublimação na psicanálise? Que elementos destacados por Lacan sobre o amor cortês ajudam a delimitar uma posição da psicanálise frente à questão do amor? O amor cortês reflete uma tradição de trovadores, os quais não cessaram de proclamar reverência a uma Dama, muitas vezes, posta numa condição de impossível e inacessível. Esta tradição foi iniciada a partir do século XI, estendendo-se por todo o século XII e atingindo o século XIII, em algumas regiões da Europa. No amor cortês, estão caracterizados vários elementos que nos permitem analisar o essencial nesta modalidade de amor, tais como, a valorização suprema da Dama e a sujeição do poeta à Dama em nome do amor - manifestado por um ritual e pelo segredo, imprescindível para se manter a relação e a reputação da Dama. Isto suscita uma série de paradoxos na relação Dama - trovador, situados entre a possibilidade e a impossibilidade. Um estudioso do amor cortês, José de Assunção Barros, nos aponta outro paradoxo. Segundo ele: Dentre os paradoxos do amor cortês, o da relação entre a morte e amor é um dos mais intrigantes e tem gerado interpretações que, em alguns casos, parecem confirmar os caminhos de reflexão já trilhados pela psicanálise na sua busca de compreensão da enigmática relação que parecem manter entre si o erotismo e a morte. As complexas relações que conduzem frequentemente o amor extremado à solução final da morte e que na poética cortês deu origem a fórmulas notabilizadas como a do ‘morrer de amor’ também aproxima o amor cortês de outros sistemas de entrega de si mesmo, como o do amor místico que, em última estância, aspira a uma fusão com o Criador ou a um mergulho no reino indiferenciado, onde os sofrimentos da vida mundana já não mais existem. A morte, em todos estes casos, é o caminho possível para superar definitivamente os limites que aprisionam o homem e que no caso do amor cortês impedem ao amante a integração definitiva com a amada (BARROS, 2008, p.10). Tal afirmação ressoa no problema que perseguimos aqui pela interface sublimação - amor cortês, como indicativa do impossível de uma relação sexual, evidente e assinalado, de uma forma geral, pela disparidade inelutável nas questões de amor. Neste sentido, Lacan afirma que: O amor cortês é, com efeito, uma forma exemplar, um paradigma de sublimação. Só por meio da arte, essencialmente, que dele temos testemunhos documentários, mas ainda hoje sentimos suas ressonâncias éticas [...] Mesmo que do amor cortês só tenhamos os testemunhos documentários da arte, sob uma forma quase morta, excluindo o vivíssimo interesse arqueológico que podemos prestar-lhe, suas ressonâncias são, manifestamente, ainda sensíveis nas relações entre os sexos (LACAN, 1988, p. 161). Em suma, no amor cortês, ocorre que a Dama, a mulher idealizada, que está na posição do Outro e do objeto, coloca, de repente, no lugar construído por significantes requintados o vazio de uma coisa que se revela ser a Coisa, que, de modo algum, é desvelada com uma potência insistente e cruel. Há uma valorização do objeto feminino no amor cortês e a mulher assume uma posição de Mulher, elevada à dignidade da Coisa. O amor cortês se caracteriza por toda uma tentativa de expressar na poesia algo de uma dimensão inacessível, obscura; uma representação da Coisa pela coisa. Pretendemos com este trabalho destacar elementos fundamentais que nos possibilitam pensar o problema da sublimação, bem como circular, destacar, alguns impasses e características do amor trovador, que são cruciais nas interrogações proferidas pela psicanálise. E todas estas questões alçadas apontam uma dimensão ética da psicanálise, campo em que práxis e teoria se conjugam. Uma ética do desejo: assim podemos dizer. Não se trata de Amor todo, como Bem supremo, mas antes balizado por esta dimensão do desejo e do sujeito, tal como concebido na psicanálise. Por corolário, consideramos muita válida a consideração lacaniana de que: A ética consiste essencialmente - é sempre preciso tornar a partir das definições - num juízo sobre nossa ação, exceto que ela só tem importância na medida em que a ação nela implicada comporta ou é reputada a comportar, um juízo, mesmo que implícito. A presença do juízo dos dois lados é essencial à estrutura [...] Se há uma ética da Psicanálise - a questão se coloca-, é na medida em que, de alguma maneira, por menos que seja, a análise fornece algo que se coloca como medida de nossa ação - ou simplesmente pretende isso (LACAN, 1988, p. 373-374). Referências bibliográficas: BARROS, J. A. Os trovadores medievais e o amor cortês: reflexões historiográficas. Revista Aletéia, abril/ maio de 2008. Ano 1. Vol 1; FREUD, S. As pulsões e suas vicissitudes. Obras psicológicas completas, Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, vol. XIV; LACAN, J. O seminário: A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988; MILLER, J. A. O percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.