Arte e Poder
O fenômeno artístico pode ser abordado sob diversos pontos de vista.
O mais amplo e distanciado é aquele que vê a arte como parte e
manifestação de um contexto social que a produz. Sob este aspecto o fenômeno
artístico não é nem mais especial que qualquer outro fenômeno cultural (entendendo
cultural no sentido amplo, antropológico).
A arte tem ocupado papéis diferentes em diferentes lugares e em diferentes
épocas. Também a relação entre o homem que a produz e o meio humano que a
usufrui varia de época para época e de lugar para lugar.
A fruição coletiva da arte, especificamente nas artes visuais, atravessa a
história, até o final da Idade Média.
Os valores humanistas e individualistas da Idade Moderna também
individualizaram não só a produção da arte, como também sua fruição,
individualização essa que em nossa época atinge seu clímax, pela diferenciação
cada vez maior de propostas e “visões de mundo” por parte do artista e a
proliferação do colecionador de obras de arte.
No entanto, apesar de todas essas transformações que a arte passou através
da história, podemos dizer que sua produção esteve, de certa maneira, sempre
ligada ao poder.
Na Antiguidade e Idade Média, a serviço de governos e da igreja e na Idade
Moderna, de reis e príncipes, e na época atual, sob as imposições da sociedade de
consumo especialmente as artes visuais que são mais objetais que outras
manifestações artísticas.
As evidências históricas mostram como as artes visuais são versáteis e se
curvam aos “ventos” dos interesses predominantes. Somente em alguns momentos
através da história vemos manifestações de arte crítica onde a produção artística
consegue escapar à arte de encomenda dos detentores do poder.
A arte não é portanto sempre um fenômeno “puro” e “intocável” como querem
alguns, mas como qualquer manifestação social é manipulável por forças estranhas
a ela.
Por isso não se admite hoje em dia o culto do mito da arte como algo
“sacralizado” e “acima” de outras manifestações culturais do homem. Neste século,
quando a consciência leva mais longe do que nunca seu poder de auto-análise, os
artistas tornam-se, por sua vez, mais conscientes de seu papel e do contexto em
que atuam.
Colocações questionadoras da própria arte e seus processos e do contexto
social onde ela se insere, surgem, então, como uma forma auto-analítica em
atitudes, eventos, idéias, mais do que propriamente, em obras acabadas. A ação
questionadora dessas atitudes ou “obras”, muitas vezes efêmeras em sua duração e
com tempo de vida limitado pelo próprio artística, oferece ao espectador o choque,
especialmente àquele que tradicionalmente cultiva o culto do objeto artístico.
Consideramos que muitas dessas atitudes, eventos ou experiências, se
constituíram em verdadeiros gestos políticos, e numa posição ideológica de
contestação a todo um sistema vigente.
Artistas como Marcel Duchamp e os participantes do movimento dadaístas se
rebelaram contra formas estabelecidas desde a Renascença e trouxeram um “novo
ar” e principalmente uma maneira de denunciar e despir o fenômeno “arte” de sua
aura sacralizadora. Essa denúncia nos faz rever a arte não como algo “acima” do
meio que a circunda, mas um fenômeno cultural inserido em um contexto social
como um complexo de relações entre artistas, obra, galerias, fruidor, comprador,
museu, salões, premiações, influenciando-se todos uns aos outros.
Esses artistas elaboram seu discurso crítico usando para isso, não a palavra,
mas a própria linguagem artística.
Surgem inúmeras formas e mídias, como eventos, performances, gestos,
ambientes, comportamentos, experiências criativas comunitárias, arte postal, vídeo
arte. As atitudes e gestos contestatórios foram muitas vezes documentados,
fotografados, vendidos como quadros, reabsorvidos pelo velho sistema de galeria e
sucumbiram às exigências do poder mercadológico.
A arte que pretendia ser uma alternativa cultural, em vez de ter conquistado
um espaço próprio, volta a ser reabsorvida pelo contexto viciado e retorna a servir a
mesma ideologia que rege as leis do mercado e do objeto artístico vendável, no
caso específico das artes visuais. Vemos portanto que há uma cumplicidade entre o
artista dito contestador e o sistema de distribuição de “cultura”instituído. O artista, na
maioria das vezes, guardou uma relação com esse sistema e acaba reabsorvido por
ele.
Por exemplo, na ultima Documenta de Kassel, que teve como principal
atração a “pintura selvagem” e que apresenta ser causada por “uma profunda
necessidade psicológica do momento histórico alemão, de voltar-se para o
expressivo e para o intuitivo”, corre o risco de ser uma subreptícia manipulação
mercadológica, porque, pintura vende, e gestos, atitudes, performances, sensações
temporais e passageiras são invendáveis como objeto e portanto põem em risco a
ideologia de um sistema muito bem estabelecido.
Nestor Garcia Canclini, em seu livro “A socialização da arte” defende uma
forma de arte que possa reunir aprendizagem crítica, participação emocional,
emoção artística e eficácia política num mesmo ato. O artista hoje deve ter
consciência de qual a ideologia que está servindo. Se ele se curva às exigências do
mercado e deixa as massas influenciarem a sua produção ou se guarda a sua
independência, criando em função de outras necessidades mais profundas e
autênticas.
Uma opção para o artista é ser, em vez de produtor de obras, o produtor de
situações que tenham conseqüências transformadoras das relações sociais.
Os campos de trabalho ou “espaços” para essas formas seriam encontrados em
diversos setores da comunidade, lugares públicos, parques, praças, centros
comunitários, e de modo particular, nas escolas, onde atuações continuadas dos
artistas provocadores de eventos criativos, pudessem ir formando uma consciência
da importância de “atos culturais”, mais do que de “bens culturais”, da sensibilização
das pessoas mais do que na acumulação de obras.
A prática socializadora de arte se tornaria assim um instrumento chave para
que novas condições culturais dessem lugar às bases para uma ação cultural
revolucionária.
Vera Chaves Barcellos
Novembro, 1982.
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