Revista Eletrônica de Educação de Alagoas Volume 01. Nº 01. 1º Semestre de 2013 AS IDIOSSINCRASIAS SOBRE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA A PARTIR DE TEXTOS DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO Auda Valéria do Nascimento FERREIRA1 Resumo A variação linguística é temática ministrada por professores do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, abordada em livros didáticos com terminologia, em alguns casos, inadequada para determinados fenômenos. Isso compromete a compreensão do leitor diante de conceitos como norma-culta, norma-padrão, entre outros. Este artigo apresenta a análise de conteúdo de seis textos produzidos por três alunas recém-ingressas no segundo ano do Ensino Médio, a fim de comparar suas idiossincrasias sobre conceitos relacionados à variação linguística. Houve dois momentos de produção: um antes e outro depois da efetivação de estratégias de trabalho sobre o conteúdo variedades linguísticas. E, afinal, até que ponto encontra-se nas produções dos alunos influência dos textos por eles lidos? Palavras Chave: produção de texto, variação linguística, idiossincrasias. 1 Introdução Crie-se um contexto de interação entre alunos no pátio de uma escola: a conversa é informal, há gírias e frases feitas no expressivo vocabulário juvenil; crie-se, posteriormente, uma situação em que os mesmos jovens procurem uma autoridade da política local para realizarem uma entrevista. Qual seria a variedade linguística que utilizariam no caso? Estariam prontos a utilizá-la? Algumas experiências bem sucedidas afirmam que sim, outras, que não. A língua portuguesa varia conforme o status social, o nível instrucional, o lugar de origem, a atividade profissional, o sexo do falante, entre outros fatores. Ao tempo em que é um instrumento de poder, a língua constitui a identidade do sujeito, assim, a função da escola é conduzir o aluno a compreender a estrutura e o funcionamento da língua com todas as suas variedades sociais, regionais e situacionais. Ensinar o aluno a reconhecer os níveis de formalidade e informalidade das manifestações linguísticas é um enorme desafio da escola e função do ensino de Língua Portuguesa. Os professores de língua materna, por conseguinte, devem abordar a variação 1 Professora Mestre em Educação Brasileira (UFAL) e Técnica Pedagógica da Gerência de Desenvolvimento das Práticas Pedagógicas. E-mail: [email protected] 38 linguística numa perspectiva não dicotômica entre o “certo” e o “errado” diante dos diversos usos da língua. Ao propor leituras sobre variação linguística a alunos do Ensino Médio, os professores devem selecionar com atenção especial cada texto; é imprescindível a uma abordagem não dicotômica da língua textos escritos por pesquisadores e/ou estudiosos no assunto; um artigo com ideias preconceituosas sobre a língua promove concepções deturpadoras e inaceitáveis, enquanto germina o preconceito linguístico entre os que ainda estão em formação na sala de aula. Outrossim, os textos de teor preconceituoso ou com informações de senso comum devem também ser lidos pelos alunos, mas no sentido de se contrapor opiniões, sem deixar o leitor, ou seja, o aluno em formação, sem a mediação de um especialista. É isso que o professor de Língua Portuguesa é: um especialista em língua materna, no caso, a primeira língua falada pela maioria dos brasileiros, exceto os indígenas nativos, falantes de suas respectivas línguas maternas, mas alfabetizados em língua portuguesa. A pesquisa descrita, neste trabalho, foi realizada com o objetivo de analisar textos de alunos do Ensino Médio. A ideia advém da nossa condição de professora e da observância de que o fenômeno em evidência, ou melhor, as contradições nas informações disseminadas por autores que escrevem sobre o tema, não são tão pontuais assim e encravam consequências prejudiciais à compreensão de um assunto, ainda polêmico e que carece de uma abordagem mais efetiva em busca de falantes e escreventes conscientes das variedades de sua própria língua. Se o reconhecimento disso não for o suficiente para inseri-los e/ou mantê-los entre os falantes e escreventes cultos da língua, não obstante, é o começo. Iniciou-se a pesquisa por meio de uma proposição em que os alunos escreveram sobre linguagem culta e popular ainda sem quaisquer leituras acerca do assunto. Em seguida, depois da leitura de artigos de opinião, com pontos de vistas diferentes acerca das variedades linguísticas, sugeriu-se aos alunos que escrevessem sobre praticamente a mesma temática dos textos lidos. Colheram-se os textos, expostos ao longo deste trabalho, aleatoriamente, de uma turma com cerca de 30 alunos. O contexto de coleta de dados foi uma escola pública da rede estadual de ensino localizada na região metropolitana de Maceió. Os textos são de três adolescentes do sexo feminino, que sempre estudaram em escolas públicas, de classe média baixa, moradoras2 do mesmo bairro em que se localiza a escola. O perfil delas é bastante 2 Desta parte em diante, referiremos os sujeitos da pesquisa no feminino, uma vez que os seis textos analisados são de três alunas. 39 homogêneo, ao levar-se em conta sexo, moradia, situação escolar, dentre outros fatores a serem observados nas análises dos manuscritos. Observa-se, ainda, o fato de as análises advirem da evolução das alunas à medida que se apresentam os textos iniciais e os finais, tendo em consideração o período da exposição de abordagem em sala de aula sobre o conteúdo variedades linguísticas. As alunas submeteramse a aulas sobre o tema, fizeram algumas leituras de autores tecedores de diversos pontos de vista, como entrevistas com o linguista Marcos Bagno e o professor de Português Pasquale Cipro Neto. Neste trabalho, apresentam-se: alguns pressupostos acerca da variação linguística e do ensino de língua portuguesa; as propostas de produção de texto; dois textos de cada uma das três alunas, seguidos de suas respectivas análises, conforme o cerne da fundamentação teórica deste estudo, sob o olhar de uma professora-pesquisadora em exercício efetivo em sala de aula. 2 Alguns conceitos de variação linguística em sala de aula Lidar com conceitos em sala de aula é tarefa árdua, além do mais quando o objeto de estudo é a própria língua. É o que ocorre quando o professor tenta ensinar o que é coerência textual ou qualquer outro assunto. Ao conduzir à análise e à reflexão acerca da língua falada e da escrita no dia a dia, o professor observa que ninguém se prontifica a ser “o sujeito” estudado, a expor sua língua(gem) à análise do outro. Afinal, quem comete “erro” linguístico é o outro. Segundo Mollica (2003, p.10), a variação linguística constitui fenômeno universal e pressupõe a existência de formas lingüísticas [sic] alternativas denominadas variantes. Entendemos então por variantes as diversas alternativas que configuram um fenômeno variável, tecnicamente chamado de variável dependente. Na sala de aula, a variação linguística é percebida pelos alunos principalmente de acordo com os eixos diatópico/geográfico e diastrático/social. O primeiro é observado nos modos de pronúncia das palavras [tchia] ou [tia], e, ao se escolher o léxico (macaxeira, aipim, mandioca), por exemplo. O segundo eixo depende do grau de instrução (os alunos observam os níveis de conhecimento de uma série para outra); da região em que o falante vivencia suas 40 interações, se na zona rural ou urbana; e da situação socioeconômica do falante, se faz parte das classes prestigiadas ou estigmatizadas. Todavia, a variação mais observada em sala de aula de acordo com Bagno (2007) é a diafásica, do grego dia (através de) e phásis (modo de falar). Geralmente professores e alunos falam de modo diferente a depender do grau de monitoramento 3. É importante assinalar que, na sala de aula, está presente, também, o eixo diamésico. Como mésos significa comunicação, o termo é traduzido pelas expressões: através da comunicação ou meio de comunicação. Dessa forma, podemos afirmar que esta é uma variação dependente das modalidades verbaloral e verbal-escrita; assim, por meio dela, podem-se observar as diferenças entre as modalidades apontadas. 3 Monitoramento da fala e da escrita O conceito de monitoramento linguístico advém dos primeiros estudos sociolinguísticos e se configura pela marca de fala ou escrita que caracteriza a variação. Esse ato de variar uma ou várias expressões linguísticas, ou seja, monitoramento, também recebe outras designações como registro, estilo ou monitoração. O monitoramento, conforme Halliday, McIntosh e Strevens apud Travaglia (2002, p. 51), é classificado em grau de formalismo, modo e sintonia. “Entre esses três tipos de registros há correlações e superposições, o que, entretanto, não impossibilita sua análise e caracterização isolada”. A escola, por meio do currículo de língua portuguesa, pretende chamar a atenção do aprendiz para os recursos linguísticos, sejam os fonológicos, morfológicos, sejam os sintáticos ou lexicais. Nesse sentido, e em face de esses recursos estarem impregnados dos tipos de monitoramento mencionados, afirmamos, sobre o grau de formalismo, que há um percurso a seguir na escala de formalidade que conduz o aluno à compreensão dos usos mais aproximados dos meios prestigiados, como o literário, o científico e o judiciário. Em se tratando da variação de modo, no entanto, enfatizamos que esta depende das condições de produção. Na fala, por exemplo, há recursos como entonação, hesitação, 3 Este ocorre quando há um contexto social que o exige, verifica-se pelo status social e/ou socioeconômico do interlocutor, como também pela necessidade de causar boa impressão. 41 velocidade, repetição em que se dizem as sequências linguísticas que dão sentido ao que se quer veicular. A sintonia, último tipo de monitoramento, pode ser descrita como um ajustamento na estruturação da fala ou escrita, segundo a intenção do falante ou do conhecimento que este possui sobre o seu interlocutor, permitindo o ajustamento de como se deve dizer algo, a depender de quem é o alguém receptor da mensagem. Travaglia (2002) cita a variação na dimensão da norma como sendo uma opção mais ou menos formal do falante a julgar pelo que este considera mais apreciado pelo ouvinte, ou seja, o tipo de variedade linguística tida pelo ouvinte como “boa” em termos de linguagem. No caso da língua portuguesa falada no Brasil, o português brasileiro, expressão batizada pelos sociolinguistas, salientamos que esta possui, no mínimo, quatro graus de formalidade, a saber: o ultraformal – uma conferência; o formal – uma conversa entre cientistas que se conhecem há muito tempo sobre assunto de sua especialidade; o semiformal – diálogos observados entre colegas no setor de trabalho; e o informal – uma conversa diária. Em se tratando da modalidade escrita, são exemplos: do ultraformal – certos textos jurídicos; do formal – um verbete de enciclopédia; do semiformal – uma crônica esportiva; do informal – um bilhete. Por fim, como observa Bortoni-Ricardo (2004), o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa são fatores influenciadores do monitoramento linguístico ou estilístico. 4 Condições de produção dos manuscritos dos alunos Apresentaram-se aos alunos, em momentos distintos, duas propostas de produção de texto, há cerca de quatro meses de uma para outra. A primeira sugeriu aos alunos que escrevessem um texto dissertativo sobre o uso da linguagem popular e da linguagem culta no cotidiano deles4. A segunda foi elaborada por esta pesquisadora inspirada no poema de Oswald de Andrade exposto a seguir: Pronominais Dê-me um cigarro 4 A proposta foi feita a todos, mas os manuscritos analisados aqui são das três meninas escolhidas aleatoriamente para este estudo. 42 Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro. http://pensador.uol.com.br Considerando o poema acima, os alunos redigiram um texto, predominantemente, dissertativo-argumentativo, discutindo o assunto abordado no poema: a norma padrão (Dê-me um cigarro) versus o modo como a língua é usada no dia a dia pelos falantes do português brasileiro (Me dá um cigarro). 5 Análise do primeiro texto da aluna 1 No meu cotidiano, escuto muito na televisão usarem a linguagem culta, porém por mania uso a popular. Para mim, a linguagem popular não deve ser usada em qualquer canto, pois fica estranho, por exemplo, alguém num consultório médico explicando algo que está sentindo, falando gírias. Isso já muda quando estou em uma roda de amigos. No seu texto inicial, quando ainda não havia feito leituras ou novas leituras sobre o tema da variação linguística, a aluna revela um meio de difusão da língua: a televisão. Porém, sem a observação de que nela (televisão) a língua é a mesma do contexto normal do cotidiano do indivíduo, ou seja, as variedades linguísticas também estão lá presentes. Se nos telejornais, por exemplo, predominam as variedades prestigiadas, nas novelas e em programas de auditório, as variedades estigmatizadas têm o seu lugar e, às vezes, adquirem lugar de prestígio, pois alavancam a audiência tão almejada pelas emissoras. Em seguida, a aluna mostra-se consciente dos contextos de uso da língua e, consequentemente, da importância da adequação linguística. 5.1 Análise do segundo texto da aluna 1 43 O conceito de variação linguística inferido das idiossincrasias da aluna, a partir do manuscrito anterior, é consolidado no texto5 abaixo. Ela atribui o título “Preconceito” ao texto, revelando a principal consequência da ausência de uma pedagogia da variação linguística. Infelizmente, no Brasil, não existe escola para todos, portanto não é todo mundo que aprende a norma culta da língua portuguesa. Dos brasileiros que aprenderam a norma culta muitos não a usam sempre, utilizam mais a norma popular. Nesse primeiro parágrafo, a aluna-autora insere a escola no patamar de responsável pelo ensino da norma culta. Vale ressaltar que o termo “norma culta” é equivocadamente usado como sinônimo de “norma padrão”. Porém, o que vem à tona, no momento, é o fato de os brasileiros, como diz a aluna, utilizarem mais as variedades estigmatizadas. Na realidade, ela infere pelo que observa em seu meio que, mesmo os falantes escolarizados, detentores de um saber sistematizado, utilizam muito mais as variedades observadas na fala do povo, “língua errada do povo”, “língua certa do povo”, como disse o poeta Manuel Bandeira (1970) em seu poema Evocação do Recife. Nos documentos oficiais de diretrizes para o ensino de língua portuguesa, a variação linguística, como conteúdo curricular, é uma realidade desde o final da década de 1990. Contudo, antes disso, a escola tradicional concebia o ensino de língua numa perspectiva de língua única, sem variação, ou pior, a variação possuía o lugar de erro e cabia à escola corrigilo. Independente de classe social, religião e cor a norma popular é a mais usada. Não tem só a popular, adotaram também gírias e o internetês, usado mais entre jovens. A gíria é uma linguagem especial usada por grupos ou pode ser individualizada; ela realmente tem a sua especificidade, o que causou a dissociação do termo da noção de “linguagem popular” usada pela aluna. O mesmo ocorreu com o internetês, notação gráfica usada na internet, ou seja, uma linguagem cifrada, mas que possui regras, o que a torna compreensível no ciberespaço. 5 Os termos “manuscrito” e “texto” são utilizados como sinônimos, neste estudo, por serem textos escritos, em sala de aula, de cada uma das três alunas do segundo ano do Ensino Médio. 44 A língua mais criticada é a popular, pois são mais usadas entre pessoas das classes desfavorecidas, no entanto, é falada, na maioria das vezes, pelas pessoas das classes favorecidas. Temos como exemplo o nosso presidente, em muitos dos seus discursos ele fala errado, mas quem vai chegar e criticá-lo, afinal é o “presidente”, vimos a diferença quando pessoas simples dão entrevistas na televisão. Vimos recentemente nas propagandas políticas uma mulher simples revoltada com um determinado prefeito, disse: “Isso é um desrespeito com as muleres”, virou motivo de piada para todos. Nesse trecho, vê-se o preconceito evidenciado pela aluna-autora numa das suas formas mais manifestadas: o preconceito linguístico do qual são vítimas as pessoas das classes desprestigiadas. Segundo Bagno (2007), existe o preconceito contra a fala das pessoas de determinada classe social e também contra a fala de certas regiões. Mas a aluna aponta como exemplo um fator precedido por Bagno (2003, p. 21): “a noção de erro varia e flutua de acordo com quem usa e contra quem”. No caso do presidente (no momento da facção do texto, era Luiz Inácio Lula da Silva), a mídia o criticou pelo uso de expressões em que deixara de lado as regras de concordância. Desde o início da história oficial do Brasil, uma pessoa originária das classes desprestigiadas alcança a Presidência da República, e, pela primeira vez, consequentemente, chega ao poder um representante das variedades linguísticas populares. A mídia usou o preconceito linguístico contra o Presidente Lula, do mesmo modo que a “mulher simples” citada pela aluna foi vítima de preconceito. Evidencia-se, pelas práticas interacionais de pessoas das diversas classes sociais, que o preconceito acomete a todos os brasileiros; dessa forma, os representantes das classes favorecidas podem ser vítimas de preconceito linguístico até mesmo por seus pares. Concluímos que o preconceito linguístico está mais presente em nosso cotidiano do que imaginávamos, vamos dá [sic] um fim a isso, pois não falta inteligência, sim escola e igualdade para todos. Um fator importante apontado acima pela aluna carece de uma explicação da qual ela, como estudante do Ensino Médio, ignora: mesmo dentro da escola ainda não é possível a segurança de uma pedagogia da variação linguística, ou seja, uma abordagem que tenha em sua concepção o respeito às diversas variedades da língua falada e escrita. E isso não significa deixar de ensinar a gramática normativa, pelo contrário, significa um ensino também das normas gramaticais de acordo com o contexto social em que o aluno está inserido. Assim, a 45 partir da valorização da variedade linguística do aluno, a escola deve apresentar outras variedades prestigiadas pela sociedade. Portanto, a escola tem o dever e o desafio de buscar estratégias de abordagem das variedades linguísticas a partir dos demais conceitos imbricados na compreensão da variação e da mudança linguística. 6 Análise do primeiro texto da aluna 2 Neste caso, cabe analisar os termos norma-padrão e língua-culta mencionados pela aluna 2. Ela inicia o primeiro texto conceituando, a partir de suas idiossincrasias sobre língua, os termos “culta” e “popular”. A linguagem culta é a forma certa de falar, usando as palavras corretamente. A linguagem popular é a linguagem que as pessoas usam muitas regras, os jovens falam muitas gírias, etc. Segundo Faraco (2008, p. 33), “[...] empiricamente a língua é o próprio conjunto das variedades. Trata-se, portanto, de uma realidade intrinsecamente heterogênea”. Já a norma é o conjunto de fenômenos linguísticos, como o fonológico, o morfológico, o sintático e o lexical que são correntes numa comunidade de fala específica. “Norma nesse sentido se identifica com normalidade, ou seja, com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (normal) numa certa comunidade de fala” (Id. Ibidem). Na perspectiva gerativista, para cada norma, há uma gramática; na variacionista, norma equipara-se à variedade. Daí, o problema, nos usos dos termos norma culta e norma popular, aqui, utilizados, sinonimicamente, por linguagem culta e linguagem popular. Não se faz críticas à aluna, mas aos livros didáticos lidos por ela, os quais disseminam os mais variados termos para tratarem de um mesmo conceito. O que se pretende desmitificar é a ideia de que “A linguagem culta é a forma certa de falar, usando as palavras corretamente” (trecho da aluna). Não há forma certa ou errada de falar, o que há são formas diferentes de usar a língua, em contextos de usos diferentes. 6.1 Análise do segundo texto da aluna 2 46 Os bons gramáticos brasileiros acolhem em suas gramáticas vários fenômenos da norma culta/comum/standard ou das variedades prestigiadas6; no entanto, estão entre manter fenômenos superados da norma-padrão e as descrições sistemáticas da norma culta. Mas esses conceitos ainda não estão ao alcance de alunos do nível médio como a aluna 2 revela a seguir. A norma-padrão é uma língua que é difícil de ser usada. Essa língua é mais usada pelas pessoas da classe social favorecida. A “norma-padrão” a qual a aluna faz referência é o conjunto de normas padronizadoras ou um modelo de língua, que, atualmente, constitui a gramática normativa. Pela necessidade de padronização da língua, de atendimento a interesses políticos e mercadológicos, surgiu a gramática. Mas os livros didáticos lidos pela aluna não abordam a historicidade do seu surgimento, possibilitando a compreensão de que todas as variedades que não competem à gramática são “erradas”. A variedade mais usada pelas pessoas das classes favorecidas é, de acordo com Preti apud Faraco (2008), a norma culta/comum/standart (a linguagem urbana comum). A gramática é considerada difícil, nos dias de hoje, porque não foi atualizada. A norma culta comum aos brasileiros escolarizados, aquela presente nos livros, jornais, revistas, na mídia impressa e na internet, desde que expressas em contextos mais monitorados, não é a mesma; há mudanças significativas nas regras de concordância e regência, apenas para exemplificar, as quais (poderia ser usado modernamente o termo “que”) ainda não constam das gramáticas normativas, nem nas salas de aula. A maioria das pessoas não se preocupa muito em falar a língua culta, no seu dia a dia utilizam a popular, e de acordo com a cultura de sua região, ou pelo modo de falar de seus amigos, principalmente os jovens que falam muitas gírias. A língua é fator de identidade do indivíduo; às vezes, o falante opta por falar a língua que aprendeu em casa, com a família, os amigos e apenas em contextos formais; e/ou, ao usar 6 Os termos “variedades prestigiadas”, “classes favorecidas”, “variedades estigmatizadas”, “classes desfavorecidas”, do linguista Marcos Bagno, são alternados, neste estudo, por outros, de outros autores, mas com o mesmo significado. Os usos de diferentes terminologias transformam-se em empecilhos à compreensão do tema variação linguística. Isso é reconhecido pelos próprios estudiosos da língua, no entanto, ainda não se alcançou uma única terminologia para conceitos, como “norma-padrão”, “norma culta”, “norma-popular”, entre outros. 47 a modalidade escrita da língua, opta pela norma culta. Esse poder de opção é estabelecido pelo processo de ensino da língua dentro da escola e repercutido nas práticas de letramento do indivíduo mesmo fora dela. Aqui, no Brasil, tem muitas pessoas que não tiveram oportunidades para estudar, de ter conhecimento das variedades. Falam “errado” e sofrem muito pelo preconceito das pessoas. É difícil para arrumar um emprego porque a maioria das empresas não vai contratar uma pessoa que não sabe falar bem. O ensino das variedades linguísticas de prestígio é recomendado pela importância na modalidade social do falante. Qualquer pessoa precisa dominar as variedades linguísticas que lhes permitirão o acesso ao nível superior de ensino, a um trabalho melhor remunerado etc. O que a aluna comenta em seu manuscrito é a realidade do meio social em que o falante está inserido, não constitui, pois, preconceito, uma vez que ninguém desconsidera a importância de se aprender as variedades prestigiadas. Os linguistas tentam passar para as pessoas o modo certo de falar, as novas variedades, mas a maioria das pessoas tem preguiça de ler e por isso sofrem muito. Segundo o Projeto NURC (Norma Linguística Urbana Culta), a norma culta brasileira falada se identifica, na maioria das vezes, com a linguagem dos falantes considerados tecnicamente não cultos, tendo em vista a noção clássica de cultura, que deixa de fora a cultura popular. Assim, a norma culta atual não se preocupa com as prescrições da tradição gramatical mais conservadora. Os linguistas são pesquisadores e divulgadores de todos os fenômenos da língua. Mas cabe à escola e aos professores ensinarem aos brasileiros às variedades socialmente prestigiadas, não aos linguistas ou sociolinguistas. Já a “preguiça de ler” referida pela aluna-autora pode ser endossada, por esta pesquisadora, como um mal que acomete a todos em diversos níveis antes, durante e após a graduação, atingindo, infelizmente, todos os setores de nossa sociedade. 7 Análise do primeiro texto da aluna 3 Esta aluna insere-se no seu texto, identifica-se e assume a sua condição de falante de uma língua heterogênea e plural, portanto, com suas variedades. 48 A linguagem do meu dia a dia é a popular, porém às vezes uso uma linguagem mais culta. Quando estou na roda de amigos falo gírias sem problemas e quando eu começar a trabalhar sei que não vou poder falar mais esse tipo de linguagem. Pelo exposto, mostra-se consciente da adequação linguística e do monitoramento linguístico antes de ler alguns textos sobre o assunto. 7.1 Análise do segundo texto da aluna 3 No Brasil, diferentemente dos interesses da elite europeia, o objetivo principal do projeto da norma-padrão foi o de combater as variedades estigmatizadas e as variedades prestigiadas (dos escritores, por exemplo) faladas aqui. Isso, posteriormente, sofreu uma desmitificação, quando a primeira geração dos escritores modernistas consolidou na literatura brasileira o que hoje se observa: a distância entre norma-padrão e a norma culta/comum/standard brasileira. É o que a aluna-autora, sem quaisquer propósitos, revela, entre outras ideias. A nação brasileira tem as suas classes sociais favorecida e desfavorecida. No entanto, qualquer uma das duas pode ser representada falando “Me dá um cigarro”. A codificação do Português Brasileiro feita na metade do século XIX não tomou como referência, a exemplo dos países europeus, a norma culta/comum/standard; mas sim, o modelo lusitano de escrita, praticado por alguns escritores portugueses do romantismo. O modelo que serviu de referência para a gramaticalização do português brasileiro não foi a língua de Portugal, mas apenas a variedade dos escritores clássicos portugueses. Embora tenha sido atribuído à Lusitânia o interesse por esse processo, os responsáveis por essa escolha surgiram da nossa própria elite letrada. Observa-se o uso contínuo e o efeito de todas as variedades, apesar da tentativa de se padronizar e consolidar uma variedade de língua. A gramática não influencia tanto a vida do indivíduo. Pois ele tende a falar o que aprendeu com a sua família, amigos, professores ao longo da vida. 49 Sendo ele branco ou negro, pobre ou rico, vai falar do modo formal ou informal dependendo de sua cultura, educação. Essa é a visão que se propõe, caso se possam propor modos de pensar aos alunos do Ensino Médio, seguida da noção de abordagem linguística que segue contra o preconceito linguístico. Pois quando um indivíduo fala “ocê”, não podemos e não devemos julgar, os linguistas dizem que não existe maneira certa ou errada de falar. De acordo com Freire (1996, p. 67), “Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionantes a enfrentar”. O Brasil é um país de território imenso, de muitas variedades lexicais, de algumas variedades sintáticas, de várias variedades fonológicas. A escola “tenta” e muitas vezes “consegue” ensinar as variedades de prestígio, mas estas são esquecidas quando não há frequência de monitoramento linguístico. Existe um enorme preconceito em relação à nossa fala porque a classe favorecida tem maior oportunidade de estudo e julgam e humilham a nossa classe desfavorecida. Mas isso não quer dizer que eles não falem errado, pelo contrário, todos os indivíduos erram e ninguém é melhor que o outro. No Brasil, as diferenças linguísticas são relacionadas à péssima distribuição de renda. Assim, elas não constituem, como em outros países, um modo de manter a identidade de um grupo; possuem uma estreita relação com a desigualdade social, ou seja, com a péssima distribuição de bens econômicos e culturais. Essa realidade brasileira deve ser considerada no momento de se estudar as teorias sociolinguísticas e de se propor estratégias de ensino da língua portuguesa. Em síntese, os saberes sociolinguísticos e os valores culturais trazidos pelo aluno à sala de aula devem ser respeitados. Aprender as variedades prestigiadas passa a significar, desse modo, uma ampliação dos conhecimentos linguísticos e comunicativos do aluno. 8 Considerações Finais A compreensão dos pressupostos sociolinguísticos para o ensino de língua portuguesa é uma necessidade dos professores e deve se constituir num compromisso dos organismos que 50 compõe sua formação. Sendo a língua heterogênea e plural, é preciso alavancar, consequentemente, uma abordagem que não se distancie dessa concepção. Não se ensina na escola a língua que o falante concebeu com os seus pais. O ensino da língua portuguesa visa, por conseguinte, ao seu desenvolvimento. A melhor decisão do professor em relação ao trabalho em sala de aula corresponde a aproveitar os conhecimentos linguísticos científicos sobre variação e mudança, mas, além disso, a mostrar as implicações ideológicas das abordagens preconceituosas em relação à língua, com o objetivo maior de o aluno compreender que algumas variedades linguísticas são prestigiadas pela sociedade e outras estigmatizadas, sem, contudo, haver atribuição de valor linguístico a nenhuma delas: ambas são variedades da língua. Porém, ao compreender as variedades, o aluno compreenderá, circunstancialmente, o conceito de adequação, os contextos de produção da fala e da escrita; o contínuo de monitoramento linguístico e os gêneros textuais que se aplicam a diversas intenções de comunicação. A partir do reconhecimento pelo aluno das implicações ideológicas presentes na língua, este estará, ao mesmo tempo, diante do saber prévio necessário para que ele o desenvolva com a ajuda do professor e dos meios dispostos pela escola. O objetivo maior é ampliar o repertório linguístico do aluno e garantir-lhe o acesso a outras variedades linguísticas. Referências BAGNO, Marcos. A norma culta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola, 2003. ______. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística [sic]. São Paulo: Parábola, 2007. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970. BORTONI-RICARDO, Stella M. Educação em língua materna. A sociolingüística [sic] na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. FARACO, Carlos A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 51 MOLLICA, Maria C. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In: ______. BRAGA, Maria L. (orgs.). Introdução à sociolingüística [sic]: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003. TRAVAGLIA, Luiz C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 2002.