Roberto Amaral
Acabo de ler seu texto e vejo que comungamos
as mesmas idéias, princípios e utopias.
Magistral o modo como articula a dialética
Sancho Pança X Dom Quixote! É isso: o poder
pelo poder, sem visão do bem comum.
Frei Beto
Roberto Amaral, um dos reorganizadores do Partido
Socialista Brasileiro em 1985 e seu atual primeiro vicepresidente, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, é
professor da PUC-Rio, ensaísta e cientista político, autor
de mais de 30 livros, entre os quais O papel do
intelectual na política, Socialismo: vida, morte e
ressurreição (este, com Antônio Houaiss) e Textos
políticos da história do Brasil, (com Paulo Bonavides).
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O fim do político intelectual
Valton de Miranda Leitão
Roberto Amaral - Em defesa da utopia
direta ou indireta, compra, venda e lucro com o
voto. Isso pode ser observado no mundo
globalizado debaixo do rótulo de democracia
liberal. É verdade que o chamado consenso ou
transparência democrática varia segundo a
maturidade política de cada país. Mas a
juridicização burocrática da sociedade civil e do
Estado não consegue esconder a gigantesca
hipocrisia do processo político mundializado. O
exemplo do enriquecimento de urânio pelo Irã é
modelar, porque se alega ser contra a ética e a
humanidade a pretensão iraniana de saber atômico,
enquanto a Ordem Internacional tolera sem
maiores problemas o mesmo desenvolvimento no
Brasil. Naturalmente, o Brasil não está na rota dos
interesses econômicos e geopolíticos do grande
mercado fetichizado. O fetichismo da mercadoria
teorizado por Marx em “O Capital” se tornou
fenômeno central, através do qual o sujeito
humano é controlado mundialmente pelo Capital
Global, utilizando a imposição da imagem
eletrônica. O argumento próprio do discurso
intelectual se esfumaça como tudo o que parecia
sólido e consistente. O papel da teoria está cada vez
mais transferido para o sistema comunicacional
eletrônico, secundarizando a formulação política.
A organicidade do militante e o corpo político se
tornam simples instrumentos de manobras,
sufocando princípios norteadores e o verdadeiro
desenvolvimento ético. O intelectual político da
grandeza de Florestan Fernandes, A. Houais, J.
Gorender, C. Prado Junior, Celso Furtado e
Roberto Amaral está naquele vértice que Gramsci
chamou de intelectualidade orgânica e que tende a
desaparecer diante do intelectualismo político de
mercado, cujo melhor exemplo é o recente livro de
Fernando Henrique Cardoso. Dentro desse
contexto de penúria intelectual no interior da vida
político-partidária, atingindo de modo mais
dramático a esquerda socialista, é que a
intelectualidade estonteada, busca saídas para sua
prática teórica e militância política. O cenário
político-partidário que virá após a eleição de
outubro próximo, exigirá grande esforço da
intelectualidade política brasileira para retomar o
lugar do qual foi alijada em benefício do
mercantilismo político.
Em defesa da utopia
ou
A necessidade de defender Dom Quixote
contra a ameaça dos
Sanchos Panças
Brasília-DF
2006
O pragmatismo que tomou conta da vida
política está produzindo um fenômeno estranho
que nega a famosa asserção leninista: “não existe
prática política sem teoria política”. O mais famoso
exemplo de liderança política capaz de aliar teoria
e prática, capacidade estratégica e militância,
abrangência histórica e senso de oportunidade no
momento de ataque ao inimigo político, foi o líder
russo Vladimir Ilitch Ulianov ou Lênin. A pequena
distância histórica que separa os acontecimentos
de outubro de 1917 conhecidos como a Revolução
Bolchevique surge diante do intelectual de
extração marxista como o rio do esquecimento,
Letes. Outros intelectuais como Habermas e
Sartre, na Europa Ocidental, tiveram forte atuação
política, mas sem a inserção histórica do líder
russo. O livro de Slavoj Zizek sobre Lênin, mostra
para o intelectual marxista a necessidade de resistir
à banalização pragmatista da política. Nesse
sentido, Zizek toma o modelo do gênio de Lênin
como exemplo de articulação entre indivíduo e
ação política, vontade ousada e decisão ancorada
na análise da conjuntura histórica. A moralidade
pequeno-burguesa, tão em voga no Brasil atual, é
mostrada pelo autor como elemento secundário
diante da radicalidade que a decisão política exige
num determinado momento histórico. Isso é a virtù
maquiaveliana, na qual se coloca que o Príncipe
deve ser respeitado e temido, mas nunca odiado. A
compreensão da relação entre o sujeito e a razão
histórica, acima delineada, tem sido o papel
desempenhado pelo intelectual na teoria e prática
da política. A força do mercado capitalista,
entretanto, reduz progressivamente essa
participação à simples narrativa dos fatos sóciopolíticos ou descrição jornalística que toma feição
cínica, tendenciosa e raramente imparcial. O
fenômeno da reificação-alienação da consciência
histórico-social, atualmente toma o caráter de
fetichização da vida política. Noutras palavras, a
práxis política se torna, cada vez mais comércio,
que no mercado sócio-político implica, de forma
Roberto Amaral
Em defesa da utopia
ou
A necessidade de defender Dom
Quixote contra a ameaça dos
Sanchos Panças
Brasília-DF
2006
Em defesa da utopia
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A necessidade de defender Dom Quixote
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Ficha catalográfica
A485e
Amaral, Roberto
Em defesa da utopia / Roberto Amaral / Fundação João Mangabeira.
Brasília : 2006
92 p. 21cm.
1. Teorias políticas. Ideologias I. Amaral, Roberto. II Título
CDU 320.5
Roberto Amaral
Em defesa da utopia
ou
A necessidade de defender Dom Quixote
contra a ameaça dos
Sanchos Panças
Fundação João Mangabeira
Brasília-DF
2006
Para
João Mangabeira
Mário Alves de Souza Vieira
Antônio Houaiss
Evandro Lins e Silva
Apolônio de Carvalho
Celso Furtado
Miguel Arraes
que souberam sonhar.
Para
Mário Kemper,
que tem toda a vida para sonhar e fazer.
Para Teresa,
como sempre.
O autor agradece as contribuições de seus colegas Antônio
Carlos Peixoto, Eduardo Diatahy B. de Menezes, F.J. Amaral
Vieira, Manuel Domingos (que acompanhou a elaboração deste
texto desde suas primeiras linhas), Nilson Lemos Lage, Pedro
Amaral e Valton Leitão. Por óbvio, todas as deficiências
sobreviventes são de sua exclusiva responsabilidade.
Sumário
Prefácio ........................................................................ 15
Nota do autor ............................................................... 19
I - O Príncipe virtuoso .................................................. 29
II - O paradoxo de Sancho e a incógnita do Quixote ..... 35
III - Império das circunstâncias ..................................... 41
IV - Ética, Causa e os Outros ....................................... 47
V - Contradições da virtu varguista .............................. 55
VI - O exemplo do rei Acab ......................................... 61
VII - Inimigo ideal e alido infiel ...................................... 65
VIII - A grandeza na superação .................................... 71
IX - Vitória de Sancho Pança ....................................... 77
X - O ônus do desencanto ............................................ 83
XI - E ainda é preciso sonhar... ..................................... 87
Bibliografia ................................................................... 91
[ 14 ]
Prefácio
VOLTAR AO QUIXOTISMO
Tarso Genro
Este texto de Roberto Amaral é uma reação teoricamente
bem elaborada da esquerda, contra o espírito pragmático que
se abateu sobre os movimentos socialistas contemporâneos.
Com a quebra dos paradigmas tradicionais do
“comunismo histórico” e com a crise fiscal da social-democracia,
os rigores necessários para uma globalização financeira
“consistente” apanharam os governos de esquerda, em todo o
mundo, sem um programa alternativo de resistência. Um
programa que fosse viável em termos econômico-financeiros e
factível por dentro da democracia.
Não estamos, porém, apenas perante uma única forma
de reação ao neoliberalismo e ao “caminho único” através do
“pragmatismo”. Ela tanto pode expressar-se “pragmaticamente”, fazendo uma transferência sem mediações das “leis”
do mercado para a esfera da política (já que o espaço da
política é essencialmente do sujeito), como também pode
dar-se por um certo tipo de “esquerdismo”.
A primeira forma de reação - o pragmatismo - é a que
se realiza pelo “economicismo”. Ele extingue o movimento do
sujeito, a escolha de alternativas e faz da política apenas uma
extensão das relações mercantis do mundo.
[ 15 ]
Roberto Amaral
A segunda forma de reação abriga-se em “dogmas” (para
não pensar) e promove um certo tipo de niilismo: o autoisolamento que redunda em negação da política. A primeira
reação, o pragmatismo, faz o sujeito sucumbir à objetividade
do caminho único. A segunda reação usa uma retórica radical
(maximalista), para recusar qualquer participação concreta nas
lutas políticas reais.
Esta segunda posição, a que redunda na negação da
política “real”, promove o isolamento em relação aos
movimentos políticos concretos, que pretendem interferir no
mundo objetivo para modificá-lo dentro das possibilidades
históricas: é o “quixotismo” perverso e historicamente niilista,
revestido de “dignidade” radical.
O verdadeiro “espírito de Quixote”, porém, está
essencialmente ligado à ação política transformadora com
capacidade de comunicar-se com a realidade. O seu bom
“delírio” é a capacidade de ação que o liberalismo iluminista
configurou no espírito jacobino: são decisões para ações
guiadas pelo ideal (que não importa se é atingível ou não no
horizonte de uma vida), mas que são ações julgadas
necessárias porque são justas.
O legado do espírito utópico, que adquire o seu sentido
mais radical neste idealismo jacobino faz - na verdade - uma
fusão racional da utopia com o realismo.
Esta é a essência que deve reconfigurar a política da
esquerda moderna para que ela, de um lado, não caia no
messianismo ilusório da “ditadura de classe” (apresentada
falsamente como solução) e, de outro, para que esta esquerda
não meça a sua capacidade de mudar o mundo pela capitulação
[ 16 ]
Prefácio
a uma outra ditadura: a do totalitarismo pós-moderno centrado
na força do mercado.
O texto de Amaral ataca o pragmatismo e aponta que a
renúncia à idéia de transformação é a “traição” do “Príncipe”.
Este que, segundo Gramsci, tem na modernidade madura a sua
configuração no “partido socialista” como generalidade, deve
converter-se no partido moderno do socialismo democrático.
Nos dias que correm sua função seria integrar a utopia
da igualdade com a democracia republicana.
A regeneração ética e política dos fins do “Príncipe”
confronta-se com a visão da manutenção do poder a “qualquer
custo”, que o acomodou como partido incapaz de ir além do
“centro”. Este problema se tornou o principal desafio - em escala
mundial - dos governos dos partidos socialistas e socialdemocratas de esquerda.
A máxima, nestes tempos de política transformada em
lógica mercantilista, foi proteger a falsa “virtude” da
aproximação ideológica com o caminho único. Sem responder
ao desafio de construir uma nova alternativa, o verdadeiro
espírito de Quixote não será reposto em toda a sua dimensão
humana e transformadora. É o que nos diz Roberto Amaral,
com brilhantismo e fundamentação.
[ 17 ]
[ 18 ]
Nota do autor
Tudo vale a pena, se a alma do Príncipe não é pequena
Estranhos tempos esses! Mal-saídos da ditadura franca,
que exilara nossos sonhos, foi-nos anunciado o fim do socialismo,
e o fim de todas as utopias. A velha ideologia, agora hegemônica,
decretara o ‘fim da história’ e essa sentença irrecorrível se abateu
sobre nós como uma condenação sem sursis: simplesmente nada
mais haveria por fazer. Não há mais atores em cena, baixa o
pano com o fim do último ato. O mundo é a realidade dada, e
ela independe de nossa vontade. Ao homem cumpre, tão-só,
aceitá-la (e dela procurar tirar proveito), ou renunciar à razão.
Aceitá-la é aproveitar-se das circunstâncias; renunciar à razão
é tentar modificá-la. O mundo da objetividade não se
compadece com a emoção e o sonho, muito menos com a
paixão, o motor da política em sua versão digna.
Se não mais é possível pensar em um mundo diferente
deste que conhecemos, se não mais é possível lutar para
transformar este mundo no mundo de nossos sonhos, só nos
resta aderir ao mundo que nos é dado. Ou, como ensinava o
Babouc de Voltaire (antevisão do Cândido), é preciso ‘deixar
o mundo tal qual ele é, porque se nem tudo é bom, tudo é
passável”.
Para que ‘dar murros em ponta de faca’?, pergunta-nos,
impávido, o político de sucesso.
[ 19 ]
Roberto Amaral
A esse fenômeno da sociedade contemporânea – o
sucesso da política pragmática – chamamos de a vitória de
Sancho Pança, que neste pequeno ensaio simboliza o
pragmatismo no que ele tem de mais rasteiro, de mais
oportunista, de mais empobrecedor da alma ocidental. A vitória
do escudeiro simplório, como a do sociólogo pachola que nos
dá lições de oportunismo, é, ao mesmo tempo, a derrota de
sua negação: o espírito de Dom Quixote.
O fim da paixão, do sonho, do engenho, da audácia, o
fim do risco, do destemor, da valentia e do idealismo, é a morte
do cavaleiro temerário.
O personagem romanesco, sem vez e futuro, esmagado
pelo mundo real, injusto, que recusava reconhecer, cede lugar
ao político ‘moderno’, matreiro, objetivo, pragmático,
astucioso, festejado pela sabedoria com que engana. A nova
ideologia, que não deseja reformar o mundo, promove
revoluções etimológicas: moderno, agora, é garantir a
continuidade do statu quo; atrasado, é lutar por mudanças.
Arcaico é ainda crer na força do homem fazendo a história;
moderno é conceber a história como fruto de doação divina,
da fatalidade ou do acaso, ou da vontade dos astros ou dos
deuses ou de um determinismo mecanicista; ou da ‘correlação
de forças’; ou do... mercado; atrasado é compreender a história
como processo em construção.
Quando vence essa ‘modernidade’, vence o espírito de
Sancho Pança.
Sua vitória vilipendia o exercício da grande política; em
seu trono senta-se a política do aqui e agora, a política da troca
de favores, da exploração assistencialista, do fisiologismo.
[ 20 ]
Nota do autor
Quixote passa a simbolizar devaneio, quimera, a
desarrazoada busca do impossível.
Assim, na era da modernidade, tornou-se quixotismo crer
na força do sonho e na possibilidade de o sonho, armado de
ação, modificar o mundo, porque vale a pena dedicar a vida à
luta pela construção de um mundo diferente. Só nos resta, pois,
reabilitá-lo. A utopia, porém, se é necessária, não é suficiente.
O querer precisa estar acompanhado do fazer, o sonho carece
da ação para não se transformar num só, puro e inútil devaneio.
Como conciliar utopia e realidade, racionalidade e
esperança, necessidade e desejo, o pragmatismo com o sonho
do revolucionário? Este, o desafio que pretendemos enfrentar.
Começaremos relendo Maquiavel.
O ensaio que se lê a seguir é uma pequena reflexão sobre
o papel do homem na história. Por isso é também uma ode ao
sonho. Mas é, acima de tudo, a afirmação de que sempre é
possível fazer a grande política.
Uma primeira versão foi publicada pela revista
Comunicação&política, vol. 24, nº 1, janeiro-abril de 2006,
sob o título ‘Pragmatismo e política, a vitória de Sancho Pança’.
Esta edição, revista, é enriquecida pelo prefácio de Tarso Genro,
personagem da grande política. Agradeço sua apreciação
lisonjeira, que se deve à nossa amizade.
Gávea, setembro de 2006
[ 21 ]
Em defesa da utopia
ou
A necessidade de defender Dom Quixote
contra a ameaça dos
Sanchos Panças
Cada vez que, em nossa própria vida, nos
recusamos a uma salida, porque sabemos que o
nosso ato não terá força sobre as condições
externas e assim não poderá remover obstáculos
opostos ao nosso intento, estamos agindo contra
o espírito de D. Quixote.
San Tiago Dantas
[ 28 ]
I
O Príncipe virtuoso
Com o concurso da violência e da traição, Agátocles
tomou o governo de Siracusa e nele se manteve. Bom Príncipe.
Também graças à violência e à traição, Oliverto conquistou o
principado de Fermo, mas só se manteve no poder por um
ano, derrubado e assassinado por César Bórgia, a quem não
soube derrotar. Mau Príncipe.
Os termos bom e mau podem ser substituídos por
competente e incompetente. A competência é medida pela
capacidade do Príncipe de fazer efetivo o poder, de conserválo. Não se questionam – não são objeto de juízo de valor – os
meios de aquisição e conservação do poder. Importa saber,
tão-só, se foi mantido ou não.
Distanciando-se dos que o precederam, Maquiavel
rompe com as classificações ético-valorativas dos regimes e
formas de governo, para tratar da política fenomenologicamente,
ou seja, tal qual é : a política malgré elle-même. Ao fazer da
prática uma teoria, deixou de construir um quadro de idéias.
Liberta a política da teologia e da moral, volta-se para a leitura
da história real; substitui o dever ser pela compreensão do
que é, assim como é.
[ 29 ]
Roberto Amaral
A obra de Maquiavel, fruto do conhecimento da Itália na
qual pretende intervir como agente de modificações, tem
objetivo preciso, a saber, revelar ao Príncipe os modos e meios
de conduzir um povo à sua unificação. Move-lhe o que no
século XX um patrício seu grafará como a grande política : as
questões maiores (fundação de novos Estados, sua unificação
e administração), a luta pelo poder, a defesa ou transformação de
estruturas orgânicas econômicas e sociais.
Para o fundador da ciência política, há, simplesmente,
principados e repúblicas que se conquistam e principados e
repúblicas que se perdem, principados e repúblicas que se
conservam e principados e repúblicas que não sobrevivem. Essa
conservação é também a promessa de um bem, conforme dizia
Aristóteles e percebeu Maquiavel, que pioneiramente acenou
com a construção da utopia italiana. É o último capítulo de O
príncipe.
O elemento distintivo, portanto, é a efetividade do poder,
a serviço da qual precisa estar voltado o melhor engenho do
Príncipe. A providência divina é substituída pela fortuna, ou
seja, pelas condições exteriores, pelas circunstâncias e pelo
destino, e a melhor qualidade do Príncipe é a virtù, isto é, a
eficiência, sem consideração dos meios, embora o bom príncipe
seja aquele que sabe situar-se diante do imponderável, jamais
deixando de ser portador de esperança: deve ser amado e
temido pelo que encerra de promessas, porque o principado
não pode ser conservado apenas pela força. A fortuna, autônoma
em face da vontade do indivíduo, oferece o momento propício
para a ação. O homem de virtù é aquele que sabe identificar a
ocasião correta para intervir com êxito. Príncipe virtuoso é
aquele que sabe conquistar e conservar o poder.
[ 30 ]
I - O Príncipe virtuoso
Se o fim da política é a conquista e manutenção do poder
– e não mais a realização do bem comum –, o fim do poder é
ele mesmo. Fim e auto-justificativa. Estes são os efeitos práticos
da versão que Maquiavel propõe para o poder. Dela derivada
é a especificidade da política, sua autonomia conceptual, a
existência de um corpus doutrinário próprio e de uma axiologia
própria. A ética da política, pois, estaria estreitamente vinculada
ao exercício do poder, isto é, vinculada à sua efetividade. O
poder é. Trata-se de razão prática, testada a priori, medida
pelos resultados.
[ 31 ]
[ 34 ]
II
O paradoxo de Sancho e a
incógnita do Quixote
Como proscrever o oportunismo, se se admite que a
essência da realpolitik é a efetivação (e ampliação) do poder?
A isto chamo de o conflito entre Sancho Pança e o
Cavaleiro da Triste Figura, o voluntarioso vencido pelo
pragmatismo do aprendiz de escudeiro: pobre incréu apegado
à realidade material, avesso aos sonhos e às utopias.
Qual o objetivo do Quixote? Mudar o mundo para
melhor. Não vem à balha que mundo novo é esse imaginado
em seus devaneios; não interessa se o herói sem vitória realizará
ou não seu sonho, muito menos importa saber se esse mundo
sonhado é possível. O relevante é a crença na mudança e a
certeza de que o homem pode intervir, transformando a ficção
em realidade.
A política não é, apenas, razão, senso de oportunidade e
a busca de resultados práticos. É também necessidade e desejo.
Ela implica paixão e utopia, sem o que renuncia ao sonho. Nessa
hipótese vence a política como técnica, como pura ação, como
negócio.
[ 35 ]
Roberto Amaral
A característica do espírito quixotiano é a rebeldia. A fé
na liberdade (que subentende escolha) e na capacidade de ação
do homem, a busca de uma indefinida ‘justiça distributiva’, a
crítica à sua sociedade, o combate quase anarquista (avant la
lettre) à autoridade e às leis, aos usos e costumes
estabelecidos, a aposta na força da vontade do indivíduo.
Quixote revela uma concepção de liberdade individual que torna
questionável toda manifestação de poder. Daí simbolizar,
também, um humanismo desobrigado de êxito.
Quixote não cumpre um destino, como os heróis-deuses
gregos. Nem épico nem lírico, ele se escolhe em frente às suas
circunstâncias, escolhendo para si o papel de herói; não se
contenta com a realidade, recusa a tradição, o estabelecido, o
bom-senso e o senso-comum, fratura os costumes, descarta
os papéis pré-estabelecidos e o consenso. Personagem de sua
vontade – de uma vontade tresloucada, não importa –, decide
mudar o mundo.
Que diremos, porém, de seu fiel escudeiro senão que se
trata de um oportunista, sem convicções a guardar, um realista
fascinado pela perspectiva representada pela governança da
ínsula prometida pelo amo?
O conformista sucumbe diante da realidade – ainda que
adversa –, convencido de que ela é a ‘ordem natural das
coisas’, ou o decreto de uma vontade divina. Não sabe que a
história é obra do homem.
Quixote é o paroxismo da intervenção; Sancho, a apatia.
Quixote não é só delírio, é também esperança. Mas é acima de
tudo paixão.
[ 36 ]
I I - O paradoxo de Sancho e a incógnita do Quixote
Sancho é a eficácia, o terra-a-terra. Insistentemente
lembrará ao fidalgo que os moinhos de vento são apenas
moinhos de vento; acredita que ganhará a ilha, mas, pragmático,
duvida do cavaleiro quando a promessa se transforma na oferta
de um reino. Simboliza o agente da ordem estabelecida.
[ 37 ]
[ 40 ]
III
Império das circunstâncias
Na política que está mais para o oportunismo do
escudeiro simplório e pedestre do que para a fantasia do
cavaleiro anacrônico o valor é determinado pela equação custobenefício e a ação é condicionada pelo império das
circunstâncias, que tudo absolve e justifica, inclusive a orfandade
dos princípios.
O pragmatismo determina a renúncia às utopias. Do
primado da eficácia decorre o automatismo da política do
possível sobre o desejo e a necessidade. O reino da objetividade
é o aqui e agora.
O voluntarismo do herói cervantino, a obsessão
individualista de intervir na realidade, antecipa a discussão
contemporânea do papel do homem na história. Porque o
determinismo mecanicista e o pragmatismo na política (no
sentido de submissão ao império das circunstâncias) anulam a
escolha. E se não há escolha, não há intervenção, seja a
intervenção individual, seja a intervenção coletiva da
humanidade.
[ 41 ]
Roberto Amaral
Mas há escolha, sempre, e nela está presente o fator
subjetivo. É de Espinosa a afirmação de que paixão e interesse
estão no âmago das decisões dos governantes. E, por óbvio,
podemos acrescentar, no âmago das decisões dos
revolucionários, dos que se dispõem a mudar o mundo. Dizia
Lênin que o elemento determinante da revolução era o fato de
os de cima não poderem continuar como estavam, e os de
baixo não poderem e não quererem. Em diversas experiências
históricas quem estava em cima continuou do mesmo jeito. E
os de baixo só começaram a não mais querer porque alguém
lhes disse que não mais quisessem. Alguém é, no caso, um ente
coletivo dotado de vontade, que age, um sujeito histórico; não
se curva à correlação de forças, mas nela intervém para alargar
suas possibilidades de participação. Engels, em carta a
Plékhanov, já havia lembrado que é o próprio homem que faz a
sua história, mas que a faz sob diversas condicionantes, uma só
das quais é a econômica. Diz isso para lembrar a interferência
de condições políticas e ideológicas. Gramsci refere-se à
vontade como consciência e protagonista da necessidade
histórica, atravessada pelas contradições sociais. Antes de
todos, Maquiavel destacou a ação livre do homem
transformando a história, ao lado da interferência do acaso e
do irracional. Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu são exemplos
dos que foram Príncipes pelo seu valor e não por boa sorte.
César Bórgia adquiriu o Estado com a fortuna do pai, e sem
esta o perdeu, embora agisse com competência. O Rei Luís,
afagado pela fortuna, perdeu a Lombardia porque lhe faltou
virtù.
[ 42 ]
III - Império das circunstâncias
Que é a virtù maquiaveliana senão o encontro do
conhecimento da realidade com a vontade (armada de
competência) de querer transformá-la?
Tomemos livremente as palavras de Bernstein, e não o
sentido de sua sentença reatualizada pela política de nossos
dias: o movimento é tudo, o objetivo é nada. A conquista do
poder é tudo, o quê fazer, é nada; a conservação do poder é
tudo, o programa é nada.
Posto que o movimento é tudo, ele é, também, o objetivo
final; o mais, o resto, é nada. Tática e estratégia se fundem.
Vê-se, portanto, o fazer político dominado por uma práxis
que consagra o poder pelo poder, como meio e como fim.
Não se diz que os fins justificam os meios: simplesmente os
meios (a conquista do poder e sua conservação) se transformam
em fins.
Aceite esse princípio, tudo o mais estará legitimado. O
poder que se explica por si mesmo constrói uma nova axiologia,
pela qual o fundamental é sua conservação, projeto tão precioso
que pode justificar a ausência de objetivo, ou a transformação
do meio em fim. Tudo o que se fizer estará justificado,
porquanto o novo Príncipe está armado dessas imunidades
éticas. Os meios, quaisquer, estão justificados pelos fins, e não
há fim mais legítimo do que a conquista e conservação do poder.
Ganhar para mudar (leia-se, realização de um objetivo)
transforma-se em mudar (leia-se, aceitar quaisquer meios) para
governar. Estamos a um passo da confusão entre espaço público
e privado, isto é, da ruptura entre ética e política.
[ 43 ]
Roberto Amaral
Daí a apropriação fundamentalista do Estado, mesmo
em regimes não-autoritários e republicanos. Desaparecem a
dúvida e o pensar, substituídos pelo puro agir. O objetivo do
mandato parlamentar, eis um exemplo, passa a ser sua
renovação, e o governante governa simplesmente para continuar
governando. A governabilidade e a continuidade,
transformadas em fins em si, se auto-justificam e justificam os
meios empregados pelos governantes para realizá-las. É a
política reduzida às táticas, a política como técnica, e não como
práxis, tornando uma coisa só agente, ação e fins; essa política
é tarefa reservada a especialistas, os mercadores de votos
sem política, os novos virtuosos do regime que aboliu a
ideologia. Trata-se, nas palavras de Gramsci, da pequena
política, a administração passiva do cotidiano em prejuízo das
propostas estratégicas, a política do dia-a-dia, dos corredores,
das intrigas, das negociações, do tráfico de influência, dos
truques e das tramóias, e também da distribuição das verbas
orçamentárias.
O meio é o fim, e a política se torna irrelevante, impotente,
dispensável. Meio é a técnica, e seu objetivo justificador é a
conquista do poder, para nada, senão pelo seu mero exercício
e usufruto, usufruto que se justifica como necessidade de
conservar o poder. No partido e na governança a burocracia
caminha para além de mera modalidade de organização.
Transforma-se ela própria em espécie de poder, ela também
passa a cuidar de sua própria sobrevivência, e ela igualmente
desconecta-se da grande política.
Surge a indústria político-eleitoral, com seus expertos e
especialistas, com sua ética própria.
[ 44 ]
[ 45 ]
[ 46 ]
IV
Ética, Causa e os Outros
Voltemos a Berstein.
Digamos, agora: a causa é tudo, o resto é nada. A
Causa é o fim justificador dos meios, se esses meios são
eficientes para a realização daqueles fins. A política deixa de
ter um quadro axiológico próprio e são construídos dois mundos
éticos não-comunicantes: o mundo ético derivado e contribuinte
da Causa, e o mundo ético dos outros. É o que nos diz antigo
sociólogo feito Príncipe em República sereníssima. Citando Max
Weber, ditou a existência de duas éticas, a ética do governante
e a ética comum, dos indivíduos, e nos diz que o governante
não pode estar subordinado à ética do senso-comum, porque
há uma ética do chefe-de-Estado e uma ética, distinta, dos
indivíduos, uma ética própria das religiões, uma ética própria
do poder econômico-financeiro, uma ética própria dos Partidos
etc. Uma ética do Príncipe, uma ética do súdito.
Para manter o poder, muitas vezes o Príncipe age contra
sua palavra, seus escritos, seus compromissos, que logo
exortará os súditos a esquecer, como o Príncipe intelectual pede
que esqueçam o que escreveu quando era sociólogo. Ele próprio
[ 47 ]
Roberto Amaral
esquecerá suas promessas, valer-se-á da astúcia e da simulação
para governar. Porque, diz ele, o Príncipe não pode observar
todos os preceitos de que são servidores os homens
considerados apenas bons, o comum dos homens. Das suas
ações, o importante é o êxito. Por isso os meios que empregar
serão adequados, se levarem ao bom êxito.
A Causa, que reduz tudo o mais a nada, pode ser a
derrota do adversário e pode ser a unidade nacional: Maquiavel
exortou a casa dos Médicis a eleger o Príncipe virtuoso que
faria da Itália uma nação unificada. Era a sua utopia. A Causa
pode ser um interesse de classe ou a emancipação política,
pode ser a Revolução social, ou pode ser o Partido, ou o
‘Mercado’, com suas idiossincrasias, sua ciclotimia, seus
caprichos; pode ser a simples reprodução do poder do
soberano. Depende do tamanho da alma do Príncipe.
Se o novo Príncipe é um ser ungido, por si e pela Causa,
e por haver sido ungido está acima do bem e do mal, também
acima do bem e do mal se entenderá o Partido do Príncipe,
porque ambos terão sido sagrados por uma Causa que está
acima do bem e do mal, pois, dirá o Príncipe, trata-se da Causa
do Povo, ou do País. E como esse fim é o melhor possível para
o povo (assim decidiu o Príncipe), o que se fizer para alcançar
tal meta estará auto-justificado. Eis como o fim da política
passa a ser a permanência do Príncipe e do seu Partido político
no poder, pela simples razão de o Partido haver deixado de ser
mero instrumento da realização de um projeto de governo, para
transformar-se no próprio projeto. E por que o Partido do
Príncipe estaria acima do bem e do mal? Porque, sendo o
Partido do Príncipe, se auto outorgou a categoria de vanguarda
[ 48 ]
IV - Ética, Causa e os Outros
do povo, em nome de cujos interesses tudo está sendo feito e
tudo pode ser feito. Mais do que isso: O partido é o povo. O
partido sabe, por isso pode tudo. Deixa de ser instrumento da
vontade das massas para converter-se no construtor dessa
vontade.
Mas o Partido também tem sua própria vanguarda, ou
estamento ou nomenklatura, que deve comandá-lo porque é
igualmente a representação dos interesses do povo; o que essa
(nova) classe dirigente tiver feito em benefício do Partido (ou
para conservar o comando partidário), terá feito em benefício
final do povo, o que vale como absolvição plena de quaisquer
erros ou vícios. Donde poder-se admitir uma ‘corrupção do
bem’, contraposta a uma ‘corrupção do mal’, a dos outros.
Moralista, essa nova classe dirigente pode defender
alianças políticas que negam seu projeto político, e, para
conquistar o poder, conservá-lo ou ampliá-lo, sente-se mesmo
autorizada a ceder à corrupção; originária do proletariado, pode
adquirir hábitos e valores pequeno-burgueses; de esquerda,
pode, eventualmente no governo, assumir o programa da direita;
progressista, pode assimilar a política conservadora; mudancista
e reformista, pode governar a continuidade. E considerar-se-á,
sempre, auto-absolvida pela Causa. Esta Causa, porém, para
o governante, é a só governabilidade, e para o Partido do
Príncipe, é a simples auto-reprodução dos quadros dirigentes.
O novo Príncipe, narciso, coloca-se como detentor da
verdade absoluta, que lhe faculta a posse de uma ética privada;
seus atos estão previamente justificados, porque o move a
certeza de estarem a serviço da transformação social que só
existe na própria mente tomada desse delírio. Realidade e
[ 49 ]
Roberto Amaral
fantasia têm suas fronteiras confundidas. O dirigente pragmático,
sinceramente, não compreende que seus atos possam ser acusados
de anéticos ou amorais, que sua conduta seja questionada
socialmente, porque, no delírio, perde as referências que definem
uma e outra coisa. Essas referências, que vêem do mundo exterior,
são substituídas por seu próprio quadro de valores, uma superética que, como pesado manto de veludo, encobre e sufoca
princípios e justifica seus atos, porque essa é sua finalidade. Nele,
saber e poder se confundem, reescrevendo o cogito cartesiano:
posso, logo sei.
A tragédia é que esse Príncipe não consegue enxergar
qualquer política além dos malabarismos para manter o poder,
transformando-o em algo que se explica por si mesmo; é a
preeminência do dia-a-dia, do cotidiano, do imediato. E muitas
vezes o poder, Pigmaleão moderno, é que esculpe o Príncipe.
Daí as transformações aparentemente incompreensíveis, as
mudanças de hábitos, de costumes, de posturas, de práxis, de
idéias, de programas. Não é mais o Príncipe que muda o poder.
Caminhamos pela segunda aléia do cemitério dos
princípios. Agora se foram os sonhos, as utopias. A primeira
perda deu-se com a vitória do pragmatismo sobre o desejo e a
necessidade.
Talvez seja possível, a esta altura, concertar todas essas
hipóteses em dois modelos ou situações. No primeiro caso,
temos o poder pelo poder, sem meios que justifiquem as ações
do Príncipe. É um jogo de pura efetividade, todo voltado para
a manutenção do poder. Nesse modelo, o horizonte do projeto
não vai além do campo visual do Príncipe. Já no segundo caso,
a grandeza da Causa justifica a ruptura do padrão ético, pois a
[ 50 ]
IV - Ética, Causa e os Outros
Causa é, em si mesma, ética. Ou, dito de outra forma: a Causa
encerra toda a ética da política. Mas quem mede a grandeza
da Causa, portanto sua ética justificadora, é o próprio
Príncipe…
[ 51 ]
[ 54 ]
V
Contradições da virtu varguista
Por duas vezes Getúlio Vargas exerceu a presidência da
República. Esses dois períodos, distintos entre si pela forma de
conquista e conservação do poder, teriam, como elemento
unificador, um projeto de nação. Haveria uma Causa como
alma e corpo do governo: a emancipação do país por intermédio
da modernização do Estado, único caminho para a
industrialização e o desenvolvimento, a industrialização como
garantidora do desenvolvimento, o desenvolvimento como
conditio sine qua non para a emancipação, e pela introdução
de um novo paradigma cultural, caracterizado por uma vontade
nacional. O liberalismo revelara-se incapaz de promover o
desenvolvimento e a democracia só parece ter sentido se
amarrada a objetivos nacionais.
Em outras palavras: o varguismo teria uma Causa
imperativa. Pela primeira vez, entre nós, a política se colocava
nestes termos.
Após exercer vários mandatos eletivos e disputar pela
primeira vez, perdendo, as eleições presidenciais (1930), Vargas
lidera um movimento civil-militar auto-intitulado de revolução,
[ 55 ]
Roberto Amaral
e, com a força das armas, destitui o poder legalmente constituído,
revoga a ordem constitucional, e assume as funções legiferantes.
Assim governaria por quatro anos, quando, após esmagar uma
insurreição que pretensamente reivindicava a reconstitucionalização do país, cede às pressões da sociedade e
convoca uma assembléia nacional, a qual aprova nova
Constituição e, em seguida, transforma o ditador em presidente
para um mandato de quatro anos. O novo regime, constitucional
e democrático, conhece a emergência de movimento político
essencialmente nacionalista e antiimperialista, simbolizado na
Aliança Nacional Libertadora, que Vargas mandaria fechar para
em seguida esmagar um levante militar liderado pelos
comunistas. Os quatro anos da democracia prometida se
transformam em três anos e quatro meses incompletos, porque
o Presidente, antecipando-se ao seu Ministro da Guerra, fazse ditador, decreta outra vez o fim do regime constitucional e
anuncia uma nova era que denomina de ‘Estado Novo’. Fecha
o Congresso que convocara e cuja eleição presidira (e, ainda,
que o elegera Presidente, relembre-se), edita nova Constituição,
autoritária, destitui os governadores e nomeia interventores,
governa por intermédio de decretos-lei e submete o país a rígida
censura.
O regime antidemocrático e anticomunista enfrenta e
esmaga um putsch integralista e anticomunista. As liberdades
individuais são suprimidas, os partidos políticos dissolvidos, os
adversários do regime submetidos a prisão, tortura e exílio; o
Judiciário posto sob controle. A autonomia dos estadosmembros é substituída pela asfixia unitarista, anulando o pacto
federativo. Paradigmaticamente, são queimadas as bandeiras
[ 56 ]
V - Contradições da virtu varguista
dos Estados. O regime tem duas pernas de apoio. Uma são as
Forças Armadas, outra um pacto social envolvendo a burguesia
industrial, o operariado e a emergente classe média. Unindoas, o projeto nacional-industrialista. Oito anos passados,
alteradas as circunstâncias, Vargas é deposto por um golpede-Estado chefiado pelo seu Ministro da Guerra, o mesmo que
comandara militarmente o golpe anterior. A ditadura tornara-se
anacrônica em face das lufadas democráticas sopradas pela
derrota militar do nazi-fascismo.
A redemocratização implicou a convocação de eleições,
a elaboração de nova Carta, a eleição de um presidente pelo
voto direto. Elege-se o candidato apoiado pelo ex-ditador e
ele mesmo é consagrado pelo voto popular, candidato nas
mesmas eleições a vários postos eletivos em vários Estados.
Tornar-se-á, o ex-ditador, no novo regime, eleito senador
da República, disciplinado servidor das regras constitucionais
e da democracia representativa, cujo fundamento é o voto.
Participa da criação do Partido Social Democrático, majoritário,
à sua direita, e funda o Partido Trabalhista Brasileiro, à sua
esquerda.
Em 1951 retorna à Presidência, alçado pela
manifestação de quase 49% do eleitorado. No governo, associa
a proposta de um programa reformista, mantida a saga
nacionalista e industrialista, com rigoroso respeito à ordem
democrática. O que não o livrou, porém, da arregimentação
oposicionista de cunho liberal e moralista. A grande imprensa
– os jornais, revistas, o rádio e a nascente televisão – movelhe incansável combate, e a crise política, fragilizando-o,
terminaria por preparar sua deposição, levada a cabo pelos
[ 57 ]
Roberto Amaral
militares, com apoio das correntes políticas conservadoras e
da classe-média, que ocupam os espaços da política, deixados
vazios pelas massas populares.
Pela segunda vez, alteradas as circunstâncias, não teve
forças para controlar o curso dos acontecimentos, e, assim,
não lhe foi dado pôr a salvo o poder que soubera conquistar.
Amado pelo povo, deixara de ser temido pelos
adversários, pois não soubera fortalecer os mais fracos e ao
mesmo tempo enfraquecer os poderosos, como aconselhara
Maquiavel. Acusado seu governo de corrupto, descobriu-se
ele, pessoalmente probo, traído pelos auxiliares mais próximos..
Declarou-se esmagado por um ‘mar de lama’ que correria pelos
porões do Palácio do Catete. Enfrenta a iminência de um novo
golpe-de-Estado com o suicídio na madrugada-manhã de 24
de agosto de 1954. Despede-se com vigoroso libelo em defesa
do nacionalismo.
Pragmatismo, realismo e sonho. Nesses valores estariam
a virtù varguista, para quem a revolução e o processo eleitoral
democrático, tanto quanto o golpe-de-Estado, são,
simplesmente, meios de aquisição do poder, e, simplesmente
meios, servidores da Causa (ou fim) comum, a emancipação
do País, fonte única da legitimação ética. Dessa mesma Causa
decorre a legitimação dos meios empregados para a
conservação e ampliação do poder, que, como vimos, tanto
podem ser a ditadura quanto a democracia representativa.
[ 58 ]
[ 59 ]
[ 60 ]
VI
O exemplo do rei Acab
O Marquês de Pombal, cujo despotismo sem limites foi
posto – com êxito— inteiramente a serviço do projeto de
modernização de Portugal, a Causa de sua vida, conheceu
como poucos estadistas os meandros do poder que dominou
com força e maestria inexcedíveis, como dominara a arte de
fazer-se influente e necessário. Dominou a Corte e a nobreza
portuguesas e destronou os poderosos jesuítas. Poderosíssimo
e ferocíssimo – poucos como ele tanto exacerbaram a
hipertrofia do poder pessoal –, conhecia a adulação e a falsa
lisonja de que foi alvo e não ignorava a queda dos governantes
pelos bajuladores, ele que tanto soubera cativar a estima de D.
José. Com tal autoridade aconselhou seu sobrinho Joaquim de
Melo e Povoas, que fizera governador do Maranhão, a não
seguir o exemplo do rei Acab, que só ouvia os profetas que lhe
prediziam os bons fados e afastava de si os que ousavam
vaticinar o que não desejava ouvir. Dizia para o sobrinho tratar
como inimigos os aduladores, deles se apartando como quem
evita o pior inimigo, como quem foge do veneno mortal. Parecia
antever seu próprio fim, isolado na Corte, decaído pelas tricas
e futricas palacianas, pelo jogo da pequena política que tece e
[ 61 ]
Roberto Amaral
destece, que tanto leva ao poder o político ardiloso quanto o
faz conhecer o degredo. O bom Príncipe evita que seu principal
auxiliar se torne necessário demais.
O poder também consome.
Não diz a história se o sobrinho levou em conta o
conselho do tio.
[ 62 ]
[ 63 ]
[ 64 ]
VII
Inimigo ideal e aliado infiel
Todo Príncipe tem inimigos. Esses inimigos ele elege
quando escolhe com quem e para quem governar. Quando se
faz defensor dos camponeses, atrai a fúria dos fazendeiros;
quando opta pelos empresários, conquista a animosidade dos
trabalhadores. Outras vezes, ao tentar atender igualmente aos
interesses de gregos e de troianos, termina perdendo a estima
de ambos. Esse inimigo pode ser uma das várias frações do
grande capital ou os grandes proprietários. O inimigo pode estar
dentro ou fora dos muros da cidade. Pode ser um adversário
externo, o que, em regra, leva à unidade dos súditos em torno
do seu líder, esquecendo disputas domésticas. Todo Príncipe
deseja um inimigo assim, pois essa é a melhor arma de que
dispõe para conservar o poder. Muitas vezes, esse inimigo
precisa ser inventado para poder garantir a coesão interna. Se
esse é o bom adversário, o pior é o que está dentro de casa,
faz parte do governo, freqüenta os palácios ou integra as fileiras
do exército. Sun Tzu, muitos séculos antes de Mazarini, Pombal
e Maquiavel ensinou que, sem harmonia no Estado, não adianta
ter exército; sem harmonia no exército não pode haver formação
de batalha. Harmonia não é apenas a paz interna, mas também
[ 65 ]
Roberto Amaral
a eleição do objetivo comum, aquele que torna secundários
todos os demais projetos. As tropas formando um corpo unido
impedem que os bravos avancem sozinhos e que os covardes
abandonem a luta.
Getúlio Vargas afagou as classes empresariais e com elas
também terçou armas; afagou os trabalhadores e por eles foi
amado. Mas quando a fortuna se voltou contra si, não lhe foi
possível enfrentá-la, pois emergiu a dissensão em sua retaguarda:
traído dentro do Palácio, sem controle sobre ações criminosas
praticadas em seu nome, viu, finalmente, que não contava com
seus ministros; estavam muitos deles entre os que negociavam
sua renúncia. Os militares, ao invés de defenderem o mandato
constitucional de seu comandante, conspiravam contra o
Presidente, e seu Partido não foi capaz de protegê-lo contra os
ataques inimigos. De nada lhe valeu a base trabalhista, que não
soube utilizar em defesa de seu mandato. Ao contrário, as
massas populares e o moralismo da classe-média, assustada
com o ‘mar de lama’, foram mobilizados contra Vargas, no
oportunístico encontro de seus adversários ideológicos, de
direita, com a extrema esquerda de então, que também lhe fez
oposição.
A tentativa do Presidente de instrumentalizar o movimento
sindical, via Ministério do Trabalho principalmente, esvaziara
as organizações sociais, conduzidas por lideranças desvinculadas da luta de suas categorias, rentistas de sinecuras na
burocracia estatal e nos aparelhos dos partidos no governo.
Vargas seria traído pelo varguismo.
Outros Príncipes, também amados pelo povo, mas sem
despertar o temor dos poderosos, negligenciaram a importância
[ 66 ]
VII - Inimigo ideal e aliado infiel
da escolha de seus conselheiros. Não conheciam o axioma de
Mazarin: numa comunidade de interesses, há perigo logo que
um membro se torna demasiado poderoso. Retomemos Sun
Tzu: não há harmonia no exército se cada comandante tem um
objetivo próprio na batalha. Igualmente não conheceram nem
a advertência de Pombal – muitos só tardiamente descobriram
que estavam cercados de áulicos –, nem o conselho de Matias
Ayres, nosso primeiro filósofo, recomendando seu filho a fugir
das ‘más companhias’ como quem foge da peste. Uma das
mais danosas companhias, capaz de corromper todas as
virtudes, é a vaidade.
Muitos Príncipes se perdem pela má escolha dos
conselheiros, pois são daqueles que se inebriam com a lisonja
falsa, e se molestam com as advertências dos que lhes indicam
os erros. Esta, dizem os biógrafos, era permanente queixa de
José Bonifácio, conselheiro de nosso primeiro Bragança, que,
preferindo ouvir elogios, terminou sendo vítima do primeiro
golpe-de-estado do império que fundara com tanta bravura.
O inimigo do Príncipe pode ser interesses de classe
contrariados, pode ser um Gabinete desunido, pode ser um
ministro todo-poderoso concorrendo com o poder, pode ser
um chefe de Guarda Pessoal, pode ser um tesoureiro de
campanha, e pode ser, também, o próprio Partido do Príncipe.
O Partido o trai não apenas quando lhe falta com o apoio no
Parlamento, ou lhe nega o voto nas eleições. Também o trai
quando adota práticas, hábitos e costumes ilegais, ilegítimos
ou anéticos. Mas o Partido se nega principalmente quando
descumpre os compromissos de campanha e adota como seus
o Programa e as condutas que combateu para ganhar as
[ 67 ]
Roberto Amaral
eleições. Também o Partido pode ter seu inimigo interno,
quando, por exemplo, sua direção não está à altura de realizar
seu programa, quando não tem condições de compreender o
desafio histórico (ou, quando, por vontade própria, ou
atendendo a interesse de classe, resolve mover-se noutra
direção) e, assim, sucumbe ao pragmatismo rasteiro que abole
os sonhos e os compromissos estratégicos.
O Partido desserve ao Príncipe quando se parte, dividido
por nomes-caciques, facções ideológicas ou políticas e visões
meramente táticas.
O Partido trai o Príncipe quando renuncia à grande
política e se entrega à pequena política.
[ 68 ]
[ 69 ]
[ 70 ]
VIII
A grandeza na superação
A grandeza do príncipe é medida pela sua capacidade
de vencer as dificuldades e superar a oposição que lhe for
movida. Grande Príncipe, lembra Maquiavel, é aquele que está
à altura do desafio a que se candidata; censurável é aquele
que, sem dispor das forças necessárias, enfrenta desafio que
não pode vencer. Não basta ter o desejo de conquista. É preciso
ter competência, virtù e fortuna para conquistar seu objeto
de desejo.
O reino das circunstâncias não é suficiente, per se, para
determinar o curso dos fatos. É verdade que o homem é ele e
suas circunstâncias. Mas é preciso completar Ortega y Gasset
afirmando que o destino do homem é mudar o mundo. Afinal,
o homem não é, apenas, ele e suas circunstâncias, a saber, ele
como agente autônomo e ele em sua relação dialética com suas
circunstâncias. O homem é fundamentalmente uma encruzilhada.
Por isso ele é obrigado a se definir todo dia. Há o acaso e,
relevantíssimo, o papel do indivíduo na história. Cabe ao homem
intervir, mudar o rumo das circunstâncias, alterar a correlação
de forças em benefício de seu projeto de mundo, mundo que
[ 71 ]
Roberto Amaral
se modifica e história que se altera a todo transe. Se o talento
de alguns atores pode ser decisivo para a modificação das
circunstâncias, há casos, porém, em que o Príncipe não está à
altura do desafio. Vezes outras, o desafio da realização da
‘esperança de um bem’ é maior que a possibilidade de liderança
do Príncipe. Se, por acaso, lhe sobra fortuna, pode faltar-lhe
virtù. Sem a proteção das circunstâncias, as qualidades
pessoais se apagam; mas, sem qualidades pessoais, virtù, a
ocasião favorável tornar-se-á inútil. Não consegue fazer-se
temido pelos poderosos e perde a simpatia que despertou nos
súditos. Nessas ocasiões vence Sancho Pança, porque, visão
curta, sua única possibilidade de sobrevivência é como
simulacro. Mais simples, mais prático, menos arriscado – o
pragmático ou realista detesta o risco – será aliar-se ao império
das circunstâncias, e se possível, também ‘tirar vantagem’.
Podendo não ganhar, garante-se de que jamais perderá. Foi
esta a opção do presidente Café filho (1954), sem desconfiar
de que outro golpe o alijaria da presidência (1955). É esta a
ética da adesão, e, por isso mesmo, há os que pedem que
esqueçamos não só o que escreveram, mas, mesmo, suas
biografias.
Acossado pela conspiração, Vargas se reuniu com seus
ministros e, ao invés de receber a solidariedade com que
contava, foi surpreendido com o apoio ao pedido de renúncia.
Quando, movido pela emoção, o povo foi às ruas, para
honrá-lo, já era tarde. O corpo do ‘pai-dos-pobres’ estava
sendo velado no salão dos despachos do Palácio do Catete e
os generais organizavam o novo governo. Restou ao povo o
[ 72 ]
VIII - A grandeza na superação
protesto, sob os olhares condescendentes dos vitoriosos de
sempre.
Acossado por um ensaio de conspiração, vendo minadas
suas bases parlamentares, atingido seu ministério, um outro
Príncipe deixou o Palácio e foi às ruas, logrando obter o apoio
popular que decidiria seu embate com os adversários.
A lição é ainda de Maquiavel: o político que não alcançar
o alto da serra jamais distinguirá a árvore da floresta; mas só
dominará a floresta se descer do alto. Em outras palavras: o
Príncipe só alcança o cume, isto é, faz-se soberano, se descer
à planície para ouvir o povo.
[ 73 ]
[ 76 ]
IX
Vitória de Sancho Pança
Príncipe é quem exerce o poder sobre as coisas e os
súditos. Em tese, é o governante, seja o monarca ou o presidente,
derive esse poder da herança, da eleição ou da conquista pela
força, não importa. O Príncipe, porém, não é, tão-só, ou
sempre, o governante, pois é possível ao governante ocupar a
chefia do governo e no entanto não enfeixar o poder; ou, dele
não podendo conservar o monopólio, ser obrigado a
compartilhá-lo com outras forças. Neste caso temos um poder
difuso e a sobrevivência do governante dependerá ou do
equilíbrio das forças ou do fato de, dentre todas as frações de
poder, representar a força hegemônica, diante da qual, todavia,
não conserva autonomia. Quando o equilíbrio se desfaz ou a
hegemonia é substituída por outra correlação de forças, o
governante é substituído. Assim, se um governante é
defenestrado, as circunstâncias já terão gestado o sucessor,
pois não há nem vazio de poder, nem concomitância de
Príncipes.
O Príncipe não precisa representar, conditio sine qua
non, toda a classe dominante; seu poder pode ser o fruto de
uma correlação de forças dominante, ou a força hegemônica
[ 77 ]
Roberto Amaral
dentre todas do mesmo bloco. Pode, da mesma forma, resultar
de uma aliança de forças dominantes com segmentos das classes
subalternas. Não se trata de uma concordata, posto que não
há a composição de interesses de classes em conflito. Trata-se
da assimilação, pela retórica da classe dominante, de
reivindicações não essenciais das classes deprimidas, as quais,
continuando subalternas, passam, todavia, a ver no Príncipe o
pai protetor.
O Príncipe moderno, ocidental, é, cada vez mais, um
coletivo. Trata-se, maiormente, de condomínio de interesses
representante das diversas facções da coalizão de classes
dominante. Essa coalizão compreende luta dentre as diversas
facções em busca da hegemonia interna, donde a sucessão
temporal de facções líderes, sem prejuízo do império do
interesse de classe que detém a hegemonia dos interesses do
condomínio. Assim, sem que se altere a natureza do Estado, e
mesmo sem que se mude o governante, pode haver a alternância
de predomínio de interesses de facções pertencentes ao mesmo
bloco de interesses dominantes; e, ainda assim, alterando-se o
conduttore, não se altera nem o governo nem a natureza do
mando. Por essa razão não é raro o governante deixar de
governar segundo seus interesses, ou seja, segundo os interesses
que representa, para governar governado pelos interesses
dominantes, dos quais deriva o mando.
Mais uma vez a vitória da ‘pequena política’.
Eis por que a luta dos que estão de fora do bloco
dominante se opera também dentro do coletivo, ocupando as
fímbrias de poder e aprofundando as contradições internas.
Esta luta já foi batizada como guerra de posições.
[ 78 ]
I X - Vitória de Sancho Pança
Em regra, os interesses do bloco dominante são
representados por um Partido ou um Coalizão de Partidos. O
papel de ambos é fazer com que os interesses de uma classe
particular se transformem nos interesses de toda a sociedade.
Na primeira hipótese, temos o partido único stricto sensu, e,
no segundo caso, temos vários partidos representando o mesmo
interesse de classe. Alguns sistemas admitem, de par com os
partidos os quais, com variáveis personalísticas, representam o
mesmo interesse de classe, a existência de outros partidos os
quais podem representar os interesses das classes subalternas,
sem, no entanto, serem nem revolucionários, nem muito menos
hegemônicos. Por isso há a hipótese, não rara, de aliança
pragmática entre partidos com interesses em conflito. O
governo do novo Príncipe refletirá essa contradição.
Há casos em que o Partido se autonomiza em face do
Príncipe e confunde sua administração doméstica com a
administração e os fins do Estado; constrói sua própria ‘classe
dominante’, a saber, a burocracia dirigente, a qual se confunde
com a burocracia estatal, porque Partido, Estado e governo
estão reduzidos à mesma entidade. Autonomizando-se em face
do Príncipe, chega a autonomizar-se em face dos interesses de
classe originários, e, contradição em termos, deixa de
representar interesses concretos na sociedade, para representar,
pura e simplesmente, a possibilidade de conservação da
governança, sem condicionantes finalísticas, sem subordinação
a objetivos.
Por todas essas razões, a alternância de partidos, nesses
casos, não representa, necessariamente, a alternância de
mando, e as alianças não se fazem em função de um projeto de
[ 79 ]
Roberto Amaral
poder, mas de governo. É o aqui e o agora substituindo projetos
de transformação e mudança. Vence o espírito de Sancho
Pança.
[ 80 ]
[ 81 ]
[ 82 ]
X
O ônus do desencanto
Sancho Pança quer a sua ínsula, relembremos;
pragmático, não alimenta o sonho do reino prometido pelo
cavaleiro. Em seu mundo a utopia não tem espaço. Esta é a
característica da política contemporânea, dominada pelo aqui
e agora, pela racionalidade, pelo ‘custo-benefício’. O fidalgo
manchego é só paixão; quer ampliar as fronteiras do meramente
possível, sem curvar-se às armadilhas da realidade. O conflito
entre loucura e juízo, ficção e realidade, verdadeiro e falso é
substituído pela equação pensamento e ação.
O conflito entre o ideal e o real, que o limita; a dualidade
entre o anti-herói (tragado pela impossibilidade) e o herói
romântico que se bate por um amor que não pode conquistar,
seja Dulcinéia, seja a liberdade, seja a revolução, encerra a
possibilidade de encontrar sentido para a existência individual.
Dom Quixote não sabia que, mera individualidade, isolado do
mundo e dos outros homens, aos quais pertencia, não podia
decidir o destino de todos.
Proibido de sonhar – o Cavaleiro da Branca Lua,
vencedor, lhe impusera como pena retirar-se dos campos de
batalha – ao herói cervantesco só restava a alternativa de
[ 83 ]
Roberto Amaral
caminhar para o leito e o túmulo, pois, não poder lutar era já
sua morte.
Toda vez que o político cede ao pragmatismo e
reduz seus projetos ao meramente factível; toda vez que encerra
a política nos limites do curto prazo, isto é, toda vez que
abandona ‘a esperança de um bem’; toda vez que o político
rejeita o sonho, recusa o desconhecido, teme a aventura,
prende-se a certezas, repudia a dúvida e espanca a utopia;
toda vez que o governante renuncia a objetivos programáticos,
e se entrega ao aqui e agora; toda vez que, ao invés de ganhar
para mudar, prefere mudar para poder ganhar, toda vez que
isso ocorre, ocorre a vitória de Sancho Pança sobre o Quixote.
É a derrota da política.
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XI
E ainda é preciso sonhar...
Se a política não pode apartar-se do pragmatismo, do
realismo e da eficácia, de que decorre a efetividade
maquiaveliana, ela não pode ser apenas isso, pois seria, tãosó, a pequena política. Mas há, também, a grande política,
que implica sonho, quimera, esperança, irresignação. Essa é,
fundamentalmente, uma utopia, pois um dos fins da política é a
promessa de transformar em realidade a ficção do revolucionário,
que não pode desistir e não desanima, embora o sonho, como
a linha do horizonte, dele se afaste quanto mais caminha em sua
direção.
O desafio é fazer o encontro e o entendimento entre o
escudeiro e o engenhoso fidalgo cavalheiresco, personagens
que, aliás, se completam. Não conseguimos pensar em Quixote
sem Sancho, e vice-versa, leituras burlescas do pragmatismo e
do sonho, do imediatismo e do ideal.
A complementaridade dos protagonistas cervantinos
reafirma a ambivalência humana. O encontro do Quixote com
o Sancho é imprescindível. Sancho sem Quixote jamais sairia
do seu vilarejo, da sua circunstância mais que medíocre, e
pereceria por ali mesmo vitimado por sua ignorância. Quixote
[ 87 ]
Roberto Amaral
sem Pança, entregue aos próprios delírios, dificilmente
sobreviveria ao primeiro embate.
Sancho, isolado, é a vertente grotesca, mesquinha e anã
do realismo. Aqui simboliza o pragmatismo político em todas
as suas limitações. Cervantes, fazendo da ação quixotesca um
delírio sem base no real, sem compromisso com a realidade do
senso-comum, caricatura o escudeiro pouco dotado como o
símbolo de realismo rasteiro, sem Causa, fim em si mesmo.
Estão apartados o sonho e o realismo. Os realistas vitoriosos,
porém, agem e conquistam porque também sonham, transmitem
sonhos e criam a esperança de realização desses sonhos. O
Príncipe maquiaveliano, misto de virtù e fortuna, intervém no
mundo, age de acordo com a realidade objetiva, tem os pés na
terra, mas, igualmente, fita o aparentemente impossível, valese de engenho e arte para realizar sua utopia; ou seja, é realista
e sonhador. Realista quando se depara com os problemas da
vida concreta, ou quando engendra soluções para problemas
que ainda não se apresentaram. Sonhador quando aspira ao
poder, quando vê para além do horizonte ou de seu tempo:
enxerga o que os outros não conseguem ver, realizando o que
seus contemporâneos consideram inconcebível. Que seria
unificar a Itália do século XVI senão uma utopia? Lênin,
revolucionário vitorioso e homem de Estado, é bom exemplo
do encontro do realismo com o sonho. Soube sonhar a
revolução – intervir na realidade para fazer o novo nascer –, e
soube conquistar e conservar o poder. De Vargas não se pode
dizer tratar-se, apenas, de um realista, porque foi aquele realista
que perseguiu o sonho de construção de um novo Estado. Che,
foi apenas sonho. Rejeitou ínsulas e reinos, rejeitou o poder
[ 88 ]
XI - E ainda é preciso sonhar...
como fim da política e foi procurar sentido na busca permanente
de uma Dulcinéia inalcançável, e quanto mais inatingível mais
desejada. Ao contrário do Quixote, que conheceu em casa o
último leito, morreria solitário, na solitária luta contra Moinhos
de Vento reais, desaforados gigantes reais e dragões reais.
Quando não lhe foi mais possível nem sustentar o sonho nem
conservar o poder, Vargas optou por sair de cena.
Há o sonho-delírio que faz o Príncipe ignorar a realidade,
construir seu mundo artificial e nele viver. Há um realismo que é
pura sujeição às circunstâncias, a mera passividade em face do
império dos fatos: o ator não pensa, não age, não reage, curvase ao que lhe parece ser a sua realidade. No oposto dessa
inanidade, Quixote se supera. O sonho o impele, o empurra, e
o real baliza sua conduta no jogo político, sem obrigá-lo a
respeitar cegamente os limites que lhe são impostos, pois, o
tempo todo, procura alargá-los.
A lógica da razão objetiva, o pragmatismo e o
oportunismo, o realismo dos medíocres, dos ‘sensatos’, mesmo
associados, todavia, não são garantia do bom êxito. A vitória
não sorriu para o realismo colaboracionista de Pierre Laval,
mas, sim, para os maquis que se entregaram à resistência insana,
utópica, enfrentando o ininfrentável invasor nazista, e lutando
pela libertação da França traída. A lição é esta: adianta, sim,
remar contra a correnteza, ‘dar murros em ponta de faca’.
O realismo de Laval mostou-se inconseqüente, tanto
quanto o sonho do Che nos campos bolivianos. Donde a
pergunta: é possível o encontro, no mesmo Príncipe, do sonho
e do realismo?
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Roberto Amaral
O revolucionário vitorioso é aquele que reúne essas duas
categorias. Ele sonha, e para realizar seu sonho, desbasta o
que encontra em seu caminho, sejam guerreiros, sejam moinhos
de vento, reais ou imaginários. E os vence a todos. Mas, ao
mesmo tempo, a realidade, isto é, a exata medida da correlação
de forças, é a base de sua atuação política. O bom Príncipe
moderno, já nos foi dito, é aquele que concilia o pessimismo
da inteligência com o otimismo da vontade.
Sem a fantasia de que é possível mudar o mundo, a
política não merece ser feita. Mas ela, sempre, precisa ser feita,
porque o novo não está assegurado. Os avanços sociais não
decorrem nem de um determinismo mecanicista, nem de
qualquer sorte de fatalismo, ou exercício divino; eles dependem
da intervenção do homem (portanto, de sua vontade); cabe ao
homem construir o mundo e construir-se nele, definindo seu
futuro.
É preciso crer que é possível mudar o mundo.
[ 90 ]
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Outras obras de Roberto Amaral
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A esquerda socialista: impasses e alternativas (Mensagem
aos que acreditam que outro mundo, melhor, é possível).
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Manual das eleições. (em colaboração com Sérgio Sérvulo)
São Paulo. Saraiva. 2006.
O papel do intelectual na política. Fortaleza. Edições
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Ciência e tecnologia a serviço do progresso e da inclusão
social. Brasília: UNESCO, 2003.
Ciência e tecnologia: desenvolvimento e inclusão social.
Brasília: UNESCO, 2003.
Manual das eleições. (em colaboração com Sérgio Sérvulo)
São Paulo. Saraiva. 2002.
Textos políticos da história do Brasil (em colaboração com
Paulo Bonavides). Brasília. Edições Técnicas do Senado
Federal (11 vols.) 2002.
A modernidade no Brasil: conciliação ou ruptura? (em
colaboração com Antônio Houaiss). Petrópolis. Vozes. 1995.
Socialismo, vida, morte e ressurreição. Petrópolis. Vozes. 1997.
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FHC: os paulistas no poder (Org.) Rio de Janeiro. Casa Jorge
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Crônica dos anos Geisel. Rio de Janeiro. Forense
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O futuro da comunicação. Rio de Janeiro. Achiamé. 1981.
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Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro. Zahar. 1976.
Intervencionismo e autoritarismo no Brasil. São Paulo. Difel.
1975.
Juventude em crise (de Sartre a Marcuse). Rio de Janeiro.
Bit Editora. 1972.
Sartre e a revolta do nosso tempo. Rio de Janeiro. Forense.
1967.
Ficção
Romance
Não há noite tão longa. Rio de Janeiro. Record. 1996.
Contos
Limites. Rio de Janeiro. Record. 1999.
Viagem e outras histórias. São Paulo. Brasiliense. 1991.
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Impresso:
3344-2332
e-mail: [email protected]
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Em defesa da utopia