A QUESTÃO DO SER EM M. HEIDEGGER VISTA A PARTIR DO TEXTO “A SENTENÇA DE ANAXIMANDRO” Guilherme Pires Ferreira – Bolsista PET - Filosofia / UFSJ (MEC/SESu/DEPEM) Orientadora: Profa. Dra. Glória Maria Ferreira Ribeiro - DFIME / UFSJ (Tutora do Grupo PET Filosofia) Resumo: Segundo Heidegger, a tradição filosófica, ao longo de seus períodos históricos foi desviada de seu caminho mais radical que a conduzia em direção à questão do ser. Para ele, a história da Filosofia, que assim se revela como e desde esse desvio, nada mais é do que a história do esquecimento do ser. Na segunda fase de sua obra, Heidegger propõe uma volta à essa questão original da Filosofia e, para tanto, se dispõe a uma interpretação dos pensadores originários (pré – socráticos) que vivenciaram e conceberam o ser em seu modo mais próprio. Isto porque esses pensadores não se encontravam sob o jugo de uma linguagem conceitual, que se firmou a partir de Aristóteles e guiou toda metafísica, concebendo o ser como o conceito mais geral e indeterminado. O presente trabalho propõe um estudo sobre a questão do ser do ente a partir do texto “A sentença de Anaximandro”, no qual Heidegger, a partir da análise da sentença primeira da tradição filosófica, tenta resgatar o sentido originário da questão guia da Filosofia Ocidental. Palavras-chave: Ser, ente, errância. S egundo Heidegger, a tradição filosófica, ao longo de seus períodos históricos, foi desviada de seu caminho mais radical que a conduzia em direção à questão do ser. Para ele, a história da Filosofia, que assim se revela como e desde esse desvio, nada mais é do que a história do esquecimento do ser. Mas o que levou a Filosofia a esquecer a sua questão essencial? Em resposta, Heidegger aponta alguns motivos, tais como o erro historiográfico que vê no passado algo ultrapassado ou “morto”, mas que serviria para a construção do futuro, caso seguíssemos seus exemplos. Essa visão historiográfica despreza toda relação viva com o passado que vige vigorosamente no presente e no futuro, ou melhor, “a historiografia é assim a constante destruição do futuro e da relação historial como advento do que é destinado” (HEIDEGGER, 1989, p.28). E é tal concepção historiográfica a responsável pelo equívoco que levou muitos filósofos a interpretarem anacronicamente os pensadores primordiais (pré–socráticos), uma vez que essa concepção não leva em consideração a necessidade de transportar a linguagem e o pensamento junto àqueles que se espera interpretar. “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 Guilherme Pires Ferreira -2- Além do erro historiográfico, Heidegger identifica um motivo maior para tal desvio da questão essencial da filosofia. Motivo esse que determinaria o próprio destino do Ocidente e que se encontra situado junto à própria essência do ser e que levaria ao seu ocultamento tanto na história da filosofia, quanto no âmbito mais próximo e ordinário ao homem, qual seja: no cotidiano. Essa essência ou traço fundamental do ser coincidira justamente com a essência do próprio esquecimento, isto é, com o modo mais intrínseco do velamento, daquilo que se perde frente à luz do que se objetiva e se determina. Mas, como retomar esse sentido do ser que teria sido deixado de lado pela tradição filosófica, uma vez que nele impera o esquecer (o velar)? Isto é, como iluminar algo que se situa junto ao obscurecer (ocultar) sem se perder em meio às sombras? Heidegger nos diz que a resposta a tais questionamentos está justamente naqueles que originalmente pensaram o ser, ou seja, os filósofos conhecidos como pré–socráticos. Esses por estarem junto ao nascimento da própria filosofia, não estariam “contaminados” pela linguagem conceitual, que gerou e guiou toda metafísica pós - aristotélica. E é justamente por esse motivo que Heidegger vai até estes filósofos. Ou seja, devido os pré-socráticos possuírem uma linguagem poética (de produção de sentido) e por não estarem presos às amarras da metafísica que jogou o ser no nível de o conceito mais geral e indeterminado, o filósofo alemão vê neles a experiência do ser em seu modo mais originário. Porém, a mesma dificuldade imposta frente à busca pelo sentido do ser é encontrada, segundo Heidegger, ao se tentar chegar ao pensamento dos filósofos originários. Isso se deve ao fato de tais ações convergirem para o mesmo ponto, tornado-se uma só, uma vez que o pensar originário nada mais é que o pensar do ser se revelando. O pensar, contudo, é poematizar, e não somente no sentido da poesia e do canto. O pensar do ser é a maneira originária de poematizar, somente nele, antes de tudo, a linguagem se torna linguagem, isto é, atinge sua essência. (HEIDEGGER, 1989, p. 29) Desta forma, é necessário que compreendamos este pensar do ser de que Heidegger nos fala, para que assim, consigamos perceber o caminho que nos levará aos filósofos originários e ao entendimento de como estes pensaram o ser. Este pensar do ser, segundo Heidegger, é poematizar, que no sentido originário de “poiésis” é produzir. Então, o pensar do ser seria a maneira originária de produção, através da qual e somente a partir dela, a linguagem se dá, ou seja, a linguagem atinge a sua essência. Assim sendo, é através da produção originária que se realiza no pensar do ser que esse se determina num ente (vem à tona através do ente), isto é a linguagem: o ser “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 A questão do ser em M. Heidegger vista a partir do texto “A sentença de Anaximandro” -3- se determinando numa possibilidade como um ente determinado, fato esse que só ocorre por e na ação. Mas em que âmbito se dá este pensar? Isto é, onde ocorre tal produção na qual o ser ganha suas determinações? Tal âmbito não deverá ser outro senão aquele mais próximo e imediato a nós, ou seja, o próprio cotidiano, uma vez que é nele em que as determinações do ser se desvelam, velando todas as suas outras possibilidades, bem como o próprio ser. Desta forma, a dificuldade em pensar o ser da forma em que foi concebido pelos pré– socráticos se deve à extrema proximidade em que este se encontra de nós, isto é, por estarmos tão próximos à dinâmica do ser, nós não conseguimos visualizá-lo. Estamos tão próximos ao fosso que não podemos tomar nenhum impulso suficiente para o salto e amplitude do salto, por isso saltamos facilmente muito curto (HEIDEGGER, 1989, p. 29) Assim, guiado pela necessidade em atingir o pensar do ser no qual a linguagem atinge sua essência, Heidegger pretenderá o salto rumo à sentença primeira da tradição filosófica, esta que é atribuída a Anaximandro de Mileto e que tem em si a primeira formulação sobre a experiência do ser. Esta sentença diz: Ora, a partir daquilo do qual a geração é para as coisas, também o desaparecer para dentro disto se engendra segundo o necessário; pois eles se dão justiça e penitência reciprocamente pelas injustiças, segundo a ordem do tempo. (HEIDEGGER, 1989, p. 30) A primeira vista podemos não perceber de que forma tal sentença fala sobre o ser, uma vez que nela vemos relacionados o surgir e o desaparecer das coisas que se dão conforme a ordem do tempo pagando as injustiças cometidas. No entanto, Heidegger nos lembra que a visão circunscrita em esferas delimitadas por “matérias” ou “disciplinas”, isto é, a divisão do mundo e de sua compreensão em setores específicos é essencialmente moderna. Ou seja, Anaximandro não fala de direito, física ou ética. Seu pensamento é anterior a tais delimitações, ou melhor, o pensador fala apenas do surgir e desaparecer das coisas como um todo. Tais coisas abarcariam tudo e não somente às coisas físicas, morais ou espirituais, tal divisão não é estabelecida, segundo Heidegger, antes de Aristóteles. Desta forma Anaximandro fala dos entes (tá ontá), uma vez que destes fazem parte os homens e as coisas produzidas pelos homens e os estados produzidos pelo agir humano e as circunstâncias provocadas fazem parte do ente. Também as coisas demoníacas e divinas fazem parte do ente. Tudo isto não apenas é também, mas é mais ente que as simples coisas. (HEIDEGGER, 1989, p. 30) “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 Guilherme Pires Ferreira -4- E ao falar dos entes, do seu surgimento e do seu desaparecer, o pensador pensa essencialmente o ser. Isto é, ao evocar o surgir e o desaparecer do ente, Anaximandro remete à estrutura fundamental do ser, que é a condução daquele por meio da errância. “[...] o ser carrega o ente com a errância[...]”(HEIDEGGER, 1989, p.33). Tal condução acontece pela determinação ou objetivação do ser que assim se subtrai e dá lugar ao ente. Desta forma, devido ao caráter epocal do ser, ou seja, devido ao fato de o ser ter como característica fundamental a temporalidade, suas determinações vão, segundo o tempo, gerar a história. Esta que é justamente o âmbito da errância (no sentido de vagar) do ente em torno do ser. Esta estrutura do ser (que se subtrai enquanto se desoculta no ente) não gerará apenas a história, mas também será a responsável pelo fenômeno do mundo – porque o mundo é aqui compreendido como as próprias possibilidades de ser do homem (ser com os outros, ser junto às coisas e ser em função de si mesmo). Essa concepção de mundo rompe com a concepção tradicional (cartesiana) que concebe o mundo como uma estrutura pronta e distinta do homem. Aqui, pelo contrário, o mundo se determina no ato mesmo em que o homem (compreendido como ser-aí ) se determina em seu ser (ao realizar as suas possibilidades de ser). O mundo ganha sua essência ao mesmo tempo em que o homem ganha a sua, que é no ato de existir. No entanto, a primeira vista, temos a impressão de que mundo e homem possuem características essencialmente estáticas, ou melhor que ambos já estão definidos, possuindo essências determinadas. Isto é, não é clara para nós a errância do ente em torno do ser, bem como do caráter epocal deste. Segundo Heidegger, isto se deve ao fato de não conseguirmos visualizar o ser por ele mesmo, ou seja, o ser só se apresenta a nós objetivado no ente. E como ente que somos tendemos a ver a realidade a partir de nós e de nosso aparente caráter estático. O caráter estático do ser-aí, contudo, é, para nós, primeiro a correspondência que pode ser experimentada com o caráter epocal do ser. A essência epocal do ser faz acontecer e manifestar-se a essência estática do ser-aí (HEIDEGGER, 1989, p.34) Compreendido então o modo como Anaximandro cita os entes e, portanto, o ser, ou seja, explicitando a dinâmica desse em torno daquele, produzindo assim homem, mundo e história, resta-nos pensar a questão levantada pela sentença, ou seja, falta compreendermos o que o pensador (enquanto grego) pensa e evoca quando nomeia os entes (tá ontá). Para tanto, Heidegger propõe que saiamos da sentença e olhemos em volta dela, isto é, sugere que seja buscado, um outro ponto de apoio para a compreensão “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 A questão do ser em M. Heidegger vista a partir do texto “A sentença de Anaximandro” -5- da sentença e de sua linguagem. Esse deve ser contemporâneo à Anaximandro, para assim, carregar consigo os mesmos traços e concepções nos quais o ente foi vivenciado originalmente. Este ponto é reconhecido por Heidegger em Homero, que se situa junto a Anaximandro num tempo em que a linguagem grega não era pensada de modo conceitual. No canto primeiro da Ilíada o poeta canta os entes da seguinte forma: De novo levantou-se Calcas, o Testórida, o mais sábio dos augúres, Que conhecia o que é, o que será e o que foi antes, Que conduzira até ante Tróia os navios dos aqueus, Com o espírito profético com que honrara Febo Apolo” (Homero apud. Heidegger, p.38) Heidegger diz que Homero, ao nomear o ente, fala do “que é” do “que foi” e do “que será”, isto é, o poeta pensa o ente relacionando-o ao presente o passado e o futuro. No entanto, ambos são igualmente entes, ou seja, presente, passado e futuro são pensados diferentemente da concepção moderna como espaços temporais distintos. Mas sim, como um modo especial da presença, uma vez que enquanto entes, todas essas dimensões temporais “são”. Mas o que significa tal presença ? Segundo Heidegger, esta nada mais é do que aquilo que se situa junto ao des – velamento, vigorando e permanecendo no seio deste. “Assim, presente enquanto caráter de eónta significa algo assim como: chegado para dentro da permanência no seio da região do desvelamento” (HEIDEGGER, 1989, p.39). Desta forma, passado e futuro seriam presentemente ausentes, ou seja, seriam presentes fora desse âmbito do des-velamento, marcando assim, o ente como representante de tudo que se presenta na presença e na ausência. E é dentro desta perspectiva que, segundo Heidegger, Homero faz o vidente falar, isto é, devido ao fato de passado, presente e futuro serem diferentes maneiras do ente se presentar, o vidente pode transitar entre eles, uma vez que ele é o frenético, ou seja, o vidente está fora de si, está ausente. Ausente do que está aí (determinado), do que está des-velado em face do que se oculta. Sua percepção, por não estar atrelada ao aparente caráter estático do que presentemente se presenta (ente determinado) pode alcançar o que se presenta na ausência, isto é, o que se encontra face ao que está des-velado, de forma velada. Mas o que faz com que essas diferentes maneiras de se presentar (passado, presente e futuro) se identifiquem como ente? Segundo Heidegger, tal acontece pelo fato de que, tanto o presentemente presente (situado junto ao desvelamento) quanto o presentemente ausente (afastado do desvelamento pelo velamento) estarem recolhidos no ser. Ou seja, tudo que é presente ( o ente) está no ser, este que por sua vez faz com que os entes se “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 Guilherme Pires Ferreira -6- iluminem e se presentifiquem no desvelamento, recolhendo para o ausente a si e a tudo que não se determina nessa presença. Desta forma, esta é a verdade (alethéia) concebida pelos gregos a qual o vidente possuía acesso, qual seja, o des-velamento dos entes (que se presentam) enquanto se retêm no velamento (ausência) o ser com suas infinitas demais possibilidades de determinação. Movimento este concebido pelo próprio ser em seu caráter epocal. [...] O ser enquanto presença das coisas que se presentam já é a verdade em si, supondo é claro, que pensamos sua essência como o recolhimento iluminador que abriga. (HEIDEGGER, 1989, p.40) No entanto, Heidegger comenta que não se deve considerar que aquilo que se ausenta (se vela) está separado daquilo que se presenta (des-vela) como partes distintas. Na realidade ambos se unem no ser do ente, isto é, ambos vêm à tona e se ausentam em confluência. Tal confluência se explica pelo fato de que o que vem à presença só o faz porque algo se ausenta, ou seja, a presença se manifesta a partir da ausência e esta só é permitida por aquela. Desta forma, a palavra “ente” é pensada para nomear a multiplicidade do que se presenta e se ausenta – fenômeno que, neste processo, se oculta como a unidade de ausência e presença. Desta forma, fica entendida a ligação entre Anaximandro e Homero, que é a mesma concepção e vivencia em relação ao ser dos entes. Ou melhor, estabelece-se o que ambos pretendem quando dizem o ente e quando pensam o ser. Isto é, o ente é concebido como a totalidade das coisas que presentemente se presentam e se ausentam (se velam e desvelam numa determinação), sendo tal dinâmica regida pelo ser, que une a multiplicidade dos entes em seu âmbito. E percebendo tal nexo entre tais concepções, vem à luz o significado da sentença, qual seja, o movimento dos entes (errância) em torno do ser, que se velam e se desvelam segundo a ordem do tempo (caráter epocal do ser). Tal movimento busca a justiça, que é a permanência no desvelamento de cada ente conforme seu tempo, mantendo assim no ocultamento todas as outras manifestações do ser, que logo virão à tona “invertendo as posições”. Concluindo. Vemos assim que Heidegger observa um desvio na tradição filosófica no que tange sua questão primeira (mais radical). Tal questão, a que leva ao ser do ente, foi esquecida por uma série de fatores, tais como o erro historiográfico. No entanto, existe ainda uma motivo mais essencial para tal desvio, essa, como vimos, se encontra junto à própria dinâmica do ser, que consiste na sua ocultação frente a sua determinação num ente. Isto é, ao determinar e trazer a luz um ente, o ser se vela juntamente com todas suas outras possibilidades. Tal dinâmica do ser gera, a ilusão de estaticidade do ente, o que por sua vez leva à constante “substancialização” do mundo, do homem e dos entes em geral. “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006 A questão do ser em M. Heidegger vista a partir do texto “A sentença de Anaximandro” -7- Essa mesma dinâmica foi observada pelos filósofos primeiros, que pensaram o ser em sua radicalidade. Heidegger constata esse alcance dos pré–socráticos ao analisar a sentença de Anaximandro (considerada a primeira sentença da tradição filosófica). Esta sentença relata o movimento dos entes em torno do ser, movimento este que Heidegger chamará de “jogo” e que faz vigorar o homem, mundo e história. Referências Bibliográficas HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petropolis: Vozes, 1988. 325 p. (Coleção pensamento humano). __________________. Ensaios e conferências. 2ºed. Petrópolis: Vozes, 2002. 269 p. (Coleção pensamento humano). __________________. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. 244 p. (Os pensadores). “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano II - Número II – janeiro a dezembro de 2006