Arq Bras Cardiol
volume 74, (nº 6), 2000
Mansur e cols.
Atualização
Componente genético da doença coronariana
Análise do Componente Genético da Doença Coronariana
Antonio de Padua Mansur
São Paulo, SP
O componente genético da doença aterosclerótica tem
sido cada vez mais investigado e algumas características
genéticas foram a ela associados. Porém, a metodologia e a
interpretação dos resultados dos estudos genéticos vêm
sendo constantemente questionados. Este artigo de revisão discute estes aspectos e sugere métodos de análise que
podem melhorar o entendimento da patogênese da doença
arterial coronariana de origem aterosclerótica.
Considerações gerais - A insuficiência coronariana é
a principal causa de morbi-mortalidade nas regiões mais desenvolvidas do Brasil. Apesar da alta prevalência, é nítida
nos últimos anos a progressiva redução da mortalidade na
maioria das regiões do país. Várias são as razões, mas é consenso atual que essa redução deve-se primariamente à crescente melhora das condições socioeconômicas, com especial atenção ao controle dos fatores de risco para as doenças
cardiovasculares. O melhor conhecimento da fisiopatologia
da insuficiência coronariana também permitiu progressos
nos tratamentos farmacológico, cirúrgico e técnicas não cirúrgicas de reperfusão coronariana. Porém, o controle dos
fatores de risco continua sendo a conduta mais eficaz em
relação à prevenção primária e secundária da doença arterial
coronariana.
Os principais fatores de risco da doença coronariana
são: tabagismo, hipercolesterolemia, hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus. Outros, como os níveis elevados
da lipoproteína(a), triglicérides e fibrinogênio, também têm
sido considerados como fatores de risco independentes para
a doença coronariana 1. A intensidade da participação destes
fatores de risco no desenvolvimento da doença coronariana
depende dos componentes ambientais e das características
genéticas de cada indivíduo ou de uma população.
A presença de história familiar é outro importante fator
de risco para a doença arterial coronariana. Da mesma forma
que os antecedentes familiares são dependentes das características genéticas, outros fatores sabidamente também o
são, tais como, hipertensão arterial, dislipidemia, e diabetes
Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP
Correspondência: Antonio de Padua Mansur – Incor – Unidade de Coronariopatias
Crônicas - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo - SP
Recebido para publicação em 3/8/99
Aceito em 1/12/99
mellitus, que influenciam o desenvolvimento do processo
da aterosclerose coronariana. Atualmente, inúmeras são as
características genéticas descritas e diretamente relacionadas com o processo da aterogênese e da trombogênese.
Embora vários genes influenciem ambos os processos, alguns genes, tais como, o da enzima de conversão da angiotensina 2,3, angiotensinogênio 4,5, receptor AT1 da angiotensina 6 e das apolipoproteínas AI, B e E 7-10, aparentemente
têm uma participação mais proeminente no processo da aterosclerose. Por outro lado, polimorfismos da protrombina 11,
glicoproteína IIb/IIIa 12, fibrinogênio 13, etc, estariam principalmente envolvidos no processo da trombogênese.
Componente genético - A participação do componente
genético na população com doença coronariana é desconhecida. Na prática clínica, a investigação do provável componente hereditário, influenciando o desenvolvimento da
aterosclerose, faz-se basicamente pela presença de doença
coronariana precoce nos pais, isto é, diagnóstico de doença coronariana no pai com menos de 55 anos e na mãe com
menos de 65 anos, ou irmãos com doença coronariana. Essa
análise apesar de importante é pouco sensível, e não considera a existência, isolada ou associada, nesses pacientes,
de outros potenciais fatores de risco que possam influenciar significativamente no desenvolvimento de um quadro
coronariano isquêmico ou mesmo um episódio tromboembólico periférico. Um dos exemplos clássicos é o efeito adverso do fumo potencializado pelo uso dos anticoncepcionais. Inclusive, essa predisposição a eventos tromboembólicos está associada a distúrbios no sistema da coagulação,
tais como, níveis séricos elevados de fibrinogênio (adquirido
em conseqüência do fumo) ou diminuídos de proteína C (geneticamente transmitido). Da mesma forma, discute-se a influência do polimorfismo dos genes responsáveis pelos fatores da coagulação nessa interação. Portanto, pesquisadores começaram a analisar a associação dos polimorfismos
genéticos com a doença coronariana.
Interpretação dos estudos genéticos - Pela complexidade envolvida no processo da aterosclerose, os genes inicialmente estudados foram aqueles fortemente relacionados
com os principais fatores de risco para a doença coronariana, em especial a hipertensão arterial sistêmica e as dislipidemias. O primeiro polimorfismo relacionado da doença coronariana foi o polimorfismo da apolipoproteína E responsável por importantes alterações no perfil lipídico 14. Poste531
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riormente, foi o polimorfismo da enzima de conversão da angiotensina com o infarto agudo do miocárdio e essa associação foi pesquisada, porque sabia-se anteriormente que os
diferentes genótipos expressavam diferentes atividades da
enzima de conversão da angiotensina, isto é, maior ou menor níveis de angiotensina II influenciando o tônus vascular e a pressão arterial 15.
Contudo, estudos dos polimorfismos genéticos na
população com doença coronariana mostraram resultados
conflitantes 16-18. Da mesma forma, os polimorfismos dos
fatores da coagulação que, teoricamente, teriam uma participação importante no processo da trombogênese em pacientes jovens com doença coronariana têm resultados conflituosos 19. Essa divergência está provavelmente relacionada
a estudos metodologicamente inadequados sendo as principais críticas o número reduzido de pacientes e a ausência
de um painel de polimorfismos 20. A regra tem sido a análise
de polimorfismos isolados 21 e em muitos estudos ausência
de uma análise multivariada que defina marcadores genéticos que contribuam independentemente para o desenvolvimento da doença coronariana 22. Para evitar estudos com
número reduzido de pacientes e erros estatísticos do tipo b
(poder do teste < 0,80) é fundamental a participação de vários centros de pesquisa, disponibilidade essa possível devido a existência de inúmeros centros de alto padrão científico em muitas regiões do Brasil. A característica multicêntrica favorece, não somente no aumento da população
do estudo, como também evita análises de populações isoladas que podem não se encontrar em equilíbrio de HardyWeinberg. Na realidade, a população brasileira, pelas características étnicas multirracial, seria a ideal para estudos
genéticos 23,24.
Modelos para estudos genéticos - O crescente aumento do conhecimento da biologia molecular vem produzindo
questionamentos em relação como esta revolução pode influenciar nos programas de saúde pública ou como melhorar o valor prognóstico da análise genética no desenvolvimento e progressão da doença aterosclerótica, sabidamente
de etiologia multifatorial. A análise dessas características
genéticas e sua inter-relação com fatores ambientais pode
identificar precocemente indivíduos ou famílias de alto risco
para as doenças cardiovasculares. Essa identificação pode
inclusive facilitar o grau de resposta a uma determinada terapêutica proposta. Porém, de uma forma realística, o modelo para uma avaliação genética de uma doença multifatorial
mais complexa e poligênica necessita portanto da análise de
um painel de polimorfismos genéticos e sua inter-relação
com os principais fatores de risco para a aterosclerose 25. Da
mesma forma, estratégias de análise, tais como, os modelos
sib-pair (análise de pares em irmãos), relative-pair (análise
de pares em parentes), etc., estão sendo cada vez mais utilizados como formas de melhorar a detecção de polimorfismos responsáveis pela doença coronariana através da
comparação do DNA do indivíduo(s) afetado(s) com o DNA
de indivíduos normais de uma mesma família. Entre estes,
admite-se que o modelo sib-pair, isto é, estudo de irmãos
com doença coronariana comparados com irmãos não afetados, seria uma das melhores técnicas que possibilitaria um
aumento na sensibilidade da análise genética para doenças
de características multifatoriais como a aterosclerose 26,27. A
vantagem desta análise é que as características genéticas do
par analisado (um irmão afetado e um normal) são uniformes
e, portanto, as diferenças no genoma responsáveis pela
doença arterial coronariana podem ser mais facilmente identificadas. Portanto, a análise de vários genes poderia estabelecer pela primeira vez critérios ou um perfil genético mais
especificamente associados a doença coronariana e, assim,
o estabelecimento de critérios mais definitivos para as prevenções primária e secundária, estado da arte atual para redução dos eventos cardiovasculares.
Conclusão
A associação de um ou mais polimorfismos genéticos
com a doença aterosclerótica deve ser baseada em estudos
com número de pacientes e metodologia adequados. Os
polimorfismos analisados devem ter significado biológico e
seus produtos genéticos uma atividade fisiológica fortemente relacionada aos principais fatores de risco, em especial a hipercolesterolemia, hipertensão arterial e diabetes
mellitus, ou com o processo da aterogênese ou trombogênese. Da mesma forma, o uso de estratégias de análise, tais
como, análise de pares em irmãos ou parentes e painel de
polimorfismos, melhora a identificação dos polimorfismos
genéticos associados com a doença aterosclerótica.
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