PRÁTICAS DE LINGUAGEM E FORMAÇÃO DOCENTE: A ELABORAÇÃO DE SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS POR PROFESSORES EM FORMAÇÃO CONTINUADA ANDERSON CARNIN UNISINOS [email protected] MARIA JÚLIA PADILHA MACAGNAN UNIJUÍ [email protected] RESUMO:Observar como se dá a relação entre as teorias contemporâneas que orientam o ensino de língua, a formação continuada e a consequente mudança na prática docente são tarefas que se interrelacionam. Esse inter-relacionamento, no caso deste estudo, materializou-se em um espaço de formação continuada, mais especificamente, nos materiais didáticos produzidos pelos docentes participantes deste espaço. Constatamos, com base na análise de materiais coletados, que os professores participantes, mesmo que com algumas restrições, conseguiram alcançar boa parte dos objetivos esperados para o trabalho com sequências didáticas de gêneros. Percebemos ainda que a parceria estabelecida entre o grupo de professores da escola pública e a universidade contribuiu para capacitar esses professores a produzirem seu próprio material didático, oportunizando aos sujeitos envolvidos a chance de criar e dispor de suas ferramentas de trabalho. PALAVRAS-CHAVE: formação continuada, letramento docente, sequências didáticas. ABSTRACT: Observing the settlement of the relationship between the contemporary theories which guide language teaching, teacher training and the resultant changing in teaching practice is an interrelated task which, in this case, took place in an environment of continued training, specifically through the pedagogical material developed by the teachers who took part of that environment. Based on the analysis of the material, we pointed out that the participant teachers – even with some limitations – could reach many of the goals expected in a work with pedagogical sequences organized from text genres. We could also realize that the partnership established between the group of teachers from the public school and the professors from the university helped in the process of enabling these teachers to produce their own didactic material, providing them the chance to create and make use of their work tools. KEYWORDS: continued training, teacher litteracy, pedagogical sequences. 1. Considerações Iniciais Contribuir para a qualificação da atuação docente, em todos os níveis possíveis de ensino, é a meta que tem norteado os caminhos tortuosos e, ao mesmo tempo, desafiadores de quem está verdadeiramente envolvido no processo de busca e aprimoramento de uma educação linguística relevante. E é esse propósito que temos perseguido incessantemente, tanto na formação inicial quanto na formação continuada de professores, independente se, na condição de aluno ou de professor, mas igualmente de executor e pesquisador, na busca de respostas para o distanciamento existente entre o que preconizam os documentos oficiais e os avanços teóricos das pesquisas contemporâneas da língua(gem) e da prática pedagógica do ensino/aprendizagem de línguas e o dia a dia da sala de aula. Antunes (2009), que tem discutido e trazido muitas contribuições nessa área, em publicação recente observa que parece haver dois caminhos paralelos, de um lado, “os cientistas e pesquisadores, com suas investigações e achados; por outro, os professores, com suas atividades diárias de ensino. Cada um olhando para seu próprio mundo” (idem, p.14). Ao chamar a atenção sobre esse aparente paradoxo, destaca a necessidade de se desinstalar dos espaços de confinamento da academia os conhecimentos produzidos, que acabam se tornando patrimônio de poucos. Ressalta que “muitos dos temas mais atuais desenvolvidos pela lingüística ainda são estranhos aos programas estudados nas escolas. Parece que ainda falta acontecer a mútua relação entre a teoria – que inspira e fundamenta a prática - e a prática – que realimenta e instiga a teoria” (idem, p.14). Para a saída desse impasse argumenta a urgência de um esforço coletivo de maior divulgação dessas produções, trazendo para o entendimento dos professores em serviço, de forma consistente e bem fundamentados, princípios teóricometodológicos que possibilitem “explicitar teorias que possam alimentar seus debates e reflexões (...) promover uma intervenção mais significativa na escola”(p.14). É no âmbito desse debate e comprometidos com a necessária publicização desses avanços da educação lingüística que se insere o projeto de “Ensino de Línguas e a Ressignificação da Prática Docente”, a partir do qual está sendo possível vislumbrar algumas perspectivas de mudanças no ensino de língua, materializada em propostas diferenciadas no tratamento de gêneros textuais e nas dimensões das práticas de leitura, de escrita e de alguns aspectos relativos às questões lingüísticas. Isso, configurado num esforço de professores e alunos de formação inicial em parceria com professores em serviço, numa proposta mais duradoura de formação continuada. 2. A formação continuada do professor de língua materna Acreditamos que seja preciso pensar a formação docente (inicial e continuada) como momentos de um processo permanente de construção de uma prática docente qualificada e de afirmação da identidade, da profissionalidade e da profissionalização do professor. Nesse aspecto, os chamados “saberes profissionais” (TARDIFF, 2002) do professor demonstram uma constituição heterogênea, plural e desenvolvida de maneira horizontal ao longo do tempo e da sua ação, sendo, portanto, “personalizados e situados” (GATINHO, 2006). Essa perspectiva pressupõe mudanças na ação docente desenvolvida por aqueles que se formaram antes da disseminação de teorias mais atuais sobre o ensino-aprendizagem de língua materna e da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), documento entendido por nós como um marco nas políticas e práticas educacionais brasileiras contemporâneas. Tanto a metodologia aplicada ao ensino de língua(gem) quanto à abordagem empregada sofreram alterações, pois passaram a ver o texto não só a partir de aspectos lingüísticos, mas também, e principalmente, nos seus aspectos sociais, nos seus propósitos, forma e função. O professor, já formado e em atuação, precisa revisar conceitos e metodologias, estar predisposto a trabalhar com textos que façam sentido para o aluno e com textos que circulam socialmente, como preconizam os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998). Assim, a formação continuada não pode ser reduzida à atualização, menos ainda a um treinamento ou capacitação para a introdução de inovações ou compensação de possíveis lacunas oriundas da formação inicial. A formação continuada é, antes, um exercício de aprimoramento do(s) letramento(s) do professor e de sua relação com seu objeto de trabalho: a língua(gem). Esse trabalho, é claro, deve estar alicerçado “na reflexão crítico-teórica, considerando os determinantes sociais mais amplos e as suas implicações no cotidiano do professor e no seu processo profissional” (BRASIL, 2005). Essa complexa demanda de reflexão teórico-prática e a capacitação do professorado para que possam lidar com as exigências da ação docente, de torná-los investigadores de sua própria prática e de suas dificuldades têm diferentes caminhos e possibilidades de realização. Um exemplo disso é o curso de formação continuada “O Ensino de Línguas e a Ressignificação da Prática Docente”, idealizado e posto em prática por professoras do Departamento de Estudos de Linguagem, Arte e Comunicação da Unijuí, descrito brevemente a seguir. 3. O Ensino de Línguas e a Ressignificação da Prática Docente: um trabalho de formação continuada com professores de línguas O “Ensino de Línguas e a Ressignificação da Prática Docente” 1 , caracterizado institucionalmente como um projeto universitário de extensão, é entendido aqui como um curso de formação continuada de professores. Tem como base o ensino e aprendizagem de línguas sob a perspectiva de gêneros textuais, visa à produção/implementação de material didático com foco na referida perspectiva, objetivando, também, a ressignificação da prática docente, através da reflexão sobre a própria ação, bem como, deseja proporcionar aos docentes da rede pública inseridos na área de atuação da Unijuí o contato com as novas idéias e conceitos resultantes de pesquisas lingüísticas atuais. Assim, como já citado em um estudo anterior, podemos afirmar que a premissa básica que norteou a realização deste projeto é o fato de que a formação de professores de línguas (materna e estrangeira) não se esgota assim que finalizam o curso de graduação ou especialização, mas que as demandas inerentes à profissão requerem contínua reflexão. Contata-se, desta forma, que novas dificuldades surgem na mesma proporção em que as exigências do dia-a-dia se renovam. Essa renovação, em termos de ensino, pode ser observada pela natureza dos gêneros textuais que, de acordo com a literatura especializada, a emergência de um gênero pode estar relacionada ao surgimento de novas motivações sociais, ao aparecimento de novas circunstâncias de comunicação e de novos suportes de comunicação (cf. BRONCKART, 1999). Enfim, um conceito desenvolvido por Bakhtin (2000), para o qual gênero é compreendido como um evento recorrente na comunicação humana, envolvendo papéis, relações sociais e históricas, mediado pela linguagem oral ou escrita, podendo ser primário (característico da comunicação verbal espontânea) e secundário (característico da comunicação cultural mais complexa, geralmente escrita)(MACAGNAN, KURTZ & CARNIN, 2007, p.03). Deste modo, para desenvolver essa formação continuada, além de tomar como pressuposto teórico basilar o conceito de gênero textual e levar em consideração as proposições oficiais para o ensino da língua materna que constam nos documentos oficiais, também foram mobilizados estudos sobre o socio-interacionismo. E mesmo 1 Doravante, ao nos referirmos ao projeto, por motivos de concisão, nominaremos o mesmo apenas como “O Ensino de Línguas”. que subliminarmente, mais dois conceitos-chave foram empregados. São eles: (a) o conceito de transposição didática, e (b) o conceito de didatização ou elaboração de sequência didática. Sabemos que ambos estão imbricados e materializam-se de forma muito próxima, na construção de sequências de atividades didáticas. Sobre isso, podemos afirmar que traduzir e transpor a proposta de educação lingüística apresentada nos documentos oficiais de ensino e em textos teóricos de pesquisadores, como os que foram empregados em muitos dos encontros de formação continuada do referido projeto, bem como transformá-las em sequências de atividades de ensino desenvolvidas no âmbito do mesmo, tornam-se questões essenciais e determinantes, uma vez que envolve em seu processo o ‘como fazer’ didático. Sabemos, também, que este conceito não tem caráter de ineditismo no cenário educacional brasileiro, dado que nos próprios PCN (BRASIL, 1998) é sugerida a organização didática por meio de sequências didáticas (p. 44 – 45, por exemplo), ou seja, um material pensado para ser, segundo Dolz e Schneuwly (apud ROJO, 2000, p. 36), “um conjunto de aulas, organizadas de maneira sistemática em torno de uma atividade de linguagem (seminário, debate público, leitura para os outros, peça teatral), no quadro de um projeto de classe”. Mas sabemos, também, que muitos professores do ensino básico não possuem em seu ambiente de atuação um espaço para a realização e reflexão sobre esse procedimento. Nesse sentindo, a elaboração de uma sequência didática a partir de um determinado gênero implica na articulação de um mecanismo de construção didática que transforma o gênero textual em si, ou a sua descrição, em um programa de ensino do próprio gênero. Constrói-se, assim, a sequência didática, que coloca em ação três conjuntos de dados, quais sejam: “comportamentos dos especialistas, comportamentos dos aprendizes e experiências de ensino” (cf. DOLZ, SCHNEUWLY e de PIETRO, 1998, apud ROJO, 2001, p. 319). É a partir da definição desse modelo didático de gênero que o professor pode elaborar seu conjunto de atividades e tarefas em uma sequência didática, além dos procedimentos e recursos didáticos a serem utilizados e dos instrumentos de avaliação da aprendizagem a serem propostos. No entanto, esse trabalho com sequências didáticas “pode não ser muito bem aceito por professores, escolas e editores [de livros didáticos], na medida em que implica mudanças na forma de programar e organizar o ensino-aprendizagem no tempo escolar”, alerta Rojo (2000, p. 37). Contudo, a proposta de educação lingüística com sequências didáticas a partir de gêneros textuais apresenta benefícios como a possibilidade de o professor, ao ensinar, parta do que ele e seus alunos conhecem sobre o gênero (repertório de conhecimentos), bem como verifique quais são as práticas de letramento que os alunos já se apropriaram e vislumbre aquilo que ainda são capazes de aprender. Além disso, o trabalho com sequências didáticas fornece ao professor elementos para avaliar, juntamente com os alunos, os desafios e os avanços encontrados no percurso de estudo do gênero. É preciso dizer ainda que a proposta de sequência didática descrita acima não é a única forma de planejar o ensino. Essa proposta, entretanto, nos instiga a inventar ouros modos de organizar o ensino de um dado gênero. O que parece significativo é a idéia de que não há ensino casual: programá-lo parece ser o passo inicial para que possamos desenvolver uma postura de reflexão constante sobre ele, na sala de aula, na comunidade escolar, nos espaços de formação, na sociedade como um todo (GOMES-SANTOS, 2007, p. 59). E diante de todas estas orientações, como o professor participante do curso de formação continuada realiza sua prática? Ele consegue absorver todas essas orientações e colocálas em execução? Como saberemos que a execução de projetos de formação continuada como o descrito anteriormente tem alcançado seus propósitos? E ainda, como esses professores ampliam o(s) seu(s) letramento(s) e ressignificam a sua práxis? Apresentaremos a seguir uma proposta de material didático elaborada por um grupo de professoras colaboradoras deste estudo, objetivando mensurar como as discussões realizadas no projeto e as metodologias nele debatidas refletem na práxis do docente, em formação continuada, e em seu letramento didático-metodológico. Com isso, desejamos aferir, de modo efetivo, como as mudanças no letramento didáticometodológico do professor ocorreram, para além do nível discursivo, já avaliado em outros estudos (CARNIN, 2008; CARNIN & MACAGNAN, 2008) e, a partir da sua produção de material didático, observar de que forma isso se materializa em sua prática docente. 4. O material didático produzido pelas participantes como objeto de representação do conhecimento apreendido Analisaremos neste trabalho um material que foi produzido por um grupo de cinco professoras participantes do projeto “O Ensino de Línguas”, no município de Ijuí/RS. Trata-se de uma sequência de atividades elaborada para trabalhar com o gênero anúncio publicitário, com alunos das séries finais do Ensino Fundamental. É oportuno destacar que a sugestão de se trabalhar a referida sequência didática, se dá após apresentação e apropriação, em atividades anteriores, das características, formatos e suportes de veiculação do gênero em questão. A seguir, vejamos a proposta: ROTEIRO DE TRABALHO 1) Seleção do texto: selecionamos um anúncio publicitário, possivelmente, veiculado em uma revista dirigida ao público feminino que se estrutura basicamente em imagem e texto. 2) Série: todas, a partir da 5ª, observando-se o nível de profundidade das questões e sua pertinência. A) Atividades: 1) Questionar: por que no lugar de Moça, o criador do anúncio não utilizou outra palavra? 2) Propor um trabalho em grupo, com duração aproximada de uma semana, para que pesquisem: a) O que é Rock’n Roll? Quando surgiu? Como estava o mundo e o Brasil nessa época? b) A invenção do liquidificador... Quando foi inventado? O que ele permitiu? c) Que outras formas desse mesmo produto existem? A que público pretende atingir? d) Existem atualmente outras marcas de leite condensado. Quais são elas? e) Qual o papel da mulher brasileira na época do surgimento do Leite Moça? E hoje? O que se modificou? 3) Os alunos deverão apresentar os resultados em forma de seminário, distribuindo uma cópia das pesquisas aos colegas. 4) Após a realização desse trabalho, distribui-se a cópia inteira do anúncio. Colar a cópia original no quadro da sala. 5) Os alunos em seus grupos farão um comentário escrito e depois oral confrontando os dados pesquisados com o anúncio. 6) Questionamentos: a) Que relações vocês estabelecem entre a imagem da MOÇA do anúncio e a MOÇA do rótulo? b) O slogan “As maravilhas de sempre” é o mesmo daquele inicial (que você pesquisou)? c) A forma de apresentação do produto ainda é a mesma? O que mudou e por quê? d) A roupa que a manequim do anúncio está usando relaciona-se a que termo do enunciado publicitário? Justifique? e) A palavra ‘suar’ aparece com dois sentidos diferentes. Explique cada um deles. f) As informações nutricionais sobre o produto aparecem no rótulo e no anúncio? Por quê? g) A que período de tempo refere-se a palavra SEMPRE do slogan? h) Em que tempo verbal estão os verbos do enunciado? i) E que presente é esse? j) ACESSAR NA INTERNET O SITE DA NESTLÉ (WWW.NESTLE.COM.BR). OS DESENHOS QUE APARECEM NO RÓTULO DA PROPAGANDA EM ANÁLISE APARECEM TAMBÉM NO RÓTULO ATUAL. QUE CONCLUSÃO VOCÊ TIRA DISSO? k) Quem é o enunciador do anúncio? E do produto? l) O suporte dessa propaganda é uma revista feminina. Quem é o possível receptor desse anúncio? m) Se o conectivo “e” fosse substituído por uma vírgula alteraria o sentido do texto? Onde? n) Que estrutura familiar existia na época em que foi criado o Leite Moça? E que estruturas existem hoje? Comente o papel do homem e da mulher nas duas situações. B) SUGESTÕES PARA UM TRABALHO INTERDISCIPLINAR 1) CIÊNCIAS: valor nutricional, calorias do produto. 2) ARTES: cartaz publicitário. 3) MATEMÁTICA: calcular calorias, preço dos produtos, dos docinhos. 4) INFORMÁTICA: como ferramenta pedagógica, o computador possibilita as pesquisas e atualiza as informações. 5) HISTÓRIA: contextualização da época que surgiu o produto (acontecimentos no Brasil e no mundo). 6) GEOGRAFIA: caracterizar esta indústria, multinacional, o país de origem, onde se localiza? C) PRODUÇÃO TEXTUAL: 1) Propor aos grupos que façam docinhos e tragam para vender na escola. 2) Produzir a receita escrita – observar os verbos no imperativo. 3) Criar anúncios publicitários para serem distribuídos pela escola, persuadindo os colegas a comprar o produto, chamar a atenção para que observem: a) O público ao qual se destina; b) A imagem – que função ela terá?; c) Qual o objetivo? d) Definir o texto e o que este texto vai explorar, no caso, o sentimento de prazer ao se consumir o produto... Encerrar o projeto com a promoção de um “bailinho” anos 50/60. Sobre este material, podemos constatar que estas professoras alcançaram, ao menos no material apresentado, um maior entendimento sobre a necessidade de trabalho com textos que circulam cotidianamente na vida dos educandos, tendo em vista o gênero por elas selecionado. Dentre as sequências de atividades propostas, na “3”, essas professoras propõem um trabalho em forma de seminário que, se bem apresentado aos alunos as características deste gênero, mediará um bom trabalho com a oralidade, através das habilidades de ouvir e falar. Complementa esta atividade a proposição “5”, em que os alunos refletirão sobre o debate do seminário e escreverão um comentário (gênero da ordem do argumentar), e o apresentarão oralmente, confrontando com a leitura realizada na pesquisa e a leitura do gênero em estudo (anúncio). A partir disso, as professoras propõem um trabalho de questionamentos, não deixando claro, em sua seqüência, se este trabalho será desenvolvido na modalidade oral ou escrito. O que denota uma possibilidade de adaptação a cada nível ou turma em que o trabalho for realizado. É um sinal positivo, sob nosso entendimento, por não apresentar uma forma rígida, estanque, como verificamos em muitos livros didáticos de língua portuguesa. Em “d” do item 3, percebemos o trabalho com diferentes possibilidades de leituras que um anúncio publicitário como este possibilita. As professoras questionam sobre a leitura da imagem – roupa da manequim – e a leitura do anúncio, solicitando, ainda, uma produção escrita sobre a leitura dos alunos. Já em “e” observamos um possível deslize dessas professoras, ao questionarem os alunos sobre dois sentidos da palavra “suar” apresentada no texto. Não encontramos, como as professoras apontam, dois sentidos possíveis para a referida palavra dentro do contexto observado. Nas “sugestões para um trabalho interdisciplinar”, as professoras demonstram uma ampla percepção do fato que um texto como o que compõe esta sequência didática pode extrapolar os limites de uma aula de língua portuguesa e “dialogar” com as demais áreas do conhecimento, numa perspectiva interdisciplinar de trabalho. As propostas de produção textual que acompanham esta sequência didática, exceto a de número um, contemplam as dimensões esperadas para um trabalho sócio-interacional de escrita. As professoras apontam, na proposta, a criação de uma situação de produção textual, na qual os alunos seriam motivados a produzirem seus textos e socializá-los junto ao grande grupo, o que, sem dúvida, é altamente positivo. Ao observarmos que a questão primeira do enunciando, que organiza o roteiro das produções textuais solicitadas na sequência, não contempla um trabalho de escrita não significa dizer que o mesmo não é pertinente, mas sim que poderia vir a ser também uma oportunidade de exercício da escrita. De que forma? Se após Propor aos grupos que façam docinhos e tragam para vender na escola solicitassem que fosse feito um relato de como ocorreu a articulação, a organização e a efetiva realização da tarefa, pois, além de exercitar mais um gênero da escrita, poder-se-ia estar trazendo à discussão a importância de se educar para ações coletivas. Por fim, o planejamento destas professoras inclui a realização de um “bailinho anos 50/60”, que, a nosso ver, poderia ser ampliado e engajar os demais participantes da comunidade escolar, ampliando a atuação e o exercício de sala de aula a um contexto maior. A realização dessa atividade social e cultural demandaria a elaboração de novos gêneros textuais, tanto da oralidade quanto da escrita, uma vez que precisariam discutir e planejar a organização de tal evento, distribuindo tarefas entre os alunos da turma. Para isso, precisariam definir quem faria o quê e de que forma. Por exemplo, quem elaboraria carta à direção da escola, solicitando autorização para realização do referido baile; quem elaboraria e encaminharia convite às outras turmas da escola; quem reuniria com o Grêmio Estudantil da Escola para convidá-lo para ser parceiro na realização do evento; quem elaboraria e encaminharia convite ao Circulo de Pais e Mestres... Enfim, haveria uma infinidade de tarefas, dos quais emergiriam novos gêneros textuais, em situação real de produção e circulação. Tendo em vista estes breves apontamentos, percebemos que este grupo de professoras, mesmo que com algumas restrições, conseguiu alcançar boa parte dos objetivos esperados – tanto pelo projeto de formação continuada quanto pelas prescrições oficiais para o ensino – para o trabalho com uma educação linguística sintonizada com a realidade e as reais necessidades dos educandos. As eventuais limitações e/ou “desordens metodológicas” na elaboração desta sequência didática demonstram o quanto a mobilização dos saberes por elas apreendidos dos documentos oficiais e das instâncias de formação continuada passam pela compreensão de que a “ressignificação da ação docente” é um processo sempre em curso, que se (re)configura no confronto com outras práticas (SIGNORINI, 2006). Vemos, portanto, que a apropriação, por parte das professoras, dos conceitos de gênero textual e de tudo que isso implica - didatização e socialização dos materiais produzidos , além de uma nova concepção sobre como os textos são ou podem ser produzidos e consumidos - são as mais significativas contribuições que este projeto parece ter propiciado para ressignificar efetivamente a prática do professor de língua materna e ampliar seu letramento profissional. Embora saibamos que a internalização destes conceitos não ocorra de maneira linear, ortodoxa e acabada, ao discuti-los coletivamente, podemos perceber que “o professor constrói em sua prática conceitos que não são mais exatamente aqueles previstos pela teoria lingüística e/ou por obras de divulgação, mas são objetos próprios de sua situação de ensino” (RAFAEL, 2001, p.158). 5. Considerações Finais A prática docente e a formação continuada só se justificam como parte de um processo inacabado de permanente elaboração e reelaboração, pelo professor, de um sentido mais amplo do seu processo de formação profissional. Assim como é impossível conceber uma prática sem uma teoria, é igualmente inconcebível pensar o inverso. Desta maneira, observar como se dá a relação entre as teorias lingüísticas mais atuais, que regem o ensino de língua materna, a formação continuada do professor(a) e a conseqüente mudança (ressignificação) de sua prática e de seu nível de letramento são tarefas que necessariamente se inter-relacionam. Esse inter-relacionamento, no que diz respeito ao professor, diante do conhecimento e apropriação de “novas” teorias e metodologias sobre a educação linguística e a inovação em sala de aula, materializa-se de distintas formas, no discurso e na prática de alguns educadores. Signorini (2007), por exemplo, verificou em suas pesquisas que o saber docente além de “provisório” e pessoal, evolui com o tempo e com a experiência. Observa ainda que este é também cultural, modificando-se a partir da troca de experiências e da reflexão coletiva. Esta reflexão coletiva, no caso em referência, materializou-se em um espaço de formação continuada mediado pela universidade em um projeto de extensão, conforme já abordado. Convém destacar que as professoras que se inseriram no referido projeto, venceram inúmeros obstáculos, movidas pelo desejo de saber, pela busca do novo, pelo espaço de socialização e pela construção de novas práticas. É oportuno que se registre também que as professoras participantes desta formação continuada não são folhas em branco, trazem consigo uma bagagem de experiências e conhecimentos e, algumas, uma inquietante vontade de querer saber/fazer mais. Assim, o novo, submetido ao crivo da prática, poderia ser incorporado ou não a essa bagagem. Nesse sentido, reiteramos as discussões apresentadas em nossa análise, com relação ao contexto de investigação. Segundo esta, constatamos que o nível de compreensão e envolvimento com propostas de formação continuada como a apresentada é variado, dado ao fato de que algumas professoras são mais comprometidas com a sua formação e a sua práxis, ao passo que outras, nem tanto. Esse comprometimento, visualizado na análise do material didático elaborado pelas colaboradoras deste trabalho, sinaliza para o fato de que há uma apropriação efetiva mínima da perspectiva discursivo-textual/metodológica proposta nos PCN, nos demais documentos oficiais, e discutida nos encontros de formação continuada. Desta maneira, concluímos, com base nas perspectivas de análise deste estudo, que a concepção de língua(gem) e do uso que se pode fazer dela (e com ela) que norteia a prática pedagógica do professor de língua materna, bem como as práticas de letramentos efetuadas em contextos de ensino e de formação continuada foram/estão, gradativamente, sofrendo alterações, ou mesmo, acréscimos, e provocando uma “virada pragmática” no ensino de língua(gem) realizada por estes professores. Há que se ratificar, então, que uma (re) configuração de práticas (SIGNORINI, 2007) de ensino está de fato acontecendo, resultado de alteração do nível de letramento dos professores envolvidos na formação continuada. Diante do exposto, urge destacar, porém, não ser suficiente apenas uma fundamentação teórica bem alicerçada na formação inicial e continuada, uma vez que se faz necessário, principalmente, uma mudança de postura diante de práticas conservadoras que visam apenas reforçar ideologias já existentes. É imprescindível, na formação docente, uma busca constante não apenas do saber, mas também do fazer, inserindo fortemente a ideia e a prática da ação-reflexão-ação no dia-a-dia do professor para que este não se acomode na sua labuta diária, para que mantenha ativa a busca por um saber mais e um fazer melhor. Isso, segundo Kleiman (2007), significa que mais do que a aprendizagem de determinados conceitos e procedimentos analítico-teóricos, que mudam com as mudanças das teorias lingüísticas e pedagógicas, interessa instrumentalizar o professor para ele continuar aprendendo ao longo de sua vida e, dessa forma, acompanhar as transformações científicas que tratam de sua disciplina e dos modos de ensiná-la (KLEIMAN, 2007, p. 20). Nessa perspectiva, podemos dizer que são perceptíveis os efeitos da aproximação e parceria entre os grupos de professoras da escola da rede pública e a universidade, oportunizada pelo projeto de formação continuada. A permanência e envolvimento destes profissionais no grupo em questão demonstram que estão sendo rompidos, inclusive, tabus e/ou antigos ranços entre universidade e escola. Com isso, tem possibilitado que se (re) constituam identidades, dando segurança e autonomia a essas professoras para que se autorizem a produzir conhecimento através de seu próprio material didático e, nesse sentido, oportuniza-lhes crescer em autoconfiança e conhecimento de suas potencialidades, criando e dispondo de suas ferramentas de trabalho. REFERÊNCIAS: ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: uma outra escola possível. São Paulo: Ed. Parábola, 2009. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria da Educação Básica. – 3ª Ed. – Brasília: A Secretaria, 1997. ___________. Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica: Orientações Gerais. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria da Educação Básica. 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