16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas
Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis
A Memória como Subsídio para uma Poética
Ana Lisboa
Artista plástica e professora do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
Resumo
O presente trabalho tem como tema a memória como subsídio recorrente no
processo criativo de artistas plásticos na atualidade. A partir de breve análise da produção
desses artistas, pretende-se apresentar algumas contribuições no campo das artes para a
discussão do paradoxo entre o acúmulo de informação imagética, o fenômeno de
amnésia coletiva e a necessidade que o homem ocidental tem de colecionar coisas, talvez
para garantir sua história individual – a autobiografia – e a história coletiva, a história
propriamente dita.
Afirma Walter Beijamin (1993), que “O homem moderno é incapaz de recordar-se e
a narrativa teria entrado em extinção pelos novos modos expressivos”.
Palavras-chave: Memória, processo criativo, amnésia.
Abstract
This paper has as a theme the memory as an appellant subsidy in the modern
artists’ creative process at the present time. From a brief analysis of these artists’
production, the intention is to present some contribution to the arts field for the discussion
about the paradox among the imagery information, the collective amnesia phenomenon
and the necessity that the western man has to collecting things, maybe to ensure his
individual history – the autobiography – and the collective history, the history itself.
Walter Benjamin (1993) affirms that, "Modern man is unable to have a memory by
himself and the narrative would have entered into extinction by the new expressive ways”.
Key words: Memory, creative process, amnesia.
A memória e o momento atual
A memória, no sentido estrito, pode ser entendida como a soma de todas as
lembranças existentes na consciência, bem como as aptidões que determinam a
extensão e a precisão dessas lembranças. De modo geral, a memória necessita
de duas funções neuropsíquicas fundamentais: a capacidade de fixação e a
capacidade de reprodução. Para que uma lembrança seja eficaz, é indispensável
a compreensão do objeto sobre o qual se fixa a atenção, condição que depende
da afetividade e do interesse. Alguns autores defendem que as lembranças
perduram por mais tempo quanto mais são reforçadas pela repetição, porém, a
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eficácia da memória, indiretamente da consciência que se tem do vivido, é um
atributo automático do hipocampo.
Em seu livro “Matéria e Memória”, capítulo II, Do reconhecimento das
imagens: A memória e o cérebro, Henri Bérgson (1999), fala de duas memórias,
das quais uma imagina e a outra repete. A primeira se refere a imagens de sonho,
costuma aparecer e desaparecer, independente da nossa vontade; a segunda
repete-se um certo número de vezes, até que se torne uma lembrança que se
imprime na memória.
Sonho e poesia são, muitas vezes, feitos dessa matéria, que é lembrança
pura. Memória sonho, que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo, a
que Bérgson dá o nome de “inconsciente”. Em seus estudos, ele se defronta com
a subjetividade pura ( o espírito) e a pura exterioridade ( a matéria ), a matéria
como o conjunto de “imagens”. E, por “imagem”, uma existência situada a meio
caminho entre a “coisa” e a “representação”. Nesta obra, a lembrança representa
o ponto de interseção entre o espírito e a matéria.
Ecléa Bosi (1983, p. 9) faz uma reflexão sobre o pensamento de Bérgson
expresso na 1ª edição de seu livro, de 1939: “A memória aparece como força
subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e
invasora. Seria o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas”.
O momento atual tem provocado um desgaste na capacidade de fixação,
na medida em que a cultura da mídia eletrônica e cibernética transmite um imenso
panorama de informações em um
mínimo de tempo. Crescem o estado de
ansiedade e o sentimento de culpa e impotência perante a quantidade de novos
fatos levados ao nosso conhecimento, a cada instante. Várias são as indagações
sobre as conseqüências desta multiplicidade informacional no momento que ora
vivemos. Llya Prigogine questiona o fim da História, pontua que estamos vivendo
numa sociedade atemporal, que pouco a pouco perde sua memória, Canton (
2001, p. 43).
Lúcia Santaella (2003) afirma que os artistas são capazes de ajudar a
auscultar o presente e que é preciso atentar para o que estão fazendo, pois eles
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criam “uma espécie não verbal e poética em suas aproximações sensíveis com os
enigmas do real”.
Citando alguns artistas
É possível perceber a
memória de um dado indivíduo a partir de sua
autobiografia. Muitos são os artistas, na contemporaneidade, que se alimentam
da memória física e psíquica para a construção de sua poética.
Pode-se citar as produções de alguns artistas em que o viés autobiográfico é
explícito nos trabalhos, dentre eles: Frida Kahlo, Farnese de Andrade, Siron
Franco, Daniel Senise, Evandro Carlos Jardim, Leonilson, Rosângela Rennó e
tantos outros. Eles se incluem pictoricamente nas obras, constroem auto-retratos,
imagens decifráveis de mãe, pai, criança, casal, amor, ódio, foto, simbologia
religiosa e afins.
Frida Kahlo foi uma artista mexicana, famosa pela sua história, marcada por
grandes tragédias. Uma heroína, que sempre pintou a si mesma: “Eu me pinto
porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”.
Fez cerca de 70 auto-retratos, pintou, ao longo de sua vida, sua própria realidade,
sua angústia, sofrimento, vivências e, principalmente, seu amor pelo marido,
Diego Rivera.
Farnese de Andrade, artista mineiro, pintor, gravador, autobiográfico,
revelou nas obras sua trajetória pelas memórias de infância, do pai, da mãe, dos
irmãos, da “sagrada família mineira”.Vivia sua própria solidão, expressou seus
medos, dores, rancores, complexos, perdas,pânicos, fetiches, libido e euforia.
Tudo que fez foi retratar e relatar sua vida, visualmente ( Cosac, 2005).
Rosângela Rennô, arquiteta de formação e artista plástica mineira radicada
no Rio de Janeiro, utiliza de forma singular a mídia e as tecnologias de
comunicação, se apóia num suporte tradicional, a fotografia, para registrar a
produção da memória social. Ela trabalha com negativos de fotos de pessoas
comuns, imagens de álbum de família vendidos nos mercados públicos,
encontradas em arquivos de ateliês fotográficos populares e fotos de jornais. Sua
obra reflete o território da fotografia, problematiza a imagem além da
representação.
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Produção individual x Reminiscências
Falando da minha experiência pessoal, também como alguns artistas já
citados,
a mitologia pessoal vem sendo uma constante no ato da produção
plástica que realizo nesses quase 30 anos de pesquisa em arte, quer seja com
pintura,
desenho,
gravura,
assemblages,
fotografia,
instalação
e
vídeo/documentário. Realizo retrato, auto-retrato, oratório, paisagens oníricas, livro
de artista a partir dos fragmentos do dia, objetos encontrados, resíduos
autobiográficos, acaso, sincronicidade. Sigo a trilha do silêncio e do trabalho,
dividindo o tempo com a atividade de ensino na Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE.
No desejo de salvar a história, as experiências, e gerar conhecimento,
invisto na paixão pelos arquivos e coleciono os fragmentos das experimentações
vivenciadas.
“Defeito de fabricação”, sempre costumo dizer quando esqueço alguma
coisa que não deveria esquecer. Familiares e amigos já convivem com este fato,
em que assumir foi a forma menos sofrida e mais confortável. Passei a
compreender melhor uma série de coisas, de fatos. Algumas leituras sobre
memória foram realizadas a partir de autores que escreveram romances, filósofos
que abordaram e questionaram o assunto, como também alguns artistas
selecionados para acompanhar sua produção. Desta forma, alguns conceitos de
memória foram adquiridos e entendimentos pessoais me fizeram assumir esta
condição de artista, interessada nos caminhos das reminiscências.
Nas obras selecionadas, considerei dois aspectos: A) A memória a partir da
repetição, comum nos trabalhos de Frida Kahlo ; B) A memória pura, muito
presente na obra de Farnese de Andrade.
Fui buscar os antigos trabalhos e percebi o quanto os objetos e fatos
autobiográficos estão presentes na minha poética, sejam eles: lençóis que
pertenceram à família, retratos de entes queridos, roupas que marcaram época,
escritos em agendas, páginas de diários, cartas recebidas e enviadas, feltros da
prensa de gravura com marcas do tempo, tecidos de telas antigas, os primeiros
desenhos, as primeiras pinturas, o registro de processos para realização de
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trabalhos, sejam eles desenhos, pinturas, fotografia e filmagem do processo. Nas
aulas e oficinas que realizo tenho a preocupação de registrar todo o processo.
Utilizo os meios tecnológicos, filmagem e máquina digital para deixar os resíduos
concretos, os fragmentos da vivência, na lembrança.
Há estudos sobre crítica genética, que tão bem aprofunda e necessita dos
registros anteriores à obra pronta para a compreensão do ato criador. Assunto a
que venho me interessando nos últimos anos, mantendo um grande acervo
desses registros. Talvez, por isso, a necessidade de utilizar os objetos reais que
representam um momento vivido, dão uma idéia de posição, de papel no mundo,
de identidade pessoal. Esses objetos autobiográficos são incorporados nos
trabalhos, para serem resguardados na vida, fortalecendo a impressão de
continuidade. Desta forma, aproprio-me da memória real, tão bem explicada por
Bérgson .
A memória pura Bergsoniana, a partir dos sonhos, da subjetividade, é
sempre usada e está presente na maioria das ações, quando realizo gravuras,
através dos cortes, ranhuras, marcas deixadas nas matrizes geradoras de
lembranças, como também nas tentativas de eternização, utilizando gesso, cera e
fundição.
Alguns trabalhos:
Pinturas (1976 – 2006), retratos e auto-retrato: Há 30 anos, a primeira
pintura de retrato realizada foi dos meus pais. Em seguida, pintei a mim mesma,
quando tinha 10 meses. Pintura sobre tela, a partir de fotografia. Um exercício de
observação e reprodução.
Páginas de um diário e Página do diário (1993), expõem alguns momentos
do dia-a-dia, quando morei no Rio de Janeiro. Por um ano, as lonas ficaram
expostas
para
serem
transformadas
diariamente,
conforme
as
lembranças/fragmentos do dia, através de pintura, desenho e colagens. Escritos
que marcaram um tempo vivido, realização de textos visuais.
“Na série dos Vermelhos” (1994 – 2002), pinturas sobre tela e colagens de
tecidos que foram fronhas e lençóis de crianças, objetos repletos de histórias
familiares, desenhados e pintados evocando memórias íntimas em aspecto visual,
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sucinta feminilidade; desta forma conto minha história. Neste período fiz um autoretrato, utilizando alguns tecidos, desenhos e pinturas. O vermelho faz uma alusão
à afetividade ao ciclo mestrual.
Oratório ( 2001), “Tributo a um irmão”, calcogravuras sobre tecidos, coladas
em caixas de madeira. Quatro matrizes diferentes , cada uma reproduzida sete
vezes, alusão a todos os irmãos. No total , 28 oratórios. Contendo tecido colado
com impressão autobiográfica de família e escritos desenhados na madeira. Os
títulos das gravuras: São José, Santa Maria, Tributo, Sem título.
Caixas de recordações (2002 – 2007), da série: plantação e colheita : “A ver- o – mar”, “Itamaracá”, “Pontal do Boqueirão”, “Romênia”, “15 anos de Rafa”.
Comecei a colecionar coisas que me chamavam a atenção quando saía de férias
e no dia-a-dia. São madeiras, conchas do mar, flores, folhas, búzios, reservo em
caixas e, sem retrabalho, documento como um arquivo, registro as pessoas que
ajudaram a procurar, coloco o ano, o lugar e continuo com a coleção até hoje.
Livro de artista ( 2002– 2006), da série: plantação e colheita –
“ConSagrados e SenSagrados”( 2002). São dois livros, cujas páginas foram
construídas com os convites de exposições que colecionei durante anos. Há uma
intercomunicação com carimbo, desenho, pintura e escritos retirados do livro: O
Teatro do Absurdo, de Martin Esslin, escrito em 1961.
Da série plantação e colheita – “Interpelação no paraíso” (2005). Páginas
encontradas e colhidas do lixo da UFPE foram cuidadosamente trabalhadas com
nanquin, lápis e cera de abelha, a partir de três rosas recebidas no dia da morte
do Papa, por um jovem que assistia a missa. As rosas serviram de base para
todos os desenhos dos quatro livros de artista.
Gravura (2006), “Sem fim”. Uma série de gravuras, contendo 20 cópias a
partir
dos fósseis da rosa sobre a madeira, objeto/matriz escolhido para ser
eternizado e multiplicado no alumínio fundido.
A princípio, as matrizes foram eternizadas com cera de abelha, 18 rosas
recebidas com gestos carinhosos, que marcam momentos fugidios em sua beleza,
como a flor e a gentileza do ato. Congelar esses momentos, para que sejam
multiplicados para a humanidade. Pensar o tempo/ memória do nosso tempo.
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Instalação (2006), “Três Marias”. É o desdobramento de um trabalho, as
descobertas concretas que alimentam o percurso da produção, ir além, com o
mesmo assunto e matéria, até que outras formas surjam a partir da apropriação da
anterior, possibilitar o movimento cíclico. Esta instalação representa a eternização
de momentos vividos, retalhos da autobiografia, comprovação do desgaste do
tempo sobre a matéria. As 300 rosas que estão expostas são “famílias” de rosas
que, em sua multiplicação e agregação, definem o individual, são impressões
fundidas no alumínio, matrizes geradas de três rosas engessadas, vestígio de vida
vegetal, depois de nove meses de transformação foram colhidas, agora são
multiplicadas. Essas três rosas fizeram parte do trabalho; Da série: Plantação e
colheita – “Estou tão feliz que estou girando”, realizado no Hospital Ulysses
Pernambucano, na Semana de Artes Plásticas – SPA da Tamarineira 2005, em
que foram engessadas 1000 rosas.
Uma semana na qual ocupei e desocupei lugares no Hospital Psiquiátrico
do Recife, da mesma forma que, agora, ocupo o espaço das rosas com outro
material, o alumínio fundido. Um vídeo documentário foi realizado, fez parte
também daquele momento, corresponde aos registros do processo de feitura.
Uma das maneiras como enxergo o mundo, como uma infinita matriz.
Sinto um grande prazer em colher, arquivar, juntar, desdobrar, transformar,
multiplicar, acompanhado de sincronicidade. Busco na subjetividade caminhos de
resingularizações e entendimentos, num diálogo entre a matéria/alma/ação.
Sentidos virão a cada tempo, a partir dos deixados como memória e na memória.
Será que, na sociedade em que vivemos, na qual corremos o risco de amnésia
social, a arte poderá constituir uma ferramenta que possibilitará construir e
comunicar a memória do mundo presente?
Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. In: Obras escolhidas. São Paulo:
Brasiliense, 1993. V.1.
BERGSON, Henri. Matéria e memória – ensaio sobre a relação do corpo e do espírito. 2º
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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BOSI, Ecléa. Memória e sociedade – lembranças de velhos.2º ed. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1983.
CANTON, Kátia. Novíssima arte brasileira – um guia de tendências.São Paulo: Iluminuras,
2001.
COSAC, Charles. Farnese objetos. In: Catálogo de exposição no Museu Oscar Niemeyer.
São Paulo: Cosac Naify, 2005.
SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós humano: da cultura das mídias à cibercultura.
São Paulo: Paulus, 2003.
Currículo
Ana Lisboa. Artista plástica, mestranda em Ciências da Religião na Universidade
Católica de Pernambuco. Professora e pesquisadora da UFPE (Departamento de
Teoria da Arte e Expressão Artística). Tem participado em exposições nacionais e
internacionais. Apresentação de trabalho na 1ª Conferência Mundial em Arte
Educação UNESCO – “Desenvolver capacidade criativa para o século XXI”, em
Portugal no ano de 2006. Participação como palestrante e apresentação de
exposição no XXII Congresso Brasileiro de Neurologia – Arte e Neurociência no
ano de 2006 em Pernambuco.
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