Revista Portuguesa de Psicossomática
ISSN: 0874-4696
[email protected]
Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Portugal
Almeida, Ana
Uma contribuição para a teoria das transformações de Wfred Bion: a transformação psicossomática
Revista Portuguesa de Psicossomática, vol. 6, núm. 2, julho-dezembro, 2004, pp. 17-34
Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Porto, Portugal
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28760202
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UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED BION
17
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA
DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED
BION: A TRANSFORMAÇÃO
PSICOSSOMÁTICA1
Ana Almeida*
Resumo
A autora com base na reflexão clínica
e no estudo da obra de Bion defende e fundamenta a vantagem conceptual de precisar a existência de uma outra transformação para além das já identificadas por
Bion, a esta nova transformação deu o
nome de Transformação Psicossomática.
Num esforço de precisão das implicações deste novo conceito articula a
Transformação Psicossomática com as
outras transformações e mostra a importância deste conceito para a compreensão dos fenómenos psicossomáticos,
alargando o âmbito da sua aplicabilidade. Mostrou também a vantagem de
"pensar" o fenómeno psicossomático
enquanto processo de transformação ao
serviço da maturação da personalidade
ou enquanto processo patológico.
Palavras-chave: Bion; Psicossomática; Transformações.
1
Este trabalho surgiu com o estímulo e apoio da
Dr.ª Andreia Gonçalves que me solicitou uma
reflexão sobre a psicossomática e com as suas
"perguntas/reflexões" me colocou no caminho
da Transformação Psicossomática. À Dr.ª Andreia
Gonçalves o meu sincero agradecimento.
*
Mestre em Psicopatologia e Psicologia Clínica.
Membro Candidato da Sociedade Portuguesa
de Psicanálise.
É já longa a história da necessidade de
compreender os fenómenos psicossomáticos e/ou somatoformes como são denominados na DSM-IV. A perplexidade causada
pelo surgir de sintomas que são somáticos
(ou que pelo menos têm uma aparência
somática) e simultaneamente psíquicos,
tem levado muitos dos grandes psicopatologistas e psicanalistas do nosso tempo e anteriores a nós, às mais profundas reflexões
sobre o soma e a psique e sobre as relações
que estabelecem entre si. Longe de se tratar
de um debate concluído e esclarecido, esta
dimensão da vida psíquica e corporal continua no centro do campo de investigação da
psicologia e da psicanálise.
Cada vez mais existe a consciência que
estas duas ordens de fenómenos – psíquicos
e somáticos –, são indissociáveis e mutuamente inter-influenciávies, contudo a forma e as especificidades das relações que se
estabelecem entre elas são ainda muito obscura. Alguns autores, como Milheiro
(2001), defendem a insustentabilidade da
divisão entre soma e mente, considerando
que a única abordagem possível a esta questão passa pela não divisão. O autor considera que são fenómenos indistinguíveis entre
si e propõe, para uma nova abordagem à
psicossomática, o desenvolvimento dos seguintes conceitos: facto psicossomático e es-
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trutura psicossomática2. São muitas e diversas as correntes que desenvolveram abordagens ao "fenómeno psicossomático". Os
desenvolvimentos foram, na grande maioria das vezes, congruentes com o corpo teórico de base, tendo-se construído "novas
compreensões, explicações e descrições" dos
sintomas/factos psicossomáticos, e propostas, consequentemente, novas formas de intervenção terapêutica.
Este trabalho não visa ser uma resenha histórica das teorias mais importantes que abordaram este grupo de fenómenos, mas torna-se inevitável referir algumas delas, quer pelo seu enorme peso
quer por se terem constituído como um
marco neste campo de investigação.
O nosso ponto de partida é o vasto trabalho de Freud e a sua forma de conceptualizar a articulação entre o soma e a psique. Em Freud o interesse pelas relações
entre a psique e o corpo ganhou forma no
estudo dos fenómenos histéricos de conversão. A conversão histérica ampla e profundamente estudada por Freud é um fenómeno fascinante, na medida em que,
no mais íntimo da organização psicopatológica se organiza uma outra linguagem,
um outro dizer de si através da amputação, distorção e/ou disfunção do corpo
enquanto matéria ou enquanto função.
A mente distorce, amputa, perturba "algo
corporal" para que esse "algo corporal"
possa falar do não-dito, do não-aceitável,
do condenável que é, ainda e sempre, o
desejável. Claramente, para Freud, a conversão histérica era uma manifestação,
talvez até uma das mais expressivas, da
existência do inconsciente e do recalcamento. Freud em 1894 ao reflectir sobre
esta questão relaciona claramente a
"emergência" psicossomática com a exis-
ANA ALMEIDA
tência de uma "quantidade" de energia
que fica desligada da sua representação e
que tem de ser "expressa" pela via
somática.
No Projecto3, Freud postulou a existência de elementos psíquicos que eram também elementos somáticos, cruzando, desta forma, o somático e o psíquico4. Contudo, não se preocupou muito mais com as
questões somáticas, enquadrando a expressão sintomática conjuntamente com
outras cuja relação com o soma não era
tão evidente. Há ainda que referir que
Freud ao conceber o Eu e as suas dinâmicas diz que o Eu é em primeiro lugar um
Eu Corporal5; esta ideia é determinante
para compreender que Freud já concebia
um cruzamento entre o corpo e a mente,
no qual os processos eram, numa determinada área, indiferenciados.
Depois de Freud e principalmente a
partir dos anos 60 o estudo das perturbações psicossomáticas tornou-se área de
interesse e foi progressivamente sendo
isolada do conjunto das perturbações do
psiquismo, conquistando um estatuto à
parte que lhe conferiu e confere uma
identidade nosográfica própria e clinica-
2
Por Facto Psicossomático entende-se a vivência corporal/somática e por Estrutura Psicossomática entende-se o enquadramento que
esclarece/descreve o facto psicossomático.
3
Projecto para uma Psicologia Cientifica (1950
[1895]).
4
Sistema de neurónios composto pelos neurónios y (psi), w (ômega) e j (phi).
5
"O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego
corporal; não é simplesmente uma entidade de
superfície, mas é, ele próprio, a projecção de
uma superfície". In O Ego e o ID (1923).
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UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED BION
19
mente diferenciada. A descoberta de um
conjunto de doenças "físicas" claramente
relacionadas com um "certo padrão" de
funcionamento psíquico, empurrou a investigação do fenómeno psicossomático
para a procura de uma personalidade tipo
– a personalidade psicossomática6, ou para
a procura de processos psíquicos "disfuncionais" que pudessem ser associados (recalcamento do imaginário; déficit na qualidade da relação precoce, perturbação na
estruturação dos processos identitários e
de autonomia, internalização de objectos
maléficos7, depressão latente, protecção
face a angústias psicóticas8, etc.) e através
dessa associação esclarecer a produção
psicossomática. Estas foram as vias de
Pierre Marty e de Sami-Ali, entre outros.
Ambos os autores desenvolveram um trabalho de enorme valor no que respeita ao
estudo do fenómeno psicossomático, fazendo-o, contudo, de formas muito diversas e obviamente com consequências e
implicações clínicas também elas muito
diversas e inclusive em alguns níveis incompatíveis.
vas10 nos processos de simbolização e
mentalização11, estas falhas fazem com
que não seja possível a vivência/expressão do conflito psíquico a nível pré-consciente e consciente, ou seja, ao nível do
plano psíquico propriamente dito. Marty
e os seus colaboradores identificaram e
isolaram 3 vias básicas: o pensamento, a
acção/comportamento e a via somática e
desenvolveram uma teoria que permite
perceber as passagens entre estas diferentes vias. Para estes autores as excitações
(internas e/ou externas)12 podem causar
um desequilíbrio na homeostase do self,
levando a pessoa a um estado de tensão;
o aumento súbito da tensão pode levar a
Sem menosprezar as outras abordagens à questão psicossomática, vamos rapidamente rever os principais conceitos
destas duas linhas de investigação/pensamento, a de Pierre Marty e a de Sami-Ali,
já que nos parece que elas dão conta de
duas perspectivas, claramente distintas,
mas em certa medida "típicas" das abordagens possíveis a este fenómeno.
Pierre Marty é o principal representante da Escola Psicossomática de Paris9, ele e
os seus colaboradores constataram que a
somatização se organiza fundamentalmente quando existem falhas significati-
6
A Escola Psicossomática de Chicago de Franz
Alexander e os seus seguidores desenvolveram
amplamente esta abordagem.
7
Garma defendia nos seus trabalhos que a úlcera péptica seria a expressão de uma mãe agressiva internalizada (citado em Volich, 2000).
8
Posição defendida em vários trabalhos de
McDougall.
9
Actualmente chamado de Instituto de Psicossomática – IPSO.
10
Como refere Guilherme Canta no seu trabalho monográfico "Se em Alexander [refere-se
a Franz Alexander] encontramos o que podemos chamar de "Teoria do Conflito", como explicação da patologia psicossomática, em
Marty encontramos uma "Teoria do Défice",
na origem desse mesmo processo patológico.
11
Léon Kreisler define a mentalização da seguinte forma. "Sous le terme de mentalisation
couramment utilisé, les psychosomaticiens
désignent les mécanismes par lesquels le
psychisme assure l' emergence et opère la
régulation dés énergies inconscientes,
instinctuelles et pulsionnelles, libidinales et
agressives". In Les bases originaires de
l’organisation psychosomatique (1991).
12
"La maîtrise de l’excitation constitue le
problème central de la somatisation". In Léon
Kreisler, Les bases originaires de l’organisation
psychosomatique (1991).
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uma regressão do funcionamento psicológico pelo que o psiquismo procura outras "saídas" para o "alívio" da tensão e
reposição do anterior estado de homeostasisa. As 3 dimensões básicas que se constituem como as três vias fundamentais estão, em princípio, disponíveis para o sujeito; mas quando, por motivos vários13, a
via mental (do pensamento) e a da acção
(comportamento sensório-motor) não estão disponíveis ou são ineficazes para lidar com a tensão, esta pode escoar através da terceira via, a via somática e dessa
forma provocar o adoecer físico. Esta teoria pressupõe uma certa hierarquização
das vias, estando em primeiro lugar a via
do pensamento (a mais sofisticada e a que
está na primeira linha na resposta ao
acréscimo de excitação e consequente aumento de tensão), seguida pela via sensório-motora e por último a via somática;
pensamos contudo que Marty não propõe uma correspondência hierárquica em
termos de gravidade, já que a "escolha"
da via mental poderá originar o adoecer
mental enquanto que a "escolha" da via
somática pode organizar o adoecer físico.
Como se poderá apreciar posteriormente,
a nossa abordagem à questão "psicossomática" – a Transformação Psicossomática –, permite-nos reunir alguns destes níveis, nomeadamente o nível sensório-motor e o nível somático e perceber
como o "nível mental" e o "nível psicossomático = acção/comportamento + somático" podem operar de forma patológica e/ou saudável.
De acordo com a teoria desenvolvida
pelo Instituto de Psicossomática de Paris é
a falha no sistema mental, uma insuficiência fundamental do sistema pré-consciente, que "empurra" a descarga para a via
ANA ALMEIDA
somática14. Para Marty e os seus seguidores, o desenvolvimento da organização psicossomática encontra a sua génese nas primeiras experiências do bebé com o seu
próprio corpo e com a sua mãe15. Estes autores identificaram a depressão na primeira infância como sendo o terreno fértil aonde poderá vir a despontar a organização
psicossomática.
Ainda, em Paris, Sami-Ali desenvolveu um outro modelo de análise da manifestação psicossomática16, criando dois
13
Principalmente devido à existência de Depressão Essencial ou Depressão Psicossomática.
14
"(...) há uma "desorganização progressiva", uma
entropia mental que passa para o plano somático, sendo esta desorganização uma expressão
directa da pulsão de morte. (...)" Marty, 1963,
1993.
15
A "função maternal primária", ou seja o "conjunto de cuidados" que a mãe dispensa ao seu
bebé é determinante para que o bebé consiga
fazer a correcta integração das diferentes zonas
corporais que são vividas por ele como separadas "fragmentadas". Sem a correcta constituição
desta matriz corporal básica a organização psicossomática estrutura-se.
16
Como Joyce McDougall perferimos a expressão
"manifestação" ou "fenómeno" para o "acontecer psicossomático, habitualmente na forma de
um sintoma": "(J’ouvre ici une parenthèse pour
rappeler que j’inclus dans la définition de
«manifestations psychosomatiques» non
seulement les maladies célèbres nommées
familièrement les «Sept de Chicago», mais aussi
tout phénomène où la sensibilité du sujet aux
maladies contagieuses est accrue pour dês
raisons psychologiques, y compris dorsalgies,
céphalalgies, cardiopathies, et autres perturbations dés rythmes biologiques sans cause organique (insomnie, constipation, ovulation, etc.). A
cela j’ajouterai la tendence à produire des
accidents corporels aux moments de tension
émotionnelle. A mon sens, la somatisation
comme réponse à la douleur mentale est une
dês réponses psychiques les plus banales dont
l’être humain soit capable. In Corps et langage.
Du langage du soma aux paroles de l’esprit.
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planos em permanente articulação aonde
o somático pode ser pensado/elaborado,
o plano do real e o plano do imaginário.
Na sua construção teórica, a impossibilidade de aceder a um dos planos (pelo recalcamento da função do imaginário) leva
ao uso exacerbado do outro plano como
"palco" de expressão da conflitualidade
ou da impossibilidade de aceder a ela, ou
seja, à expressão sobre o plano do real (no
corpo real) do Impasse17. A noção de Impasse é cara a Sami-Ali que a forja e a desenvolve até a ter transformado num dos
conceitos chaves da sua teoria. O plano do
real é intimamente articulado com o
relacional18, ocupando, este último, um papel relevante e determinante na conceptualização mais abrangente desta teoria.
zação social primitiva sem qualquer forma de representação mental e outra que
se desenvolveria ao ponto de se constituir
posteriormente como mente. O primeiro
estado de organização da personalidade
(estado de organização mental primitiva),
denominado de "nível somatopsicótico da
vida mental" seria, segundo Meltzer,
equivalente às primeiras formulações de
Bion21 sobre o "nível protomental" que é,
segundo Bion, o substrato da Mentalidade do Grupo de Pressuposto Básico.
Em 1961, altura em que Bion iniciou a
sua Obra com a publicação de Experiences in
Groups, ainda não tinha, obviamente, desenvolvido o arcaboiço do seu corpo teórico
e por isso, conceitos como "aparelho para
Por último, e porque é uma perspectiva que se aproxima da nossa dado ter ido
beber à mesma fonte, gostaríamos de falar um pouco sobre a abordagem à manifestação psicossomática esboçada por
Bion e posteriormente desenvolvida por
Meltzer e Amaral Dias entre outros.
De acordo com Meltzer, – que fez uma
análise exaustiva aos textos de Bion com o
intuito de perceber a forma como ele entendia a manifestação psicossomática –,
Bion fez um percurso circular, relativamente à questão psicossomática, na medida em que no início da sua obra, com o
texto Experiências com Grupos (1961) descobriu que havia uma "mindlessness19"
na participação do grupo de pressuposto
básico20 e no seu último trabalho Uma memória do futuro (1979) sugeriu que a personalidade, pré-natal se dividiria na altura do nascimento (caesura of birth) e dessa
divisão resultariam duas partes, uma parte que se manteria num estado de organi-
17
É de referir contudo que para Sami-Ali existe
uma relação entre a produção somática e o
imaginário que tanto se pode organizar pelo
excesso como pelo defeito; para o autor, a
somatização histérica deve-se a um excesso
do imaginário enquanto que a somatização
não conversiva se deve a um reduzido recurso (defeito/carência) ao imaginário.
18
Através das noções de Impasse Relacional, de
Patologia da Adaptação, de Perturbação da
sincronia dos ritmos, etc..
19
Ausência de actividade mental, diríamos nós.
20
"Os pressupostos básicos seriam três:
Pressuposto básico de dependência. Contém
uma ideia de dependência absoluta do grupo em relação a alguém, que provê a satisfação de todas as necessidades e desejos.
Pressuposto básico de ataque-fuga. A concepção de um mau objecto externo implica uma
mentalidade grupal dominada pela convicção
da existência de um inimigo que é necessário atacar e/ou fugir dele.
Pressuposto básico de emparelhamento. Dominado pela convicção messiânica, o grupo não
trabalha para a resolução do presente, antes
se envolve numa ideia emocional de futuro em
que uma esperança irracional se organiza à volta
do nascimento de um ser ou facto novo (a partir do par). In Carlos Amaral Dias, Aventuras de
Ali-Babá nos Túmulos de Ur (1992).
–
–
–
21
Desenvolvidas na obra anteriormente citada:
"Experiências com Grupos".
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22
pensar os pensamentos"; "pensamentos
propriamente ditos"; "aparelho pré-conceptual"; "dinâmica PS D", "dinâmica
continente/conteúdo", etc., ainda não tinham sido concebidos; pelo que a terminologia que usou na altura (nível protomental, grupo de pressupostos básicos,
etc.) acabou, na nossa opinião, por ser
substituída à medida que o seu sistema teórico se foi complexificando e evoluindo.
Nesta perspectiva, o texto inicial Experiências
com grupos é muito interessante principalmente porque lançou Bion na pista de uma
investigação que viria a dar enormes frutos,
mas não foi um desenvolvimento acabado,
com valor por si só, isto é, mais tarde, nos
seus outros livros, desenvolveu e consolidou os conceitos que neste primeiro livro
apenas apareciam de forma embrionária.
Pensamos que a noção de "Grupo de Trabalho" foi substituída pela noção de "Aparelho para pensar os pensamentos e pensamentos propriamente ditos" e a noção de
"Aparelho Protomental" foi substituída pela
noção de "elementos-alfa e elementos-beta", enquanto que a "actividade do suposto base" foi substituída pela ideia da
"vinculação L, H e K".
A noção do aparelho protomental, que
Bion recuperou em 1979, em Memória do
Futuro (e ainda assim, não de forma explícita) remete, na nossa opinião, para a
ideia de uma mente que ainda não a é,
isto é, uma mente que apenas é um protótipo, um embrião, um esboço. É uma
mente não plenamente desenvolvida. Claro que a hipótese de existir uma forma de
mente (ou uma quase mente) primitiva,
muito ligada ao substrato neurobioquímico do cérebro é muito atraente e pensamos que facilmente poderia ser associada à
ideia dos neurologistas de um cérebro pri-
ANA ALMEIDA
mitivo; contudo, pensamos que a ligação,
dessa suposta mente com os pressupostos
básicos enunciados em Experiências com grupos é desnecessária e até eventualmente errónea. Meltzer faz a ligação entre uma e
outra coisa através do conceito de protomente (ou aparelho protomental), que, na
nossa opinião, poderá ter sido utilizado
como indicador de algo que se vai desenvolver e que ainda não se desenvolveu.
Pensamos, também, que as dinâmicas
da mentalidade grupal, como foram estudadas por Bion no seu primeiro trabalho,
apenas sofreram uma segunda reflexão, e
ainda assim muito breve, quando enunciou e fez um pequeno desenvolvimento
num texto póstumo editado em Cogitations
daquilo a que denominou narcisismo
[tropismo ao um (uno)] e socialismo
(tropismo ao grupo). Pensamos, contudo,
que os conceitos forjados em Experiências
com grupos continuam a ser pertinentes e
muito úteis quando aplicados aos grupos
e às suas dinâmicas.
Bion não foi um topologista. Conforme diremos noutro ponto deste trabalho,
os seus desenvolvimentos caracterizam-se
pela "substituição" das estruturas, por
funções e processos; pelo que nos parece
pouco provável que ele pretendesse dividir a mente (como parece sugerir a ideia
anterior) em duas, em dois sítios-mente,
dois espaços-mente. Pensamos que a manutenção da ideia de uma mente primitiva só será sustentável se ela for "pensada"
em termos de função e processo; neste
sentido, seria interessante tentar perceber
uma forma de integração da "mente primitiva" como uma função/processo da
mente, strictu senso. Amaral Dias apesar de
aceitar a ligação que Meltzer faz aos pressupostos básicos, parece, na sua obra, dar
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uma importância muito maior aos processos relacionados com a inversão da função-alfa. Diz-nos a certa altura do seu texto: "A questão é aonde colocar aquela falha. [está a referir-se à falha da funçãoalfa]; e aí, a proposição de um aparelho
protomental permite-nos uma perspectiva outra sobre a questão" e mais à frente:
"Não se trata já de gerar ou não pensamentos (em continente-conteúdo, função-alfa
e PS D), mas de questionar uma mentalidade caracterizada pela quantidade de excitação e não pela emoção (isto é, pelo neurofisiológico em vez do psicológico). Para o
efeito recorre [refere-se a Bion] à hipótese
de uma vida primitiva, em que somente
um dos pressupostos básicos está activo,
enquanto os outros ficam num nível protomental em relação intensa com os processos corporais22.
É para nós óbvio que a manutenção
dos processos vitais (que passa pelo bom
funcionamento dos órgãos e de todos os
sistemas que mantêm a vida) terá que ser
operacional ao mesmo tempo que a vida
se torna operativa. O coração e outros órgãos e sistemas funcionam na vida intra-uterina (actualmente, sabe-se inclusivamente que alguns sentidos funcionam
intra-uterinamente), como funcionarão
depois na vida extra-uterina. Algo, alguma coisa, os gere e talvez esse algo seja a
Mente Primitiva. Mas, o que fazer com
isto? Pensamos que esta questão é uma
questão ainda em aberto e para qual nós
não temos nenhuma resposta. Responder
a esta pergunta talvez seja entrar nos meandros daquilo que propomos neste trabalho
22
In Aventuras de Ali-Babá nos Túmulos de Ur
(1992).
23
como sendo a Transformação Psicossomática. Talvez a Transformação Psicossomática
seja a primeira a surgir no desenvolvimento
da vida mental, porque sem ela a vida simplesmente não seria possível. Uma outra
hipótese, complementar à anterior, é a de
que a "gestão do substrato orgânico" seja,
num primeiro momento, apenas inscrita
ao nível biológico e que se constitua como
um a priori, em termos Bionianos, como
uma pré-concepção inata. O organismo
biológico, o corpo, estaria então, na vida
intra-uterina inicial, numa espécie de
auto-gestão, e para a mente (ainda que
protomente, no sentido de mente embrionária) isso teria como consequência serem as impressões dos sentidos o seu "primeiro" alimento, dando origem à constituição dos primeiros elementos-beta
transformados, via Transformação Psicossomática, em novas impressões dos sentidos (por alterações neurobioquímicas) e
recolocados ao nível somático.
De acordo com estas hipóteses, não se
trataria nunca de uma cisão da mente em
duas ou de uma cisão entre mente e corpo, mas do desenvolvimento da mente a
partir do substrato neurobioquímico, melhor ainda, a par e passo com o desenvolvimento do substrato neurobioquímico. Da mesma forma que o embrião se vai
desenvolvendo e nesse desenvolvimento
se vão diferenciando as suas diferentes
partes, também se diferencia uma parte, à
qual damos o nome de mente, só que o
desenvolvimento da mente não pára com
o nascimento, continua a evoluir e a crescer, enquanto o desenvolvimento dos
pulmões, por exemplo, está terminado
antes do nascimento, pelo menos no que
diz respeito às suas propriedades, já que
sofre crescimento posterior.
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24
A Transformação Psicossomática que é o
nosso contributo para a Teoria das Transformações de Wilfred Bion, e em certa medida para a Psicossomática, obriga-nos a fazer uma longa paragem neste autor e a detalhar, sem pretendermos ser exaustivos,
alguns dos pontos chaves da sua teoria. Em
três obras fundamentais – Aprender com a
experiência (1962), Transformações (1965) e
Atenção e Interpretação (1970), Bion dá-nos
os fundamentos e os alicerces para uma
nova perspectiva sobre o desenvolvimento
do psiquismo humano e fundamentalmente descreve-nos e esclarece-nos o funcionamento da mente humana.
Ao tentar compreender o problema de
como o ser humano consegue aprender
com a experiência emocional, Bion descobre algumas dimensões essenciais do psiquismo, uma delas e talvez a mais importante é que perante situações (vivências
emocionais) geradoras de frustração (desprazer, dor mental) a mente humana pode
"decidir" suportá-las ou evitá-las. Esta "decisão" é determinante para o desenrolar da
maturação psíquica. Ser capaz de enfrentar
e tolerar a emoção desagradável põe o sujeito no caminho da modificação dessa mesma experiência enquanto evitá-la apenas
afasta o sujeito da sua realidade psíquica e o
enreda na eterna compulsão à repetição ou
o aprisiona no mundo psicótico dominado
pela identificação projectiva patológica.
Para Bion, as emoções são objectos dos
sentidos e como tal precisam ser transformadas para se tornarem adequadas a serem assimiladas/incorporadas pela mente
(pelo aparelho para pensar pensamentos).
Para se poder aprender com a experiência emocional é necessário, segundo o
autor, que a função- actue de forma eficaz sobre as impressões das experiências
ANA ALMEIDA
emocionais. Esta forma de actuar é uma
espécie de digestão que transforma os elementos- (coisas-em-si/experiências sensoriais) em elementos- (elementos que
se assemelham às imagens visuais que
aparecem nos sonhos e nas fantasias inconscientes). Os elementos- têm como
característica fundamental a capacidade de
poderem ser acumulados (conservados/armazenados) e ficarem disponíveis para o
pensamento onírico. A função- é necessária para a actividade de pensar, para o raciocínio consciente e para tornar inconsciente
o pensamento quando se torna necessário
para a mente libertar a consciência da sobrecarga que a aprendizagem exige.
Se existirem apenas elementos- não
poderá haver repressão, nem supressão ou
aprendizagem porque estes elementos não
possuem a capacidade de se tornarem inconscientes. Um indivíduo dominado por
esta condição psíquica parece ser incapaz de
discriminar os estímulos que o envolvem
(interna e externamente) dando a sensação
de ser hipersensível, porque a tudo reage,
mas na verdade é totalmente incapaz de assimilar e/ou aprender com esses estímulos,
pelo que o seu contacto com a realidade se
vai tornando cada vez mais precário. Os ataques à função- 23 destroem a possibilidade
do indivíduo estabelecer um contacto consciente consigo próprio ou com qualquer ou23
Os ataques à função- podem ter múltiplas
origens ou justificações, entre elas é de destacar a violência da emoção: quando a emoção
é vivida de forma muito violenta (isto é, muito
intensa) pode levar à obstrução da funçãoporque o indivíduo confunde violência com
destrutividade. A destrutividade (o medo, o ódio
e a inveja) é temida de forma tão intensa que
a pessoa se sente na contingência de tomar
medidas necessárias de forma a impedir a captação de todos os sentimentos, mesmo que
com esta atitude esteja a destruir a própria vida.
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UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED BION
tro objecto vivo. Este estado implica a destruição de qualquer interesse pela verdade
e, para Bion, a verdade é o mais nutritivo
alimento da mente.
Evitar a experiência do contacto com
objectos vivos destruindo a função- incapacita a personalidade/pessoa para estabelecer uma relação com qualquer aspecto
de si mesma que não se assemelhe a um
autómato. Nesta situação, apenas os elementos- estão disponíveis para qualquer
actividade que substitua o pensamento,
mas como os elementos- só são apropriados para a evacuação, acabam por ser tratados através de procedimentos de evacuação
semelhantes aos movimentos da musculatura, mudanças de expressão, etc., é de referir que posteriormente iremos considerar algumas destas modalidades evacuativas como expressões da transformação psicossomática. Não são, contudo, as únicas, as
transformações projectivas e as transformações em alucinose são igualmente modalidades evacuativas destes elementos- /
/objectos bizarros. Todas estas modalidades
evacuativas (transformação projectiva,
transformação psicossomática e transformação em alucionose) fazem uso, com
maior ou menor intensidade, da Identificação Projectiva normal e patológica.
A expulsão de elementos- indesejáveis para a personalidade ou a expressão/
/expulsão de objectos bizarros é a matéria-prima e a força propulsora que sustenta e
induz a Transformação Psicossomática.
Se, por um lado, os elementos- podem sofrer dois tipos de destinos (1) serem transformados em elementos- através da acção da função- ou (2) serem
evacuados através dos 3 tipos de transformações (T. Projectiva, T. Psicossomática e
T. em Alucionose24); os elementos- , por
25
outro lado, podem ser agrupados e sofrer
as vicissitudes inerentes ao processo de
abstracção, ou manterem-se na qualidade de pensamentos oníricos, o que corresponde, grosso modo, ao conceito de
Melanie Klein de fantasia inconsciente25.
24
A Transformação em Movimento Rígido, como
iremos ver mais à frente, não está ao serviço
da evacuação de elementos- nem de objectos bizarros, mas ao serviço do aparelho para
pensar os pensamentos porque mantém as
invariâncias de O (e nesse sentido permite a
manutenção do contacto com a realidade, ou
seja, não adultera significativamente a "quota"
de verdade que lhe é imanente).
25
O conceito de Melanie Klein de Fantasia Inconsciente como um operador que trabalha continuamente na mente foi amplamente absorvido pela teoria Bioniana, apesar de isto não ser
explicito na produção teórica de Bion, contudo
uma análise aprofundada quer da teoria
Bioniana quer da teoria Kleiniana, não deixa
margem para dúvida. O conceito de Fantasia
Inconsciente é um dos mais poderosos conceitos desenvolvidos por Klein, nele estão contidas noções fundamentais para a compreensão do psiquismo. No Dicionário do Pensamento Kleiniano de Hinshelwood encontramos a seguinte definição de Fantasia Inconsciente que elucida a importância deste conceito para a teoria Bioniana que temos vindo
a desenvolver – "Fantasia Inconsciente: As fantasias inconscientes estão subjacentes a todo
o processo mental e acompanham toda a actividade mental. Elas são a representação mental daqueles eventos somáticos no corpo que
abrangem as pulsões, e são sensações físicas
interpretadas como relacionamentos com objectos que causam essas sensações.
Irrompendo a partir de sua instigação biológica, as fantasias inconscientes são lentamente
transformadas por duas maneiras: (i) pela mudança através do desenvolvimento dos órgãos
para a percepção à distância da realidade externa, e (ii) pelo surgimento no mundo simbólico da cultura, a partir do mundo primário do
corpo. As fantasias podem ser elaboradas para
alívio dos estados internos da mente, quer pela
manipulação do corpo e suas sensações (fantasias masturbatórias), quer pelo fantasiar directo. A fantasia é a expressão mental das noções pulsionais e também dos mecanismos de
defesa contra essas noções pulsionais", In Dicionário do Pensamento Kleiniano.
R E V I S TA P O RT U G U E S A D E P S I C O S S O M Á T I C A
26
Temos então um modelo do funcionamento da mente profundamente dinâmico, onde as estruturas (estamos a
pensar concretamente nas estruturas da
mente propostas por Freud, nomeadamente as da 1ª tópica – Consciente, Préconsciente e Inconsciente –, e as da 2ª
tópica – Id, Ego e Superego) passaram a
ser concebidas/pensadas como funções e
processos. Esta alteração de aparência ingénua foi de facto muito profunda e assustadoramente radical, na medida em
que, pela primeira vez, um corpo teórico
concebe a mente humana como um fenómeno puramente energético, porque
puramente processual e funcional; na verdade não há matéria associada à mente.
Amaral Dias foi o primeiro a compreender este facto e as implicações brutais que
ele acarreta, num Seminário já publicado,
ele explica-nos como o elemento- , o
mais energizado de todos e por isso mesmo o mais próximo da matéria é submetido a transformações (via função- , obviamente) e vai progressivamente perdendo energia porque a função- é uma função dissipadora de entropia (dissipadora de
energia) e dessa forma "desmaterializa-se"
o elemento- ficando "energia em estado
puro"26.
Retomando a linha de raciocínio anterior temos então que a mente humana
funciona sempre, e continuamente, em
dois registos, diferenciados apenas pelos
processos dinâmicos que os geram, isto é, a
mente humana através do exercício continuado da função- , que permanentemente transforma os elementos- que atingem
a mente (quer vindos do exterior quer do
interior) em elementos- , constrói dinamicamente uma área consciente e uma área
ANA ALMEIDA
inconsciente separadas pela barreira de
contacto que, por sua vez, pode ser pensada como a área separadora e unificadora
(área "borderline") caracterizada pela
estruturação de "quadros" oníricos que são,
em última instância, redes complexas de
elementos- que podem ser "unidas/reunidas" através de selecção de um nome (facto seleccionado) que funciona como um
"laço" contentor desse conjunto.
O termo "barreira de contacto" dá conta do estabelecimento de contacto entre
consciente e inconsciente e da passagem
selectiva de elementos de um para o outro lado. A natureza da transição do consciente para o inconsciente, e vice-versa,
consequentemente a natureza da barreira de contacto e dos elementos- que a
compõem, determina a qualidade da memória e as características das recordações.
A barreira de contacto deve, então, a sua
existência (formação) à proliferação de
elementos- gerados pela função- , e desempenha a função de uma membrana
que, dada a natureza da sua composição e
consequente permeabilidade, divide os
fenómenos mentais em dois grupos, um
dos quais realiza as funções de consciência e o outro as funções de inconsciência.
Uma gama significativa das perturbações
do psiquismo advém de qualidades inadequadas da barreira de contacto, o que
por sua vez pode indiciar dificuldades na
eficácia da função- .
Relativamente às questões em torno
da análise dos fenómenos psicossomáticos, tema central deste trabalho, é de re-
26
Seminário no Gerês – A Patologia Borderline:
Costurando as linhas. (2001).
V O L U M E 6, N º 2, JULHO/DEZEMBRO 2 0 0 4
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED BION
ferir que Bion associou a produção de elementos sensíveis com a reversão da função- ; em Aprender com a Experiência
(1962) diz-nos: "A inversão da funçãosignifica a dispersão da barreira de contacto e é perfeitamente compatível com o
estabelecimento de objectos com as características que anteriormente atribuí a
objectos bizarros. (...) A inversão da função- afecta o Eu, mas não provoca um
simples retorno aos elementos- provoca
antes, sim, a "construção" de objectos que
diferem em aspectos importantes dos elementos- originais que não têm restos de
personalidade associados a eles". Os objectos bizarros, fruto da actuação da função- mas agora actuando em sentido inverso, ou seja, despojando os elementosdas suas qualidades de abstracção, recolocando-os novamente com as propriedades de elementos- , são verdadeiramente
os elementos que servem de "munições/
/conteúdos" para a identificação projectiva,
inclusive a patológica. A identificação
projectiva designa o processo de "fazer passar algo – projectar" para fora de mente ou
dentro da mente de um objecto interno
para outro e mantém uma ligação com o
projectado; este processo só "funciona"
com elementos propícios a essa actuação
e no caso da identificação projectiva os
elementos propícios são os elementos(estes são postulados como sendo os elementos originais da experiência e por isso
mesmo incognoscíveis, são pois teoricamente impossíveis de serem directamente apreendidos nem pelo próprio nem por
outros) e os objectos bizarros, estes últimos têm na sua constituição "pedaços" da
personalidade do sujeito que o produziu
e por isso mesmo são profundamente individualizados – um objecto bizarro é
27
sempre uma produção individual e nesse
sentido única.
O conceito de Objecto Bizarro é um conceito fundamental na nossa abordagem à
manifestação psicossomática porque entendemos que um sintoma psicossomático, strictu senso, é a emergência/corporização/encarnação de um objecto bizarro,
via Transformação Psicossomática.
No livro Learning From Experience, Bion
diz-nos que não há dados sensoriais directamente relacionados com as qualidades psíquicas, que apenas há dados sensoriais directamente relacionados com os
objectos concretos, para ele os sintomas
hipocondríacos indicam que a personalidade está a tentar estabelecer contacto
com a qualidade psíquica, substituindo as
qualidades psíquicas, que estão ausentes,
por sensações físicas. Esta ideia para além
de ser extraordinariamente rica, esclarece
de forma muito sugestiva a maneira como
o corpo e as sensações corporais podem
ser "produzidas" como modo de expressão de qualidades psíquicas, dado que estas últimas não possuem uma forma sensitiva de se darem a conhecer. Uma vez
que a consciência é o órgão sensorial para
a apreensão das qualidades psíquicas,
como postulou Freud em 1911 no texto
Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, uma perturbação do estado de consciência – ou tendo em consideração os desenvolvimentos teóricos de
Bion, uma perturbação da estruturação da
barreira de contacto que, como vimos, permite a construção dinâmica de consciente
e inconsciente e simultaneamente a sua separação/união –, poderá levar à falência
(total ou parcial) deste órgão e "transformar" as experiências emocionais em elementos sensitivos, via impressões sensoR E V I S TA P O RT U G U E S A D E P S I C O S S O M Á T I C A
28
riais e/ou modificações somáticas, porque
estas já são apreendidas pelos órgãos dos
sentidos enquanto que a experiência
emocional, por si só, isto é, antes de ter
sido transformada pela função- , não o é.
Temos, então, que perante a falência da
barreira de contacto (o que poderá implicar
uma falência da função- ou inadequação
das propriedades da barreira de contacto por
ser demasiado porosa, demasiado rígida,
etc.), o psiquismo pode transformar a experiência emocional numa impressão sensorial ou modificação somática27 e esta (a experiência emocional) volta a ser um "input"
do sistema, agora sob a forma de impressões sensíveis e, por isso mesmo, apreensíveis pelos órgãos dos sentidos, entrando novamente na cadeia transformativa, só que
com perdas significativas, dado que fica cada
vez mais distante do O inicial.
No texto anteriormente referido28 e
muitas vezes referenciado por Bion, Freud
diz-nos que o pensamento é um meio para
diminuir/adiar a descarga motora e que o
pensamento ao libertar o aparelho mental
do excesso de estímulos permite que este
elabore uma modificação, através da acção,
que seja adequada à realidade. Para Freud,
e seguindo o raciocínio de Bion, o pensamento é um substituto para a descarga
motora (acção/movimento); mas isto não
implica que a actividade motora deixe de
ser, na totalidade, uma forma apropriada
para essa descarga ou seja, para libertar o
psiquismo do excesso de estímulos. Na verdade, não só uma parte substancial dos estímulos excessivos (objectos bizarros, elementos-beta, pensamentos propriamente
ditos) são "evacuados" através da actividade motora (acção/movimento e na nossa
opinião alterações somáticas da mais va-
ANA ALMEIDA
riada ordem) como a psique possui um
"dispositivo" próprio que actua à semelhança da descarga motora, na medida em
que "expulsa/evacua" os estímulos excessivos; esse "dispositivo" é a Identificação
Projectiva. Temos, então, dois mecanismos
adequados para lidar com o excesso de estímulos (que poderão funcionar como
pára-excitação); um deles a (1) Identificação Projectiva, que pode ser usada ao serviço da maturação e do aprender com a
experiência ou pode ser usada de forma
patológica, chamando-se, então, de Identificação Projectiva Patológica e a (2) "evacuação" através da actividade somática29.
Ainda seguindo Bion e tendo em consideração que os pensamentos são anteriores
há existência de um aparelho que os possa
pensar, podemos inferir que os "pensamentos" podem ser sentidos pela personalidade como um excesso de estímulos e
como tal tornam-se semelhantes aos elementos- e como tal poderão ser "evacuados" através da descarga motora e pela acção da musculatura.
Tentando clarificar podemos dizer que a
Transformação Psicossomática, conforme
concebida por nós, pode actuar sobre os elementos- , os objectos bizarros e sobre os pensamentos quando estes são sentidos pela
27
É a esta transformação a que damos o nome
de Transformação Psicossomática.
28
Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental.
29
Por actividade somática entendemos tudo
aquilo que depende do corpo, quer ao nível
das suas manifestações externas (movimentos, gestos, acções sobre a realidade, etc.)
quer manifestações internas (alterações ao
nível dos órgãos e sistemas corporais) ou ainda alterações funcionais da corporalidade (alterações da imagem corporal, de funções associadas aos órgãos dos sentidos, etc.).
V O L U M E 6, N º 2, JULHO/DEZEMBRO 2 0 0 4
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED BION
mente como excessivamente perturbadores
ou seja, quando o aparelho para pensar os
pensamentos, por qualquer motivo, não é
capaz de lidar com eles. O aparelho para pensar os pensamentos pode ser incapaz/
/ineficiente para lidar com os pensamentos
devido a múltiplas razões de entre as quais se
destacam, em primeiro lugar, uma certa imaturidade (o "Aparelho para Pensar os Pensamentos" está insuficientemente desenvolvido por imaturidade como acontece nos bebés), falência (total ou parcial) ao nível das
dinâmicas PS D30 ou Continente-Conteúdo ou ainda do aparelho pré-conceptual;
para além das situações de falência dos diferentes processos que operam na elaboração
do psiquismo ao seu mais alto nível, pensamos que a Transformação Psicossomática
acompanha também os movimentos
maturativos da mente e que pode estar ao
serviço da evolução do psiquismo, na sua
"conquista" de uma maior tolerância à frustração, na medida em que evacuando uma
parte dos estímulos através de transformações psicossomáticas mantemos a mente
"focada" nos processos que estão a exigir
mais da função- e da correcta actuação do
aparelho para pensar os pensamentos. Neste
sentido, a Transformação Psicossomática
como a Identificação Projectiva tem um uso
maturativo, que está ao serviço do crescimento mental, e um uso patológico; neste
último, a transformação psicossomática visa
manter determinada verdade emocional
longe da percepção do sistema conscienteinconsciente e dessa forma é um enunciado
falso (coluna 2 da tabela), enquanto que no
uso maturativo funciona como "reorganizador" do espaço mental, permitindo pela supressão de elementos incómodos e dispensáveis (lixo) que são ejectados via soma31, manter o espaço mental o mais livre possível de
29
obstáculos e dessa forma manter ou aumentar a fluidez dos processos.
Em Transformations (1965), Bion diz-nos que as transformações a partir de O
são influenciadas pelos vínculos (L, H e
K) de forma semelhante à influência da
atmosfera quando o produto final da
transformação é o desenho de uma paisagem. Nesta mesma obra32, Bion constantemente faz referência à transformação de
O e não há transformação do elemento básico – o elemento- , isto deve-se, na nossa
opinião, ao facto de, para ele, o elementos- ser já uma transformação da realidade
última "O", contudo para efeitos práticos,
parece-nos evidente que o início da cadeia de transformações se situa ou no
aglomerado de elementos- e objectos bizarros que constitui o ecrã- ou, na barreira de contacto, ou ainda nos elementos- mais complexos, como são, por
exemplos, os pensamentos oníricos e os
mitos. Temos, então que as diferentes
operações que levam à transformação são
aplicadas a um elemento33 inicial e o tipo
30
Alternância dinâmica entre Posição Esquizoparanóide e Depressiva. Este mecanismo a
par da dinâmica continente-conteúdo é determinante para o uso e desenvolvimento dos
pensamentos, como é ilustrado e esclarecido pela Tabela de Bion.
31
É interessante pensarmos que é chamado
também soma à bebida sagrada que, segundo a crença religiosa dos Árias, dava ao justo
o privilégio da imortalidade do corpo.
32
Onde descreve, nas palavras de Arnaldo
Chuster o processo pelo qual uma "mente
embrionária" se desdobra, se estende até um
estado subjectivo de "maturidade".
33
Há que ter em consideração que esse elemento pode ser altamente complexo como
é a barreira de contacto, um objecto bizarro,
o pensamento onirico ou a pré-concepção.
R E V I S TA P O RT U G U E S A D E P S I C O S S O M Á T I C A
30
de transformação que lhe está associada
depende da força dos vínculos que a impregnam, se os vínculos são positivos (+),
no sentido que Bion atribui ao positivo,
ou seja, significando o sentido do sentimento/emoção na direcção da maturação, a transformação é também ela no
sentido da maturação e, nesse sentido temos, as transformações em movimento
rígido, as transformações em pensamento propriamente dito (pela acção da função- ), algumas das transformações projectivas e algumas das transformações psicossomáticas como transformações potencialmente maturativas; se pelo contrário os vínculos são negativos (-), ou seja,
o sentido do sentimento/emoção é na direcção da "fuga" à verdade, então a transformação é também ela no sentido da
"fuga" à verdade e, para isso, temos as
transformações em alucinose, algumas
transformações projectivas e algumas
transformações psicossomáticas. Há, ainda que referir que o resultado final, após a
transformação é também ele gerador/
/indutor de um estado emocional que,
novamente poderá ser expresso em termos dos vínculos L, H e K ou nos seus
pares negativos e que esta nova emoção
poderá redireccionar a transformação ou
reajustá-la, já que este "resultado final"
pode ser um novo ponto de partida na cadeia transformativa.
Desta forma podemos ver que as transformações são operações que modificam a
situação/objecto inicial e através dessa modificação reestruturam as suas propriedades. As propriedades do T (objecto modificado pela transformação)34 são variáveis,
mas mantêm com o T (objecto ainda não
modificado pela transformação ou objecto
ANA ALMEIDA
original)35 uma ligação que depende das
invariantes, ou seja, dos elementos que se
mantém inalterados entre T e T . Cada
uma das transformações (T. em Movimento Rígido, T. em Alucinose, T. Projectiva e
T. Psicossomática) pode ser analisada em
termos das invariantes que mantém com o
"O" original.
Temos, então, de forma esquemática e
simplificada que:
Entre o T (elemento inicial) e o T
(produto final) numa Transformação em
Movimento Rígido há a manutenção de
invariantes ao ponto de se poder "perceber
e/ou reconstruir" o T ; esta transformação
não introduz deformações em excesso,
mantém, como dizíamos anteriormente, a
"quota" de verdade que lhe é imanente.
Esta transformação cria uma "representação" da realidade/verdade muito próxima
da verdade do próprio sujeito.
Entre o T (elemento inicial) e o T
(produto final) de uma Transformação
Projectiva há adulteração/deformação de
uma parte substancial dos invariantes que
dificultam, e em situações mais complicadas podem mesmo impedir, o reconhecimento//reconstrução do T . A quota de
verdade pode ser profunda e dramaticamente alterada, como no caso da construção de um falso self ou na percepção de
uma situação que foi invadida por um
projecção maciça; ou pode ser apenas superficialmente alterada como quando está
ao serviço da empatia.
Entre o T (elemento inicial) e o T
(produto final) numa Transformação em
34
"(...) the end product: sign T ". In
Transformations, p.10.
35
(...) the process of transformation: sign T ".
In Transformation, p.10.
V O L U M E 6, N º 2, JULHO/DEZEMBRO 2 0 0 4
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED BION
Alucinose há completa adulteração/deformação do elemento inicial ao ponto de
este já não ser reconhecível (não existem
invariantes ou elas são tão fragmentadas
e dispersas que é quase impossível
identificá-las) no produto final. O produto final da transformação em alucinose é
a alucinação e os fenómenos alucinatórios e delirantes.
Entre o T (elemento inicial) e o T
(produto final) numa Transformação Psicossomática podemos detectar diferentes
níveis de manutenção das invariantes.
Nas "conversões histéricas" que são densamente simbólicas há um grau elevado
de manutenção das invariantes da experiência emocional que a transformação
faz representar através do agido psicossomático. Nas manifestações psicossomáticas "mudas", isto é, que só contém um
nível simbólico a partir do "ataque à funcionalidade", por equivalência simbólica,
há alguma manutenção de invariantes,
mas é mínima e, por vezes, é muito difícil
de compreender e aceder ao T . As transformações psicossomáticas que operam
"em cima" de pensamentos propriamente ditos ou da barreira de contacto (pensamentos oníricos) são extremamente ricas em simbolismo e, têm, por isso mesmo, um grau elevadíssimo de invariantes
com o T : são disso exemplos a dança, nas
suas diferentes expressões, das mais sofisticadas às mais rudimentares; as expressões faciais que traduzem/expressam as
emoções; o canto, a produção musical, a
pintura, etc.. Por outro lado, pequenos
gestos, contracções da musculatura
involuntárias ou voluntárias, movimentos do corpo e da cabeça sem intenção
consciente, o coçar, o tamborilar os dedos,
bocejar, esticar os braços, brincar com as
31
mãos, etc., podem ser transformações psicossomáticas que mantém poucas invariantes com o T e não pretendem re-alojar o "sentido" mas libertar a mente do
excesso de estimulação "lixo".
Em síntese, vimos que:
Bion postulou a existência de 3 tipos de transformações36: a Transformação em Movimento Rígido, a
Transformação Projectiva e a Transformação em Alucinose. Nós propomos a existência de uma quarta
transformação à qual demos o
nome de Transformação Psicossomática37.
ii. As Transformações operam sobre
um elemento inicial, habitualmente designado por Bion por "O" que
significa "realidade última" e produzem um produto final. Na nossa
proposta, o produto final da transformação psicossomática é a Manifestação Psicossomática e inclui-se na
definição deste termo: tudo aquilo
que depende do corpo, quer ao ní-
i.
36
A estas transformações acabou por adicionar
outras mais abrangentes e menos bem definidas nos seus escritos. Acrescentou ao longo do livro "Transformations", pelo menos, as
seguintes: Transformação em O; Transformação em K e -K. Estas transformações têm qualidades gerais na medida em que são atributos possíveis de outras transformações. Por
exemplo, a Transformação em Movimento
Rígido é uma Transformação em K, enquanto que a Transformação em Alucinose é uma
Transformação em -K. Se se está a referir a
uma transformação cujo significado adquirido realiza a existência da "verdade" do sujeito, diz-se que é uma transformação de O, etc..
37
Transformação da experiência emocional (elemento- , objecto bizarro ou pensamento) em
impressões sensoriais, modificação somática
ou movimento/acção.
R E V I S TA P O RT U G U E S A D E P S I C O S S O M Á T I C A
32
ANA ALMEIDA
vel das suas manifestações externas
(movimentos, gestos, acções sobre
a realidade, etc.) quer manifestações internas (alterações ao nível
dos órgãos e sistemas corporais),
quer ainda alterações funcionais da
corporalidade (alterações da imagem corporal, de funções associadas
aos órgãos dos sentidos, etc.).
iii. O produto inicial sobre o qual a
Transformação se deu pode ser, na
nossa perspectiva um elemento do
tipo: elemento-beta38, objecto bizarro e pensamento propriamente
dito39.
iv. Os objectos bizarros são uma consequência da reversão da funçãoou são o que Bion descreveu como
um "écran de elementos-beta".
v. Os Objectos Bizarros são elementos
psíquicos com elevados níveis de
densidade (muito condensados) e
extremamente personalizados.
Cada sujeito "cria" objectos bizarros
que lhe são próprios, isto é, o objecto bizarro traz a marca identitária do
sujeito que o produziu.
38
Como implicação directa da definição de elemento- e como foi explicado anteriormente, este elemento não é perceptível pela mente, pelo que é sempre incognoscível. Apesar
de poder ser um elemento inicial na cadeia
transformativa nunca é observável nem pelo
próprio nem por outros.
39
Os pensamentos propriamente ditos são elementos densamente saturados e vividos pela
mente como tendo esgotado o seu potencial
transformativo – podem-se apresentar à mente com as qualidades (atributos) dos elementos- e objectos bizarros. São "elementos- "
estagnados.
vi. A Transformação Psicossomática
reintroduz o "O" que estava co-relacionado com o elemento-inicial
(elemento-beta, objecto bizarro ou
pensamento propriamente dito) na
cadeia transformativa porque ao
"alojá-lo" no corpo, a mente recebe
a contraparte em sensações e é
como "novas sensações" que reentra na cadeia transformativa. Neste
sentido, a transformação psicossomática, apesar de gerar perdas significativas "conserva" o quantum de
informação que estava alojado no
objecto bizarro e que é pertença da
mente/personalidade que o ejectou/evacuou.
vii. A Transformação Psicossomática
pode ser Patológica, quando visa
evitar o contacto com a verdade
psíquica [como acontece na conversão histérica ou nos diferentes
quadros psicossomáticos], ou
Maturativa, quando visa libertar a
mente do excesso de estimulação e
criar espaço para que a funçãotrabalhe com níveis de performance
elevados ou quando visa a comunicação de um estado ou vivência
emocional.
viii. A Transformação Psicossomática é
uma forma da mente evacuar "elementos beta, objectos bizarros e
pensamentos indesejáveis" através
da relação do Self com o corpo.
ix. A Transformação Projectiva e a Transformação em Alucionose também são
formas de evacuação/ejecção dos elementos indesejáveis.
x. A Transformação em Movimento
Rígido está integralmente ao serviço do aparelho para pensar o penV O L U M E 6, N º 2, JULHO/DEZEMBRO 2 0 0 4
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES DE WILFRED BION
samento e nesse sentido está ao serviço da maturação e é um tipo de
transformação elaborativa.
xi. As Transformações fazem uso da
Identificação Projectiva normal e
patológica.
xii. Na Transformação em Movimento
Rígido mantêm-se as invariantes.
xiii. Na Transformação Projectiva as invariantes são deformadas, mas é
ainda, na maioria das situações,
possível reconstruir a situação inicial. (Transformação utilizada na
empatia e em outros fenómenos
não-patológicos como a paixão).
xiv. Na Transformação em Alucinose
há uma completa adulteração/deformação e não se mantêm as invariantes. O produto final é a alucinação e os fenómenos alucinatórios e
delirantes.
xv. Na Transformação Psicossomática o
grau em que as invariantes foram
deformadas é muito variável. Na
"conversão histérica" há um elevado grau de manutenção das invariantes; nas "perturbações psicossomáticas"– como são habitualmente
designadas" a manutenção das invariantes é mínima na manifestações artísticas e de expressão corporal a manutenção das invariantes é elevada e muito rica.
Pensamos que esta abordagem ao fenómeno psicossomático poderá vir a trazer frutos muito interessantes: por um
lado, a divisão entre soma e psique perde
o seu peso e impacto, na medida em que
um decorre do outro e vice-versa, ou seja,
são a mente e o corpo que funcionando
em simultâneo e em uníssono que, de al-
33
guma forma, ainda não totalmente clara,
viabilizam a transformação psicossomática, mas simultaneamente o produto da
transformação psicossomática (facto ou
fenómeno psicossomático) constitui-se
como um novo "input" sensitivo e portanto reentra na cadeia geradora de pensamentos (elemento- ; elemento- ; função- ; aparelho pré-conceptual; dinâmicas Ps D e Continente/Conteúdo; aparelho para pensar os pensamentos; barreira de contacto; etc.). E, por outro lado,
ao pensarmos o fenómeno psicossomático como tendo uma vertente ou uso patológico e um uso maturativo, estamos a
abrir a porta para a reflexão sobre a psicossomática e a "normalidade" ou até
inclusivamente sobre a psicossomática
como modalidade de transformação indispensável ao bom desenvolvimento da
mente e da personalidade. É ainda de referir que nesta perspectiva a ideia de uma
"estrutura psicossomática" deixa de ser
necessária e poder-se-á investigar o porquê de certas pessoas parecerem "eleger"
esta forma de transformação como privilegiada, por vezes, parecendo que se
escudam nela para evitar males piores,
como por exemplo, a transformação em
alucinose.
Abstract
Based on the study of the work of
Bion and on clinical reflection the author defends and fundaments the conceptual advantage of the creation of another transformation beyond those
identified by Bion; she named this new
transformation "Psychosomatic Transformation".
In an effort to identify the implicaR E V I S TA P O RT U G U E S A D E P S I C O S S O M Á T I C A
34
ANA ALMEIDA
tions of this new concept she articulates
Psychosomatic Transformation with the
other transforma-tions, and demonstrates the importance of this concept in
the understanding of psychosomatic
phenomena, broadening the scope of its
uses. She shows the advantage in
"thinking" the psychosomatic phenomena as a process that leads to the maturation of personality or acts as a pathological process.
Key-words: Bion; Psychosomatics;
Transformation.
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