INTRODUÇÃO À VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NO ENSINO TÉCNICO DE NÍVEL
SUPERIOR
Renata Vaghetti Ocacia
RESUMO: a seguinte proposta de relato traz uma experiência desenvolvida com uma
turma do segundo semestre do curso de Tecnologia em Sistemas para Internet no IFSUL –
Campus Charqueadas no RS. A disciplina de Comunicação e Expressão, na qual desenvolveuse a prática ora relatada, visa desenvolver habilidades linguísticas de produção escrita; assim
organizei uma atividade introdutória a fim de reconhecer possíveis mitos sobre linguagem
internalizados pelos alunos, bem como provocar uma reflexão acerca das diferentes
variedades de linguagem com o objetivo de melhor orientá-los em relação aos diversos
contextos de escrita nas posteriores produções textuais que seriam desenvolvidas em aula.
Para tanto utilizei uma atividade proposta por Faraco e Tezza (2009) em que se tem as
seguintes frases Nós vamos agora e voltamos depois; Nós vamo agora e voltamo depois; Nóis
vamo agora e voltamo depois; Nóis vai agora e vortamo dispois; Vamos voltamos depois
agora nós e. Os autores propõem cinco questões que poderíamos chamar de provocações para
que os alunos reflitam sobre cada frase isoladamente e também em conjunto. As frases foram
escritas no quadro branco, as perguntas foram feitas oralmente aos estudantes e as respostas
foram extremamente pertinentes para o propósito do exercício. Os alunos responderam aos
questionamentos de acordo com os seus próprios conhecimentos e demonstraram certa
surpresa com as conclusões a que foram conduzidos. A leitura que fiz sobre essa reação dos
alunos foi a de que estávamos naquele momento adentrando uma zona de conflito em que se
encontrava uma crença bastante comum aos brasileiros de que a língua portuguesa
compreende apenas uma forma correta de oralidade e uma forma correta de escrita. O
resultado do debate que se seguiu não poderia ter sido mais proveitoso, como comprova o
quadro que será apresentado e discutido no artigo para este evento, pois os estudantes
compreenderam algumas noções de gramática, de certo e errado pensando em diferentes
contextos e também realizaram uma reflexão fundamental sobre a variedade linguística do
português brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: variedades linguísticas. Norma. Preconceito linguístico.
Apresentação
Contribuir para o desenvolvimento da reflexão crítica sobre a língua portuguesa é a
essência de nossas atividades docentes e, nesse sentido, desenvolveu-se a atividade ora
relatada. É singularmente relevante realizar essa reflexão tendo como interlocutores
estudantes do ensino técnico de nível superior, principalmente devido ao perfil dos estudantes;
trata-se de um grupo bastante heterogêneo em termos de idade e de experiências, refletindo
assim visões diferentes sobre língua e sobre linguagem.
Renata Vaghetti Ocacia / IFSUL
M.ª em Literatura Brasileira
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A escola e a turma
O trabalho foi desenvolvido no Instituto Federal Sul-rio-grandense, no campus de
Charqueadas, localizado a 59 km de distância da capital do estado do RS. O campus oferece a
maior parte de suas vagas para o ensino médio técnico integrado nos cursos de Informática e
de Mecatrônica. São ofertados também os cursos de Eletroeletrônica (modalidade
subsequente), Fabricação Mecânica (integrado – EJA), Educação e Contemporaneidade (pósgraduação) e Sistemas para Internet (tecnólogo). São atendidas em torno de 30 turmas, além
dos cursos do Pronatec e do Profuncionário. A maior parte do corpo docente reside fora do
município de Charqueadas e tem formação nas áreas técnicas. A escola recebe alunos não
somente de Charqueadas como de municípios próximos, sobretudo de Butiá, Arroio dos
Ratos, General Câmara, São Jerônimo e Minas do Leão. Os alunos, em sua maioria, provêm
das escolas públicas da região e, de acordo com suas necessidades e disponibilidade de
recursos da escola, recebem uma bolsa-auxílio para suas despesas.
O presente relato tem como centro uma turma de dezesseis alunos que cursaram o
segundo semestre de Sistemas para Internet na disciplina de Comunicação e Expressão. De
fato somente treze alunos frequentaram as aulas, e, como dito anteriormente, formam um
grupo heterogêneo, de faixa etária bastante variada (todos adultos), com perfil
socioeconômico de classe média. Alguns alunos da turma formaram-se no ensino médio na
mesma escola e há apenas uma mulher na turma. O envolvimento da turma, melhor
desenvolvido mais adiante, foi total: todos participaram respondendo aos questionamentos,
elaborando reflexões críticas e fazendo comentários sobre linguagem de acordo com a
atividade proposta, o que é algo atípico para as turmas que têm frequentado esta disciplina.
Fundamentação teórica
Um dos desafios da atividade docente nas disciplinas que têm como foco a língua
portuguesa no Brasil é certamente estabelecer um espaço para a reflexão sobre ela,
provocando nos estudantes uma leitura crítica sobre a utilização das diferentes linguagens.
Explicitar as relações intrincadas em nossas práticas comunicativas diárias significa abrir
portas não apenas para o conhecimento como também para a cidadania. Nesse sentido é
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preciso trazer à luz dos debates feitos na escola os estudos científicos para que nas relações
dialógicas os confrontemos com o senso e com a falta de bom senso comum.
Faraco e Tezza (2009) trazem uma proposta que pareceu-nos muito apropriada para a
introdução do debate linguístico com os alunos do ensino superior. Desenvolver essa
atividade tendo como embasamento teórico o próprio Faraco (2008) abriu espaço para
refletirmos sobre língua, linguagens, oralidade, escrita e as consequências do emaranhado de
dúvidas que pairam sobre nós provenientes muitas vezes do que o autor denomina de norma
curta. No livro Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós temos uma reflexão atenta para
nossa realidade sociolinguística no sentido de organizar formalmente alguns conceitos chave
para o debate linguístico; conceitos como o de norma, norma culta e norma padrão sob a ótica
popular e sob o olhar do linguista tomam rumos diferentes, conforme aponta Faraco, e a falta
de informação adequada na escola abre espaço para o fortalecimento da norma curta.
O autor lembra que o termo norma seguindo uma tradição estruturalista significa
determinado conjunto de fenômenos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e
lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa certa comunidade de fala
(FARACO, 2008, p.35). Diz ainda que, seguindo uma tradição variacionista, norma seria
produtivamente equiparada à variedade.
A expressão norma culta requer um cuidado maior, pois o adjetivo em questão,
segundo Faraco, pode servir para apontar que uma variedade de linguagem é valorizada
porque provida de cultura e outra variedade é desvalorizada porque “desprovida” de cultura.
Sabe-se que todas as variedades linguísticas são a representação de uma cultura, e, para que
essa expressão não contribua para formar mal entendidos é importante delimitar o significado
do termo. Assim Faraco observa, com base nos dados do projeto NURC/SP, que, no contexto
linguístico, norma culta é a variedade de uso corrente entre falantes urbanos com
escolaridade superior completa, em situações monitoradas (2008, p.47). Essa distinção é
bastante específica e fundamental para evitar a utilização do termo como arma de desprestígio
social da linguagem; a linguagem como fator social tem sido historicamente utilizada para
impor barreiras sociais, construindo assim mitos e preconceitos linguísticos. A expressão
norma culta, sem as devidas considerações conceituais tem sido usada por vozes que a
pronunciam de modo pomposo, guiadas muitas vezes por ideias reducionistas ou equivocadas
acerca das variedades de linguagem.
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A norma padrão traz em si, especialmente no caso do Brasil, uma construção
artificial. Segundo Faraco, a norma padrão historicamente foi criada no intuito de criar
padronizações de linguagem como instrumentos de política linguística capaz de contribuir
para atenuar a diversidade linguística regional e social herdada da experiência feudal (2008,
p.73). Ela difere-se da norma culta no sentido em que esta
é a expressão viva de certos segmentos sociais em determinadas
situações, a norma-padrão é uma codificação relativamente
abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de
referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a
projetos políticos de uniformização linguística.(FARACO, 2008,
p.73)
A norma padrão no Brasil, conforme Faraco é um constructo baseado não numa
língua viva, corrente, mas sim na variedade de alguns escritores portugueses do
romantismo(p.78). A série de problemas que essa construção gerou é sentida ainda hoje em
nossa sociedade, pois daí vem a nossa maior dificuldade com relação à linguagem: uma
compreensão reducionista que entende a homogeneidade como algo inerente a ela.
A norma curta, segundo Faraco, apoia-se na mesma crença de homogeneidade,
porém desconsiderando até mesmo a norma culta e os mais tradicionais gramáticos da norma
padrão: Trata-se de um conjunto de preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem
nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do
erro e têm impedido um estudo adequado da nossa norma culta/padrão/standard (2008,
p.92). Uma série de “isso é certo” e “isso é errado” ganharam espaço privilegiado na mídia e
têm acentuado a formação de algumas posturas bastante radicais acerca da utilização da
linguagem, sendo talvez mais nociva a que postula que os falantes de língua portuguesa não
sabem falar ou escrever corretamente a língua portuguesa.
Pensar sobre como toda essa construção nos atinge socialmente faz-se necessário para
o desenvolvimento do trabalho linguístico na escola.
Descrição da experiência
O trabalho ora desenvolvido teve como objetivo introduzir o debate sobre variação
linguística como base para o desenvolvimento da disciplina de Comunicação e Expressão em
que se pretende ampliar as habilidades de escrita dos estudantes do curso de TSI. Realizando
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um debate, buscou-se discutir pontos fundamentais relativos às variedades linguísticas no
intuito de desconstruir alguns mitos.
A atividade, baseada em Faraco e Tezza teve três etapas realizadas em dois períodos
de aula, a primeira de análise de sentenças que foram dispostas no quadro branco seguindo os
questionamentos/provocações feitos pela docente; a segundo etapa foi de reflexão sobre as
respostas formuladas anteriormente por meio de um debate com a participação de todos os
integrantes da turma; a terceira etapa consistiu numa breve reflexão por escrito e individual
sobre o que fora conversado anteriormente.
Realizou-se um debate sobre as sentenças: Nós vamos agora e voltamos depois; Nós
vamo agora e voltamo depois; Nóis vamo agora e voltamo depois; Nóis vai agora e vortamo
dispois; Vamos voltamos depois agora nós e (FARACO & TEZZA, 2009, p.13). Os
estudantes foram provocados com os seguintes questionamentos relacionados à fala:
1.Das frases acima, quais delas de fato ocorrem no dia a dia, e quais delas
não ocorrem nunca? 2.Considerando as frases que de fato ocorrem na vida
real, qual delas seria a de uso mais frequente no meio em que você vive?
Você tem certeza? 3.Como falante da língua você se identifica com qual
ocorrência? Só essa ou mais alguma? 4.Faça um rápido perfil do falante das
frases que você assinalou como ocorrentes (isto é, classe social,
escolaridade, região...). 5Assinale quais ocorrências você acha “corretas” e
quais você acha “erradas” Justifique. (p.14)
As perguntas foram feitos oralmente pela docente e para cada questão formulada
surgiu uma longa discussão com exemplos de situações e comentários sobre elas.
Avaliação dos resultados
Os alunos desenvolveram um raciocínio crítico sobre variedades linguísticas, sobre os
conceitos de acerto e de erro em termos de linguagem, sobre a língua curta e sua nocividade.
Além disso, como se tratou de conversar sobre a língua como algo vivo e mutável, a discussão
foi acalorada e repleta de exemplos de situações de fala em que o preconceito figurou como
vilão principal criado pela visão reducionista da linguagem. A partir da realização desse
trabalho, voltou-se ao assunto, durante o semestre, quando analisamos textos literários e
acadêmicos e a compreensão inicial dos alunos fez com que pudessem progredir em suas
análises sem as barreiras da norma curta atrapalharem seu caminho. Em anexo encontra-se o
quadro com as respostas formuladas pelos estudantes e com as intervenções da docente.
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Considerações finais
O professor vive numa busca infinita pelos melhores resultados de seus alunos,
inventando ou reinventando práticas que alcancem da melhor maneira possível os objetivos
postulados. Muitas vezes os resultados não são tão visíveis, pois dependem do
amadurecimento intelectual dos conhecimentos pelos estudantes. No entanto, a atividade
relatada, provocou uma sensação diferente com relação à docência em língua portuguesa. A
turma envolveu-se de tal forma pelo tema que a aula acabou virando um grande bate-papo em
que não se viu o tempo passar. Essa conversa deixou uma sensação estranhamente agradável,
a comparação que faço talvez explique tal estranhamento, imagine-se perdendo algo que lhe é
caro e, sem que menos espere, alguém devolvendo o bem. Sim! A sensação de que os
estudantes estavam sendo reintegrados na posse de sua própria língua foi impressionante.
Falas como “é mesmo, professora” ou “mas então quer dizer que desse modo não está errado
professora” foram constantes e reveladoras dessa condição de penhora linguística em que
pareciam estar. É como se sua liberdade de uso da linguagem tivesse sido tomada a fim de
que se cumprissem suas “obrigações” sociais para depois disso poder ser devolvida para seu
uso. Pensar a linguagem como parte de um entrelaçamento político e social é fundamental
para compreendermos o que ocorre em nossas salas de aula e nos prepararmos cada vez mais
para darmos não só o primeiro passo, da “reintegração” da posse, como também os seguintes
que constituem a consciência crítica para utilização concreta das diferentes variedades
linguísticas de modo responsável.
Anexo
Renata Vaghetti Ocacia / IFSUL
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Referências bibliográficas
FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo,
Parábola Editorial, 2008. (Lingua[gem]; 25)
FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristovão. Prática de texto para estudantes
universitários. 18 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
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