TRABALHO COLABORATIVO: CONFLITO E DIALOGICIDADE Maria Isabel Ramalho Ortigão 1- UERJ Talita Vidal Pereira2- UERJ Grupo de Trabalho - Cultura, Currículo e Saberes Agência financiadora: FAPERJ Resumo A produção de discursos em defesa da qualidade da educação tem justificado a realização de estudos que, partindo de diferentes perspectivas teórico-metodológicas, buscam analisar, discutir ou problematizar experiências consideradas exitosas no que se refere à produção de uma educação de qualidade em diversos contextos. As experiências que resultam do trabalho de grupos colaborativos se inserem nessa perspectiva, sendo esses grupos caracterizados como aqueles em que todos os componentes compartilham as decisões tomadas e são responsáveis pela qualidade do que é produzido em conjunto, conforme suas possibilidades e interesses. É a partir dessa perspectiva que o trabalho colaborativo tem sido apontado como um elemento significativo para explicar o sucesso de algumas experiências escolares. Sem ter a pretensão de negar a importância dessas experiências, em nossos estudos temos procurado problematizar, a partir da apropriação de aportes teóricos pós-estruturalistas, os sentidos de qualidade associados e em disputa nesses discursos para então entender as formas pelas quais elas se articulam como experiências que possibilitam e/ou favorecem a tão desejada qualidade. São com essas motivações que, neste texto nos propomos discutir os sentidos de qualidade associados à ideia de colaboração. Especificamente, buscamos compreender as formas pelas quais o trabalho colaborativo tem sido incorporado ao discurso pedagógico. Nessa empreitada realizamos uma busca aleatória em sites da área da Educação utilizando a palavra-chave ‘colaboração’. Nesse processo foram selecionados cinco textos que compuseram o escopo da pesquisa. Neles constatamos a recorrência da ideia de colaboração associada a ideia de diálogo, sem qualquer referência à ideia de conflito. Constatamos também a recorrência de uma visão de diálogo associado à “conversa” sem qualquer associação ao conceito de dialogicidade. Palavras-chave: Colaboração. Qualidade da educação. Conflito. 1 Doutora em Educação (PUC-Rio, 2005). Professora adjunta da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ). Grupo de Pesquisa Observatório de Periferias Urbanas. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação (UERJ, 2011). Professora adjunta da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ).Grupo de Pesquisa Currículo: Conhecimento & Cultura. E-mail: [email protected] ISSN 2176-1396 36206 Introdução Nas últimas décadas têm se intensificado no Brasil - e em diversos outros países - a produção de discursos em defesa da qualidade da educação, que justificam a realização de estudos que, por meio de diferentes abordagens, buscam analisar, discutir ou problematizar sentidos de qualidade. Alguns deles são conduzidos de modo articulado a experiências consideradas exitosas, no que se refere à produção de uma educação de qualidade em diversos contextos. Cabe registrar que, em geral, os discursos sobre qualidade tendem a reduzir a educação ao ensino e, consequentemente, o direito à educação ao direito de aprender determinados conteúdos considerados universais (MACEDO, 2012). Para Lopes (2012), essa associação direta entre educação e ensino tem favorecido a formulação de políticas curriculares orientadas pela ideia de que a qualidade do ensino passa pelo currículo. Uma lógica que tende a favorecer o protagonismo dos professores na busca da eficácia e da eficiência das escolas, na medida em que é esperado que eles “sejam capazes de atingir metas do currículo, incluindo a formação nos conteúdos” (LOPES, 2012, p. 13). Nessa perspectiva, vários estudos no campo da formação de professores têm sido conduzidos não só com o objetivo de discutir os processos de formação inicial e em serviço desses profissionais, mas, também, o de refletir sobre as condições de trabalho que possam, ou não, favorecer o alcance da qualidade desejada. É a partir dessa perspectiva que o trabalho colaborativo tem sido apontado como um elemento significativo para explicar o sucesso de algumas experiências escolares exitosas (CÂNDIDO, 2001; LEE; FRANCO; ALBERNAZ, 2004; ANDRADE; LAROS, 2007; DAMIANI, 2008). O propósito deste texto é o de conduzir à reflexão sobre a ideia de qualidade associada às condições de trabalho docente, em especial no que se refere ao trabalho colaborativo, sem, contudo, entrar na discussão sobre a proliferação de sentidos atribuídos ao significante ‘qualidade’ (LOPES, 2012; MACEDO, 2012).Objetiva-se, especificamente,analisar as formas pelas quais o trabalho colaborativo tem sido incorporado ao discurso pedagógico e como os sentidos de conflito e dialogicidade têm sido articulados em estudos que investigam a produtividade do trabalho colaborativo na construção de uma educação de qualidade. Assumimos uma perspectiva discursiva de análise e, a partir dela, rejeitamos a pretensão de reproduzir experiências consideradas exitosas em determinados contextos, transpondo-as para outros. Entendemos que esses deslocamentos envolvem processos de 36207 negociação/tradução/apropriação de sentidos que fluem e não se deixam apreender. Isso, a nosso ver, não invalida ou reduz a potencialidade dos processos de criação, coletivamente articulados, e sem as amarras de fundamentos a priori. Acreditamos ser possível apreender processos híbridos (BHABHA, 2007) de produção de sentidos, possibilitados nas negociações realizadas no desenvolvimento do trabalho em equipe. Com Bhabha, pensamos os conflitos como dimensão inerente aos processos de negociação e tradução implicados nas relações humanas e, nessa operação, problematizamos uma concepção de diálogo como estratégia de superação de conflitos mediante a construção de consensos. Com Mouffe (2001) assumimos que todo consenso é provisório e conflituoso. Acordos contingentes na medida em que não há nenhum fundamento a priori capaz de estancar o processo de significação e produção de sentidos que possibilitariam a estabilização de uma significação em torno do qual o consenso pleno se realizaria. Somos motivadas pelo interesse de pensar o trabalho colaborativo como um espaço de reflexão sobre as lógicas padronizadoras que organizam a escola e que tendem a privilegiar práticas individualistas e/ou autoritárias. Nos propomos a pensar sobre o trabalho colaborativo em uma perspectiva que alerta para a necessidade de incorporar as demandas da diferença sobre a escola e o currículo (MACEDO, 2009). Uma perspectiva que busca privilegiar a diferença sem transformá-la em desigualdade (MACEDO, 2003). Entendemos que o trabalho em equipe não é uma ação espontânea ou desinteressada, mas um processo de negociação/tradução que acontece como relação de alteridade.Buscamos pensar a colaboração como processo que pressupõe a insubordinação criativa articulada à responsabilidade, ou, como afirmam D’Ambrósio e Lopes (2015), articulada à “coragem” na tomada de decisão. A partir dessas ponderações analisamos sentidos de trabalho colaborativo presentes nas produções do campo educacional. Utilizando o termo “trabalho colaborativo” como palavra-chave, selecionamos, aleatoriamente, cinco textos para analisar como tais sentidos vinculam-se às ideias de qualidade de educação. Pressupostos que articulam o discurso pedagógico O discurso educacional moderno se articula obedecendo a uma lógica organizada a partir de a priores que justificariam a pretensão de “dar a última palavra” sobre os fenômenos sociais de toda a ordem. Uma lógica que tem como pressuposto uma concepção de linguagem 36208 como representação da realidade e que está ancorada em princípios, tais como o objetivismo, o determinismo e o essencialismo. O entendimento de que a linguagem representaria a realidade, favorece à produção de binarismos em que o pólo opositor tende a ser, discursivamente, constituído como inferior. Uma lógica que carrega rastros de uma tradição3 platônica em que o conhecimento é concebido como representação. Um modelo baseado na existência de dois planos fundantes: o plano da verdade, da essência (do mundo inteligível) e o plano das distorções, das aparências (do mundo sensível). Em consequência, a plenitude significada como a superação do segundo pelo primeiro. Para além das reflexões produzidas em diferentes campos do conhecimento, que possibilitaram o questionamento dessa forma de pensar, é fato que ela deixa rastros que marcam as formas pelas quais sujeitos sociais são concebidos na contemporaneidade. Rastros que se fazem presentes nas formas de organizar o pensamento, assumindo, ainda que de forma implícita, o pressuposto de que todas as coisas possuem uma essência que pode ser representada. De que a ordem social obedece a uma lógica subjacente que pode se tornar inteligível. Nessa perspectiva, o projeto educacional se consolidou como possibilidade capacitar os sujeitos a buscar a essência das coisas, que não nos permite ver além das aparências, e a apreender, a realidade, exatamente como ela é. Esses pressupostos sustentam aquilo que Sacristán (1999) afirma ser uma fé a priori nas possibilidades emancipatórias da educação e que, paradoxalmente tem favorecido processos de homogeneização cultural e de apagamento das diferenças, na medida em que favorece e alimenta a produção de dicotomias hierarquizantes na medida em que um polo tende sempre a ser projetado como ideal a ser perseguido em detrimento do outro a ser superado – essência x aparência; verdade x distorção, teoria x prática, particular x universal. Tais binarismos proliferam em discursos articulados a partir da ideia de que existe uma realidade passível de ser acessada fora dos processos de significação e de que a linguagem transporta um sentido unívoco, associado diretamente aos objetos. O discurso pedagógico se articula assumindo a ideia de que é possível alcançarmos o sentido único e verdadeiro atribuído às coisas e aos fenômenos sociais. Argumentamos que a defesa do diálogo, essencial à realização de uma educação democrática (FREIRE, 2005; 2006), se articula carregando rastros dessa forma binária de 3 Tradição aqui não é entendida como algo colocado no passado, mas como sentidos que são continuamente produzidos e ressignificados, passando a integrar as formas pelas quais o currículo tem sido pensado. 36209 pensar. Mas, é entendido como um “caminho” necessário para o estabelecimento de um consenso construído em bases democráticas. Para o autor, no processo dialógico, existe um intercâmbio entre diferentes leituras do mundo. Entendemos que essas diferentes leituras são formas de conferir significados ao mundo, são produções culturais. Cultura concebida como fluxo, como sistema simbólico e linguístico contingente, como um dos espaço-tempo em que sentidos são permanentemente produzidos, disputados e negociados (MACEDO, 2003) e que nos possibilita problematizar a ideia de compartilhamento de visões de mundo existente na defesa de uma relação dialógica defendida por Freire (2005; 2006). Para o autor, a conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica. (FREIRE, 2006, p. 30). Argumentamos que a compreensão de construção de consensos em processos dialógicos tem como pressuposto a existência de uma realidade inteligível, possível de ser acessada pela linguagem. Uma perspectiva carregada de essencialismo e realismo que passamos a problematizar a partir de aportes pós-estruturais. Algumas considerações iniciais são necessárias para que possamos explicitar nossos argumentos. A primeira delas diz respeito a uma concepção de escola como espaço-tempo em que inúmeras culturas entram em interação (TURA, 2002). Trata-se de romper com a ideia de cultura como um dado conhecível para, a partir de uma perspectiva discursiva, pensá-la como prática de enunciação de significados sobre o mundo. Dessa forma, em nossa analise, consideramos a escola como espaço-tempo em que culturas são negociadas no limite das fronteiras culturais, forjando, como afirma Bhabha (2007), híbridos que resultam do processo de negociação de diferenças. Bhabha opera com uma concepção de que “no problema da ambivalência da autoridade cultural: a tentativa de dominar em nome da supremacia cultural é ela mesma produzida apenas no momento da diferenciação” (BHABHA, 2007, p. 64). Dessa forma, a ambivalência está no fato de que, no momento da enunciação, é a própria condição de autoridade cultural, como conhecimento da verdade referencial, que é tensionada. É em meio a essa ambivalência que culturas precisam negociar sua completude/incompletude. É essa ambivalência que caracteriza a negociação das diferenças. 36210 Para o autor, acultura “renova o passado, reconfigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente” (BHABHA, 2007, p. 27) em que o novo surge como ato insurgente de tradução cultural. Esse novo emerge como um híbrido que resulta de um processo de negociação e tradução. Tradução, entendida por ele, como impossível de ser completamente realizada, na medida em que “há um resíduo intraduzível, um deslizar de significação que a torna uma língua estrangeira a ela mesma, numa disjunção temporal que traz a incidência do duplo” (FRANGELLA, 2009, p. 3). Os gêneros impuros que emergem nos processos de hibridismo revelam essa impossibilidade de uma completa tradução. Nas contribuições de Bhabha fica explícita a ideia de cultura como fonte de conflito, como espaço-tempo de negociação e tradução para sempre incompletas. É a partir dessas reflexões que buscamos refletir sobre sentidos atribuídos ao trabalho colaborativo. Sentidos atribuídos ao trabalho colaborativo Grupos colaborativos são caracterizados como aqueles em que todos os componentes compartilham as decisões tomadas e são responsáveis pela qualidade do que é produzido em conjunto, conforme suas possibilidades e interesses (DAMIANI, 2008, p. 215). Nessa perspectiva, o trabalho colaborativo se caracterizaria pelo apoio mútuo entre os seus membros, de forma a “atingir objetivos comuns negociados pelo coletivo, estabelecendo relações que tendem à não-hierarquização, liderança compartilhada, confiança mútua e corresponsabilidade pela condução das ações” (Idem). Sem negar a importância de uma cultura colaborativa para a produção de práticas mais democráticas na escola, entendemos que o estabelecimento da mesma não deve nos levar a pensar os processos colaborativos como resultado do apagamento das diferenças. A existência de conflitos e disputas não deve, a nosso ver, ser entendida como um obstáculo a relações de colaboração e apoio, tendo em vista o alcance de metas comuns. Acreditamos que o trabalho colaborativo ou coletivo não é uma ação espontânea ou desinteressada, mas se dá como relação de alteridade. Com isso, assumimos uma perspectiva de análise que busca reforçar a condição dos docentes como partícipes e autores das propostas em que estão envolvidos, não como meros executores de uma proposta política. Como autores, criam, decidem, articulamse, insubordinam-se em ações coletivas e colaborativas e assumem a responsabilidade na tomada de decisão (ORTIGÃO; FRANGELLA, 2015). 36211 Para desenvolver nossos argumentos lançamos mão da ideia de negociação (BHABHA, 2007), que nos permite pensar o trabalho colaborativo com e na diferença.As contribuições de Bhabha tem nos orientado a pensar a cultura de forma a romper com uma concepção que tende a se coisificar em uma acepção que remete a conteúdos dados, identidades coletivas totalizadas, representação histórica de grupos predefinidos. Um desafio que nos instiga a pensar cultura como enunciação, que possibilita “outros tempos de significado cultural e outros espaços narrativos” (BHABHA, 2007, p.248). Por sua vez, Ball (1998) faz referência aos processos de produção de saberes reinventados e tecidos nas negociações, nos embates, nos enfrentamentos, nas articulações que modificam trajetórias e fazem insurgir movimentos que não podem ser previstos por cálculo de posições predefinidas, mas como esfera política de criação, onde “os conflitos e os confrontos, antes de ser uma imperfeição, indicam que a democracia está viva e se encontra habitada pelo pluralismo” (MOUFFE, 2003, p.49-50). O que defendemos então é que o diálogo precisa ser entendido como processo de articulação política e negociação/tradução em meio ao coletivo. Tradução, negociação, cruzamentos e outros termos aqui relacionados põem em destaque uma ação que passa necessariamente pelos consensos e dissensos de uma produção marcadamente coletiva, em relações de alteridade. Consensos provisórios e contingentes. Dado que, não existe um fundamento a priori, um dado de realidade plenamente cognoscível que possa atestar definitivamente a primazia de determinados sentidos sobre outros. Nessa perspectiva, o êxito das experiências que envolvem a ação de equipes colaborativas não pode ser explicado pela possibilidade de construção de relações não hierarquizantes em que se busca o alcance metas comuns. Pelo contrário, trata-se sempre de relações que se enredam numa complexidade de invenções feitas em diálogos que se estabelecem e podem vislumbrar propostas significativas de outras formas de fazer, não sobrepostas, mas igualmente inventadas no coletivo, nas redes de colaboração em que se hibridizam práticas e sujeitos. No Brasil, a literatura que discute o ambiente da sala de aula tem reservado importância fundamental a propostas que valorizam a troca de experiências, discussões e interações entre estudantes e entre estes e o professor; argumentos favoráveis afirmam que é nesse espaço (sala de aula) que acontecem encontros (CÂNDIDO, 2001). Estudos realizados a partir da análise de dados advindos de avaliações brasileiras apontam o trabalho em equipe como um fator significativo para o alcance de resultados desejáveis. 36212 Analisando os dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação (SAEB 2001), referente ao Ensino Médio, Andrade e Laros (2007) concluíram que o trabalho colaborativo da equipe escolar está positivamente associado ao desempenho dos estudantes. Por sua vez, analisando os dados dos resultados dos estudantes brasileiros no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA 2000), Lee, Franco e Albernaz (2004) identificaram elementos que confirmam a influência do trabalho coletivo dos docentes na escola no desempenho dos alunos no exame. Discutindo as condições de trabalho de professores da rede pública municipal de Belo Horizonte, Boy e Duarte (2014) discutem os efeitos do trabalho coletivo entre docentes e concluem que “as práticas coletivas se tornam cada vez mais escassas e se traduzem em discussões de aspectos imediatos e de curto prazo que envolvem o trabalho docente” (p. 81). Para elas, esse esvaziamento decorre das condições de trabalho a que os professores são submetidos. Segundo as autoras, essas condições podem explicar o fato de os professores não conseguirem conceber a dimensão colaborativa associada aos aspectos pedagógicos em si. Tampouco a de entender a colaboração vinculada à ideia de “partilha de poder, participação na gestão, criação de projeto pedagógico e organizacional comum, partilha do saber, troca de experiências, formação democrática do aluno” (p. 99). Nos trabalhos citados, a defesa do trabalho colaborativo aparece associado à organização do processo escolar, como uma possibilidade de organizar o ensino para favorecer a aprendizagem. Perspectiva que é reforçada nos argumentos apresentados por Cândido (2001) o trabalho em equipe coloca os alunos em interação com seus colegas e, nesse sentido, as discussões orais em sala, permitem que o aluno fale sobre suas descobertas, mostre o seu trabalho e entenda os conceitos por meio da explicação, da leitura ou da observação do trabalho de colegas. E mais, permite que o professor conheça as várias estratégias cognitivas usadas pelos alunos, o que lhe permite trabalhar, com eles, o desenvolvimento de conceitos matemáticos (p. 27). Está em foco a ideia de construção de espaços em que estudantes possam refletir e conferir significados às suas estratégias cognitivas. Contudo, faz-se necessário uma atenção especial para a singularidade desses processos, para que as construções desses espaços de trocas e de negociações não sejam concebidas como modelos prescritivos. Mais ainda, que resultados e metas desejáveis não sejam tomados como padrões de desempenho a serem reproduzidos indistintamente, em contexto diversos, com sujeitos diversos. 36213 Parte significativa que discute o tema colaboração, considera o conflito como algo a ser superado, o que, a nosso ver, pressupõe o apagamento das diferenças. Boy e Duarte (2014), por exemplo, referem-se a Hargreaves (1998) para explicá-lo como resultado daquilo que o autor identifica como processo de balcanização, de fragmentação disciplinar que, segundo ele, perpetuaria conflitos e divisões na escola. Ou seja, um elemento que interfere nas relações pessoais e não como dimensão que organiza essas relações como defende Bhabha (2007). Essa mesma ausência pode ser constatada na discussão trazida por Damiani (2008), ao revisar trabalhos que buscaram investigar atividades colaborativas entre professores e estudantes. A autora não menciona qualquer referência a conflitos que emergem nessas experiências. O diálogo aparece associado a ideia de co-construção do conhecimento, em uma referência a Vygotsky, que o considera parte essencial do processo de aprendizagem. Por sua vez, Lima e Silva (2014) apresentam os resultados de um estudo, desenvolvido sob a modalidade pesquisa-ação colaborativa, em que a discussão sobre a produtividade de um trabalho colaborativo assume uma dimensão prescritiva. Em suas conclusões, as autoras destacam que o trabalho docente se realiza em condições adversas. No entanto, diferentemente de Boy e Duarte (2014), não identificam essas condições como um obstáculo à realização de ações colaborativas. Ao contrário, para elas, tais ações favorecem a realização de uma educação de qualidade. Aqui também uma qualidade de educação associada ao ensino.No texto não há referência à ideia de conflito e o diálogo é tratado como uma “conversa” sem qualquer associação ao conceito de dialogicidade desenvolvido por Freire (2005; 2006). No último artigo analisado, Costa (2008) assume a existência de uma cultura docente, ainda que em uma perspectiva de cultura concebida como “conjunto de significados, expectativas e comportamentos compartilhados por um determinado grupo social construídos e partilhados socialmente” (p.154). Uma concepção que reconhece o caráter contingente, parcial e provisório da cultura, mas que, admite a possibilidade de compartilhamento e cultural sem problematizá-la, o que, a nosso ver, denuncia a presença de rastros de realismo e essencialismo nessa concepção.É com esses pressupostos que Costa (2008) defende a afirmação de que as atividades colaborativas contribuem para a mudança daquela cultura. Uma concepção de cultura diferente daquela com a qual operamos em nossa análise. A nosso ver, esses estudos reforçam aquilo que Lopes (2012) e Macedo (2012) apontam como uma tendência de reduzir a educação ao ensino e, consequentemente, a 36214 qualidade da educação ao direito à aprendizagem de determinados conteúdos previamente selecionados. Uma construção discursiva que esvazia a dimensão colaborativa do potencial de dialogicidade presente em Freire (2005; 2006) que, embora consideremos problemática, em função dos pressupostos a partir dos quais essa perspectiva é construída, reconhecemos que articula sentidos de educação mais humanistas e menos pragmáticos. Considerações Finais Neste texto nos propusemos a dialogar com a ideia de colaboração, a partir de uma pesquisa bibliográfica, buscando compreender as formas pelas quais o trabalho colaborativo tem sido incorporado ao discurso pedagógico e como os sentidos de conflito e dialogicidade têm sido articulados em estudos que investigam a produtividade do trabalho colaborativo na construção de uma educação de qualidade. Entendemos colaboração como um processo emergente, marcado pela imprevisibilidade, pelo conflito, por negociações e tomada de decisões, em que os participantes precisam assumam uma responsabilização conjunta para construir soluções aos problemas que lhes aparecem. Ressaltamos que os estudos aqui apresentados não oferecem elementos que nos permitam compreender a forma como o trabalho colaborativo está sendo concebido e construído. As discussões que dizem respeito ao lugar da diferença nas ações coletivas que devem caracterizar o trabalho colaborativo não são enfrentadas nesses estudos. Para nós, tais questões são fundamentais para pensar o trabalho docente em uma perspectiva capaz de produzir alterações, de fato e de direito, nas formas de organizar o funcionamento e organização da escola, possam combater lógicas homogeneizadoras que produzem o apagamento das diferenças. Pensamos no trabalho colaborativo como estratégia de ação que deve incorporar a presença “de um tipo de singularidade que vem a luz na capacidade responsável de responder a alteridade e a diferença’ (BIESTA, 2012, p. 820) e nessa perspectiva, assumimos a necessidade de reativar sentidos que têm sido excluídos dos discursos pedagógicos (MACEDO, 2014), afirmando a hiperpolitização, a que Lopes (2013) se refere, como uma dimensão importante na configuração de um projeto democrático de escola e de educação. Um projeto em que o “outro”, as diferenças culturais, possam ser incorporadas como elemento que potencializa a ação pedagógica, rompendo com perspectivas que investem na lógica do controle das mesmas, ainda que articulem sentidos que buscam celebrar a 36215 diversidade. É dessa forma que concebemos a colaboração como uma característica importante ao campo do currículo, e que precisa ser compreendida e valorizada, considerando toda a complexidade que ela emana. 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