Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 Efeitos da regularização fundiária urbana Beatriz Kauduinski Cardoso Curso de Pós Graduação em Engenharia Civil – Dep. Engenharia Civil, UFSC, Brasil. E-mail:[email protected] Resumo: A segurança na posse para as famílias moradoras de assentamentos precários é um dos principais objetivos da regularização fundiária urbana, política pública que é compreendida como o conjunto de ações que integra a regularização urbanística, ambiental e jurídica, somando-se a estes aspectos, o trabalho social junto à comunidade e que deve culminar com a titulação da terra urbana. Entretanto, dependendo do contexto político, econômico e social e da visão dos agentes promotores desta política pública, outros efeitos podem ser objetivados com a regularização fundiária. Este artigo apresenta os efeitos possíveis da regularização fundiária, apontando aqueles positivos, esperados quando se planejam os projetos e também efeitos não esperados, de impacto negativo, que podem acontecer a partir da execução da política sem a observação de todos os seus requisitos essenciais. Palavras Chaves: regularização fundiária; habitação de interesse social; política habitacional. Effects of the urban land regularization Abstract: The land tenure security for the families that inhabit precarious settlements is one of the main objectives of the urban land regularization, public policy that is understood as the set of actions that compose the urbanistic, environmental and legal regularization, adding to those aspects the social work with the community that must culminate in the urban land titling. However, depending on the political, economic and social context, and the view of the promoting agents of this public policy, other effects may be objectified with the land regularization. This article presents these effects, the positive ones, expected when the projects are planned, and the unexpected ones, of negative effect, that may happen after the implementation of the public policy without the observation of all the essential requisites. Keywords: land regularization; social housing; housing policy. 1. INTRODUÇÃO Os assentamentos precários urbanos são desafio comum das grandes cidades, principalmente nos países em desenvolvimento.No Brasil, estudos do CEM/CEBRAP (2007) constatam a presença de assentamentos precários nas maioria das grandes e médias cidades brasileiras e informam um total de 3.165.086 domicílios (13%) e 12.415.831 pessoas (14,1% da população) nestes assentamentos no ano de 2000. A UN-HABITAT considera-se que em um assentamento precário os domicílios devem atender pelo menos a uma das cinco condições: status residencial inseguro; acesso inadequado à água potável; acesso inadequado a saneamento e infraestrutura em geral; baixa qualidade estrutural dos domicílios e adensamento excessivo. (UN-HABITAT, 2008, p. 23). Este estudo trata dos efeitos da regularização fundiária que caracteriza-se como um conjunto de ações jurídicas, urbanísticas, sociais e econômicas, executadas com vistas a conceder a titulação da terra aos moradores dos assentamentos precários. Apresenta-se inicialmente a regularização fundiária, sua conceituação e dimensões essenciais. Posteriormente, a partir do entendimento de que é importante reconhecer os impactos da regularização fundiária para o seu planejamento adequado, são apresentados os possíveis resultados desta política pública. São elencados os efeitos esperados na perspectiva de diversos autores e os observados nas experiências catarinenses que são objeto de estudo, sendo apontados efeitos positivos, planejados e esperados, bem como, alguns efeitos não planejados, geralmente de impacto negativo. Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 2. MÉTODO O trabalho é construído a partir de pesquisa bibliográfica, do estudo de caso de projetos de regularização fundiária em Santa Catarina e também subsidiado pela experiência profissional da autora na Caixa Econômica Federal. No estudo de caso foram estudadas as experiências dos projetos “Chico Mendes”, em Florianópolis, “Morar Bem”, em São José, e “Jaraguá 84”, em Jaraguá do Sul. Foram adotadas as seguintes técnicas de coleta de dados : a) Análise documental por meio de um roteiro básico de consulta aos dossiês dos projetos acompanhados pela Caixa Econômica Federal ; b) 06 (seis) questionários aplicados a técnicos da Caixa Econômica Federal, envolvidos com a aprovação e o acompanhamento das operações; c) 06 (seis) questionários aplicados a técnicos e gestores municipais; d) 84 (oitenta e quatro|) questionários aplicados aos moradores dos assentamentos beneficiados e e) Observação direta de fatos evidenciados nos projetos. A observação direta ocorreu principalmente durante a atividade profissional, na coordenação dos projetos na Caixa Econômica Federal, mediante participação ativa nos processos de aprovação e acompanhamento dos projetos integrados de 2000 a 2006 e também, durante a aplicação dos questionários aos beneficiários finais cujas pesquisas de campo aconteceram nos meses de maio e junho de 2009. 3. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PLENA No Brasil, a regularização fundiária vem, ao longo do tempo, assumindo conceitos diferentes e mais abrangentes, sofrendo uma evolução em sua compreensão enquanto política pública. Mais do que simplesmente regularizar o terreno para determinados fins, em seu sentido mais original, atualmente ela abrange diferentes dimensões. Minnicelli (2008) ao efetuar retrospectiva sobre a evolução da regularização fundiária nos lembra que a regularização fundiária no seu início tinha objetivos diferentes dos de hoje, focando principalmente as questões urbanísticas sem considerar questões jurídicas, sociais e ambientais. ... em seu primórdio a hoje chamada regularização fundiária nada mais era do que erradicar (ou remover) favelas ou conformar a uma determinada área da cidade (a favela) a um mínimo de urbanismo que a cidade já observava. Daí o nome urbanização de favelas. Consistia em dar a estas áreas um aspecto mais regrado, obediente, aformoseado. As demais preocupações (especialmente segurança na posse e a questão ambiental) não estavam presentes. (MINNICELLI, 2008, p. 18). Com as experiências passadas revelou-se que a simples urbanização ou somente a titulação não solucionavam os problemas dos assentamentos precários e foram sendo incorporadas outras dimensões, imprescindíveis à regularização fundiária, considerada em toda a sua plenitude, incorporando todos os aspectos que lhe são necessários: o ambiental, o econômico e o social. Para levar cidadania à população moradora de assentamentos precários e os direitos que lhes são garantidos, recomenda-se que os programas de regularização sejam articulados, construídos a partir de diagnósticos integrados quanto aos aspectos urbanísticos, ambientais, econômicos, sociais e jurídicos. Importa dizer que as propostas devem também contemplar estas dimensões. Além da regularização plena, recomenda-se que a regularização fundiária seja sustentável, o que significa que a solução da regularização fundiária dos assentamentos precários não pode vir sozinha, isolada das demais políticas e sem planejamento sistêmico, sob pena de se reproduzirem as mesmas desigualdades, a exclusão social e a perpetuação da ilegalidade. Não adianta executar os programas de regularização, legalizar os lotes, dar casas novas, se a população pobre continuar excluída da cidade, não ter acesso ao trabalho e ao desenvolvimento econômico. É necessário que os moradores dos assentamentos tenham opções de interagir com a cidade ‘legal’ seja para o trabalho, a educação ou o lazer. É imprescindível que a comunidade receba investimentos vindos de outras localidades e se inclua na cidade ao mesmo tempo em que a cidade é trazida para a comunidade, numa via de mão dupla, com benefícios a ambas. Além disso, orienta-se que estes programas façam parte da política habitacional e sejam articulados com os demais planos setoriais como por exemplo, planos de saneamento e mobilidade urbana. Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 Considerando-se que uma das principais causas da precariedade de moradia urbana é a escassez de terra aceessível à população de baixa renda, não adianta regularizar um assentamento precário, dar-lhe toda condição urbanística e legal se o município não tem uma política habitacional adequada e preventiva, que busque a ampliação do acesso ao solo urbano, permitindo a construção de moradia digna aos pobres urbanos. Por esta razão, a regularização fundiária deve ser planejada já na construção ou revisão do Plano Diretor cujo conteúdo deve contemplar os instrumentos de ampliação de acesso à terra como as Zonas Especiais de Interesse Social; o direito de preempção e as operações urbanas consorciadas, dentre outros. Entende-se que a regularização fundiária é sustentável quando permite que os beneficiários mantenhamse na condição da melhoria recebida, propiciada por meio de ações sociais que promovam a integração do assentamento na cidade legal e seu desenvolvimento econômico ou por meio de medidas preventivas, de planejamento e gestão, levadas a cabo pelo Poder Público, no sentido de promover o acesso à terra urbana para todos. A regularização fundiária será plena e sustentável a partir do momento em que contemple todas as dimensões que lhe são essenciais (econômica, ambiental, social) e que esteja inclusa nos instrumentos de planejamento do Poder Público, que devem prever mecanismos de contenção da pressão do mercado imobiliário, políticas habitacionais preventivas que ampliem o acesso à terra e políticas sociais de estímulo à geração de emprego e renda. 3. OS EFEITOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Após a decisão por um projeto de regularização fundiária, alguns objetivos são postos ao seu planejamento e estes podem variar conforme as motivações de tal decisão: se fruto de uma política habitacional estabelecida; de demandas judiciais; de pressão popular; interesses e preferências políticas diversas e adversas ou até mesmo, de grandes reestruturações urbanas promovidas pelo poder público. A partir da revisão bibliográfica, pode-se dizer que em prevalecem duas correntes defensoras das ações de regularização fundiária: uma na linha dos direitos humanos, que a entende como capaz de evitar os despejos forçados e garantir o direito fundamental à moradia e outra, no sentido do crescimento e desenvolvimento econômico, que compreende a regularização fundiária como uma forma de fazer circular o capital e os investimentos existentes nos assentamentos precários, da mesma forma que na “cidade legal”. Assim existem duas posições principais: aquela das instituições de finanças internacionais que dão ênfase a integração dos mercados informais dentro na economia formal e a outra que dá ênfase à integração social e econômica de favelas e assentamentos informais. Sob outro enfoque, quanto aos seus resultados, propõe-se distinguir os efeitos da regularização fundiária em duas categorias: efeitos de caráter positivo – que são previstos no planejamento das ações de regularização e também de cunho negativo, não planejados mas incidentes em algumas experiências. 3.1 Efeitos positivos Na perspectiva dos direitos humanos, destaca-se a UN-HABITAT e os organismos de defesa dos direitos humanos internacionais que afirmam que a regularização dos assentamentos precários é uma das formas de resolver parte da problemática que envolve a carência de moradia e também um meio utilizado para evitar os despejos forçados. Saule; Uzzo; Cardoso (2002), também na perspectiva humanitária, compreendem a regularização fundiária como um importante instrumento de política pública, que deve ser promovida para assegurar o uso e a ocupação do solo adequados às necessidades de moradia digna dos moradores; para combater a desigualdade social e melhorar as condições de vida da população dos assentamentos precários. Destaca-se que o ente municipal é chamado à responsabilidade pela execução da regularização fundiária, não como uma prerrogativa, mas como uma imposição legal e humanitária, dada a realidade preocupante dos assentamentos precários em nossas cidades. Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 Durand Lasserve e Selod (2007) em outra perspectiva que reúne tanto objetivos humanitários quanto econômicos, apontam dois principais canais pelos quais a regularização fundiária pode causar impactos sócio-econômicos: um que diz respeito ao aumento das oportunidades de trabalho e o outro relativo à melhoria de suas moradias haja vista que há mais probabilidade de se investir em um imóvel formalizado. Com relação às oportunidades de trabalho, argumenta-se que nas casas com posse insegura, os adultos têm que dedicar muito tempo a cuidar das suas casas com medo de perdê-las durante uma ausência. Isto reduz automaticamente a quantia de tempo disponível para o trabalho. Como os adultos têm uma vantagem competitiva para garantir a segurança de casa, a posse insegura pode ser um incentivo para que as crianças tenham que trabalhar. Neste contexto, um aumento em segurança de posse deveria resultar no benefício de reduzir o trabalho infantil e permitir que os adultos trabalhem fora de suas casas onde a remuneração tende a ser maior do que o trabalho na própria casa. No que diz respeito à melhoria das casas, espera-se que ao diminuírem-se as probabilidades de despejo, as pessoas tenham mais incentivo para investirem em suas próprias casas e este fato pode ter um efeito cíclico, podendo ser fator de redução da pobreza por meio de mecanismos tais como: a) maior oportunidade de poupança por terem uma casa própria; b) melhora do ambiente da casa com reflexos na saúde da família e na educação das crianças; c) demonstração de externalidades positivas aos vizinhos que podem também serem influenciados a melhorarem suas próprias casas; d) maiores investimentos nas atividades profissionais realizadas na própria casa haja vista a maior segurança na posse. Conforme ensina Fernandes (2003), o título da terra é importante quando há conflitos de propriedade, domésticos, familiares, de direito de vizinhança. Também para reconhecer direitos sócio-políticos e para garantir que os ocupantes possam permanecer nas áreas sem risco de expulsão pela ação do mercado imobiliário, por mudanças políticas que quebrem o pacto sócio-político gerador de percepção de segurança de posse, ou pela pressão do crime organizado, como tem acontecido em diversas favelas. Salles (2007) considera que a intensificação das áreas irregulares, desequilibra as cidades, tornando-as mais injustas e desiguais, na medida em que impedem que os investimentos circulem de forma justa e igual por toda a cidade e, ao defender a regularização fundiária como um componente de auxílio a uma cidade mais organizada e equilibrada, nos diz que o tecido social, com a regularização do imóvel, passa a ser oxigenado economicamente por micro-investimentos, que produzem pela grande dimensão e extensão, macro resultados para a cidade. Os destaques anteriores abordam a regularização fundiária como elemento importante no combate ao déficit de moradia, direito humano fundamental, assegurado pelos tratados e convenções internacionais e pela Constituição Brasileira. Na vertente econômica, e em outra abordagem, prevalece a visão de De Soto (2001) que considera que casas em terras sem titulação constituem um ‘capital morto’ pois os ativos não podem se transformar em capital, nem ser trocados fora do círculo restrito das próprias comunidades. O autor dfende que a propriedade formal converte o potencial econômico de uma casa em capital e propicia a utilização dos imóveis como um ativo financeiro importante, disponível para alavancar recursos com vistas a melhorar condições de renda e trabalho e ainda servir de garantia a empréstimos e financiamentos. O autor elenca seis efeitos produzidos pela propriedade: a) A fixação do potencial econômico dos ativos, na medida em que a escritura representa potencial de produzir valor como, por exemplo, quando serve de garantia a empréstimos; b) A integração das informações dispersas em um único sistema formal de propriedade; c) O aumento da responsabilização das pessoas na medida em que os cidadãos com títulos passam a respeitar títulos, honrar contratos e obedecer a lei; d) A transformação de ativos em bens fungíveis, pois títulos podem ser combinados com facilidade, divididos, mobilizados e utilizados para estimular o fechamento de negócios; e) Integração das pessoas, haja vista que um sistema formal de propriedade seria o centro de uma rede complexa de conexões que daria condições aos cidadãos comuns formarem vínculos com o governo e com o setor privado; Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 f) A proteção das transações de imóveis por meio dos registros de propriedade em arquivos de cartórios e instituições afins. Observa-se neste entendimento a predominância da visão econômica, que não se importa com as causas humanitárias mas tão somente com os impactos financeiros das medidas de regularização. Fernandes (2003) que é um dos maiores defensores das ações de regularização fundiária no Brasil como solução para o problema da falta de moradia, apresenta uma leitura crítica das idéias de De Soto. Embora considere a importância das mesmas, orienta que devam ser recebidas com cautela. Os principais argumentos do autor em sua crítica são: - o não reconhecimento de que os pobres, mesmo antes de terem a regularização de sua terra acumulam patrimônio por meio de crédito, ainda que não formal, investindo em suas residências e seus negócios; - a não evidência do quanto de crédito os bancos estariam dispostos a oferecer aos pobres após um programa massivo de regularização fundiária; - estudos que avaliaram as experiências inspiradas em De Soto no Peru, México e El Salvador e que contestam a sustentabilidade urbanística e sócio-ambiental dos assentamentos; - a hipótese de que as legalizações inspiradas no autor, não estariam beneficiando os grupos pobres, mas sim, os grupos econômicos privados ligados ao desenvolvimento da terra urbana, que estariam tirando proveito do investimento público na urbanização destas áreas, geralmente bem localizadas e atraentes; - a não preocupação do autor em identificar e compreender os fatores que provocam o fenômeno da ilegalidade urbana, uma necessidade para o enfrentamento deste problema. Neste debate, alguns críticos consideram que a regularização fundiária somente é estimulada porque seria uma forma de fazer com que os pobres tornem-se aptos a oferecerem garantias e conseqüentemente passarem a ser potenciais tomadores de crédito dos bancos e agências de crédito internacionais, bem como para remover os obstáculos à circulação do capital imobiliário internacional, ou seja, a lógica de incentivo à política da regularização fundiária seria puramente capitalista. Da mesma forma, em alguns lugares as ações de regularização fundiária podem ter objetivos puramente estéticos, buscando o embelezamento das cidades e levando seus moradores para periferias onde não são tão “visíveis”, o que seria um empecilho para as chamadas “cidades mercadoria”. Um efeito de caráter econômico bastante defendido e que pode trazer também benefícios sociais, é a possibilidade de ofertar os imóveis em garantia aumentando as oportunidades de obtenção de crédito; maiores investimentos em infraestrutura nos assentamentos precários; correção das distorções no mercado de terras e empoderamento das comunidades vulneráveis e de seus indivíduos. Com relação à possibilidade de ofertar os imóveis em garantia, este fator tem especial importância para os agentes financeiros que operam com o crédito imobiliário já que os imóveis irregulares não são aceitos como garantia de financiamento e a exigência de garantia real nos financiamentos habitacionais constitui uma barreira para o acesso à moradia por milhares de famílias brasileiras. A regularização da terra retiraria esta limitação propiciando o número de financiamentos, beneficiando a população por meio da ampliação do número de atendidos, especialmente aqueles com uma menor faixa de renda familiar. No que diz respeito a maiores investimentos em infraestrutura nos assentamentos precários é esperado que isto aconteça porque eles passam a ser mais atrativos para investimentos privados e públicos já que fazem dos investimentos mais seguros e permitem uma melhor recuperação do serviço prestado como por exemplo: redes de telefonia, energia e fornecimento de água tratada. A própria identificação dos logradouros também facilita estes investimentos possibilitando um endereço aos seus moradores para o cadastro e as cobranças devidas. A regularização fundiária pode corrigir as distorções do mercado de terras na medida em que permite transações mais seguras e, portanto, mais valorizadas. Também integra os assentamentos informais dentro de um mercado formal unificado colocando estas áreas no mercado de terras da cidade toda, permitindo uma nova distribuição de tipologias na cidade. (DURAND LASSERVE E SELOD, 2007) Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 Com relação ao empoderamento da população, espera-se que aconteça quando livra os moradores da dependência de alguns agentes que se beneficiam da perpetuação da informalidade como os pertencentes ao tráfico de drogas e até mesmo funcionários de governos locais que se envolvem em mercado paralelo de terras. Em outras palavras, estes moradores teriam maior liberdade e passariam a exercer sua cidadania de forma plena. Todos estes efeitos podem ser observados com maior ou menor incidência dependendo da realidade, origem, história, cultura ou situação sócio-política de cada assentamento precário. São variáveis, principalmente, conforme as intenções de cada agente proponente, suas motivações e condições institucionais para a regularização. 3.2 Efeitos não planejados e de impacto negativo Embora sejam esperados somente efeitos positivos, paradoxalmente são observadas situações em que a regularização fundiária pode aumentar a insegurança na posse ao invés de garanti-la. Rosa (2007) constatou a insegurança trazida pelo projeto Chico Mendes, em Florianópolis. A autora verificou que os moradores que receberam casa, não estavam dispostos a pagar tanto tempo por ela, e sentiam-se inseguros em assumir o pagamento. A maior preocupação dos moradores, era em relação ao pagamento do imóvel e a situação do terreno. Famílias que tinham abrigo, mesmo que sem todas as condições adequadas, passaram a ter uma moradia mais adequada, mas também uma dívida, que as deixa inseguras: ... As regras colocadas pelo projeto de habitação em que as negociações de compra, venda e aluguel da casa devem passar pelo consentimento da Prefeitura garantem a esta um controle sobre as pessoas, mas não agrada aos moradores que mantém uma relação de dependência e se sentem desconfortáveis com a idéia de morarem em uma casa da qual não são donos. (ROSA, 2007, p. 107). Grifos nossos Durand-Lasserve e Selod (2007) em estudo sobre a segurança na posse nos países em desenvolvimento também identificam esta ambigüidade e alertam que a titulação na posse pode ter efeito contrário e ao invés de aumentar a segurança na posse, pode diminuí-la. Citam como exemplos desta situação: a) O despejo de inquilinos, normalmente o mais pobres entre os urbanos pobres, que não suportam a elevação do aluguel de um imóvel formalizado; b) Aqueles que recentemente formalizaram suas casas e que podem concordar em vender a propriedade deles em condições adversas, pois o poder de pechincha entre o dono do imóvel regularizado e o investidor é desequilibrado; c) Quando a regularização é executada com diferentes arranjos ocasionando conflitos. Por exemplo, quando se concede títulos de propriedade para áreas que não podem acomodar famílias extensas ou somente para um determinado grupo, a titulação pode dividir a população em dois grupos: casas com e casas sem direitos de terra. Smolka (2003, p. 275), da mesma forma, alerta para os efeitos imprevistos não antecipados e indesejáveis da regularização fundiária. Cita o aumento do preço de loteamentos ante a simples perspectiva da regularização: “... como em qualquer outro segmento do mercado de terras, os valores presentes refletem e incorporam as expectativas de uso futuro do terreno”. O autor lembra também que a perspectiva de regularização pode ser um atrativo para a irregularidade na medida em que há evidências que apontam para a chegada da população aos assentamentos precários, justamente no período em que os assentamentos são objeto de algum programa de regularização ou então antecedem os períodos eleitorais de candidatos cuja plataforma contempla a regularização fundiária. Fernandes (2003) nos alerta para a faceta perversa de alguns do programas de regularização implementados somente para reconhecimento dos direitos de propriedade. Para ele, os programas devem prever a integração sócio espacial dos assentamentos e serem formulados de acordo com políticas socioeconômicas compreensivas pois caso contrário, ...os programas podem ter efeitos indesejados, trazendo novos encargos para os ocupantes, tendo impacto pouco significativo na redução da pobreza urbana e o que é ainda mais importante, reforçando diretamente o conjunto de forças econômicas e políticas que tem tradicionalmente causado a exclusão social e a segregação espacial. (FERNANDES, 2003, p 187) Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 Verifica-se que vários efeitos negativos podem ocorrer principalmente naqueles projetos em que a regularização fundiária não é realizada de forma plena e sustentável, considerando todas as dimensões necessárias ao alcance de seus objetivos. Por isso, é recomendável avaliar as possibilidades de ocorrência destes efeitos negativos para que medidas mitigadoras sejam planejadas durante a concepção dos projetos. 3.3 Síntese dos efeitos esperados A partir das considerações anteriores e com vistas a dar maior clareza quanto aos resultados possíveis de serem obtidos com a regularização fundiária, apresenta-se a seguinte síntese dos efeitos da regularização fundiária: Efeitos positivos de caráter humanitário ou de direitos Efeitos positivos de caráter econômico ou funcional Efeitos negativos e não planejados Efeitos esperados da Regularização Fundiária Segurança na posse Abrigo em si Melhoria no ambiente da casa: melhores condições de saúde e educação Mais investimento nas habitações Redução do trabalho infantil Maiores oportunidades de trabalho Micro-investimentos e pequenos negócios Existência de um endereço Resgate da dignidade e auto-estima Redução dos conflitos de propriedade, de famílias e com a vizinhança Interação e inserção na cidade ‘formal’ Maior acesso aos serviços básicos Empoderamento da população e comunidades Reconhecimento dos direitos sócio-políticos Diminuição da violência Mais acesso ao crédito Imóvel como garantia para financiamentos Maior circulação de bens e serviços comerciais Crescimento da economia/redução do desemprego Maior volume de crédito nas Instituições Financeiras Maior circulação de capital Integração de informações da propriedade Maiores possibilidades de transferências dos imóveis Mais segurança nas transações de propriedades Melhor estética da cidade Maior sentimento de responsabilidade cidadã no sentido de cumprimento de contratos. Aumento da insegurança na posse pelas dívidas assumidas Expulsão para locais menos desejáveis pelo aumento do custo do imóvel Gentrificação Maior dependência do poder público Expulsão de inquilinos pelo aumento dos alugueis Vendas dos imóveis a preços vil ou em condições adversas Aumento dos conflitos de vizinhança Aumento da violência pelos conflitos entre comunidades de origens diferentes Aumento do preço da terra ante a expectativa de regularização Tabela 1 – Síntese dos efeitos da regularização fundiária Fonte: elaboração da autora, 2010. Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 4. EFEITOS VERIFICADOS EM EXPERIÊNCIAS DE SANTA CATARINA Alguns dos efeitos apresentados foram verificados nas experiências estudadas, inclusive efeitos de caráter negativo e contraditórios à política de regularização fundiária. Contrariamente ao esperado verifica-se que a situação de insegurança é presente para as famílias beneficiadas, já que todas assumiram contratos que prevêem a titulação definitiva após os pagamentos avençados em contratos e estes não vem ocorrendo. Em Florianópolis a maioria não efetua os pagamentos sendo que 41% disse não receber o carnê. Em São José a prefeitura ainda não iniciou a cobrança já decorridos 3 anos da entrega das casas e em Jaraguá foram relatadas ameaças de despejo por falta de pagamento. Embora não se tenha nenhum consenso sobre o que seria um indicador bom de segurança de posse já que o fator é subjetivo, as respostas dos moradores em pesquisa de campo indicam uma piora quanto à segurança na posse, pois, a maioria afirma que antes do projeto não tinha medo de ser despejado, fato que agora é mais presente pela existência da dívida. Constata-se que 58% dos moradores em Florianópolis, 35% em São José e 43% em Jaraguá gostariam de ter a escritura da casa para “sentirem-se donos” ou para “ter garantia” demonstrando que não se sentem como legítimos donos. Nos município de Florianópolis a municipalidade trata os moradores dos assentamento regularizado, que não estão em dia com os pagamentos como “irregulares” . Assim, é possível afirmar que nas comunidades estudadas, o principal efeito esperado da regularização fundiária, a segurança na posse, ainda não é uma concretização. Instrumentos de titulação precários que impõem condições punitivas em caso de inadimplemento e a possibilidade de retomada do imóvel em caso de descumprimento contratual mantiveram e até mesmo podem ter aumentado a insegurança na posse. O sentimento dos moradores é de que a casa não pertence a eles apesar da maioria já terem este direito garantido pela legislação antes dos projetos, por meio de instrumentos como a Concessão Urbana Especial para Moradia(CUEM), mais recentemente, a Legitimação na Posse da Lei 11.977/2009. Observa-se nos três projetos que as motivações são mais de caráter econômico do que propriamente humanitário já que houve preocupação excessiva de todos os projetos em recuperar os custos em detrimento da segurança na posse. Também durante o desenvolvimento dos projetos, foram priorizadas ações urbanísticas em detrimento das sociais, ambientais e jurídicas que custaram a acontecer. Os gestores tiveram preocupação em executar as obras, mais visíveis e por isso, mais interessantes do ponto de vista eleitoral. Também durante as manifestações em reuniões e visitas às obras, os progressos exaltados eram aqueles relativos à nova estética do assentamento numa preocupação clara com o embelezamento da cidade. Apesar do efeito extremamente paradoxal e negativo, foram observados efeitos positivos, principalmente aqueles relacionados às melhorias físicas, que foram objeto de aprovação da população em todos os três projetos. Observou-se uma maior inserção da comunidade à cidade e também uma interação maior da cidade com as áreas beneficiadas. Em Jaraguá do Sul, por exemplo, o aspecto mais citado foi a facilidade de acesso. (FIGURAS 1 e 2) Figuras 01 e 02 - Casas construídas no Projeto Jaraguá 84 e acesso ao bairro Fonte: Fotografias de Beatriz Kauduinski Cardoso, 2009 Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 A violência reduziu substancialmente no projeto de Florianópolis, mas em Jaraguá do Sul o efeito foi contrário, tendo aumentado as condições de violência e os conflitos de vizinhança, principalmente pelo fato de terem sido inseridas algumas famílias de outras comunidades no projeto. Outro efeito contatado foi a satisfação com a obtenção de endereço, principalmente em Florianópolis e Jaraguá do Sul onde havia dificuldade de receber correspondências, indicar endereço para crediário, para recebimento de compras e para entrevistas de trabalho. Também se observa como efeito positivo da regularização, a disposição em efetuar investimentos nos imóveis pois a maioria dos moradores aumentaram ou reformaram suas casas, além de terem feito compra de novos móveis. Em São José as melhorias são facilitadas pela previsão de ampliação no projeto arquitetônico (FIGURAS 03 e 04) e em Florianópolis, estas melhorias são dificultadas pela impossibilidade de ampliação e pouco terreno disponível. Figura 03 - Melhorias no loteamento Morar Bem Figura 04 - Via principal do loteamento Morar Bem Fonte: Fotografias de Beatriz Kauduinski Cardoso, 2009 Alguns efeitos econômico-financeiros como aumento da renda, das oportunidades de trabalho, acesso ao crédito não puderam ser confirmados por falta de parâmetros anteriores e também pelo fato de basearemse somente na percepção dos moradores. No entanto verifica-se acréscimo de patrimônio dos moradores pois as casas recebidas têm valor superior à que possuíam, além de terem sofrido valorização sgnificativa. Em São José a prefeitura construiu as casas por R$ 7.800,00 e passados apenas 3 anos, os valores de venda giram em torno de R$ 30.000,00. Um efeito extremamente negativo foi o fato de ter ocorrido várias transferências e vendas a terceiros em condições adversas. O acréscimo de patrimônio nem sempre reverteu para os beneficiários originais, mas sim para terceiros, que adquiriram os imóveis depois da entrega das casas. No início das mudanças, moradores do assentamento Morar Bem vendiam por preços módicos por conta do medo da violência, gerada pelo fato de terem sido reunidas num só local, duas comunidades distintas, consideradas “rivais” pelos moradores. Em Florianópolis (FIGURA 05 e 06) a principal característica observada é a inserção na cidade e a redução da violência e em São José o maior benefício foi o acesso facilitado aos serviços e ao restante da cidade . Figura 06 - Casas construídas Chico Mendes Figura 06 – Infraestrutura Chico Mendes Fotografias de João Maria Lopes, dez.2006 Porto Alegre, de 04 a 07 de maio de 2010 Apesar do fatores negativos apontados, nos três projetos identifica-se a aprovação pelo projeto e pelas obras de urbanização. As pessoas mostram-se satisfeitas com a solução apresentada e reconhecem que o projeto trouxe-lhes o sentimento de mais valorização e cidadania. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com as motivações, do contexto político, do tipo de formalização de posse adotado, da condição do assentamento precário e da condução do projeto durante sua execução, os efeitos planejados para a regularização fundiária podem ou não acontecer. Por outro lado, efeitos não esperados e, por vezes, de impacto negativo para famílias e sociedade, podem surgir na execução e na pós-ocupação destes projetos. Nos projetos estudados não havia clareza quanto aos efeitos que se esperava pois a segurança na posse não foi planejada. Se assim fosse, as condições contratuais estabelecidas seriam outras, que privilegiassem a segurança na posse. É importante ter clareza do que se objetiva com a regularização para que os efeitos positivos sejam adequadamente planejados na concepção dos projetos. Também é imprescindível reconhecer possíveis efeitos de cunho negativo para que medidas mitigadoras sejam adotadas. O reconhecimento dos efeitos possíveis constitui-se de fundamental importância para aqueles que planejam a regularização fundiária, instrumento primordial na gestão das cidades, elemento de garantia dos direitos humanos, assim como, componente de crescimento e desenvolvimento econômico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CARDOSO, Patrícia de Menezes; SAULE JR, Nelson; UZZO, Karina. Administração Municipal. In: Regularização da Terra e Moradia. O que é e como implementar. São Paulo. Instituto Polis, 2002. CARDOSO, Beatriz kauduinski. Efeitos da regularização fundiária: estudo de caso em assentamentos precários de Santa Catarina. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Programa de Pós Graduação em Engenharia Civil. Área de Concentração: Cadastro Técnico Multifinalitário e Gestão Territorial. Florianópolis, 2010. CENTRO DE ESTUDOS DA METRÓPOLE–CEBRAP. Ministério das cidades. Assentamentos precários no Brasil urbano. Brasília: CEBRAP, 2007. 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