PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Presidência da Seção de Direito Público
Registro: 2011.0000306784
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 020429830.2009.8.26.0004, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes JOÃO
CARLOS MONTEIRO e LENICE LUZ SOUZA MONTEIRO sendo apelado
PROMOTOR JUSTIÇA VARA INFÂNCIA E JUVENTUDE FORO REGIONAL
DA LAPA.
ACORDAM, em Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo,
proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento ao apelo. V.U.", de conformidade
com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores JOSÉ
SANTANA Vice-Presidente (Presidente sem voto), MAIA DA CUNHA
(Presidente da Seção de Direito Privado) e MARIA OLÍVIA ALVES.
São Paulo, 28 de novembro de 2011.
LUIS ANTONIO GANZERLA
Presidente da Seção de Direito Público
Relator
Assinatura Eletrônica
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CÂMARA ESPECIAL
VOTO N.º 19.571
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0204298-30.2009.8.26.0004
APELANTES: JOÃO CARLOS MONTEIRO E LENICE LUZ SOUZA MONTEIRO
APELADO: PROMOTOR DE JUSTIÇA DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DO
FORO REGIONAL DA LAPA
INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA - ECA, art. 249 - Descumprimento
dos deveres inerentes ao poder familiar - Entrega de menor
desobediente
e
rebelde
pelos
pais
adotivos
a
acolhimento
institucional - Representação procedente - Recurso não provido.
Incorrem em infração administrativa por descumprimento dos deveres
inerentes ao poder familiar pais adotivos que, à vista de dificuldades
enfrentadas no trato com o comportamento de filha optam pela entrega
da menor à Justiça da Infância e da Juventude, para fins de
acolhimento institucional.
Trata-se de recurso de apelação interposto por João
Carlos Monteiro e Lenice Luz Souza Monteiro contra r. sentença
(fls. 110/113) mercê da qual acolhida representação ministerial por
infração
administrativa
(ECA,
art.
249),
com
a
consequente
aplicação de pena pecuniária de 3 (três) salários de referência para
cada, em função da decisão de não mais permanecerem com a filha
adotiva.
Refutam
os
apelantes
a
caracterização
da
infração
administrativa objeto de imputação, tecendo longas considerações
sobre as dificuldades enfrentadas no trato com a menor, sem o apoio
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necessário do Estado. Em caráter subsidiário, pugnam pela
substituição da pena pecuniária por advertência ou prestação de
serviços à comunidade ou, ainda, a redução ao mínimo legal e
parcelamento do valor (fls. 117/130).
O recurso foi regularmente processado e contrariado (fls.
138 e 146/150).
A D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não
provimento do apelo (fls. 171/173).
É o relatório, em acréscimo ao da r. sentença objeto da
insurgência recursal.
Conhece-se do recurso, posto tempestivo, mas se lhe nega
provimento.
É fato incontroverso nos autos terem os apelantes, pais
adotivos da menor Mônica Luz Monteiro (03.09.1998), procurado o
Conselho Tutelar e, por orientação deste, a Vara da Infância e
Juventude do Foro Regional da Lapa, no intuito de promoverem o
acolhimento
institucional
da
infante
à
vista
de
seu
mau
comportamento e atitudes agressivas (fls. 07/08 e 09/11).
Emerge dos autos tratar-se de conduta absolutamente
injustificável, a consubstanciar inexorável violação dos deveres
inerentes ao poder familiar, a despeito do hercúleo esforço
empreendido pela D. Patrona dos apelantes.
Com efeito, os apelantes adotaram a menor ainda em tenra
idade, com apenas 1 ano e 9 meses, após processo de adoção
deferido em 27 de setembro de 2000.
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Por força de denúncias de maus tratos à menor, o
Conselho Tutelar de Perus e Anhanguera interveio junto aos
apelantes em sucessivas ocasiões, conforme relata o documento de
fls. 07/08.
O relatório da Seção de Psicologia da Vara da Infância e da
Juventude do Foro Regional IV da Lapa (fls. 09/11) dá conta do não
comparecimento dos apelantes a sucessivos agendamentos para
atendimento à vista dos problemas descritos no trato com a menor,
a despeito de orientações e encaminhamento efetivados. Não há
controvérsia específica sob esse enfoque, circunstância a legitimar a
conclusão a propósito da dinâmica inadequada da família.
Extrai-se do aludido relatório, in verbis: “(...) o casal adotante
não levou a sério os encaminhamentos, não buscou terapia para a filha, tampouco,
submeteu-se à orientação familiar, o que revela o elevado grau de resistência da
família no sentido de compreender e tratar das dificuldades, donde não se
mobilizam na real busca da solução dos comportamentos desviantes. Em 30 de
junho p.p., comparecem à entrevista agendada em triagem (folhas 192), e,
especialmente, a Sra. Lenice declinou um imenso rol de queixas a respeito do
comportamento e das atitudes de Mônica, verbalizando que “tudo o que ela faz é de
propósito, para me atacar” (sic). Falava insistente que “não tem condições de ficar
com Mônica”, negou-se a levá-la para psicoterapia e verbalizou que estava
entregando a filha e lavando as mãos. (...) A Sra. Lenice, em atitude de total
resistência, revelava-se irredutível e categórica, fechada a qualquer outra
possibilidade do que a devolução da filha e o abrigamento. Em nenhum momento
emocionou-se frente às dificuldades de nova institucionalização, mostrando-se fria e
distante da filha, de forma muito cruel verbalizou: - “O meu amor acabou” (sic).”
(fls. 09/10).
Ainda da referida avaliação psicológica se extrai a seguinte
passagem, igualmente digna de transcrição: “Estas pessoas não
conseguiram enfrentar o desafio e as dificuldades perante a criação da filha e a
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tornaram o 'bode espiatório' da família, como se Mônica fosse culpada pelos
problemas de saúde da mãe, pela condição financeira limitada do núcleo familiar,
pela falta de paciência do pai que trabalha muito para garantir a sobrevivência da
família e chega exausto, sem condição de compartilhar com a esposa dos cuidados
endereçados aos filhos”.
Não menos expressivo o depoimento da assistente social
Vera Lúcia, em juízo, sob o crivo do contraditório: “(...) o comportamento
da criança, para a depoente, era normal, os pais é que não estavam sabendo lidar
com a menor e davam preferência ao outro filho, fazendo inclusive comparações
inadequadas entre o comportamento dos filhos. (...) tanto a depoente quanto a
psicóloga deram várias orientações aos pais para que o convívio fosse normalizado,
porém perceberam que os pais não seguiam as orientações, como exemplo cita o fato
de que a criança Monica não possuía nenhum brinquedo enquanto seu irmão tinha
vários; fisicamente, a criança se apresentava mal vestida e mal cuidada.”
(fls. 77).
A conselheira tutelar Analiz da Cunha Goes afirmou que,
após uma denúncia de agressão, realizou visita à família, tendo
observado que ocorria rejeição a Mônica por parte dos pais adotivos:
“havia outro filho que os pais tratavam bem e passavam todos os problemas para a
criança Monica”
(fls. 78).
A psicóloga judiciária Mônica de Barros Rezende relatou
que “os adotantes não acataram as orientações a eles dadas pela depoente; o
adotante se mostrava mais próximo da criança do que a mãe adotiva, que parecia
fragilizada; descobriu no ano passado que a adotante não queria ter adotado
Monica, o desejo era do adotante e da mãe deste; (...) Monica teria sofrido rejeição
por conta da comparação com o irmão adotivo Derick, que seria um filho perfeito; o
casal tem visitado Monica no abrigo, e as visitas tem sido boas; (...) o abrigamento,
para o pai adotivo, teve conotação de castigo e de busca de uma forma de ajudar a
filha; para a mãe, foi como um alívio.”
(fls. 91).
Os depoimentos dos pais adotivos em Juízo são uniformes
em relatar o desagrado com o comportamento da filha, no entanto, a
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mãe não se arrepende de ter devolvido a filha ao Juízo, ao contrário
do pai, em parte arrependido, vendo ainda no abrigamento uma
forma de castigo para a filha, em função de seu comportamento (fls.
89/90).
Na avaliação da psicóloga do Juízo o mau comportamento
da menor demonstra problema reativo, como provável consequência
de um vazio emocional que sentia (fls. 91).
A decisão judicial concessiva da adoção não faz dos
adotantes, por si só, mãe e pai, respectivamente, porquanto na
esteira de percuciente magistério de MARIA HELENA DINIZ, “para sêlo é preciso: a) querer bem a prole, estando presente em todos os momentos; b) ser
o farol que a guia nas relações com o mundo; e c) constituir o porto firme que a
abriga nas crises emocionais e nas dificuldades da vida”.
E acrescenta: “O
importante, para o filho, é a comunhão material e espiritual; o respeito aos seus
direitos da personalidade e à sua dignidade como ser humano; o afeto; a
solidariedade; e a convivência familiar, para que se possa atingir seu pleno
desenvolvimento físico e psíquico, sua segurança emocional e sua realização
pessoal.”
(in Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito de Família,
vol. 5, 26ª ed., Editora Saraiva, pág. 540/541).
Definitivamente, o comportamento dos apelantes não se
amolda ao magistério supramencionado, antes permitindo entrever,
à luz do conjunto probatório coligido aos autos, a busca de uma
solução simplista para um problema inerente ao exercício do poder
parental voluntariamente assumido perante a menor ao adotá-la, em
total desrespeito para com seus direitos da personalidade, em
especial a dignidade, notadamente por se tratar de pessoa em fase
de desenvolvimento.
Percucientes, bem a propósito, as ponderações lançadas
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em v. aresto da lavra da MIN. NANCY ANDRIGHI, REsp nº
1106637/SP, j. 01/06/2010, DJe 01/07/2010:
“- Sob essa perspectiva, o cuidado, na lição de Leonardo Boff,
“representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e
envolvimento com o outro; entra na natureza e na constituição do ser
humano. O modo de ser cuidado revela de maneira concreta como é o
ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber
cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se,
definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com
cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo por
destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido
na linha da essência humana” (apud Pereira, Tânia da Silva. Op. cit. p.
58).
- Com fundamento na paternidade responsável, “o poder familiar é
instituído no interesse dos filhos e da família, não em proveito dos
genitores” e com base nessa premissa deve ser analisada sua
permanência ou destituição. Citando Laurent, “o poder do pai e da mãe
não é outra coisa senão proteção e direção” (Principes de Droit Civil
Français, 4/350), segundo as balizas do direito de cuidado a envolver a
criança e o adolescente.”
Conforme já alhures ponderado, a menor Mônica foi
adotada pelos apelantes ainda em tenra idade, de sorte que somente
àqueles há se atribuir seu mau comportamento e rebeldia, fruto do
indevido encaminhamento educacional recebido, em um ambiente
familiar
qualificado
por
dinâmica
inadequada,
resistente
à
compreensão e trato das dificuldades, tanto quanto à necessária
mobilização
no
sentido
de
buscar
solução
efetiva
para
os
comportamentos desviantes assim manifestados.
Na feliz expressão do D. Representante do Ministério
Público em primeiro grau, “Se Mônica era (ou é) de difícil trato, compete a
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ambos os representados a educação certa pela palavra e pelo diálogo construtivo,
não pelo gesto simplista de meramente entregar a menina para esse E. Juízo, como
se agora não mais lhes interessasse cuidar dela, já que é crescida”
(fls. 148).
Conclui-se, pois, plenamente caracterizada a infração
administrativa imputada (ECA, art. 249), porquanto os apelantes
descumpriram
cumprindo
as
os
deveres
inerentes
providências
ao
necessárias
poder
familiar,
para
a
não
adequada
assistência, proteção, educação e criação da filha adotiva.
Por fim, não há como se reduzir a penalidade aplicada,
pois fixada no mínimo legal, inexistindo previsão legal para a
substituição por advertência ou parcelamento da multa imposta.
Resultado do julgamento: Nega-se provimento ao apelo.
LUIS GANZERLA
Desembargador Relator
Presidente da Seção de Direito Público
(Assinatura eletrônica)
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