“VOZES” DO CIRCUITO INFERIOR DA ECONOMIA URBANA1 Fernando Antonio da Silva23 Resumo A política brasileira de transferência direta de renda torna-se, hoje, um dos principais fatores de reconfiguração da pobreza urbana em pequenos municípios pobres das regiões Norte e Nordeste. Este artigo objetiva introduzir na análise dos repasses monetários às famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família uma perspectiva que vê de forma integrada os pobres e as atividades urbanas a que estes recorrem para trabalhar e/ou para consumir. Palavras-chave: Programa Bolsa Família e circuito inferior. 1. Introdução Este artigo apresenta resultados parciais de nossa pesquisa de mestrado em geografia, ora em andamento, desenvolvida na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. A pesquisa busca avaliar as transformações provocadas pelas transferências monetárias às famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família - PBF na pobreza urbana da região canavieira do Estado de Alagoas, a partir da teoria dos dois circuitos da economia urbana proposta por Milton Santos (2008 [1979]). Neste início do século XXI, a transferência direta de renda no Brasil, que tem o PBF como política central, torna-se um dos principais fatores de reconfiguração da pobreza urbana em pequenos municípios pobres das regiões Norte e Nordeste. Esta política encerrou o ano de 2013 com pouco mais de 14 milhões de famílias 1 O título do trabalho remete ao livro de Rego e Pinzani (2013). Das diversas análises recentes que foram produzidas sobre o Programa Bolsa Família, este livro se destacou por trazer relatos de mulheres beneficiárias do Programa nas regiões mais pobres do Brasil, buscando interpretá-los a partir do conceito de autonomia. Daí o título do livro: “Vozes do Bolsa Família”. Como disseram os próprios autores em debate sobre o livro realizado em setembro de 2013 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, há muitas transformações provocadas pelo Programa Bolsa Família que não se deixam revelar pelos números, mas apenas numa abordagem que privilegie a fala dos próprios beneficiários. 2 Mestrando em geografia da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Email: [email protected] 3 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. beneficiárias, com destaque para os estados do Maranhão, Piauí e Alagoas onde mais de 50% das famílias recebem recursos do Programa (MDS, 2013). A proposta que trazemos para o debate objetiva introduzir na análise dos repasses monetários às famílias beneficiárias do PBF uma perspectiva que vê de forma integrada os pobres e as atividades urbanas a que estes recorrem para trabalhar e/ou para consumir. Dessa forma, os beneficiários das transferências estão inseridos no circuito inferior da economia urbana (SANTOS, 2008 [1978]). Para tanto, analisamos, em três cidades do interior do Estado de Alagoas, as formas de trabalho de chefes de família beneficiários do PBF; o tempo de permanência das famílias no Programa; e, de forma mais destacada, as falas de titulares do cartão do PBF sobre o que mudou nas despesas da família após começar a receber estes recursos e de proprietários de atividades da economia da pobreza sobre o que mudou na atividade após o Programa. Além desta introdução, o artigo está dividido em mais quatro itens. Primeiramente apresentamos a metodologia adotada no trabalho. Em seguida, discutimos o PBF e a possibilidade de análise das transferências monetárias às famílias deste Programa a partir da teoria dos dois circuitos da economia urbana. A base para esta proposição é apresentada no item 4, onde analisamos as formas de trabalho dos chefes de família beneficiários do PBF; relatos das mulheres titulares do cartão do PBF sobre o que mudou nas despesas da família após começar a receber recursos do Programa; e relatos de proprietários de atividades da economia pobre sobre o que mudou na atividade após o Programa Bolsa Família. Por fim, as considerações finais sintetizam e fecham parcialmente as argumentações apresentas no decorrer do artigo. 2. Metodologia Para a realização deste trabalho fizemos, primeiramente, uma atualização bibliográfica sobre a teoria dos dois circuitos da economia urbana de Milton Santos, desenvolvida na década de 1970 (2008 [1979]), e sobre a política brasileira recente de transferência direta de renda, com foco no PBF. Depois, levantamos dados secundários e primários sobre os beneficiários do PBF das cidades que estamos pesquisando: Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos. Quanto aos dados primários, aplicamos um total de 156 questionários entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014, diretamente aos titulares do cartão do PBF, distribuídos da seguinte forma: 30 em Porto Calvo, 66 em União dos Palmares e 60 em São Miguel dos Campos, apenas com moradores da cidade. Paralelamente, aplicamos também um total de 201 questionários para as atividades econômicas aqui entendidas como constituintes do circuito inferior da economia urbana, assim distribuídos: 39 em Porto Calvo, 80 em União dos Palmares e 82 em São Miguel dos Campos. Sobre o levantamento de dados primários é preciso destacar dois aspectos. O primeiro diz respeito à escolha das cidades para pesquisa. Esta foi feita a partir não só de levantamentos de dados secundários sobre o número de beneficiários do PBF, objeto central da pesquisa, mas também com base em ampla revisão bibliográfica sobre a urbanização em Alagoas que naturalmente não é apresentada neste artigo. O segundo aspecto é que a maior parte dos dados levantados nos questionários, naturalmente, não é trazida para a discussão no momento, mas corrobora com as afirmações feitas ao longo do texto. 3. O Programa Bolsa Família e a teoria dos dois circuitos da economia urbana As propostas para Programas de Transferência de Renda, entendidos como “[...] aqueles destinados a efetuar uma transferência monetária, independentemente de prévia contribuição [...]” (SILVA E SILVA; YASBEK; DI GIOVANNI, 2006, p. 131), são antigas na história do capitalismo, porém foram retomadas no período da globalização com diferentes conteúdos e embasamentos teóricos. Conforme Draibe (1997, pp. 7-8), a forma como essas propostas são retomadas é diferente para a situação dos países centrais em relação aos países periféricos. Nos primeiros, com a precarização das relações de trabalho, “[...] em meio ao agressivo ataque neoliberal ao Welfare State, a porta de entrada foi a temática da sociedade salarial [...]”, ou seja, em meio ao crescente desemprego esses Programas passaram a ser apontados como alternativa de renda; nos países periféricos, que já conviviam com imensas desigualdades antes da globalização, “[...] o tema adentrou o debate pela porta de acesso de programas de combate à pobreza”. No Brasil, este tipo de proposta aparece, concretamente, no contexto da década de 1990. Considerando os diversos Programas de Transferência de Renda que foram implantados no país desde então, podemos dizer que o PBF – criado pela medida provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003, convertida na Lei 10. 836, de 10 de janeiro de 2004 - é a política mais bem sucedida, em termos de continuidade, capilaridade no território (está presente em todos os 5.570 municípios e no Distrito Federal) e regularidade dos repasses monetários às famílias beneficiárias. Por isso, este Programa vem sendo objeto de atenção e análise de diferentes cientistas, instituições, organizações nacionais e internacionais e do próprio Governo Federal4. De acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS (BRASIL, 2006), o PBF está fundamentado em três eixos: diminuição imediata da pobreza através das transferências monetárias; reforço do acesso aos serviços de saúde e de educação por meio das condicionalidades, o que contribuiria para romper o chamado ciclo intergeracional da pobreza; e ações complementares a serem desenvolvidas pelas três esferas do governo e pela sociedade no intuito de auxiliarem as famílias a superarem a situação de pobreza. Assim, um dos eixos principais do PBF é a transferência monetária às famílias consideradas em situação de extrema pobreza e de pobreza pelo critério da renda. Desde 2003, tanto a renda definidora da pobreza extrema como da pobreza têm mudado sem critérios muito claros, da mesma forma que a atualização dos valores do benefício5. Além disso, novos benefícios têm sido criados. Segundo os critérios do Programa, o valor máximo que uma família poderia receber em 2003 era de R$ 95,00, ano em que a renda domiciliar per capita definidora da extrema pobreza era de R$ 50,00 e de R$100,00 para pobreza. Estes valores evoluíram, respectivamente, para R$ 70,00 e R$ 140,00 em 2013. Neste ano, o maior valor que o PBF concedia a uma família atingia R$ 306,00 sem contar o Benefício para Superação da Extrema Pobreza – BSP criado em 2011, cujo valor varia caso a caso (benefício atribuído para que cada família atinja uma renda per capita mínima de R$ 70,00). Assim, em 2004 a média nacional para o valor do benefício era de R$ 69,98, enquanto que em 2013 a média foi de R$ 151,87 (BRASIL, 2013). Desse modo, as transformações provocadas pelas transferências monetárias variam conforme a região e o lugar, de um lado, por conta dos valores únicos das transferências para todo o Brasil; e de outro, em função das situações geográficas (SILVEIRA, 1998) com que se deparam tais transferências. Neste sentido, sugerimos dois pressupostos para avaliação das transformações provocadas pelo PBF: 4 Um exemplo marcante desta atenção internacional voltada para o Programa Bolsa Família ocorreu em outubro de 2013 quando este, ao completar dez anos, recebeu o prêmio da Associação Internacional de Seguridade Social – ISSA, considerado o Prêmio Nobel da Seguridade Social. 5 Ana Fonseca, atual secretária extraordinária para Superação da Extrema Pobreza do MDS, em entrevista concedida à Fundação Perseu Abramo - FPA, afirmou o seguinte sobre este aspecto: “tem que ter critérios mais explícitos de uma linha de pobreza, tem que ter regras sobre o reajuste do valor dos benefícios” (14 de abril de 2014). Neste século XXI, a transferência direta de renda no Brasil, que tem o PBF como política central, torna-se um dos principais fatores de reconfiguração da pobreza urbana em pequenos municípios pobres das regiões Norte e Nordeste. Além do Governo Federal (especialmente os órgãos que ele usa para operar esta política), estados, municípios e das famílias que recebem os recursos, quando as transferências chegam aos municípios passam a participar de um contexto que envolve muitos outros objetos e muitas outras ações6. Quanto ao primeiro pressuposto, vale destacar que o PBF encerrou 2013 com pouco mais de 14 milhões de famílias beneficiárias, moradoras, sobretudo, das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Segundo dados do MDS, estados como Maranhão, Piauí e Alagoas têm mais de 50% de suas famílias beneficiadas pelo Programa. Além disso, como assevera Rocha (2013), a importância do valor do benefício na composição da renda familiar é maior nestas regiões, o que se expressa nos dados que revelam que aí os recursos são usados, essencialmente, para compra de alimentação (IBASE, 2008). É, sobretudo, em relação ao segundo pressuposto que a teoria dos dois circuitos da economia urbana, desenvolvida por Milton Santos na década de 1970, pode contribuir na avaliação do PBF. Para o autor (2008 [1979]), a modernização que os países pobres conheceram depois da Segunda Guerra Mundial formou dois circuitos econômicos nos países então de Terceiro Mundo: o circuito superior e o circuito inferior. O circuito superior resulta diretamente da modernização tecnológica, por isso, ele abarca as atividades de altos graus de capital, tecnologia e organização. É formado pelos bancos, indústria de exportação, comércio moderno, indústria urbana moderna, serviços urbanos modernos, atacadistas e transportadores. Por outro lado, o circuito inferior é constituído por uma gama de pequenas atividades industriais, comerciais e de serviços, caracterizadas pelo uso nãointensivo de capital. De maneira abrangente, este subsistema urbano abarca todas as formas de trabalho que representam a pobreza urbana, ou seja, baseadas em baixos níveis de capital, tecnologia e organização (SANTOS, 2008 [1979], p. 40). Cada circuito envolve as atividades econômicas e as parcelas das populações ligadas, pelo trabalho ou pelo consumo, às atividades (SANTOS, 2008 [1979], p. 42). A ideia dos dois circuitos da economia compreende que uma teoria válida da pobreza “[...] deve definir a relação entre a economia da pobreza e a economia moderna, assim 6 Todas as reflexões apresentados neste texto estão baseadas no pressuposto de que o espaço geográfico, entendido como objeto de estudo da geografia e, portanto, norteador das análises no âmbito desta ciência, é formado por um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações que interagem de forma dialética (SANTOS, 2009a [1996], p. 109). como a relação entre a população pobre e a economia pobre” (2009b, [1978], p. 44). Na vida urbana, a economia popular não nos parece estar separada das populações de baixos rendimentos, aqui incluídos os beneficiários do PBF. 4. “Vozes” do circuito inferior da economia urbana Atualmente, o município de Porto Calvo conta com 25.708 habitantes, sendo que 20.197 são residentes da cidade e 5.511 vivem no campo (IBGE, 2010). Em 2013 eram 4.162 famílias beneficiárias do PBF (57,20% da população total), sendo R$ 136,96 a média do valor do benefício. Quando perguntadas sobre “o que mudou nas despesas da família após começar receber os recursos do Programa Bolsa Família?”, as mulheres titulares do cartão do Programa em Porto Calvo afirmaram: “Melhorou muito minha vida, pois antes eu não tinha o dinheiro do gás certo” (Analfabeta, 4 anos como beneficiária). “Agora eu posso comprar fiado material escolar, vestuário porque eu sei que tem esse dinheiro certo para pagar” (Ensino Fundamental Incompleto, 10 anos de beneficiária). “Antes era grande a dificuldade para comprar material escolar, ou alguma coisa que faltava sem renda certa. Hoje uso esse dinheiro pra isso” (Analfabeta, 10 anos de beneficiária). “Quando a gente precisa para comprar um remédio, por exemplo, já sabe que tem esse dinheiro certo” (Ensino Fundamental Incompleto, 2 anos de beneficiária). (Todos os grifos são nossos). Das 30 famílias pesquisadas em Porto Calvo foi possível calcular o quanto o dinheiro do PBF representava na renda total de apenas 24, uma vez que as demais não souberam informar toda a renda7. Para as que informaram, o benefício representa, em média, 31,7% da renda total da família. O município de União dos Palmares, por sua vez, tem, segundo o censo do IBGE de 2010, 62.358 habitantes. Destes, 14.707 vivem no campo e 47.651 na cidade, o que representa 76,4% de população urbana. Neste município, o número de famílias beneficiárias do PBF no final de 2013 era de 9.357, ou seja, 50,56% de sua população total, ficando a média do valor do benefício em R$ 137,06. Perguntadas sobre o que mudou nas despesas da família após começar a receber recursos do Programa Bolsa Família, as mulheres desta cidade destacaram o seguinte: 7 A dificuldade em saber a renda aproximada das famílias beneficiárias se explica por dois fatores principais. Primeiro porque as rendas auferidas do trabalho são incertas, “hoje sim, amanhã não”. E segundo, em algumas situações, embora com menor frequência, as beneficiárias realmente não sabiam sequer contar dinheiro. Advertimos que as porcentagens apresentadas sobre a representação do PBF na renda total das famílias para as quais foi possível calcular são apenas valores aproximados e, portanto, não têm como objetivo o rigor quantitativo. “Melhorou para pagar as contas, comprar remédios, etc. Minha casa está melhor. Todos os meses sabemos que aquela quantia é certa” (Ensino Médio Incompleto, 7 anos de beneficiária). “Melhorou muito, foi uma benção. É o único dinheiro que eu tenho certo” (Ensino Médio Completo, 8 anos de beneficiária). “Mudou e ajuda muito porque meu marido nem sempre tem emprego, então esse dinheiro é certo para a família” (Analfabeta, 8 anos de beneficiária do Bolsa Família). “Mudou muito, pois a gente que não tem emprego fixo numa cidade como essa depende muito desse dinheiro” (Ensino Fundamental Incompleto, 8 anos de beneficiária). “A cidade não tem outras fontes de renda, então o Bolsa Família é que segura a gente” (Ensino Médio Completo, 6 anos de beneficiária). “A cidade não tem emprego, então esse dinheiro do Bolsa Família serve muito para completar a comida, o gás, etc. Sem ele a gente sofre” (Analfabeta, 10 anos de beneficiária). (Todos os grifos são nossos). Em União dos Palmares, a média que o PBF representa na renda total das famílias é de 31,19%, calculada para 61 famílias que souberam informar todas as rendas. São Miguel dos Campos tem 54.577 habitantes, estando 52.566 na cidade, isto é, 96,3%. A porcentagem de beneficiários do PBF na população total aqui é menor, 39%. São 6.919 famílias beneficiárias e a média do valor do benefício é de R$ 138,72. Sobre o que mudou nas despesas das famílias após começar a receber recursos do PBF, as mulheres responderam: “É um dinheiro certo para comprar material escolar para meus filhos. Antes eu comprava fiado, mas não tinha como pagar” (Ensino Fundamental Incompleto, 10 anos de beneficiária). “Ajuda muito pois sabemos que podemos contar com aquela renda todos os meses para as coisas da casa” (Analfabeta, 10 anos de beneficiária). “Quando meu esposo trabalhava as despesas eram cobertas por ele, agora que ele está desempregado é esse dinheiro que segura a gente” (Ensino Médio Completo, 2 anos de beneficiária). “Antes a gente se preocupava bastante com a alimentação, hoje não precisamos mais nos preocupar porque esse dinheiro é certo” (Ensino Fundamental Incompleto, 2 anos de beneficiária). “Num momento de aperto é o Bolsa Família que segura” (Analfabeta, 4 anos de beneficiária). (Todos os grifos são nossos). Para a situação de São Miguel dos Campos foi possível calcular o quanto os recursos do PBF representam na renda total no caso de 47 famílias. Para estas, a média ficou em 32,67%. Assim, em quase todas as respostas, nas três cidades, chama atenção a frequência com que é mencionada a “insegurança” das rendas auferidas nas formas de trabalho desenvolvidas pelos beneficiários do PBF. Estes destacam que os recursos do Programa é o único dinheiro certo para comprar bens e serviços de consumo banal (alimentação, vestuário, pagamento de água e luz etc.). Afirmamos que isso dá porque a população pobre, clientela essencial do circuito inferior da economia, “[...] tem uma verdadeira ‘fome’ de dinheiro líquido” (SANTOS, 2008 [1979], p. 232). Por esta razão, é preciso considerar, de maneira indissociável, as formas de trabalho dos chefes de família beneficiários do PBF. Porém, antes visualizemos na tabela 1 o grau de escolaridade destes nas cidades investigadas. Tabela 1: grau de escolaridade dos chefes de família beneficiários do Programa Bolsa Família nas cidades de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos – Alagoas Cidade A. E. F. I. E. F. C. E. M. I. E. M. C. N. I. Total Porto Calvo 7 20 - 1 - 2 30 União dos Palmares 8 40 4 7 7 - 66 São Miguel dos Campos 13 28 2 9 8 - 60 Legenda: A: Analfabeto; E. F. I: Ensino Fundamental Incompleto; E. F. C: Ensino Fundamental Completo; E. M. I: Ensino Médio Incompleto; E. M. C: Ensino Médio Completo; N. I.: Não Informou. Fonte: pesquisa de campo, 2014 Em Porto Calvo, a grande maioria dos chefes de família, isto é, 71,4%, possuía apenas o nível fundamental incompleto. Há também uma parcela significativa de analfabetos (25%) e uma pequena parcela com nível médio incompleto, 3,5%. O grau de escolaridade é um pouco maior em União dos Palmares, em relação a Porto Calvo, mas ainda prevalece o nível fundamental incompleto com 60,6%. Do restante, 12,1% é de analfabetos; 6% com ensino fundamental completo; 10,6% com ensino médio incompleto e 10,6% têm ensino médio completo. Já em São Miguel dos Campos a porcentagem com ensino médio completo (13,3%) e com ensino médio incompleto (15%) é levemente maior. Prevalece, também, a quantidade de chefes de família beneficiários com ensino fundamental incompleto com 46,6%, tendo, ainda, uma parcela significativa de analfabetos (21,6%). Encarada, no PBF, como elemento fundamental para romper o que Camargo (1993) denominou de ciclo intergeracional da pobreza, a educação não parecer ser o elemento determinante para explicar as falas das mulheres beneficiárias trazidas acima. Se no que se refere à escolaridade dos chefes de família há variações importantes entre as três cidades, não há grandes diferenças quanto ao tipo de atividade econômica realizada por eles. Na pesquisa de campo, constatamos que os trabalhos mais frequentes são: “bico” em diversas atividades (servente de pedreiro, pedreiro, faxineira, serviços gerais etc.), trabalhos em atividades da economia popular nas próprias cidades (comerciante nas feiras–livres, comerciante de cosméticos Avon, cabeleireiro, manicure etc.) e trabalhos na agroindústria sucroalcooleira (corte de cana, “bituca”, plantio da cana etc.), no entanto, quase sempre somente no período da safra. Assim, as atividades econômicas que sustentam os beneficiários do PBF nas três cidades são, essencialmente, aquelas que formam o subsistema inferior da economia urbana. As formas de trabalho desenvolvidas pelos chefes de família, já citadas, explicam as respostas dadas pelas beneficiárias sobre o que mudou nas suas despesas após começar a receber recursos do Programa. Segundo Santos (2008, [1979]), o circuito inferior da economia, ao mesmo passo que é um resultado da pobreza, também a perpetua pela sua dependência em relação à economia moderna, dependência que se expressa, dentre outros aspectos, na insegurança da renda, como revelam as falas dos beneficiários. Em outras palavras, não se compreende a prevalência nas falas das mulheres da menção sobre a insegurança da renda auferida do trabalho sem considerar que estas são “vozes do circuito inferior da economia urbana”. Só se compreende a dinâmica de uma cidade considerando-a como totalidade, isto é, analisando, ao mesmo tempo, a dinâmica dos objetos e das pessoas. (SILVEIRA, 2007; 2010; 2011a; 2011b). Neste sentido, a perspectiva dos circuitos da economia urbana poderia contribuir para o debate acerca das transferências diretas de renda no que diz respeito à entrada e saída de famílias do Programa (BICHIR, 2011, pp. 98-99; ROCHA, 2013, p. 135). Em Porto Calvo, mais de 50% das famílias pesquisadas tinham de 5 a 10 anos de PBF; Em União dos Palmares 45% tinham esse mesmo tempo e em São Miguel dos Campos a porcentagem para o mesmo período de permanência ficou em 35%. Os dados sobre o tempo de permanência das famílias beneficiárias do Programa são apresentados na tabela 2. Tabela 2: tempo de permanência no Programa Bolsa Família de famílias beneficiárias nas cidades de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos – Alagoas Cidade De 1 a 6 meses De 7 meses a 1 ano Mais de 1 a 5 anos Mais de 5 a 10 anos Não informou Total Porto Calvo 2 1 11 15 1 30 União dos Palmares - 3 29 30 4 66 4 30 21 1 60 São Miguel dos 4 Campos Fonte: pesquisa de campo, 2014. O MDS exige que o recadastramento das famílias ocorra, pelo menos, a cada dois anos (BRASIL, 2013). O artigo 7º do decreto 6.135 de junho de 2007, que regulamenta o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – Cad.Único afirma: “As informações constantes do CadÚnico terão validade de dois anos, contados a partir da data da última atualização, sendo necessária, após este período, a sua atualização ou revalidação, na forma disciplinada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome”. Isto quer dizer que nas cidades estudadas muitos beneficiários têm permanecido mesmo após dois ou mais recadastramentos8. É verdade que a pobreza não se define somente pelo critério da renda. Porém, o fato de as famílias não alcançarem renda suficiente para saírem do PBF em situações geográficas de pequenos municípios do Norte e Nordeste brasileiros pode estar indicando a perpetuação de situações de pobreza. Desse modo, no sentido prático de projetar a incorporação de novas famílias às transferências, e no sentido amplo de compreensão das possibilidades e limites da política nacional de transferência de renda, o conhecimento da dinâmica do circuito inferior possibilitaria compreender as reais causas para permanência das famílias já beneficiadas. De outro lado, as atividades econômicas a que os beneficiários do PBF recorrem para consumir também estão implicadas no mesmo processo. Desde a avaliação dos primeiros programas de transferência de renda no Brasil, e de forma mais destacada com o PBF, vários estudos têm constatado que as famílias utilizam os recursos do Programa principalmente com alimentação, vestuário, material escolar, pagamento de contas de água e luz, medicamentos etc. (SILVA E SILVA; YASBEK; DI 8 Vale destacar que durante os dois anos de validade do cadastro a renda domiciliar per capita pode chegar até meio salário mínimo sem que haja o cancelamento do benefício (Portaria 617 de 11 de janeiro de 2010). GIOVANNI, 2006, p. 180; IBASE, 2008). De maneira geral, a mesma aplicação dos recursos foi verificada para as situações de Porto Calvo, União dos Palmares e São Miguel dos Campos (PESQUISA DE CAMPO, 2014). Por esta razão, é importante destacar as falas dos proprietários de atividades do circuito inferior, principalmente dos ramos citados, quando questionados sobre “o que mudou na atividade após o Programa Bolsa Família”. Na área central da cidade de Porto Calvo, em um estabelecimento de comercialização de gêneros alimentícios, bebidas e lanches, o proprietário afirmou: “Sem o bolsa família minha atividade quebraria”. E outro comerciante do mesmo ramo ainda é mais direto: “Esse bolsa família está sendo a valência do nosso comércio”. No centro de União dos Palmares, um comerciante de produtos de bomboniere (doces, salgados, pipocas etc.) afirmou que “no período de pagamento do Bolsa Família aumenta significativamente a venda [...]”. O mesmo se constata para a situação de pequenos comércios de papelaria e material escolar, pois em um estabelecimento desse ramo o proprietário disse que o dinheiro do Bolsa Família “contribuiu muito porque os materiais escolares em sua maioria são comprados pelos que recebem o Programa”. Em São Miguel dos Campos, também na área central, um comerciante de comidas e lanches informou que “as vendas aumentam principalmente no período de pagamento do Bolsa Família”. Já um comerciante de relógios explicou: “A gente já espera o calendário do Bolsa para aumentar nossas vendas. O pessoal do Bolsa Família não tem condições de pagar R$ 200,00 ou R$ 300,00 num relógio de marca, por isso compra aqui”. Esses relatos convergem, em vários pontos, com as falas das mulheres beneficiárias do PBF. Em função da escassez de dinheiro líquido que caracteriza o circuito inferior (SANTOS, 2008 [1979]), observa-se a dependência de muitas atividades econômicas nestas cidades dos recursos das transferências. Portanto, as falas dos proprietários das atividades do circuito inferior também devem ser incluídas na avaliação da política nacional de transferência de renda. Se as atividades de baixo capital, tecnologia e organização tem sua dinâmica explicada em função de uma parcela da população, não há razões para avaliar o PBF recortando aquelas destas. 5. Considerações finais A pobreza urbana tem sido reconfigurada em pequenos municípios do Norte e Nordeste brasileiros, e um dos fatores responsáveis por esta reconfiguração é a política do PBF, visto que um dos eixos centrais desse Programa são as transferências monetárias às famílias consideradas extremamente pobres e pobres pelo critério da renda per capita. Este artigo procurou mostrar, através de relatos dos próprios beneficiários e de proprietários de atividades do circuito inferior em três cidades do interior do Estado de Alagoas, que muitos outros objetos e muitas outras ações são implicados pela política nacional de transferência de renda. Por um lado, as mulheres titulares do cartão do PBF frisaram, em quase todas as respostas, a insegurança da renda nas atividades econômicas que sustentam suas famílias. Assim, os recursos do Programa é o único dinheiro certo para comprar bens e serviços de consumo banal (alimentação, vestuário, pagamento de água e luz etc.). Por outro lado, os proprietários de atividades do circuito inferior destacaram que esperam o calendário de pagamento do PBF para aumentar suas vendas, e até mesmo alguns comentaram que a manutenção de sua atividade depende dos recursos desse Programa. Além disso, constatamos uma tendência à permanência no PBF das famílias beneficiárias nas três cidades. Esta tendência parece se explicar porque os pobres na cidade são inseparáveis das atividades a que recorrem para trabalhar e/ou para consumir. A perspectiva dos circuitos da economia urbana contribuiria, então, para planejar a política nacional de transferência de realidade a partir da realidade do espaço de todos (SANTOS, 1994). Desse modo, se a política de transferência direta de renda no Brasil busca lidar com a pobreza, reafirmamos a tese de Santos (2009b [1978], p. 71) de que enfrentar a pobreza é encarar a questão do circuito inferior da economia urbana. 6. Agradecimentos do autor Agradeço ao Núcleo de Estudos do Pensamento Miltoniano – NEPEM da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL pelo apoio na aplicação dos questionários da pesquisa de campo. 7. Referências bibliográficas BICHIR, R. M. Mecanismos federais de coordenação de políticas sociais e capacidades institucionais locais: o caso do Programa Bolsa Família. (Doutorado em Ciência Política), Rio de Janeiro: UERJ, 2011. BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Guia do Gestou. Brasília: 2006. Disponível em: http://www.mds.gov.br/ _____ Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília, 2013. Disponível em: http://www.mds.gov.br/ CAMARGO, J. M. “Os miseráveis”. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 03/03/1993. DRAIBE, S. M. “Prefácio”. In: SILVA E SILVA, Maria Ozanira. Renda mínima e reestruturação produtiva. São Paulo: Cortez, pp. 7-12, 1997. INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS – IBASE. 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