16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Era uma vez...: reflexões sobre um trabalho assombreado Andréa Brächer, PPGAVi/UFRGS RESUMO O presente artigo apresenta uma reflexão sobre uma série fotográfica denominada A...SOMBRA..DA, desenvolvida pela autora durante sua pesquisa de doutorado no PPGAVi/UFRGS. O papel materno e a criação artística, o mundo infantil e o mundo adulto, a amnésia da infância e a rememoração pela fotografia são alguns dos pontos abordados a partir de referenciais psicanalíticos. Palavras-chave: Fotografia; processo de criação artístico; psicanálise. ABSTRACT This article presents the reflections on a photographic series named A…SOMBRA…DA, developed by the author during her doctorate research in the PPGAVi/UFRGS. Motherly role and artistic creation, a child´s world and an adult world, the “amnesia” of infance and the remembrance through photography are some of the topics seen from psychoanalytic references. Key-words: Photography; artistic process; psychoanalysis. No conto....desaparece o que está indiferentemente próximo, aproxima-se o distante, que parece melhor e mais próximo. Era uma vez: no conto, isto significa não só algo passado, mas também um outro lugar mais vistoso ou mais agradável. E os que lá encontraram a felicidade, ali viveram felizes para sempre. Também no conto há sofrimento, mas a situação se transforma, e isto para sempre...O conto no final sempre torna-se dourado; existe felicidade suficiente à disposição. Nele, justamente os pequenos heróis e os pobres conseguem chegar até o lugar em que a vida tornou-se boa. i Era uma vez duas crianças gêmeas, Artur e Mariana, que viviam em Porto alegre com seu pai e sua mãe. Eles têm uma casa bonita, um lindo jardim e vários cachorros, que Mariana insiste chamar a todos de "Sisi". Embora não fosse nenhuma bruxa, a mãe fazia um tipo de mágica ao aprisionar a alma dos retratados num pedaço de vidro, metal ou papel. No texto que segue, a mãe conta a história de como os brinquedos do quarto de brincar de Artur e Mariana ganharam vida e aumentaram de tamanho assustadoramente durante a noite. Foi possível ainda reconhecê-los, mas eles pareciam quase que assombrados, pois foi só possível reconhecer uma pálida sombra destes projetadas na parede. 1234 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Por isso a mãe resolveu fotografá-los, já que não se pareciam mais com o objeto em si, mas com uma nova identidade, com um duplo, diferente do original. Esta duplicação já não se parecia como aquela do espelho. Sofreram um aumento de tamanho e perda dos contornos que dificultou o reconhecimento imediato de seu referente. Ao serem colocados diante de uma luz, os contornos dos bichos de pelúcia ganham novas formas na parede. A sombra de alguma coisa designa metaforicamente o seu inverso. Um inverso que adere, que cola à coisa da qual se originou e que, inseparável e melancolicamente, a acompanha, a persegue: a assombra. A noite, a morte, o negro, o invisível são os inversos do dia, da vida, do branco, do visível. E são ao mesmo tempo seus prolongamentos. Essa dupla relação de prolongamento e de inversão das sombras representa o próprio princípio da fotografia, que fornece aos objetos uma impressão de modo inverso: em negativo. A fotografia revela-se, assim, como uma máquina capaz de produzir sombras negras e brancas dos objetos. ii A essa série de fotografias deu-se o nome de A...SOMBRA...DA. Sobre as Sombras Hans Christian Andersen, no conto “A Sombra”, de 1847, escreve: “...assim que a vela era trazida ao aposento, a sombra se espichava até o alto da parede, chegava ao teto, de tão comprida que ficava, precisava se espreguiçar para recuperar as forças”. iii Os bichos de pelúcia se agigantam. Mas conforme o contorno, já não são mais reconhecíveis. É possível então, tentar distingui-los ou mesmo adivinhar a que personagem pertenceriam: a pequena Minnie rosa parece um demônio de dois chifres. Ao pensar sobre isto a mãe se lembra de uma música que costuma cantar para seus filhos, que diz assim: No teto A sombra da veneziana No braço da cadeira, A manga do casaco Parece um bicho...uma Cobra...Um sapo...Sei lá, Será que vai mexer?... iv A noite e as sombras que esta projeta despertam a imaginação e liberam nossos medos e monstros mais feios e escondidos. “A noite, a morte, o negro, o 1235 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis invisível são os inversos do dia, da vida, do branco, do visível” – nas já citadas palavras de Eduardo Vieira da Cunha. “Mulher vai a forró e bebê morre sozinho em casa” – manchete no site http://www.terra.com.br/ em 21/11/2005, “Mãe tranca filha de cinco meses em porta-malas” – manchete no site http://www.terra.com.br/ em 28/10/2005, “Corpo de bebê é abandonado em hospital em PE”, – site http://www.terra.com.br/ em 09/09/2005, “Mãe diz não lembrar se matou nove filhos”, Zero Hora, 03/08/2005, p. 32, “Últimas palavras da mãe suicida: estou levando meus filhos para ver os trens rápidos”, Evening Standard, 1º./09/2005, p. 5. Estas reportagens começaram a fazer parte dos documentos de trabalho da tese durante meu primeiro ano de doutorado. Podem, em algum momento, também se transformar em trabalho. No momento, apontam o espanto, a tristeza e a raiva diante de situações cruéis com bebês. Crueldade que é destinada ao papel de madrasta ou bruxa má nos contos. São essas reportagens que acompanham as idéias de escuridão e figuras indistintas. É a transformação de uma figura conhecida e segura, como a figura materna, em um ser assustador, capaz da mais alta violência contra seus próprios filhos. Um ser já destituído de seu papel de proteção, mas passível de abusos, maltratos e práticas negligentes aos seus pequenos filhos. Peter Pan, as boas mães e a fantasia Para Diana e Mario Corso, ao contrário dos contos de bruxas que se incumbem do lado ameaçador do papel materno nas histórias infantis, Peter Pan e Wendy é dedicada “as boas mães, que contam histórias, zelam pelo sono tranqüilo dos filhos e nunca se magoam com eles, independentemente do que façam” v . Ela espera pacientemente o retorno dos filhos do mundo imaginário. Mas para o mundo imaginário não é possível também ir a mãe? Essa é uma das questões que me coloco nos meus atuais trabalhos do doutorado. Dizem os mesmos autores: Somente as mães, obrigadas a um maior convívio com a infância de seus filhos, podem ter alguma notícia da fantasia destes, mas nenhuma poderá nem quererá ir a esse mundo imaginário. Sendo mãe, ela já pertence a outro planeta, alheia até a criança que ela própria foi...O autor [Berrie] lembra que abandonar a infância implica uma perda de identidade. É como se tivéssemos emigrado 1236 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis e, para habitar uma nova terra, tivéssemos de aceitar esquecer tudo sobre língua, costumes, cheiros e sabores de nossa terra natal. Acessar a terra adulta cobra o preço da amnésia da infância. Esquecemos de como procedíamos em relação às fantasias, do modo infantil de compreender o mundo, da língua que vi falávamos, como se isso tudo nunca tivesse sido nosso. [grifo nosso] Mas, será possível que realmente a mãe através de seus filhos não pode reverter esta amnésia da infância? Já não se pode mais compreender o mundo da mesma forma, com a mesma ingenuidade, mas não seria possível recuperar um pouco da fantasia infantil? Ou usar este contato para desenvolver o imaginário poético? Pois tornar-se mãe também é perder uma uma certa identidade e receber uma nova. “Não sou mais a Andreinha, filha de Ilka e Rodolfo, não sou mais a esposa do Daniel, sou a mãe de Artur e Mariana.” Nas palavras de Diana e Mário Corso, “Somente as mães, obrigadas a um maior convívio com a infância de seus filhos, podem ter alguma notícia da fantasia destes”. vii Ou seriam suas próprias fantasias que se desdobram ou se descontraem ao “estar vivendo de novo” aquele período da infância através das brincadeiras, fantasias, desejos e medos de seus próprios filhos? Como diria Henri Bergson em “Matéria e Memória”: Na verdade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória viii antigas imagens. Quais seriam estas antigas imagens? Senão a mistura de imagens presentes misturadas às imagens passadas? O autor considera que “se colocarmos a memória, isto é, uma sobrevivência das imagens passadas, estas imagens irão misturar-se constantemente à nossa percepção do presente e poderão inclusive substituí-la”. ix E prossegue logo adiante: “a todo instante completam a experiência presente enriquecendo-a com a experiência adquirida; e, como esta não cessa de crescer, acabará por recobrir e submergir a outra”. x É baseada nesta idéia de experiência presente com experiência adquirida, de minhas imagens presentes com minhas imagens de infância que passo a pensar no caráter temático e conceitual de meus trabalhos fotográficos. 1237 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Conforme diferencia Édson Sousa, o campo da vivência “não é suficiente para que o sujeito possa se conectar com o que vive, com o que sente, com o que pensa. Para que uma vivência possa se constituir numa erfahrung (experiência) é preciso que haja fundamentalmente condições de transmitir e narrar o que se vive”. xi É preciso, segundo ele, “construir espaços mentais: imagens, palavras que legitimem subjetivamente para cada um o que é capaz de perceber no mundo xii . Criar um trabalho, uma obra de artes visuais implica instaurar uma existência, fundar um novo olhar e ser uma forma singular de compartilhar uma experiência. xiii Ou seja, minha experiência com a arte, minha experiência com meus filhos. Para Winnicott, a criança adquire experiência brincando, através da brincadeira e da fantasia, o que é muito importante para sua vida. A experiência de vida do adulto e a experiência na criança vêm através da vivência, o que proporciona o desenvolvimento de suas personalidades. E foi pensando e observando as brincadeiras de meus filhos, que surge a idéia de trabalhos com este mundo repleto de brinquedos e personagens de sonho e fantasia. Bichos de pelúcia, livros que viram casinha em três dimensões, os monstros e personagens de filmes infantis recentes e passados, brincadeiras de infância: tais como projetar sombras numa parede com uma lanterna; o corte, recorte e cole; os contos de fadas. Tudo virou matéria a ser explorada através da fotografia. Embora a fantasia esteja associada, psicanaliticamente, a um empobrecimento da experiência, e o sonho possa compensar a tristeza e o desânimo, penso, como Sousa, naqueles sonhos que nos levam a outro espaço de experiência para o sujeito, que “abre uma dimensão de reflexão crítica e introduz no espaço da vida uma zona de imaginação, de desequilíbrio, de suspensão”. xiv Tal como as personalidades dos adultos se desenvolvem através de suas experiências da vida, assim as das crianças evoluem por intermédio de suas próprias brincadeiras e das invenções de brincadeiras feitas por outras crianças e por adultos. Ao enriquecerem-se, as crianças ampliam gradualmente sua capacidade de exagerar a riqueza do mundo externamente real. A brincadeira é uma prova evidente e constante da capacidade criadora, que quer dizer vivência. xv [grifo nosso] Perder a sombra, para alguns, simboliza a perda da alma, para outros a perda do “duplo” que cada um de nós carrega consigo. Aqueles destituídos de 1238 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis alma já não se vêem refletidos no espelho. À câmara fotográfica se atribui o poder de gerar o duplo, de capturar a alma, de ser uma janela para um universo mediado pelas fantasias, desejos e afetos de seu operador. É a porta para o invisível: tanto daquilo que não é visto (por exemplo, a captura de movimentos muito rápidos), mas também do que só é possível imaginar. Para Lacan, ao pensar o desenvolvimento emocional individual, o precursor do espelho é o rosto da mãe. Peter voando toca o rosto de Wendy e ao acordá-la, voa janela afora. Naná (a cachorra-babá) morde/prende seu sombra, que o faz retornar rapidamente ao quarto. Peter foge novamente e sua sombra é guilhotinada pela janela. É tragicamente separada de seu corpo. É a presença de um rosto adulto, dominado pelos seus dois grandes olhos, que inaugura essa conversa, em que o bebê se percebe olhado, sorri e recebe em troca sonoras manifestações do efeito causado por sua pessoa. Sou visto, logo existo. Nesses casos a sombra funcionaria como um espelho que pode simbolicamente testemunhar que existimos para os outros. xvi Por isso a necessidade de recuperar sua sombra. Ao procurá-la, a reencontra em uma gaveta e trava uma batalha com a mesma. É Wendy que a costura novamente ao corpo de Peter, pelo pé. Se pensarmos na câmara fotográfica novamente, veremos que a cortina do obturador também funciona como uma guilhotina. Ao abrir, deixa passar a imagem do retratado (como a janela-guilhotina de Peter Pan), que fica registrada em estado latente ou de informação numérica em seu corpo. Mas ao fechar, corta os raios luminosos, interrompendo aquela passagem de tempo para sempre. O obturador guilhotina a passagem do duplo. A câmara fotográfica separa o duplo de seu objeto. E os bichos de Artur e Mariana ganham existência própria. Primeiro são tragados pelo CCd da câmara, transferidos para a memória do computador. Aparecem novamente numa tela, são manipulados: cortados, rotados, redimensionados, destituídos de cor, invertidos, preenchidos por cor novamente. Impressos numa superfície são transferidos por contato ao papel, onde vão bidimensionalmente representar sua existência tridimensional. Não são mais bichos de pelúcia, mas quase fantasmas, aparição, assombração, espectro. Partem da ordem do real e passam a ordem da fantasia. 1239 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis Na história, a mãe de Wendy deixa essa mesma janela que guilhotina o duplo, aberta, esperando o retorno de seus filhos. A janela é entendida como o local simbólico de passagem entre o mundo dos humanos para o mundo encantado e da fantasia da Terra do Nunca. A fotografia e seu aparato técnico transita, ao mesmo tempo, entre o real e o imaginário. Voltando a Ernest Bloch e a epígrafe deste texto, no conto: Desaparece o que está indiferentemente próximo, aproxima-se o distante, que parece melhor e mais próximo. Era uma vez: no conto, isto significa não só algo passado, mas também um outro lugar mais vistoso ou mais agradável. xvii Que lugar e que meios são esses que nos transportam para um lugar mais vistoso e mais agradável, se não o do nosso próprio imaginar, divagar, de nossas fantasias? Peter Pan, Wendy, Miguel e João chegam até a Terra do Nunca graças ao pó de fada que os faz voar. Seria a arte um pouco deste pó que nos transporta a reinos nem tão desconhecidos assim? Porém em muitos casos, para compreendê-la, para acessá-la, para lá ser transportado é necessário entender “palavras mágicas”, que pertencem a um código de iniciados. O elemento fantástico presente enquanto maravilhoso nessas narrativas cumpre a função de garantir que se trata de outra dimensão, de outro mundo, com possibilidades e lógicas diferentes. Assim fazendo, os argumentos da razão e da coerência já são barrados na porta, e a festa pode começar sem suas incômodas presenças, bastando pronunciar as palavras mágicas Era uma xviii vez...como uma senha de entrada . Mas lá chegando, esta outra dimensão, este outro mundo, nos propõe uma libertação, basta “deixar-se afetar pelas forças que emanam daquilo que nos olha, seja daqueles brinquedos de pelúcia, daquelas casinhas de brinquedo, daqueles cheiros e gostos que exercem em nós a força de atratores caóticos, extraindo possibilidades de novos olhares, novas sensações e um certo reencantamento da concretude de nosso mundo xix . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação. São Paulo: Ed. 34, 2002. BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 1240 16° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais – 24 a 28 de setembro de 2007 – Florianópolis BERRIE, J.M. Peter Pan e Wendy. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BLOCH, Ernst. Princípio Esperança. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2005. Vol 1. CALVINO, Ítalo (org.). Contos Fantásticos do Século XIX: o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CORSO, Diana Lichtestein; CORSO, Mário. Fadas no Divã: psicanálise das histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2005. CUNHA, Eduardo Vieira da [et al.] Eduardo Vieira da Cunha. Porto Alegre: Edição do Autor, 2003. FONSECA, Tania Mara Galli. Texto qualificação Andréa Brächer. Porto Alegre: PPGAVi, 2006. SOUSA, Edson Luiz André de. Por uma Cultura da Utopia. In: Unicultura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. p. 36-45. WINNICOTT, D.W. A Criança e o seu Mundo. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 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