TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo Registro: 2011.0000137076 ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 918159486.2003.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes NEUSA DA SILVA COUTINHO e CENILO DA SILVA COUTINHO sendo apelado MINISTERIO PUBLICO. ACORDAM, em 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FÁBIO QUADROS (Presidente sem voto), ENIO ZULIANI E TEIXEIRA LEITE. São Paulo, 11 de agosto de 2011 Francisco Loureiro RELATOR Assinatura Eletrônica TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo Apelação Cível no 9181594-86.2003.8.26.0000 Comarca: CAPITAL Juiz: MARCOS GOZZO Apelantes: NEUSA DA SILVA COUTINHO E OUTRO Apelado: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO VOTO No 13.480 AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Regularização de loteamento. Legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizamento da ação, que envolve interesses urbanísticos, ambientais e direito fundamental à moradia digna. Responsabilidade dos loteadores pelas irregularidades verificadas. Provas inequívocas de implantação de loteamento clandestino, sem qualquer tipo de aprovação. Venda de partes ideais de gleba maior, com posse localizada, em manifesta fraude à L. 6.766/79. Obras básicas de infra-estrutura que, ademais, ainda não foram implantadas Ação procedente em parte, para condenar os réus a indenizarem os prejuízos causados, diante da impossibilidade de regularização do parcelamento. Recurso dos réus improvido. Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a sentença de fls. 602/610 dos autos, que julgou procedente em parte a ação civil pública para regularização de loteamento ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO em face de NEUSA DA SILVA COUTINHO E OUTRO, para o fim de condenar os loteadores ao pagamento de indenização pelos danos causados, em razão da impossibilidade de promoverem regularização do parcelamento do solo. Apelação nº 9181594-86.2003.8.26.0000 - São Paulo - VOTO Nº 13.480 – F- 2/8 a TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo Fê-lo a r. sentença para reconhecer que os réus parcelarem irregularmente o solo, em desafio às exigências da L. 6.766/79. Entendeu que em razão das dimensões dos lotes, inferiores às exigidas na L. 6.766/79, o loteamento não era passível de regularização, de modo que converteu desde logo a obrigação em perdas e danos, a serem apuradas em liquidação por artigos. Recorrem os réus alegando, preliminarmente, a ilegitimidade do Ministério Público para figurar no pólo ativo do feito. No mérito, aduzem, em síntese, que não lotearam, pois não abriram vias públicas, mas apenas fizeram um condomínio de casas. Afirmam, ainda, ser lícita a venda de partes ideais, criando condomínio previsto nos artigos 1.314 e seguintes do Código Civil. Finalmente, entendem que não há prejuízo algum a terceiros, pois os lotes foram todos vendidos e os adquirentes se encontram satisfeitos, tanto assim que nenhum deles habilitou-se como litisconsorte ativo e nem se manifestou nos autos. O apelo foi contrariado. O parecer da D. Procuradoria Geral de Justiça foi no sentido do improvimento do recurso. Vieram-me os autos redistribuídos em 04 de julho de 2.011, por força da Resolução 542/2011 do TJSP, que visa dar cumprimento à Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça. É o relatório. 1. A preliminar de ilegitimidade ad causam ativa do Ministério Público deve ser rejeitada. Apelação nº 9181594-86.2003.8.26.0000 - São Paulo - VOTO Nº 13.480 – F- 3/8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo Em relação ao tema, cumpre de pronto observar que a questão da regularização de loteamentos envolve interesses que transcendem, em muito, o simples prejuízo patrimonial dos adquirentes dos lotes. O direito à moradia digna é considerado fundamental pelo artigo 7º. da Constituição Federal. Disso decorre que ainda que não houvesse outros interesses urbanísticos e ambientais em jogo, os interesses homogêneos dos adquirentes dos lotes são de ordem pública e podem ser defendidos em ação civil pública patrocinada pelo Ministério Púbico. Parece claro que o loteamento irregular, sem a aprovação da Municipalidade e sem Registro Imobiliário, exigidos pelos arts. 12 e 18 da Lei n. 6.766/79, além de carecer de obras de infra-estrutura, afeta vários outros interesses de ordem pública. A ausência de guias e sarjetas provoca o escoamento errôneo das águas pluviais, com conseqüente assoreamento de rios e áreas de erosão. As vias públicas, que integram a malha viária do município, serão de difícil trânsito não somente dos moradores, mas de quantos as utilizem como acesso. A falta de iluminação pública afeta diretamente a questão da segurança. A incorreta implantação do loteamento fere sobretudo interesses urbanísticos, além de prejudicar o direito fundamental à moradia, impedindo que os compradores adquiram validamente a propriedade dos lotes. A matéria não é nova e já se encontra surrada por dezenas de julgados dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Apelação nº 9181594-86.2003.8.26.0000 - São Paulo - VOTO Nº 13.480 – F- 4/8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo Justiça do Estado de São Paulo. Ficou assentado, assim, que “o Ministério Público tem legitimidade ativa para propor ação civil pública visando à regularização de loteamentos urbanos destinados à moradia popular” (STJ, REsp 601981 / SP Ministra ELIANA CALMON). Em caso idêntico ao ora em exame, foi fixado que o “Ministério Público é parte legítima para a defesa dos interesses dos compradores de imóveis loteados, em razão de projetos de parcelamento de solo urbano, face a inadimplência do parcelador na execução de obras de infra-estrutura ou na formalização e regularização Francisco dos loteamentos” Peçanha Martins, (RESP Segunda 137.889/SP, Turma, Ministro julgado em 06.04.2000, DJ 29.05.2000, pág. 136) Isso porque, na esteira do acima se afirmou, “o Ministério Público é parte legítima para propor Ação Civil Pública para discutir a regularização de loteamento relacionada ao desenvolvimento urbano, pois neste caso trata-se de interesses difusos e coletivos não referentes a pessoas determinadas e sobre bens não disponíveis. É dever constitucional do Ministério Público a defesa do patrimônio público e social, dos interesses difusos e coletivos e de outras funções compatíveis com a sua natureza” (art. 129, III e IX C.F.)” (REsp 436166/SP, Ministro JOSÉ DELGADO). Diga-se que a legitimidade do Ministério Público deve ser admitida com largueza, em razão de um segundo papel, qual seja, “em verdade a ação coletiva, ao tempo em que propicia solução uniforme para todos os envolvidos no problema, livra Apelação nº 9181594-86.2003.8.26.0000 - São Paulo - VOTO Nº 13.480 – F- 5/8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo o Poder Judiciário da maior praga que o aflige: a repetição de processos idênticos” (RESP 404.759/SP, Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, julgado em 17.12.2002, DJ 17.02.2003, pág. 226). 2. No mérito, o A clandestinidade recurso não comporta provimento. e irregularidade do parcelamento do solo são patentes. Houve abertura de via pública e a alienação de lotes com posse localizada, sem prévio e indispensável parcelamento do solo urbano, nos moldes da L. 6.766/79. Evidente que a via de acesso aos mais de cinqüenta lotes constitui inovação do sistema viário municipal e que a venda de frações ideais de terreno configura flagrante fraude à lei. Implantou-se verdadeiro loteamento sob o rótulo de venda de partes ideais com posse localizada. O negócio é aparentemente lícito, pois em termos formais existe matrícula com compromisso de venda e compra a inúmeros condôminos. Encobre, todavia, loteamento para fins urbanos implantado e vendido à margem e sem observância das normas cogentes da L. 6.766/79. Fácil concluir, portanto, que se utilizou o recorrente dos chamados “negócios indiretos”, que têm a finalidade de criar válvula de escape de rígidos limites de determinadas situações jurídicas. O negócio indireto se verifica “quando as partes recorrem, concretamente, a um negócio determinado, para obter, através do mesmo, resultado diverso daquele típico da estrutura do próprio negócio; as partes visam, assim, um escopo que não é típico do Apelação nº 9181594-86.2003.8.26.0000 - São Paulo - VOTO Nº 13.480 – F- 6/8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo próprio negócio” (Alvino Lima, A Fraude no Direito Civil, Editora Saraiva, 1.965, p. 80). Presentes estão os dois elementos necessários para caracterização da fraude à lei, a saber: a) existência de norma imperativa no ordenamento jurídico, necessariamente incidente quando presente determinada situação; b) a realização de negócio jurídico suscetível de produzir, por meio indireto, exatamente o resultado previsto como indesejado pela norma jurídica imperativa, ou que seja atingido resultado a ele equivalente (Regis Fichtner Pereira, Fraude à Lei, Editora Renovar, p. 93). Óbvio que a conseqüência do negócio em fraude à norma proibitiva cogente é a nulidade, por ilicitude do objeto, uma vez que se busca, por via oblíqua, atingir objetivos reprovados pelo ordenamento. O artigo 166, VI, do Código Civil comina de nulidade o negócio em fraude à lei imperativa. As fotografias e laudos que instruem os autos demonstram de modo cabal que os réus promoveram o parcelamento irregular do solo para fins urbanos de tamanho ao exigido na L. 6.766/79. Tentaram e não conseguiram óbvios por motivos a regularização do empreendimento como vila de casas, pois se trata de verdadeiro loteamento clandestino. A propósito, o loteamento é a um só tempo clandestino, pois não aprovado pelos órgãos competentes, e irregular, pois não implantadas obras básicas completas de infra-estrutura, como facilmente se constata pelas fotografias que ilustram os autos. Apelação nº 9181594-86.2003.8.26.0000 - São Paulo - VOTO Nº 13.480 – F- 7/8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO São Paulo 3. Entendeu a sentença que o parcelamento, em razão da dimensão dos lotes e da falta de área remanescente para implantação de equipamentos urbanos não é passível de regularização, razão pela qual entendeu prejudicada a obrigação de fazer in natura. Como não houve recurso do Ministério Público a respeito do tema, resta analisar o acolhimento do pedido subsidiário de indenização. Evidente os danos causados, a um só tempo, aos promitentes compradores de terrenos irregulares e ao Poder Público, que deixou de receber área institucional exigida pro lei, e ainda terá de implantar equipamentos urbanos e obras de infraestrutura que eram de obrigação dos loteadores. São tais prejuízos a serem apurados em sede de liquidação. Não há o que alterar na sentença, diante da vistosa violação às normas cogentes da L. 6.766/79. Diante do exposto, nego provimento recurso. FRANCISCO LOUREIRO Relator Apelação nº 9181594-86.2003.8.26.0000 - São Paulo - VOTO Nº 13.480 – F- 8/8 ao