UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
CAMPUS DE CAMPINA GRANDE
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE DIREITO
LAÍS DE SOUZA RIBEIRO
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A OBRIGAÇÃO DO
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO PODER
PÚBLICO: PARÂMETROS E PERSPECTIVAS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
CAMPINA GRANDE – PB
2013
LAÍS DE SOUZA RIBEIRO
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A OBRIGAÇÃO DO
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO PODER
PÚBLICO: PARÂMETROS E PERSPECTIVAS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
Trabalho de conclusão de curso apresentado
como requisito para obtenção do título de
Bacharel em Direito, pelo Curso de Direito
da Universidade Estadual de Paraíba- UEPB
– CAMPUS – Campina Grande.
Orientador: Prof. Ms. Antônio Silveira Neto
Campina Grande
2013
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL – UEPB
R484j
Ribeiro, Laís de Souza.
Judicialização da saúde e a obrigação do fornecimento
de medicamentos pelo poder público [manuscrito]:
parâmetros e perspectivas no ordenamento jurídico
brasileiro / Laís de Souza Ribeiro. 2013.
53f.: il. Color.
Digitado.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Direito) – Universidade Estadual da Paraíba, Centro de
Ciências Jurídicas, 2013.
“Orientação: Prof. Me. Antônio Silveira Neto,
Departamento de Direito”.
1.
Políticas públicas. 2. Direito à saúde. 3.
Judicialização da saúde. I. Título.
21. ed. CDD 320.6
APROVADO EM: 28/08/2013
Aos meus pais pela dedicação
incessante, pelo amor sem medida e
pelo carinho sincero que me fortalece
todos os dias.
RESUMO
A Constituição Federal de 1988 prevê direitos e garantias aos cidadãos que
são materializados mediante a realização de políticas públicas. No entanto, a inércia
dos poderes legislativos e executivo na edição e execução dessas políticas
compromete a concretização desses direitos, o que contribui para a consolidação da
judicialização das políticas públicas. Sobre esse fenômeno, os doutrinadores
apontam diversas causas para o seu surgimento, destacando as lacunas e omissões
do Estado, e divergem entre o eixo procedimentalista, que defende a extinção da
judicialização, e o substancialista, que propõe a sua manutenção, prevalecendo este
último desde que racionalizado. No caso específico da saúde, direito previsto na
Carta Magna que deve ser assegurado aos cidadãos por todos os entes federativos,
crescem as demandas judiciais pleiteando a realização de tratamentos terapêuticos
e o fornecimento de medicamentos. O STF tem se posicionado no sentido de que a
judicialização nessa área é legítima, mas deve ser aplicada com parâmetros a fim de
não comprometer os cofres públicos. O entendimento manifestado por esta Corte
tem se refletido em decisões de órgãos julgadores por todo país, a exemplo do
TJPB. O expressivo crescimento de litígios nessa área e o consequente aumento de
gastos pelo poder público têm estimulado o surgimento de mecanismos alternativos
que visam minorar os gastos da saúde com demandas judiciais e desafogar o
judiciário.
PALAVRAS-CHAVE:
medicamentos.
judicialização,
políticas
públicas,
direito
à
saúde,
ABSTRACT
The 1988 Constitution provides citizens with rights and guarantees that are
materialized through the implementation of public policies. However, the inertia of the
legislative and executive powers in the editing and execution of these policies
undermines the realization of these rights, which contributes to the consolidation of
the judicialization of public policy. About this phenomenon, the scholars point to
several reasons for its emergence, highlighting gaps and omissions of the State, and
diverge from the axis proceduralist, which advocates legalization of extinction, and
the substantive model, which proposes to its maintenance, the latter prevailed since
streamlined. In the specific case of health, the right provided for in the Constitution
and must be guaranteed to all citizens by the federal entities, grow the lawsuits
claiming the achievement of therapeutic and drug delivery. The Supreme Court has
positioned itself in the sense that the judicialization this area is legitimate, but should
be applied to the parameters to avoid jeopardizing the public coffers, to the same
effect has been applied TJPB. The significant growth of litigation in this area and the
resulting increase in spending by the government has encouraged the emergence of
alternative mechanisms aimed at reducing the costs of health with lawsuits and
relieve the judiciary.
KEYWORDS: legalization, public policy, right to health, medicines.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................7
1. O DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO...............9
1.1.
Evolução do direito à saúde no estado brasileiro ..................................9
1.2.
A saúde e a Constituição federal de 1988............................................10
1.2.1. Direito social de segunda dimensão..........................................11
1.2.2. O direito à saúde e a seguridade social.....................................13
1.2.3. Financiamento da saúde............................................................16
1.3.
A distribuição de medicamentos pelos entes públicos..........................18
2. JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A CONCRETIZAÇÃO DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.............................................................21
2.1.
Judicialização: conceituação polissêmica.............................................21
2.2.
Conceituação e importância das políticas públicas..............................23
2.3.
Por que surgiu a judicialização das políticas públicas?........................25
2.4.
Judicialização: novo canal de representação da sociedade ou ameaça
à soberania popular?.................................................................................27
3. JUDICIALIZAÇÃO
DA
SAÚDE:
POSICIONAMENTOS
JURISPRUDENCIAIS...........................................................................................31
3.1.
O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da saúde....................34
3.2.
O posicionamento do tribunal de justiça da paraíba.............................39
3.3.
Racionalizar a judicialização da saúde: caminho para a redução do
déficit no orçamento público......................................................................44
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................47
REFERÊNCIAS
BIIBLIOGRÁFICAS
7
INTRODUÇÃO
A Constituição federal de 1988 inaugurou no Brasil uma política de garantia
de direitos fundamentais sem precedentes na história do país. Com o objetivo de
evitar que desmandos fossem praticados contra os cidadãos e estes não tivessem
asseguradas condições mínimas de vida, foram previstas no texto da Carta Magna
diversas garantias que foram alçadas à condição de cláusulas pétreas.
Contudo, simplesmente prever o direito não garante o seu cumprimento.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal atua, com o auxílio de todos os outros
órgãos do poder judiciário, como verdadeiro guardião da Constituição Federal,
zelando para que seus preceitos sejam não só respeitados, mas, acima de tudo,
concretizados. Nesse sentido, tem o poder judiciário ampliado o seu leque de
atuação, promovendo, inclusive, a realização de políticas públicas por meio de suas
decisões judiciais. A esse fenômeno os doutrinadores intitulam de judicialização das
políticas públicas.
Diversas são as causas apontadas que ocasionam a ocorrência dessa
atuação diferenciada do judiciário, no entanto o fato é que a judicialização
consolidou-se no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que o próprio
Supremo Tribunal Federal reconhece a necessidade de materializar os direitos
constitucionais quando o Estado, por omissão ou ineficiência, não consegue fazê-lo.
Deste modo, observa-se que o Judiciário tem atuado amplamente na realização de
políticas públicas no país. Dentre elas, avulta em importância o direito à saúde e a
sua concretização pela via judicial.
A quantidade de demandas que pleiteiam o fornecimento de medicamentos e
a realização de tratamentos terapêuticos cresceu expressivamente no Brasil,
exigindo do judiciário uma atuação significativa nesta área. A ausência de uma
normatização para a promoção deste direito através de demandas judiciais, impeliu
que o Supremo Tribunal Federal legitimasse a judicialização da saúde no país e
propusesse o estabelecimento de parâmetros, a fim de balizar os interesses dos
cidadãos com as limitações estatais. Contudo, a temática suscita diversos
questionamentos e demanda reflexões acerca do direito à saúde, da conceituação e
8
natureza da judicialização e da atual situação desse fenômeno no ordenamento
jurídico pátrio, carecendo de maiores aprofundamentos.
Neste sentido, o presente trabalho objetiva analisar o fenômeno da
judicialização da saúde no Brasil, apresentando, primeiramente, a abordagem que a
Constituição Federal realiza do direito à saúde e do fornecimento de medicamentos,
como acontece o financiamento das políticas públicas nestas áreas e quem tem,
entre os entes federativos, a competência para assegurá-los. Em seguida, será
analisada a conceituação de políticas públicas e da judicialização, apresentando os
diversos posicionamentos dos doutrinadores sobre esse fenômeno, suas causas e
críticas. Por fim, será observado o caso específico da judicialização da saúde no
brasil, mediante a discussão do posicionamento adotado pelo Superior Tribunal
Federal sobre o tema em suas decisões e sobre alternativas que surgem aos
parâmetros propostos por esta corte.
9
1. O DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
1.1.
EVOLUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO ESTADO BRASILEIRO
O acesso a medicamentos, a tratamentos curativos, terapêuticos e preventivos,
apesar de precário, é garantido aos brasileiros a partir de políticas públicas que
objetivam, conforme destaca Amado (2012, p.53), “à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação”. A realidade atual da saúde pública de fato é
difícil, no entanto a história brasileira demonstra que o Estado em muito tem
avançado na concretização deste direito.
De acordo com Barroso (2010), a saúde pública no Brasil foi tratada de forma
muito esparsa até a década de 30 do século XX. Com efeito, observa-se que no
século XIX, após a chegada da Coroa Portuguesa, o Estado preocupou-se apenas
com o tratamento pontual de epidemias, a exemplo da lepra e da peste, e com a
difusão de medidas sanitárias com o objetivo de coibir a proliferação de doenças.
É na década de 30 que a saúde começa a se tornar uma área de preocupação
para o Estado. Neste sentido, ocorre a criação do Ministério da Educação e Saúde
Pública e dos IAPs, Institutos de Aposentadoria e Pensão, cujo objetivo era realizar
ações curativas para aqueles que estavam vinculados ao sistema. Observa-se,
portanto, que ainda não era aplicado o princípio da universalidade na prestação dos
serviços de saúde, estando as medidas curativas apenas restritas àqueles cidadãos
que pertenciam a alguma categoria profissional vinculada a esses órgãos. Na
década de 50, ocorre a criação do Ministério da Saúde, mediante a lei nº 1.920/53,
manifestando o claro interesse governamental em centralizar as políticas públicas
nessa área a partir de um órgão específico.
No entanto, apenas durante o regime militar, em 1967, são estabelecidas as
competências desse órgão, a saber: política nacional de saúde; atividades médicas
e paramédicas; ação preventiva em geral, vigilância sanitária de fronteiras e de
portos marítimos, fluviais e aéreos; controle de drogas, medicamentos e alimentos e
pesquisa médico-sanitária. Destaque-se, também durante o período militar, a criação
de uma autarquia vinculada ao então Ministério da Previdência e Assistência Social
10
(atualmente Ministério da Previdência Social), o Instituto Nacional de Assistência
Médica da Previdência Social (INAMPS), que surgiu a partir da unificação dos INAPs
e era voltado especificamente para os trabalhadores que possuíam carteira
assinada.
Sensível às crescentes necessidades sociais de assistência médico-hospitalar,
o governo acaba ampliando gradativamente a abrangência desse órgão, durante
toda a década de 80, sem que houvesse, porém, a universalização do direito à
saúde que só ocorre com o processo de redemocratização do país em 1988. Sarlet
e Figueiredo (2009, p. 52) sintetizam como estava organizada a saúde até a criação
do SUS:
(...) o acesso à assistência médico-hospitalar era limitado aos trabalhadores
com vínculo formal, segurados da Previdência Social, enquanto a
competência ara a implementação de ações e serviços de saúde era
dividida: ao Ministério da Saúde cabiam as “ações de caráter coletivo”, com
caráter sanitário e preventivo, associadas á ideia de saúde pública;
enquanto “as ações individuais”, de escopo curativo, ficavam a cargo do
Ministério da Previdência e Assistência Social, que as realizava por meio do
INAMPS. (p. 52)
1.2.
A SAÚDE E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
É na Constituição de 1988 que o Brasil trata pela primeira vez do direito à
saúde seguindo uma tendência internacional de normatização. Trata-se de direito
fundamental que deve ser assegurado amplamente, conforme destaca Amado
(2012, p.55):
De efeito a saúde pública consiste no direito fundamental às medidas
preventivas ou curativas de enfermidades, sendo dever estatal prestá-la
adequadamente a todos, tendo natureza jurídica de serviço público gratuito,
pois prestada diretamente pelo Poder Público ou por delegatários
habilitados por contrato ou convênio, de maneira complementa, quando o
setor público não tiver estrutura para dar cobertura a toda população.
O referido direito é, inegavelmente, muito importante para a sociedade, pois
ele garante, juntamente com outros direitos, que o princípio da dignidade da pessoa
humana, um dos fundamentos da República, seja concretizado. Por ser complexo e
11
abranger diversas perspectivas de análise,
o presente capítulo
abordará
primeiramente a saúde como direito social, mediante a análise do artigo 6º, caput, e
artigo 196 e seguintes da Constituição Federal. Em seguida será apresentado como
ocorre financiamento da saúde de acordo com a Carta Magna e a lei 8.080/90, que
rege o Sistema Único de saúde. Por fim, será abordado um dos serviços que devem
ser oferecidos pelo Estado à população, que é a distribuição de medicamentos e seu
financiamento.
1.2.1. Direito social de segunda dimensão
Abordado primeiramente de forma genérica no artigo 6º da Constituição de
1988, a saúde é considerada direito social e, portanto, integra a segunda dimensão
de direitos fundamentais, que abrange direitos que demandam prestações materiais
do Estado, tendo em vista que buscam reduzir desigualdades, proteger os
hipossuficientes e conceder melhores condições de vida à sociedade.
Por ser um direito fundamental, ele deve abranger todos os cidadãos
brasileiros e, inclusive, os estrangeiros que se encontram apenas de passagem no
país e necessitam de cuidados médicos, conforme esclarece Salert (2002, p.6):
Com efeito, ainda que existam direitos fundamentais de titularidade restrita
(os direitos políticos e os direitos dos trabalhadores, por exemplo), a
doutrina mais moderna, assim como a jurisprudência mais atualizada,
felizmente não chancelam este entendimento restritivo, notadamente em
homenagem ao princípio da universalidade dos direitos fundamentais. Para
além disso, basta que se atente para a fórmula utilizada pelo Constituinte no
já citado artigo 196 da nossa Carta Magna ("a saúde é direito de todos...")
para evidenciar que nos encontramos diante de norma que excepciona a
regra geral estabelecida no "caput" do artigo 5º. Mesmo que assim não
fosse, teríamos motivos de sobra para uma leitura de feição extensiva, e
isto por vários motivos. No caso específico da saúde, como, de resto, ocorre
com uma série de outros direitos fundamentais, parece elementar que, por
sua direta ligação com o próprio direito à vida e com o direito à integridade
física e corporal, que, por sua natureza, são direitos de todos (e de qualquer
um), nos encontramos também diante de um direito de toda e qualquer
pessoa humana, brasileira ou não.
12
No entanto, é importante destacar, segundo Sarlet (2002), que o direito a
saúde exige do ente estatal uma atuação não apenas no sentido prestacional, de
promoção de políticas públicas que permitam o acesso a diversos serviços
relacionados à saúde, mas também uma atuação de defesa em que o Estado deve
proteger o cidadão para que contra ele não seja cometido qualquer ato, seja por
parte do próprio governo ou de terceiros, que comprometa a sua integridade física e
psicológica. O individuo tem, portanto, o direito de exigir essa dupla postura do ente
estatal e possui, também, o dever de não cometer qualquer ato que dificulte a
concretização deste direito ou que interfira na esfera individual de terceiro.
Essa dupla atuação estatal, prestacional e de defesa, baseiam-se em
princípios que reforçam a fundamentalidade desse direito, tratam-se dos princípios
da máxima efetividade, o da vedação do retrocesso e o da reserva do possível, este
último ainda de aplicação controversa no ordenamento jurídico brasileiro, conforme
será discutido posteriormente. O princípio da vedação do retrocesso possui relação
direta com postura de defesa que deve o Estado assumir em relação ao direito à
saúde. Nesse sentido, como bem destaca Salert (2002), não pode este ente realizar
nenhum tipo de medida que prejudique ou diminua os direitos já conquistados pela
sociedade, sendo o referido princípio justamente um limitador na atuação estatal,
para que este não restrinja direitos no âmbito legislativo, durante a edição de leis,
jurídico, no julgamento de casos concretos, e executivo, na concretização das
normas. Sobre a importância da vedação do retrocesso, Almeida (2006, p. 5)
destaca que:
O direito à proibição de retrocesso social consiste numa importante
conquista civilizatória. O conteúdo impeditivo deste princípio torna possível
brecar planos políticos que enfraqueçam os direitos fundamentais. Funciona
até mesmo como forma de mensuração para o controle de
constitucionalidade em abstrato, favorecendo e fortalecendo o arcabouço de
assistência social do Estado e as organizações envolvidas neste processo.
Além do mais, o princípio da reserva de justiça da Constituição imprime a
vontade do titular do Poder Constituinte, este legítimo quando seja
depositário dos valores inspiradores do conteúdo normativo da Carta
Magna. O poder constitucional é limitado aos valores base em que fora
sedimentado.
O princípio da máxima efetividade, por seu turno, se relaciona com a postura
prestacional que o Estado deve assumir diante dos direitos fundamentais. Desse
13
modo, deve-se buscar sempre uma interpretação em que seja dada a máxima
efetividade a determinado direito fundamental, especialmente quando diante de
algum tipo de conflito aparente entre normas. Não pode o ente estatal, portanto,
conforme esclarecem Salert (2002), furtar-se de aplicar determinado direito
constitucional sob a alegação de que não há uma normatização plena do direito,
pois este possui uma força normativa que impõe sua efetivação direta, impedindo
que os referidos direitos fiquem sujeitos à uma ação estatal.
O terceiro princípio, que possui relação direta com os direitos sociais e mais
especificamente com o direito à saúde, é o da reserva do possível que suscita
muitas discussões no âmbito doutrinário e aplicações diferenciadas no ordenamento
jurídico pátrio. Com efeito, a natureza dos já referidos direitos sociais impõe uma
atuação prestacional do Estado mediante a realização de políticas que concretizem
tais direitos. Ocorre, porém, que as receitas públicas são limitadas e nem sempre é
possível suprir todas as necessidades sociais. Por esse motivo, alguns
doutrinadores defendem o posicionamento de que o Estado deve agir pautado no
princípio da reserva do possível, atuando apenas até o limite que os cofres públicos
permitem, independentemente da necessidade social. Outro posicionamento, porém,
refuta essa postura restritiva do Estado, propondo uma aplicação relativa desse
princípio, conforme destaca Salert (2002), no sentido de que sejam balizados os
interesses em conflito, devendo o Estado considerar a demanda orçamentária, mas
também
atender
a
interesses
de
natureza
emergencial.
Esse
segundo
posicionamento tem ganhado mais relevo no campo doutrinário e jurisprudencial,
como será evidenciado posteriormente.
1.2.2. O direito à saúde e a seguridade social
Por oportuno, além de estar presente no rol de direitos sociais previstos no
caput do artigo 6º da Carta Magna, impende ainda destacar o segundo momento em
que a saúde é mencionada no referido diploma legal. No título da “Ordem Social” a
Constituição trata a saúde como um dos segmentos da seguridade social, esta
compreendida, segundo Ibrahim (2011), como uma rede protetiva que busca realizar
14
políticas para atender os cidadãos mais carentes, os trabalhadores e seus
dependentes, lhes concedendo melhores condições de vida, sendo financiada não
só pelo Estado, mas também pelos particulares, mediante o pagamento de
contribuições.
A seguridade social possui três planos de ação social, conforme dispõe o
caput do artigo 194 da CF/88, a saúde, a assistência social e a previdência social
que se dividem em dois sistemas, o contributivo e o não-contributivo. A previdência
social, por depender do pagamento de contribuições pelos beneficiados, faz parte do
sistema contributivo. A saúde e a assistência social, por seu turno, fazem parte do
sistema não contributivo, pois oferecem serviços públicos a toda e qualquer pessoa
independentemente do pagamento de contribuições, sendo financiada a partir dos
impostos pagos pelos cidadãos.
Observa-se, portanto, que a saúde adquiriu com a Constituição de 1988 o
caráter universal, devendo atender toda a coletividade. Atualmente, a prestação de
serviços nessa área é realizada e fiscalizada pelo Ministério da Saúde através do
Sistema único de Saúde, regendo-se por alguns princípios basilares indicados no
artigo 198 da Carta Magna, quais sejam: (1) descentralização, com direção única em
cada esfera do governo; (2) atendimento integral, com prioridade para atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; (3) Participação da
comunidade.
A descentralização consubstancia a noção de que a prestação da saúde não
pode se restringir apenas a um ente federativo, devendo ser assegurada por todas
as esferas do governo de forma solidária, conforme destaca o artigo 23, II, da CF/88,
o que acaba por ratificar o federalismo cooperativo, destacado por Novelino e Cunha
Jr. (2012) adotado na referida norma. No mesmo sentido o artigo 30, VII, da CF/88
dispõe que os serviços na área da saúde serão prestados pelo Município mediante a
cooperação técnica e financeira dos Estados e da União, destacando, desta feita, a
responsabilidade solidária que deve existir entre esses entes. Neste último
dispositivo mencionado fica evidenciado, também, o princípio da municipialização,
como bem destaca Barroso (2010), que aponta o ente municipal como aquele que
possui mais responsabilidades na promoção do direito à saúde.
15
O atendimento integral, com foco para atividades preventivas, transparece a
diretriz de se buscar reduzir os riscos de doenças e outros males, já que demanda
menos recursos financeiros do que atacar as moléstias quando elas já estão
instaladas no indivíduo. O terceiro princípio dispõe acerca da participação da
comunidade na prestação do serviço à saúde e ratifica o caráter democrático da
própria Constituição, isto porque os próprios beneficiários do sistema poderão
participar da edição de normas que visem otimizar as demandas na área. É o que
acontece, por exemplo, com o Conselho Nacional de Saúde, regido pelo decreto nº
5.839/2006, órgão ligado diretamente ao Ministério da Saúde, que é composto por
representantes do governo, prestadores de serviços, profissionais da saúde e
usuários, cuja função principal é deliberar e controlar as políticas públicas realizadas
na área da saúde, conforme dispõem os artigos 1º e 2º do referido decreto.
A observância desses princípios permite que o Poder Público atue nessa área
de forma solidária e democrática, buscando tutelar todos os cidadãos. No entanto,
apesar da Constituição prever que a saúde será regulada, fiscalizada e concretizada
prioritariamente pelo Estado, facultou-se às entidades privadas oferecerem serviços,
atuando de forma complementar, conforme destaca Amado (2012, p.55):
Conforme revisão constitucional, as instituições privadas poderão participar
de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes
deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência
as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos, vedada a destinação de
recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com
fins lucrativos, razão pela qual é plenamente possível que as entidades
filantrópicas sejam destinatárias de recursos públicos.
Deste modo, diante da impossibilidade do ente estatal suprir todas as
necessidades da população, a destinação de recursos públicos na prestação dos
serviços de saúde não se limita apenas às entidades públicas, mas também aos
entes privados que atuam no oferecimento de determinadas atividades. Contudo,
não poderá o poder público destinar recursos para as instituições privadas com o
objetivo de lucro, sendo vedada a participação do ente estatal em empreendimentos
econômicos, de acordo com o que disciplina ao artigo 199, §2º, da CF/88.
A concretização do direito à Saúde é regulada pelo Sistema Único de Saúde,
SUS, que é composto conforme destaca o artigo 4º, caput, da lei 8.080/90:
16
4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e
instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração
direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o
Sistema Único de Saúde (SUS).
§ 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas
federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e
produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e
hemoderivados, e de equipamentos para saúde.
§ 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde
(SUS), em caráter complementar. (BRASIL, Lei nº 8.080, 19 de setembro de
1990, 1990)
1.2.3. Financiamento da saúde
Conforme já destacado anteriormente, como o oferecimento de serviços de
saúde deve atender toda a população, os gastos econômicos nessa área acabam se
tornando vultuosos, sobrecarregando significativamente os cofres públicos. Sensível
a esta realidade, o constituinte originário achou por bem não onerar apenas um ente
federativo na realização de políticas públicas para concretização deste direito,
exigindo uma atuação conjunta de todos, é o que dispõe o já mencionado artigo 23,
II, da Constituição Federal.
Para além de simplesmente responsabilizar genericamente os entes
federativos na realização do direito à saúde, a Carta Magna estabelece a destinação
específica de recursos tributários para essa área. Desse modo, o artigo 198, em
seus § 2º e §3º, dispõe que:
§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão,
anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos
derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I – no caso da
União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no §
3º;
II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação
dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os
arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que
forem transferidas aos respectivos Municípios; III – no caso dos
Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos
a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e
159, inciso I, alínea b e § 3º.
§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco
anos, estabelecerá: I – os percentuais de que trata o § 2º;
17
II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde
destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos
Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a
progressiva redução das disparidades regionais;
III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com
saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;
IV – as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela
União(BRASIL, Constituição Federal de 1988, 1988)
A lei complementar a que se referem os dispositivos supramencionados não
foi editada, por esse motivo a EC nº 29/00 dispõe que será aplicado ao caso
concreto os recursos mínimos presentes no artigo 77 do ADCT até o ano de 2004,
da seguinte forma:
I - no caso da União:
a) no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de
saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por
cento;
b) do ano 2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela
variação nominal do Produto Interno Bruto - PIB;
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, doze por cento do produto da
arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que
tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as
parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; e
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do
produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos
recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. (BRASIL,
Constituição Federal de 1988, 1988)
Ocorre, porém, que os referidos recursos ainda continuam sendo destinados
de acordo com a sistemática acima mencionada. Isto porque, segundo Ibrahim
(2011), a mesma emenda que estabeleceu a aplicação do artigo 77 da ADCT,
também prevê a continuidade de aplicação da norma após 2004 se até então não
tivesse sido publicada a Lei Complementar mencionada no referido artigo 199 da
CF/88. Como não houve sua edição, a regra transitória continua com plena
aplicabilidade na área da saúde.
Além da previsão constitucional de financiamento da saúde, a lei 8.080/90
que regula o Sistema Único de Saúde disciplina em título específico o financiamento
do sistema. Nesse sentido, o Capítulo I, “Recursos”, do Título V, “Do
18
Financiamento”, deixa claro dois aspectos importantes acerca do financiamento da
saúde. O primeiro deles diz respeito à imprescindibilidade dos recursos que serão
alocados à saúde estarem previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias de cada
ente federativo (art. 31 da lei 8.080/90). Assim, as verbas serão destinadas mediante
a necessidade de serviços determinadas pelos próprios entes federativos, de forma
prévia, sendo vedado, conforme disciplina o §2º do artigo 36 da referida lei, “a
transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos
de saúde, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública, na área de
saúde”. O segundo aspecto encontra-se no artigo 32 da referida lei:
Art. 32. São considerados de outras fontes os recursos provenientes de:
I - (Vetado)
II - Serviços que possam ser prestados sem prejuízo da assistência à
saúde;
III - ajuda, contribuições, doações e donativos;
IV - alienações patrimoniais e rendimentos de capital;
V - taxas, multas, emolumentos e preços públicos arrecadados no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS); e
VI - rendas eventuais, inclusive comerciais e industriais. (BRASIL, Lei nº
8.080, 19 de setembro de 1990, 1990)
Com efeito, poderá o Poder Público buscar, autonomamente, recursos em
fontes secundárias, não necessariamente vinculadas aos impostos pagos pelos
cidadãos. Evidencia-se, também, a participação da comunidade no auxílio da
prestação dos serviços de saúde, como bem esclarece o inciso III supramencionado,
em que há a valorização do recebimento de doações, ajuda e donativos de terceiros.
1.3.
A DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS PELOS ENTES PÚBLICOS
Entre as diversas atribuições dos entes públicos na concretização do direito à
saúde, encontra-se, segundo o art. 200, I, da CF/88: controlar e fiscalizar
procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da
produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e
outros insumos. Nesse sentido, o controle e a distribuição de medicamentos são
considerados, pelo constituinte originário, políticas públicas imprescindíveis para a
melhoria na qualidade de vida da população.
19
A lei do Sistema Único de Saúde (nº 8.080/90) estabelece entre as atribuições do
SUS, em seu artigo 6º, a assistência terapêutica integral que corresponde, segundo
o artigo 19-M da lei, a:
I -dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja
prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas
em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na
falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P;
II - oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar,
ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor
federal do Sistema Único de Saúde - SUS, realizados no território nacional
por serviço próprio, conveniado ou contratado. (BRASIL, Lei nº 8.080, 19 de
setembro de 1990, 1990)
No entanto, a distribuição de medicamentos, em razão de seu alto custo, não
pode acontecer de forma arbitrária à medida que surgem pedidos de tutela da
população. A própria lei determina que a lista de medicamentos oferecidos pelo
poder público deve ser elaborada ou alterada pelo Ministério da Saúde com o
assessoramento da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS,
órgão composto necessariamente por 1 (um) representante indicado pelo Conselho
Nacional de Saúde e de 1 (um) representante, especialista na área, indicado pelo
Conselho Federal de Medicina, conforme disciplina o artigo 19-Q, §1º da referida lei.
Esse órgão atuará de duas formas:
§ 2o O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no
SUS levará em consideração, necessariamente:
I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a
segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo,
acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso;
II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em
relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos
atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.
(BRASIL, Lei nº 8.080, 19 de setembro de 1990, 1990)
Deste modo, a concessão de medicamentos é realizada tendo por base dois
importantes aspectos, o impacto econômico que a distribuição de determinado tipo
de medicamento pode causar aos cofres públicos e a sua eficácia no tratamento da
doença que será tratada. A distribuição de medicamentos depende, portanto, de um
20
procedimento cuidadoso e prévio que avalie a real capacidade do Estado de
fornecer determinado medicamento.
Ademais, cumpre destacar que a lei 8.080/90 ratifica o princípio constitucional
da descentralização ao dispor que, na ausência de protocolo clínico ou de diretriz
terapêutica, deverá ser buscada em cada ente federativo a responsabilidade no
oferecimento do serviço/produto, como destaca o seguinte artigo:
Art. 19-P. Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a
dispensação será realizada:
I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal
do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a
responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão
Intergestores Tripartite;
II - no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de forma suplementar,
com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores
estaduais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada
na Comissão Intergestores Bipartite;
III - no âmbito de cada Município, de forma suplementar, com base nas
relações de medicamentos instituídas pelos gestores municipais do SUS, e
a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada no Conselho Municipal
de Saúde. (BRASIL, Lei nº 8.080, 19 de setembro de 1990, 1990)
No mesmo sentido, de forma mais específica, a portaria 3.916/98, do
Ministério da Saúde, define melhor a repartição de competência entre os entes e
fornece importantes parâmetros na politica de distribuição de medicamentos, uma
vez que institui a Política Nacional de Medicamentos. O trecho a seguir esclarece os
objetivos dessa política:
A Política Nacional de Medicamentos, como parte essencial da Política
Nacional de Saúde, constitui um dos elementos fundamentais para a efetiva
implementação de ações capazes de promover a melhoria das condições
da assistência à saúde da população. A Lei n.º 8.080/90, em seu artigo 6o,
estabelece como campo de atuação do Sistema Único de Saúde - SUS - a
"formulação da política de medicamentos (...) de interesse para a saúde
(...)".
O seu propósito precípuo é o de garantir a necessária segurança, eficácia e
qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da
população àqueles considerados essenciais.
A Política de Medicamentos aqui expressa tem como base os princípios e
diretrizes do SUS e exigirá, para a sua implementação, a definição ou
redefinição de planos, programas e atividades específicas nas esferas
federal, estadual e municipal.
Esta Política concretiza metas do Plano de Governo, integra os esforços
voltados à consolidação do SUS, contribui para o desenvolvimento social do
País e orienta a execução das ações e metas prioritárias fixadas pelo
21
Ministério da Saúde. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, Portaria 3.916/GM de 30 de
outubro de 1998, 1998)
Com efeito, o Ministério da Saúde dispõe do RENAME, Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais, que é uma lista em que consta o conjunto de
medicamentos e insumos que são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde. Do
mesmo modo, órgãos estaduais e municipais também oferecem listas próprias que
apresentam o conjunto de medicamentos e insumos disponibilizados pelos referidos
entes, sendo respeitadas, conforme destacada a referida portaria, as necessidades
regionais e as dosagens para pacientes de diferentes faixas etárias.
Na ausência de determinado medicamento nas listas federal, estaduais ou
municipais, pode o cidadão requerer a sua inclusão a partir de procedimento
administrativo em que deve ser avaliada a real eficácia do medicamento para o
tratamento de moléstias, sendo realizadas consultas públicas e, quando necessário,
audiências públicas.
Do exposto, observa-se que a dispensação de medicamentos pelo poder
público demanda a atuação conjunta não só de todos os entes federativos, mas
também de terceiros interessados. Além disso, envolve um processo cuidadoso de
impacto econômico e de eficácia do medicamento para que, só então, possa ser ele
disponibilizado pelo Estado à todos aqueles que de fato necessitam do tratamento.
2. JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A CONCRETIZAÇÃO DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
2.1.
JUDICIALIZAÇÃO: CONCEITUAÇÃO POLISSÊMICA
A partir da década de 90 passou-se a observar no Brasil um novo fenômeno que
já vinha acontecendo de forma intensa em diversos países após a Segunda Guerra
Mundial em que o Poder Judiciário passa a solucionar controvérsias de natureza
eminentemente política. O termo Judicialização é objeto de análise por diversos
segmentos do saber, a exemplo da Antropologia, da Sociologia e do Direito,
possuindo uma conceituação ampla e diversificada.
22
Nesse sentido, Motta (2011) aponta alguns contextos em que o termo é utilizado.
Werneck Viana (1999:10 apud Motta, 2011), por exemplo, designa a judicialização
como a utilização dos recursos processuais no judiciário, ante a descoberta pelas
minorias parlamentares da tutela judicial com o objetivo de pleitear seus interesses.
O segundo contexto, de acordo com Motta (2011), é o uso do termo para referir-se a
preferência pelo cidadão da via jurídica do que pela solução dos conflitos a partir do
instrumento político. Há, ainda, um terceiro contexto de aplicação do termo que se
relaciona a busca da via judicial pelos cidadãos para a solução de todo e qualquer
conflito do cotidiano, autores como Mota (2011, p.50) designam esse fenômeno
como sendo judicialização das relações sociais.
Leivas (2011, p.643), por seu turno, ao tratar do posicionamento do STF sobre as
políticas públicas na área de saúde, adverte que a utilização do termo judicialização
é indevido porque “trata-se de uma expressão não adequada para referir-se a esse
fenômeno, por conduzir ao entendimento de que o Judiciário estaria assumindo um
papel de gestor das políticas públicas de saúde, o que não corresponde à verdade”.
É notável que o referido autor defende que esse fenômeno, na verdade, não é uma
afronta ao regime democrático e à separação dos poderes, legitimando a atuação
desse poder na esfera das políticas públicas a fim de serem concretizados os
direitos fundamentais previstos constitucionalmente.
Diante da complexidade de designação do termo, adotamos a conceituação
ampla proposta por Vallinder (1995, apud Oliveira e Carvalho 2006, p. 6):
Vallinder entende que a judicialização da política se caracteriza pela difusão
da arena decisória judicial e/ou na adoção de mecanismos judiciais em
arenas de deliberação política. O conceito dado pelo autor propõe que o
julgamento de ações que envolvam políticas governamentais constitui, por
si só, um processo de judicialização da política. Somado a isso, a utilização
de procedimentos jurídicos na ordenação do mundo político também
constitui esse processo.
Por ser um tema que suscita diversos posicionamentos entre os juristas e de
crescente utilização no cenário jurídico brasileiro, o presente capítulo será
metodologicamente organizado de forma que seja fornecido um panorama das
discussões relacionadas à judicialização. Nesse sentido, primeiramente será
abordado o surgimento, a conceituação e importância das políticas públicas, para,
23
em seguida, serem apresentadas as causas que estimulam a ocorrência do
fenômeno e as principais discussões relacionadas a judicialização.
2.2.
CONCEITUAÇÃO E IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Segundo Galati (2003), durante a vigência do liberalismo, o Estado possuía a
responsabilidade de garantir a ordem pulica, sem, contudo, interferir na esfera
individual dos membros da sociedade, não possuindo qualquer atribuição
relacionada ao oferecimento de serviços específicos à população. No entanto, a
crise dessa ideologia fez emergir o estado social, baseado, no welfare state, que
propõe uma postura ativa do Estado no sentido de promoção de ações que
busquem melhorar as condições de vida da sociedade, garantindo-lhes os
chamados direitos de segunda geração. É o que assim dispõe GRINOVER (2010,
p.2):
A transição entre o Estado liberal e o Estado social promove alteração
substancial na concepção do Estado e de suas finalidades. Nesse quadro, o
Estado existe para atender ao bem comum e, consequentemente, satisfazer
direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material
entre os componentes do corpo social. Surge a segunda geração de direitos
fundamentais – a dos direitos econômicosociais –, complementar à dos
direitos de liberdade. Agora, ao dever de abstenção do Estado substitui-se
seu dever a um dare, facere, praestare, por intermédio de uma atuação
positiva, que realmente permita a fruição dos direitos de liberdade da
primeira geração, assim como dos novos direitos.
Como forma de atestar que direitos como a moradia, a educação, a saúde e a
segurança, continuem a ser assegurados pelo Estado, diversos constituintes
originários passaram a disciplinar em suas normas a obrigatoriedade de prestação
desses direitos pelo ente estatal. A essas constituições foi dada a classificação de
dirigente, pois elas determinam os fins e objetivos do estado, exigindo a sua atuação
em segmentos considerados essenciais para a sobrevivência da população.
Seguindo essa tendência de normatização de direitos sociais, a Constituição de
1988 pode também ser classificada como sendo dirigente, um bom exemplo é o seu
24
artigo 3º que disciplina os objetivos da República e de certo modo, exige do estado
uma atuação no sentido de vê-los concretizados. É o seu teor:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, Constituição
federal de 1988, 1988)
A atuação do Estado no sentido de promoção dos direitos sociais se efetua a
partir da realização de políticas públicas, que podem ser conceituadas como um
conjunto ações dos poderes legislativo, executivo e judiciário a fim de promover
conforme destaca GRINOVER (2010: p. 6):
Por política estatal – ou políticas públicas – entende-se o conjunto de
atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem
atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos
(Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos
fins primordiais do Estado. Como toda atividade política (políticas públicas)
exercida pelo Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a
Constituição, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e
desde que provocado, o que se convencionou chamar de “atos de governo”
ou “questões políticas”, sob o prisma do atendimento aos fins do Estado
(art. 3º da CF), ou seja, em última análise à sua constitucionalidade.
Da
conceituação
supramencionada
depreende-se
que
aos
poderes
Legislativo e Executivo cumprem a atribuição de realizar as políticas públicas
através de um procedimento solene de alocação de recursos que envolve a
participação da Comissão Mista do Congresso, das duas Casas, e do Presidente da
República com o seu poder de veto.
Segundo Jesus (2005), o procedimento é
regido pela Constituição e desenvolvido pelos poderes Legislativo e Executivo que
atuam como representantes do povo, sendo papel do Judiciário a fiscalização na
execução e aplicação das políticas.
Nesse sentido, não basta a simples destinação de verbas à medida que
surgem necessidades sociais, é necessária a prévia determinação pelo poder
25
Legislativo mediante a Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme determina o artigo
165 da Constituição Federal. Essa norma representa os anseios e objetivos de cada
ente federativo no campo das políticas públicas, sendo concretizado pelo Executivo.
Na qualidade de direito social que demanda grande quantidade de recursos
públicos, não pode a saúde deixar de ser abordada na referida Lei, sendo esta não
só um instrumento de direcionamento na concretização das políticas, mas,
especialmente, um meio de fiscalização pelos cidadãos da atuação dos
governantes.
2.3.
PORQUE SURGIU A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS?
De acordo com a conceituação apresentada anteriormente, a concretização dos
direitos sociais depende de uma atuação conjunta dos três poderes do Estado na
promoção de políticas públicas, cabendo ao legislativo a edição de normas que
indiquem a maneira de distribuição de recursos, ao executivo a operacionalização e
ao Judiciário a fiscalização. No entanto, no fenômeno da judicialização o Judiciário
acaba atuando também como um legislador tendo em vista que algumas decisões
determinam a alocação de recursos para a realização de políticas, seja pela não
aplicação de normas já existentes, seja pela a omissão do legislador.
Diversos doutrinadores buscam explicar os fatores que ensejaram a interferência,
como alguns defendem, do poder judiciário nessa área. A grande maioria não
diverge sobre os fatores, oscilando apenas na sua quantidade.
Ferejohn (2003 apud Motta 2011), por exemplo, indica dois fatores cruciais que
promovem a judicialização, os quais Motta (2011: 53) também ratifica, são eles: (1) a
crescente fragmentação do poder legislativo o que acaba limitando a atuação deste
poder na realização das políticas e estimulando a busca dos tribunais para suprir
essa carência; (2) o judiciário tem o alcance de proteger direitos e valores contra a
atuação arbitrária do poder político. Sobre as vantagens dos tribunais em detrimento
da atuação legislativa, Ferejonh (2005, p.3) afirma:
Tendo em vista a dificuldade em lidar com a incerteza do processo
legislativo – tanto em agências governamentais quanto em parlamentos –
26
os tribunais certamente oferecem algumas vantagens únicas. Os tribunais
lidam com regras à luz de circunstâncias específicas e estão bem
posicionados para perceber injustiças e inconvenientes trazidos por essas
circunstâncias às partes em litígio. Ainda que as normas desenvolvidas
pelos tribunais sejam prospectivas – na medida em que servirão como
precedentes para casos similares no futuro – a resolução do caso em
questão não é prospectiva. Ademais, a prática do stare decisis (o
precedente) permite que regras gerais se desenvolvam gradativamente, por
meio da atividade de muitos tribunais, juízes e casos.
Oliveira e Carvalho Neto (2006), por seu turno, propõem que as causas da
judicialização estão associadas, em um primeiro momento, a conjuntura da ideologia
do capitalismo e o próprio contexto democrático. Nesse sentido, o autor defende,
com fulcro em Garapon (1999 apud Olvieira e Carvalho 2006), que o referido
fenômeno é decorrência de dois aspectos, o enfraquecimento do Estado o que
ocasionou a queda das barreiras processuais e promoveu o crescimento no número
de processos, e a contratualização das relações sociais o que permitiu a ingerência
do judiciário em diversos segmentos sociais. Mais importante, contudo, é perceber
que Garapon (1999), conforme destaca Oliveira e Carvalho Neto (2006), apesar de
não ressaltar a eficácia do Judiciário como um indicativo do surgimento da
judicialização, aponta, no mesmo sentido de Ferejohn (2005, p.4), para a
incompetência do legislativo na realização de suas atribuições, o que acaba dando
margem para atuação dos tribunais:
Para o jurista francês, a justiça não galgou a situação de controle dos
demais poderes, isso se deu através de um processo político. Ou seja, a
interferência judiciária é um fenômeno possibilitado, na prática, pelos
políticos. O ato de legislar sofreu um processo de inflação e isto tem um
rebatimento imediato no Judiciário, já que aumenta a área de atuação do
mundo jurídico. Ou seja, a judicialização tem como uma de suas causas a
jurisdicização das elações sociais efetuada, em boa medida, pelo mundo
político. O cidadão individualizado não mais se envolve em questões de
mobilização social e a justiça se torna um verdadeiro balcão de queixas
sociais.
Merece destaque, também, as reflexões realizadas por Valliner (1999 apud
Olvieira e Carvalho 2006) que defende as seguintes condicionantes para o
surgimento da judicialização, são eles: (1) Democracia; (2) a
Separação de
Poderes, uma vez que não há uma distribuição determinada de atribuições de cada
poder; (3) a política de direitos, que se relaciona ao fato de que todos os indivíduos
27
possuem direitos, inclusive a minoria; (4) o uso dos tribunais pelos grupos de
interesse; (5) o uso dos tribunais pela oposição, já que as minorias por vezes não
conseguem barrar a vontade da maioria; (6) a inefetividade das instituições
majoritárias, em razão do governo não possuir maioria no Parlamento e não
conseguir concretizar seus objetivos; (7) a percepções das instituições póliticas em
que há uma crise dos representantes políticos que não conseguem entrar em um
acordo; (8) instituições majoritárias delegam.
Por fim, o posicionamento de Werneck Viana (2005 apud Motta 2011) e Maria
Tereza Sadek (2008 apud Motta 2011), apresentado por Motta (2011), defendem o
fortalecimento das instituições funcionais, com o advento da Constituição de 1988,
como ensejadores da judicialização no Brasil.
Por instituições funcionais
compreendem-se as Defensorias públicas, o Ministério Público e o próprio Judiciário
(especialmente os Juizados). Nesse sentido, o fato de representarem a defesa dos
direitos e garantias elencados na Constituição de 1988, permite que esses entes
atuem com mais liberdade e de forma mais ampla no judiciário, inclusive na
concretização de políticas públicas até porque o estabelecimento de princípios
norteadores acabou fortalecendo a atuação funcional.
Os posicionamentos acima apresentados oferecem uma representação do
que alguns doutrinadores defendem acerca dos fatores que ocasionam a
judicialização, no entanto eles não esgotam e nem tampouco anulam os pontos de
vista de outros autores. Deste modo, do exposto, observa-se que as causas
apresentadas, de certo modo, se complementam, verificando-se, também, que a
maioria dos doutrinadores converge no sentido de considerar que esse fenômeno se
manifesta especialmente em razão de uma ineficiência do legislativo em atender
todas as demandas sociais e que o judiciário atua no sentido de suprir uma carência
da população.
2.4.
JUDICIALIZAÇÃO:
NOVO
CANAL
DE
REPRESENTAÇÃO
SOCIEDADE OU AMEAÇA À SOBERANIA POPULAR?
DA
28
A judicialização é, inevitavelmente, um fenômeno que se consolidou em
diversos países, inclusive no Brasil especialmente a partir da década de 90. No
entanto, doutrinadores divergem acerca dos possíveis reflexos no que diz respeito a
garantia da soberania popular e do regime democrático. Nesse sentido, surgem dois
eixos que analisam a judicialização sob o prisma da manutenção da liberdade, um
defende a sua manutenção como promoção da igualdade e do regime democrático,
o substancialista, e o outro a sua interferência como um fenômeno indevido que
compromete a soberania popular, trata-se do procedimentalista. Tais eixos
convergem, porém, no sentido de compreenderem o poder Judiciário como uma
instituição fundamental para a manutenção dos princípios democráticos, não
possuindo, segundo Oliveira e Carvalho Neto (2006), apenas a função declarativa,
mas também de imposição de poder.
Com efeito, o eixo procedimentalista tem como principais representantes
Habermans (1997 apud Oliveira e Carvalho 2006) e Garapon (1999 apud Oliveira e
Carvalho 2006) e defende que a judicialização promove a perda da liberdade, tendo
em vista a interferência que o direito acaba exercendo sobre a política. Oliveira e
Carvalho (2006, p.9) apresentam o posicionamento desses autores apontando que,
em suma, a judicialização acaba colocando o direito como única alternativa,
ocorrendo uma usurpação da tradicional separação dos poderes, conforme destaca
o excerto a seguir:
De acordo com Garapon, a judicialização da política e do social seria um
indicador de que a justiça teria se tornado um “último refúgio de um ideal
democrático desencantado” (op. cit. p.25). Assim, a explosão do número de
processos é um fenômeno social, e não jurídico, e o juiz assume o papel de
“terapeuta social”. Para Habermas, a invasão do direito na política é a
representação de uma disputa em torno do princípio da divisão de poderes.
Assim como o legislador não tem competência para julgar se os tribunais
aplicam correta e justamente o direito, também não a tem os juízes para o
controle abstrato das normas, que deveriam ser função do legislador. Nesse
eixo, portanto, não há lugar ao ativismo judicial, nem se admite um “terceiro
gigante”.
No mesmo sentido Appio (2005 apud Jesus 2006, p. 35) assim se posiciona:
Ao decidir pela implementação de uma política social, prevista em com
base em um dever genérico do Estado, O Poder Judiciário passa a ditar os
fins do Estado e não a constitucionalidade dos meios eleitos para sua
29
consecução. O preenchimento do conteúdo de um dever genérico do
Estado faz parte de uma atividade política, a partir de uma pauta de
prioridades para os quais o legislador e o administrador foram eleitos. As
campanhas políticas contemplam, num regime democrático, diversas
políticas sociais, adequadas ao perfil ideológico de cada um dos partidos, as
quais são escolhidas pelo cidadão. Não se pode admitir, numa democracia,
a substitutividade, pelo Poder Judiciário, do exercício deste poder político,
sob pena de esvaziamento dos demais poderes da república.
Deste modo, o eixo procedimentalista questiona a interferência do judiciário,
sob o argumento de que há uma usurpação de poderes, uma vez que cabe ao
legislativo desenvolver todo um procedimento para a aprovação de políticas
públicas. A teoria de tripartição de poderes, proposta por Montesquieu, em que há
uma separação rígida entre eles e suas atribuições com uma atuação nula do
Judiciário, estaria sendo, para esse eixo, violada. Ocorre, porém, no que diz respeito
a esse argumento, que diversos doutrinadores tem se posicionado no sentido da
flexibilização dessa tradicional tripartição, permitindo a atuação do Judiciário
também na limitação do poder público, conforme destaca o Jesus (2005, p.31)
O eixo substancialista, por seu turno, tem como representantes Dworkin e
Cappelletti e propugna que a atuação do judiciário no âmbito da judicialização
contribui para a concretização dos princípios igualitários e da própria liberdade,
sendo extensão da atuação democrática. Enquanto Dworkin, ao analisar a Corte
norte-americana, defende que o judiciário não pode assumir uma condição inerte
frente as necessidades sociais e os conflitos, Cappetelli acredita que a atuação do
referido poder no campo político pode representar uma conquista para as minorias
uma vez que elas poderão manifestar seus posicionamentos. Jesus (2005, p.10)
sintetiza a perspectiva substancialista ao afirmar que:
Portanto, de acordo com o eixo substancialista o Judiciário assume uma
nova inserção na relação entre os três poderes, transcendendo as funções
de checks and balances, mas sempre com referência à história e ao mundo
empírico. Esse Poder deve assumir o papel de um intérprete que evidencia
a vontade geral, implícita no texto constitucional.
A vertente substancialista é a que de fato tem mais adeptos entre os
doutrinadores, já que defende que o direito deve estar sensível e evoluir de acordo
com as necessidades que surgem na sociedade, adotando a concepção pluralista do
30
direito em detrimento da monista, conforme destaca Machado (2009). Nesse
sentido, a própria Constituição ao prever as responsabilidades do poder judiciário
acaba ampliando sua atuação, na qualidade de defensor dos direitos e garantias
fundamentais, mesmo que pra isso ele tenha que promover a concretização de
políticas públicas, conforme esclarece Jesus (2005, p.33):
De efeito, tem se observado que a abordagem contemporânea, pelo
menos no Brasil, tende a atribuir ao Judiciário o papel de guarda da
Constituição e das instituições democráticas, além de lhe atribuir o dever
de assegurar a implementação dos direitos fundamentais. Essa nova
abordagem pugna, pois, por um “ativismo Judicial” (DOBROWOLSKI,
1995, p. 99) ou pela “politização do Judiciário” (FRISCHEINSEN, 2000, p.
97).
Do exposto, observa-se que a depender do eixo adotado, há uma valorização
da judicialização das políticas públicas, no eixo substancialista, ou considera-se
esse fenômeno uma ameaça ao regime democrático e ao princípio da separação
dos poderes, eixo procedimentalista. No entanto, deve-se ressaltar que, mesmo
aqueles doutrinadores que entendem a judicialização como um processo inerente às
instituições democráticas, defendem que sua aplicação deve ocorrer baseando-se
no princípio da razoabilidade, de forma que a atuação do judiciário não comprometa
a distribuição de recursos orçamentários, e pautando-se em parâmetros propostos
por outras áreas. Doutrinadores como Machado (2009, p.16), defende, portanto, a
racionalização do procedimento de judicialização, posicionamento este também
defendido neste trabalho, e que é sintetizado a seguir:
Malgrado a importância da judicialização da política para resguardar direitos
fundamentais, no Brasil o fenômeno precisa ser materializado
substancialmente, porém, com parâmetros, para que o Judiciário atue com
critérios de racionalidade e eficiência. Ou seja, há a necessidade de
construção de um juízo justo, e, ao mesmo tempo, assentado no quadro da
ordem vigente. Observa-se, na realidade, um “hiperdimensionamento do
caráter procedimental” e um “hipodimensionamento do caráter substancial”
(CARVALHO,2009, p. 121). Explique-se: apesar da difusão de
procedimentos judiciais em campos de deliberação política, ainda não há
um comportamento amplo do Judiciário no sentido de concretizar, com
racionalidade, direitos fundamentais, em detrimento de determinadas
políticas governamentais. Note que não se tenciona um ativismo judicial
indiscriminado,
mas
uma
judicialização
da
política
baseada
concomitantemente na racionalidade das decisões judiciais – com uma
análise prévia e ponderada dos impactos de suas deliberações para a
31
sociedade – e na afirmação de direitos fundamentais e ampliação da
cidadania.
3. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: ENTENDIMENTOS JURISPRUDENCIAIS
Atualmente, tribunais e juízes de todo o país, no exercício de sua jurisdição,
obrigam o Estado a realizar a prestação de algum serviço ou produto para o cidadão
como forma de suprir/concretizar determinado direito fundamental previsto na
Constituição Federal. Observa-se, portanto, que a judicialização de políticas públicas
é um fenômeno consolidado no ordenamento pátrio.
Com a saúde não é diferente, a quantidade de processos que pleiteiam a
distribuição de medicamentos não previstos nas listas da ANVISA, o oferecimento
procedimentos cirúrgicos e a incorporação de novas tecnologias ao Sistema Único
de Saúde crescem a cada ano em todos os entes federativos. Neste sentido, dados
fornecidos pela Advocacia Geral da União, a partir de informações disponibilizadas
pela
CONJUR/MS
(disponível
em
<
http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/Panorama.pdf>), atestam que
entres os anos de 2009 e 2012 o crescimento de demandas judiciais nessa área foi
significativo: em 2009 foram criadas 10.486 novas demandas; em 2010, 11.203; e
em 2011, 12.811. Esses dados se relacionam apenas aos processos judiciais em
que a União Federal figura como ré, sendo de difícil acesso verificar as mesmas
informações no âmbito estadual e municipal. Apesar dessa dificuldade, é importante
perceber que a busca do poder Judiciário para a solução de conflitos dessa natureza
tem se ampliado significativamente.
A doutrina diverge, porém, sobre a concretização desse direito a partir de
demandas judiciais. Deste modo, parte defende que essa atuação do Poder
Judiciário se afigura como essencial para garantir a concretização dos direitos
fundamentais especialmente a saúde, desde que obedecidos alguns parâmetros.
Esta corrente é a que de fato tem sido aplicada pelos tribunais pátrios, conforme
será analisado a seguir.
32
Buranelli (2004, p. 40), por exemplo, entende que a judicialização é um
instrumento eficaz, no entanto, devem os tribunais analisar os impactos econômicos
e sociais que a decisão acarreta, a fim de evitar que suas decisões dificultem a
realização de políticas públicas, balizando a aplicação dos princípios constitucionais
com as limitações estatais:
É importante destacar que não se pretende que a atuação do magistrado
afaste ou negue princípios jurídicos e fundamentos valorativos, não
baseados na racionalidade econômica, mas apenas que sua
conscientização econômico-social aumente as suas possibilidades de
escolha e decisão no caso concreto, sempre de forma fundamentada,
afastando assim a pura submissão à lei e a regras que impõem uma
aplicação a priori. (p. 40)
No mesmo sentido, Galati (2003, p.49) compreende que essa atuação do
judiciário de fato pode comprometer o orçamento público, contudo, acaba
contribuindo para que os responsáveis pela realização das políticas públicas, os
políticos, modifiquem e focalizem suas ações a fim de suprir as carências da
população, como é possível de perceber no excerto a seguir:
A base de toda a problemática articula-se com a insuficiência de recursos
econômicos disponibilizados ao sistema de saúde. E, se por um lado a
decisão judicial pode, eventualmente, conturbar a destinação de recursos
do sistema de saúde, ao determinar um dispêndio não previsto em favor de
demanda particular, de outro, a repetição da situação deve gerar nos órgãos
públicos destinadores dos recursos econômicos ações no sentido de adotar
medidas preventivas à ocorrência de casos futuros. Na forma de reação em
cadeia, criar-se-á uma espiral que culminará por influenciar na política
econômica como um todo, inclusive no âmbito internacional (...).
Por outro lado, Barroso (2010) destaca as principais críticas que são
realizadas à judicialização da saúde, oferecendo um panorama dos estudiosos que
compreendem esse fenômeno como uma ameaça à separação dos Poderes e
interferência indevida do Poder Judiciário. Com efeito, o referido autor aponta as
seguintes críticas:
33
(1) O artigo 196 da Constituição Federal que trata do direito à saúde é uma
norma programática que deve ser concretizada a partir da promoção de
políticas públicas e não de decisões judiciais;
(2) O Poder Executivo, por possuir uma visão mais ampla das necessidades
públicas, detém, de acordo com a Constituição Federal, a competência
para estabelecê-las. A atuação do judiciário violaria, portanto, o arranjo
institucional;
(3) As políticas públicas são realizadas a partir de verbas recolhidas do povo
mediante o pagamento de tributos. Cabe, então, à sociedade decidir qual
(is) área(s) é (são) prioritária(s) para a aplicação das verbas e essa ação
social
acontece
através
dos
representantes
legais
eleitos
democraticamente;
(4) A realização das políticas públicas pelo Estado deve estar baseada no
princípio da reserva do possível, tendo em vista que os recursos são
escassos e diversas são as áreas que necessitam de uma ação estatal;
(5) A judicialização da saúde desorganiza a administração pública na medida
em que o estado passa atuar apenas para atender a necessidade
individual e imediata, impedindo uma organização no sentido de promoção
do direito à saúde em sentido amplo;
(6) Os gastos com a judicialização da saúde são menos benéficos do que se
os mesmos recursos fossem aplicados para a realização de políticas que
amparem toda a coletividade;
(7) A concessão de serviços/produtos a partir de decisões judiciais acaba
restringindo essa proteção àqueles que têm acesso à justiça, pelo fato de
conhecerem seus direitos;
(8) O Poder Judiciário não detém os conhecimentos técnicos necessários que
o auxiliam na percepção sobre a eficácia e garantia do serviço/produto
para o tratamento de determinadas doenças;
A ausência de uma norma que regule a atuação do Judiciário na concessão
de políticas públicas, em especial das relacionadas à saúde, acaba permitindo que
os tribunais superiores estabeleçam os parâmetros que julgam melhores a fim de
34
equilibrar as necessidades sociais com as limitações do Estado. A seguir será
analisada como o STF e o Tribunal de Justiça da Paraíba têm se posicionado acerca
da judicialização da saúde, em especial a concessão de medicamentos pela via
judicial.
3.1.
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A JURISDIFICAÇÃO DA
SAÚDE
A ausência de decisões uniformes no ordenamento pátrio sobre a
judicialização acabou ensejando diversas críticas a postura adotada pelo poder
judiciário. Nesse sentido, na tentativa de uniformizar o tratamento do direito à saúde
na via judicial, o entendimento da STF sobre essa temática pode ser dividida em três
momentos distintos: (1) legitimidade; (2) Indefinição; (3) racionalização.
A primeira manifestação deste tribunal supremo sobre o direito à saúde
aconteceu no ano 2000 no RE271286 que teve como relator o Ministro Celso de
Melo. O recurso extraordinário objetivava a anulação de decisão que condenava o
Município de Porto Alegre ao fornecimento de medicamento a paciente portador do
vírus HIV. O referido recurso foi, contudo, indeferido, sendo esta a sua ementa:
PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS
FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO
GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO
PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196)- PRECEDENTES (STF) RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE
REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO
DIREITO À VIDA
. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível
assegurada
à
generalidade
das
pessoas
pela
própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira
responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos,
inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar
. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que
assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional
indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera
institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira,
não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob
pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave
35
comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA
PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA
CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE
. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano
institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode
converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o
Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu
impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS
CARENTES
. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de
distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas
portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais
da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na
concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida
e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada
possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua
essencial dignidade. Precedentes do STF. (RE 271286 AgR, Relator(a):
Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/09/2000,
ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJ 24-11-2000 PP-00101 EMENT VOL-0201307 PP-01409)
Nesse sentido, observa-se que esta decisão legitima a atuação do poder
judiciário no que diz respeito a concretização do direito à saúde mediante a
concessão de medicamentos, pois esse direito está diretamente relacionado ao
direito à vida. Além disso, determina que a competência para o fornecimento de
medicamentos consiste em uma obrigação solidária que compreende todos os entes
federativos. Destaca, por fim, que esse posicionamento acaba tutelando aqueles que
não possuem condições financeiras para arcar com tratamentos médicos de alto
custo. Contudo, apesar da referida decisão ter legitimado a judicialização do direto à
saúde, não estabeleceu, conforme destaca Leivas (2011, p. 638), parâmetros de
atuação. Sobre esse problema o autor afirma:
Embora seja uma decisão que consagre a jusfundamentalidade e
subjetivação do direto à saúde, que faz jus a uma inequívoca vontade do
constituinte soberano e atende aos propósitos dos movimentos sociais no
campo do direito á saúde e dos direitos humanos, o acórdão pode ser
criticado pela ausência de critérios e de limites de atuação judicial. Esta
lacuna talvez seja uma das razões pelas quais o Poder Judiciário tenha sido
pouco criterioso, em geral, no julgamento ações judiciais para prestações de
saúde ressalvada a exigência óbvia de receita médica e, em alguns casos,
de ser paciente do SUS e/ou hipossuficiente.
36
O segundo momento, de indefinição, é representado pelas decisões
monocráticas da então ministra do STF, Ellen Gracie, que foram na contramão da
decisão supramencionada e passaram a defender que o fornecimento de
medicamentos pelo poder público poderia comprometer a realização de políticas
públicas em caráter coletivo. Conforme apresenta Leivas (2011), o STA/92 que
solicitava a suspensão do pedido de tutela antecipada realizada contra o Estado de
Alagoas em favor de pacientes renais crônicos em hemodiálise e pacientes
transplantados para o fornecimento de medicamentos é paradigma das referidas
decisões da Ministra. É o teor da decisão do STA/92:
Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública,
considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de
decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de
saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de
forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o
benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de
atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do
art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde,
refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a
população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e
não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer
os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode
vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se
conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado
forneça os medicamentos relacionados "(...) e outros medicamentos
necessários para o tratamento (...)" (fl. 26) dos associados, está-se
diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos
ao restante da coletividade. Ademais, a tutela concedida atinge, por sua
amplitude, esferas de competência distintas, sem observar a repartição de
atribuições decorrentes da descentralização do Sistema Único de Saúde,
nos termos do art. 198 daConstituição Federal.Finalmente, verifico que o
Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer tratamento aos
associados (fl. 59). É que, conforme asseverou em suas razões,
Finalmente, verifico que o Estado de Alagoas não está se recusando a
fornecer tratamento aos associados (fl. 59). É que, conforme asseverou em
suas razões, "(...) a ação contempla medicamentos que estão fora da
Portaria n.º 1.318 e, portanto, não são da responsabilidade do Estado, mas
do Município de Maceió, (...)" (fl. 07), razão pela qual seu pedido é para que
se suspenda a "(...) execução da antecipação de tutela, no que se refere
aos medicamentos não constantes na Portaria n.º 1.318 do Ministério da
Saúde, ou subsidiariamente, restringindo a execução aos medicamentos
especificamente indicados na inicial, (...)" (fl. 11).6. Ante o exposto, defiro
parcialmente o pedido para suspender a execução da antecipação de tutela,
tão somente para limitar a responsabilidade da Secretaria Executiva de
Saúde do Estado de Alagoas ao fornecimento dos medicamentos
contemplados na Portaria n.º 1.318 do Ministério da Saúde. Comunique-se,
37
com urgência. Publique-se. (Brasília, 26 de fevereiro de 2007.Ministra Ellen
Gracie)
A decisão supramencionada evidencia não apenas a necessidade de ser
priorizada a tutela coletiva em vez da individual, mas também o problema de
delimitação de competência para o fornecimento de medicamentos. Esse
entendimento, do ano de 2007, vai de encontro a decisão proferida em 2000 pelo
ministro Celso de Melo, tendo em vista que este defendia a tutela individual como
concretização do direito à vida e estabelecia que a realização do direito à saúde é de
responsabilidade de todos os entes federativos. Apesar da sua decisão monocrática
não ter caráter vinculativo, a ministra Ellen Gracie, conforme destaca Levia (2011, p.
640), salientou posteriormente que a decisão do STA/92 não poderia ser
generalizada já que suas decisões se vinculavam a casos específicos:
A própria Ministra, contudo, ao indeferir o pedido de Suspensão de
Segurança 3231, manifestou preocupação de que a decisão proferida no
STA/92 estivesse sendo interpretada de modo ampliativo, bem como
esclarece que suas decisões proferidas em pedido de suspensão
restringem-se ao caso especificado.
Sensível aos diversos problemas relacionados a judicialização à saúde, o
Ministro Gilmar Mendes no ano de 2009 propôs a convocação de audiência pública
com o objetivo de ouvir diversos especialistas sobre vários problemas relacionados à
judicialização do referido direito dentre os quais, conforme destaca Leivas (2011. P.
641), discutiu-se a obrigação do Estado de disponibilizar medicamentos ou
tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ou não aconselhados pelos
protocolos clínicos do SUS. Esses debates possibilitaram o estabelecimento de
parâmetros que foram aplicados pelo referido ministro em dois julgamentos, STA’s
175 e 178 que podem ser sintetizados, segundo Leivas (2011) em quatro etapas:
1ª ETAPA: Previsão da prestação
demandada em política pública;
2ª ETAPA: Causas da não
previsão: (1) omissão
legislativa; (2) decisão
administrativa de não fornecêla; (3) vedação legal de sua
dispensação;
38
Primeiramente, deverá o órgão julgador analisar se existe previsão de
dispensação do medicamento pleiteado pelo cidadão em algum tipo de política
pública. Em caso afirmativo, haverá o dever de assegurar o mesmo, em não
havendo passará o órgão julgador para a segunda etapa em que irá investigar os
motivos determinantes para que o medicamento não esteja previsto na lista do
Sistema Único de Saúde. Conforme afirma Leiva (2011, p. 642), no caso de existir
decisão administrativa de não fornecê-la, deverão ser analisadas as razões para tal
indeferimento na terceira etapa. Por outro lado, se ocorrer uma omissão legislativa, o
órgão julgador passará para a quarta etapa:
3ª ETAPA: motivos da decisão
de não fornecimento: (1) o
tratamento fornecido não é
adequado; (2) não há nenhum
tratamento específico oferecido;
4ª ETAPA: causas de não possuir
o tratamento: (1) tratamento
puramente experimental; (2)
tratamento ainda não
incorporado;
Com efeito, na terceira etapa, se o Sistema único de Saúde oferecer um
tratamento alternativo com eficácia semelhante ao que é pleiteado, deverá ser ele
utilizado. Na ausência de qualquer tratamento fornecido pelo SUS, passa-se para a
última fase. Nesta, o órgão julgador avaliará a natureza do tratamento pleiteado. Se
ele for experimental será indeferido por não existir evidências da eficácia do
tratamento. Contudo, se tiver eficácia comprovada e ainda não tiver sido incorporado
pelo SUS, poderá ser objeto de pleito judicial.
A síntese realizada por Leiva (2011), a partir da decisão do ministro Celso de
Melo, apresenta alguns parâmetros importantes para a atuação judicial na
concretização da saúde e mais especificamente no fornecimento de medicamentos,
quais sejam: (1) se política pública prever o tratamento, deverá ser ele assegurado;
(2) na existência de diferentes tratamentos com eficácia comprovada, será
privilegiado o alternativo que já é oferecido pelo Sistema Único de Saúde; (3) não
será assegurado o tratamento que ainda se encontra na fase experimental.
39
Essa sistematização inaugura a terceira fase do posicionamento deste
Tribunal Superior, pois oferece parâmetros para atuação do poder Judiciário, no
sentido de não apenas reconhecer o dinheiro à saúde, mas também de delimitar a
forma como ele será concretizado, reduzindo o impacto econômico nos cofres
públicos e concedendo a prestação de serviços ou fornecimento de medicamentos
que de fato possam melhorar a condição de vida do indivíduo. Leiva (2011, p.648)
entende que essa nova postura do STF conseguiu de fato racionalizar o fenômeno
da judicialização da saúde e oferecer os parâmetros necessários para a atuação dos
magistrados em casos concretos:
Ao reafirmar a justiciabilidade do direito fundamental à saúde, tanto por
meio de ações individuais quanto por ações coletivas, a decisão estabelece
parâmetros e critérios para as decisões judiciais. Promove, por meio
desses, uma correta ponderação entre os princípios formais da separação
dos poderes, ao exigir que as decisões administrativas sejam respeitadas
na medida do possível, ao mesmo tempo em que reconhece a legitimidade
do poder Judiciário para determinar prestações de saúde ainda não
incorporadas pelo SUS. A reconstrução dessa decisão por meio da
aplicação dos subpreceitos da proporcionalidade em sentido amplo, como
proibição da insuficiência, como demonstrado acima, fornece ao julgador
um procedimento racional de avaliação e decisão acerca das prestações de
saúde já incorporadas e não-incorporadas no SUS.
3.2.
O POSICIONAMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA
Os entendimentos manifestados pelos tribunais superiores acabam ganhando
força cogente no ordenamento jurídico brasileiro conforme destaca Leiva (2011,
p.xxi):
Não há como negar que as decisões da nossa Suprema Corte produzem
efeitos altamente relevantes na sociedade, não só pela importância dos
casos e questões que diretamente equacionam, como também por
estimularem acalorados debates na esfera pública sobre temas
constitucionais, contribuindo para trazer a Constituição e, especialmente os
direitos fundamentais, para a ordem do dia.
40
Nesse sentido, tribunais de todo o país, influenciados pelos posicionamentos
das cortes superiores, acabam modificando suas posturas em relação a
determinados temas e incorporando em suas decisões novas abordagens que
garantam aos cidadãos o acesso aos direitos e garantias fundamentais e permitam a
efetividade dos preceitos constitucionais.
Exemplificativamente, será analisado como o tribunal de justiça da Paraíba
(TJPB) tem se manifestado sobre a concessão de medicamentos a pacientes pela
via judicial. A pesquisa foi realizada no site do referido tribunal (disponível em
<www.tjpb.ju.br>) tendo sido selecionadas três ementas de decisões proferidas no
corrente ano como forma de ilustrar o (des)alinhamento deste tribunal em relação ao
posicionamento supra destacado do Supremo Tribunal Federal. A primeira diz
respeito a uma decisão proferida em 25 de abril, cuja parte do teor afirma:
(...) A União, os Estados-membros e os Municípios são responsáveis
solidários no que pertine à proteção e ao desenvolvimento do direito da
saúde. Assim, ainda que determinado medicamento ou serviço seja
prestado por uma das entidades federativas, ou instituições a elas
vinculadas, nada impede que as outras sejam demandadas, de modo que
qualquer delas União, Estados e Municípios têm, igualmente, legitimidade,
individual ou conjunta, para figuraram no pólo passivo em causas que
versem sobre o fornecimento de medicamentos. CONSTITUCIONAL E
PROCESSUAL CIVIL Agravo de instrumento Fornecimento de
medicamento Direito à saúde Art. 196 da CF Norma de eficácia plena e
imediata Precedentes do STF, STJ e TJPB Obrigação estatal Ausência de
previsão orçamentária reserva do possível Direito à saúde e a vida digna
Mínimo existencial Preponderância Seguimento negado. Em uma
interpretação mais apressada, poder-se-ia concluir que o art. 196 da ,QF
seria norma de eficácia limitada programática, indicando um projeto que, em
um dia aleatório, seria alcançado. Ocorre que o Estado `lato sensu deve,
efetivamente, proporcionar a prevenção de doenças, bem como oferecer os
meios necessários para que os cidadãos possam restabelecer sua saúde. É
inconcebível que entes públicos se esquivem de fornecer meios e
instrumentos necessários à sobrevivência de enfermo, em virtude de sua
obrigação constitucional em fornecer medicamentos vitais às pessoas
enfermas e carentes, as quais não possuem capacidade financeira de
comprá-los. Se é certo que o Estado não pode ser compelido a fazer algo
além do possível reserva do possível, é igualmente correto que ele deve, ao
menos, garantir o núcleo mínimo existencial a cada indivíduo, sobrelevandose, destarte, a dignidade da pessoa humana art. 1°, I1I, da CF. - 0 art. 557,
caput, do CPC, permite ao relator negar seguimento ao recurso quando for
manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto
com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do
Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. (PARAÍBA, Tribunal de
Justiça da Paraíba, Agravo de instrumento 03720120031408001, Relator DES.
ABRAHAM LINCOLN DA CUNHA RAMOS, 24/042013)
41
Essa ementa esclarece o entendimento do TJPB em relação a competência
para assegurar o acesso a medicamentos. Com efeito, os três entes federativos
possuem responsabilidade solidária, devendo, quando provocados, garantir o
fornecimento a fim de promover a concretização do direito à saúde para os
cidadãos. Esse entendimento se compatibiliza com a decisão proferida pelo ministro
Celso de Melo no ano 2000 que, na mesma linha de raciocínio, entende que
prevalece uma responsabilidade solidária entre os entes federativos.
A referida decisão também destaca que a concretização do direito a saúde
deve ocorrer independentemente da disponibilidade financeira e orçamentária do
Estado, devendo ser priorizada a necessidade do cidadão em detrimento do
princípio da reserva do possível. Com efeito, a garantia da saúde está incluída como
uma necessidade básica que deve ser assegurada. Também nesse aspecto,
observa-se que o tribunal de justiça da Paraíba tem seguido a mesma linha de
raciocínio do STF em suas primeiras decisões, como aconteceu, por exemplo, no
caso da concessão de medicamento ao portador do vírus HIV, analisado
anteriormente.
Seguindo a mesma tendência da primeira ementa acima analisada, esta
também se posiciona de acordo com o entendimento manifestado pela Suprema
Corte, é o seu teor:
56051039 - AGRAVO INTERNO. INSURGÊNCIA EM FACE DA
MONOCRÁTICA QUE NEGOU SEGUIMENTO A SÚPLICA APELATÓRIA.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. SAÚDE.
DIREITO FUNDAMENTAL. OBRIGAÇÃO DO ENTE ESTADUAL.
ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DO REMÉDIO PLEITEADO NO ROL DE LISTA
DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. MATÉRIA DE ORDEM INTERNA DA
ADMINISTRAÇÃO. IRRELEVÂNCIA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA
INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES. INOCORRÊNCIA.
INEXISTÊNCIA
DE
PREVISÃO
ORÇAMENTÁRIA.
JUSTIFICATIVA IRRAZOÁVEL. NÃO INCIDÊNCIA DA RESERVA DO
POSSÍVEL. DEVER DO ESTADO DE PROVER AS SUBSTÂNCIAS
POSTULADAS. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E
DESTA CORTE DE JUSTIÇA. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO
MONOCRÁTICO.
INOVAÇÃO
EM
SEDE
REGIMENTAL.
IMPOSSIBILIDADE. ARGUMENTAÇÕES DO RECURSO INSUFICIENTES
A TRANSMUDAR O POSICIONAMENTO ESPOSADO. DECISUM EM
CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DOS
TRIBUNAIS SUPERIORES. MANUTENÇÃO DA DECISÃO ATACADA.
DESPROVIMENTO DA INCONFORMAÇÃO. É obrigação dever do estado
patrocinar as despesas com os medicamentos de pessoa que não possui
42
condições de arcar com os valores sem se privar dos recursos
indispensáveis ao sustento próprio e da família. Não há ofensa à
independência dos poderes da república quando o judiciário se manifesta
acerca de ato ilegal, abusivo e ineficiente do executivo. Conforme
entendimento sedimentado no tribunal de justiça da Paraíba, a falta de
previsão orçamen- tária não pode servir como escudo para eximir o estado
de cumprir com o seu dever de prestar o serviço de saúde adequado à
população. “art. 5º. Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a
que ela se dirige e às exigências do bem comum. ” (lei de introdução às
normas do direito brasileiro). - inexiste razoabilidade para se modificar o
decisum que obsta seguimento ao apelo, nos termos do art. 557, caput, do
código de processo civil, quando o decisum atacado encontra-se em
perfeita consonância com jurisprudência dominante do Superior Tribunal de
justiça e desta corte. (TJPB; Rec. 013.2012.001128-6/001; Primeira Câmara
Especializada Cível; Rel. Des. José Ricardo Porto; DJPB 15/08/2013; Pág.
11)
Com efeito, o TJPB ratifica em seu julgado o dever do Estado em fornecer
medicamentos aos cidadãos que não possuem condições financeiras de adquiri-los
sem
comprometer
o
seu
orçamento
familiar,
sendo
dever
do
Estado,
independentemente de previsão orçamentária, possibilitar o fornecimento. Esta
Corte legitima, também, a judicialização da saúde ao defender que não há afronta
aos poderes estatais a atuação do judiciário no sentido de materialização de
políticas públicas.
Além disso, fica evidenciada que a concessão de medicamentos não pode se
restringir aos que constam na lista de medicamentos oferecidos e disponibilizados
pelos entes federativos. Esse entendimento vai de encontro ao posicionamento
manifestado por Barroso (2010) que defende o oferecimento apenas de substâncias
que já constam nas listas como forma de limitar a judicialização da saúde. O
Supremo Tribunal Federal, contudo, como já destacado anteriormente, compreende
que o dever do Estado não pode se restringir aos medicamentos que constam nas
listas disponibilizadas no Sistema único de Saúde, devendo ser essa política pública
garantida de forma ampla aos cidadãos.
Por fim, a título exemplificativo, é importante analisar o teor do seguinte
julgado do Tribunal de Justiça da Paraíba, in verbis:
56050793
PROCESSUAL
CIVIL.
AGRAVO
INTERNO.
TEMPESTIVIDADE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE
43
PORTADORA DE CARCINOMA PULMONAR LOCOGERIONALMENTE
AVANÇADO. MEDICAMENTO PRESCRITO. TERCEVA 150 MG
(ERLOTINIB).
ALTO
CUSTO.
AGRAVADA
SEM
CONDIÇÕES
FINANCEIRAS DE COMPRAR O MEDICAMENTO PRESCRITO. DIREITO
À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. GARANTIA
CONSTITUCIONAL.
SUBSTITUIÇÃO
DO
MEDICAMENTO
POR
GENÉRICO. NÃO RECOMENDÁVEL. APLICAÇÃO DE MULTA PELO NÃO
CUMPRIMENTO DA DECISÃO. CONFIRMAÇÃO. NECESSIDADE DE
SUBME- TER A PACIENTE, ORA AGRAVADA À PERÍCIA PELA CÂMARA
TÉCNICA
DE
SAÚDE.
PROCEDIMENTO
DESNECESSÁRIO.
MANUTENÇÃO DO DECISUM. DESPROVIMENTO DO AGRAVO. É dever
constitucional do estado o fornecimento de medicamentos, gratuitamente a
todo cidadão carente de recursos financeiros, que dele necessitar.
Restando evidenciado nos autos “que o medicamento prescrito pelo
profissional-médico habilitado é o que atende melhor às necessidades
médicas do agravado”, até porque o medicamento genérico ou similar,
mesmo tendo princípio ativo igual, pode não surtir o mesmo efeito desejado,
colocando, assim, em risco o maior patrimônio do paciente, qual seja, à
vida, a medicação receitada deve ser mantida. No que diz respeito ao
quantum da multa aplicada pelo descumprimento da decisão judicial, agiu
com acerto e justiça o magistrado singular, decisão confirmada
monocraticamente em sede de segundo grau, posto que mostra-se
proporcional e razoável o arbitrado, diante dos danos decorrentes à
agravada, um vez que possui a enfermidade do câncer. Quanto a
necessidade de submeter a paciente à perícia pela câmara técnica de
saúde, entendo como desne- cessário, posto que o diagnóstico realizado
por profissional-médico habilitado, bem como a prescrição do medicamento
correto para o tratamento da enfermidade de que é portadora a agravada,
por si só respaldada o dever do estado em custear o tratamento, com a
devida aquisição e encaminhamento do medicamento prescrito a quem dele
necessitar. Não sobrevindo aos autos nenhum elemento novo capaz de
alterar o convencimento já manifestado quando da decisão recorrida, é de
ser conservado na íntegra o entendimento monocrático. (TJPB; Rec.
200.2010.021.668-4/002; Câmara Especializada Criminal; Rel. Juiz Conv.
Ricardo Vital de Almeida; DJPB 09/08/2013; Pág. 22). (PARAÍBA,
TRIBUNAL DE JUSTIÇA, AGRAVO INTERNO 56050793, Ricardo Vital de
Almeida, 09/08/2013)
A referida decisão também defende a obrigatoriedade do Estado no
fornecimento de medicamentos, conforme as outras emendas já analisadas. É
importante destacar, porém, uma particularidade nesta ementa que se relaciona a
realização de perícia médica a fim de analisar a gravidade da enfermidade e a
eficácia do medicamento enquanto tratamento curativo. Com efeito, a Turma
considerou desnecessária a submissão do caso à Câmara técnica de Saúde, órgão
especializado criado com o fim de auxiliar a atividade jurisdicional nas decisões
relacionadas ao direito à saúde, sendo suficiente o parecer proferido por profissional
–médico especializado. Nesse sentido, a atualidade do julgado, datado de 09 (nove)
de agosto do corrente ano, indica que o jurisdicionado paraibano já possui ao seu
44
dispor um importante instrumento para auxiliar as decisões no campo da
judicialização da saúde, contudo não há a de obrigatoriedade do órgão julgador
buscar auxílio do órgão técnico, quando as provas colecionadas nos autos são
suficientes para formular o entendimento do julgador.
A opção em não submeter o caso à perícia do referido órgão técnico não
desqualifica
ou
prejudica
o julgado
supramencionado.
Ela
transparece
a
preocupação do Tribunal de Justiça paraibano em oferecer ao órgão julgador
maiores subsídios para que as decisões relacionadas ao direito a saúde sejam cada
vez mais baseadas em aspectos técnicos que forneçam parâmetros para que o
princípio da razoabilidade e proporcionalidade se concretizem, contribuindo, dessa
forma, para que o cidadão não fique desemparado quanto ao seu direito de obter
medicamentos dos entes federativos e estes não tenham suas receitas
comprometidas em razão da distribuição de medicamentos de eficácia duvidosa.
Do exposto, observa-se, mesmo que apenas ilustrativamente, que as
decisões do Supremo Tribunal Federal no sentido de promover uma maior
racionalização da concessão de medicamentos a partir dos parâmetros destacados
pode influenciar as decisões dos tribunais de todo o país, como acontece no
Tribunal de Justiça da Paraíba que acata o entendimento da corte superior sobre a
solidariedade passiva dos entes federativos e o direito a saúde como incluso nas
necessidades básicas que o Estado deve assegurar, mesmo que a sua
concretização tenha que acontecer pela via judicial, através da judicialização deste
direito e independentemente de previsão da substância na lista de medicamentos
disponibilizadas pelos entes federativos.
3.3.
RACIONALIZAR A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: CAMINHO PARA A
REDUÇÃO DO DÉFICIT NO ORÇAMENTO PÚBLICO
A postura adotada pelo STF de fornecer parâmetros para a atuação dos
tribunais em todo o país manifesta a preocupação desta corte em garantir o acesso
da sociedade à saúde pela via judicial a partir de critérios que de certa forma
45
buscam minorar os gastos públicos em tratamentos que não possuem eficácia
comprovada ou que já são oferecidos de outras formas pelo Sistema Único de
Saúde.
Com efeito, os parâmetros destacados anteriormente, vêm sendo utilizados
nos tribunais de todo o país desde que a decisão foi proferida no ano de 2009.
Contudo, os gastos relacionados a judicialização da saúde tem aumentado de forma
significativa nos últimos, conforme já destacamos anteriormente e que são
apresentados no seguinte quadro apresentado no artigo de Nublat (2012):
Esse crescente aumento de demandas judiciais pleiteando a dispensação de
medicamentos e de tratamentos não previstos nas listas do Sistema Únicos de
Saúde contribui para a reflexão sobre a racionalização da judicialização da saúde
que vem sendo estimulada pelo Supremo Tribunal Federal.
De fato, os parâmetros fornecidos na decisão de 2009 delimitam a atuação
jurisdicional no sentido de impedir que sejam despendidos recursos em tratamentos
que ainda se encontram na fase experimental ou que possuem a mesma eficácia
dos que já são disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde. Nesse sentido, o
Supremo Tribunal Federal não apenas ratifica o eixo substancialista da judicialização
46
no ordenamento jurídico brasileiro, como também defende a sua aplicação de forma
consciente.
Diante da realidade política do Brasil, a vertente substancialista da
judicialização é a que de fato melhor se coaduna com a concretização dos direitos
sociais, pois possibilita que o cidadão obrigue o Estado a realizar determinadas
políticas públicas. O caráter emergencial das prestações no campo da saúde, já que
se relaciona diretamente com o direito à vida, ratifica a atuação do judiciário na
medida em que o governo não consegue suprir as necessidades dos cidadãos,
sendo, neste caso, desconsiderado o princípio da reserva do possível perante da
imprescindibilidade de concretização do direito à saúde. A linha de entendimento do
STF e do TJPB, por conseguinte, defende que o referido direito deve se realizar
independentemente do processo legislativo de edição de políticas públicas, que foi
destacado anteriormente.
No entanto, diante do crescimento vertiginoso de demandas judiciais nessa
área, imperioso se faz o apontamento de alternativas que a doutrina e os próprios
tribunais têm indicado a fim de serem acrescentados aos parâmetros já fornecidos
pelo Supremo Tribunal Federal. São eles:
(1) Opção por substâncias produzidas no Brasil: Barroso (2010, p.33) afirma
que o Poder Judiciário deve balizar interesses no fornecimento de
medicamentos, devendo garantir o tratamento adequado sem onerar
excessivamente os cofres públicos, já que substâncias estrangeiras
demandam maiores recursos para importação;
(2) Opção pelo medicamento genérico, de menor custo: se há, no mercado
farmacêutico, medicamento genérico que possui a mesma eficácia do que
o pleiteado, aquele deverá ser priorizado, como forma de reduzir gastos,
em razão do seu menor custo, como também defende Barroso (2010);
(3) Criação de órgãos que auxiliem os magistrados nas decisões referentes á
concessão de medicamentos: a apreciação sobre a eficácia de
determinada substância depende não apenas da análise atenta do órgão
julgador dos aspectos fáticos da demanda. É necessário averiguar a real
eficácia do medicamento, conhecimento este que pode ser fornecido por
47
especialistas da área de saúde. Neste sentido, tem se tornado cada vez
mais comum a criação de órgãos compostos por médicos, farmacêuticos e
terapeutas que têm como objetivo auxiliar o magistrado na análise do
tratamento pleiteado, no caso da Paraíba, por exemplo, foram criadas as
Câmaras Técnicas de Saúde. Esses órgãos com o caráter técnico
certamente contribuem para que o magistrado apenas defira a
dispensação de medicamentos e tratamentos que possuem de fato
eficácia;
(4) Soluções das demandas administrativamente através de parceria entre a
Defensoria Pública e a Secretaria Estadual de Saúde: Casal (2009, p. 84)
indica, a partir do estudo de caso do Estado de São Paulo, o quanto é
importante a parceria entre o poder judiciário e o executivo. Com efeito, no
ano de 2009, a secretaria de saúde do referido Estado buscou a
defensoria com o objetivo de solucionar as demandas por medicamentos e
tratamentos de forma mais ágil. Foi criado, portanto, um sistema em que o
indivíduo entra em contato direto com a secretaria que analisa a
competência federativa para realização do tratamento ou dispensação do
medicamento e formas de garantir a concretização do direito.
Essas alternativas não esgotam e nem tampouco anulam outras que são
defendidas pela doutrina e adotadas pelos órgãos julgadores, elas apenas
transparecem a necessidade de serem sempre perquiridas novas formas de diminuir
os gastos públicos com demandas judiciais na área da saúde. Deste modo, o
posicionamento do Superior Tribunal Federal de racionalizar a judicialização da
saúde inaugura uma nova fase no ordenamento jurídico brasileiro e estimula para
que sejam buscados novos instrumentos auxiliadores da atividade jurisdicional neste
âmbito.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não pode o cidadão ser privado dos direitos e garantias fundamentais diante
da inércia do legislativo e do executivo na edição e execução de políticas públicas. O
judiciário, enquanto guardião dos preceitos constitucionais tem o dever de promover
48
e assegurar à sociedade como um todo condições mínimas de sobrevivência. Nesse
sentido, a judicialização de políticas públicas representa a garantia da representação
do povo e não uma afronta à soberania popular já que sua atividade jurisdicional não
abarca de forma ampla a legislativa e a executiva, antes busca suprir eventuais
lacunas e omissões. De fato, a concretização de políticas públicas pela via judicial
acaba sendo uma forma de minorar as incontáveis carências de prestações sociais
que os cidadãos sofrem no seu cotidiano.
Deste modo, o eixo substancialista, proposto por Dowokin e Capetelli, que
defende a judicialização como um mecanismo que promove a igualdade e a
liberdade entre os cidadãos, é o que de fato tem sido aplicado e defendido no
ordenamento jurídico brasileiro, especialmente pelo Superior Tribunal Federal. No
entanto, a ideia de que esse fenômeno deve ser utilizado de forma racionalizada é a
que melhor se coaduna com a realidade jurídica atual. O estabelecimento de
parâmetros de atuação contribui para que o judiciário medeie os interesses da
sociedade com as limitações do poder público, evitando que ocorram gastos
desnecessários que comprometam a concretização de outras políticas públicas.
Em relação a judicialização da saúde, especificamente ao fornecimento de
medicamentos, fica evidente que o Superior Tribunal Federal legitima a concessão
de substâncias pela via judicial por ser considerado um serviço/produto que compõe
o mínimo essencial para a sobrevivência do indivíduo, devendo ser realizado
independentemente do princípio da reserva do possível. No entanto, deve o órgão
julgador observar parâmetros, como, por exemplo, se o medicamento já é fornecido
pelo Sistema único de Saúde, a possibilidade de já existir substância alternativa
oferecida pelo poder público e o fato do medicamento não se encontrar em fase
experimental, comprovando a sua eficácia.
No entanto, os referidos parâmetros não têm evitado o crescimento de
demandas na área da saúde e dos gastos públicos em razão desses pleitos
judiciais. Por esse motivo, a busca de novos mecanismos que minorem esses
impactos é importante para que a garantia de um direito individual não comprometa
a concretização do coletivo. Assim, a criação de órgãos técnicos para auxiliar os
magistrados nas suas decisões, a realização de convênios entre as defensorias
públicas e as secretarias para que as demandas sejam solucionadas no âmbito
49
administrativo e a busca por medicamentos alternativos com a mesma eficácia, a
custo menor, representa alternativas que pode contribuir para a solução de litígios
dessa natureza.
Por ser um tema em constante construção diante da frequência com que é
debatido pelo poder judiciário, o presente trabalho não pretendeu esgotar todas as
reflexões relacionadas à judicialização da saúde, mas fornecer uma reflexão sobre a
importância de ser esse direito fundamental assegurado pela via judicial quando
outros poderes não o concretizam. Este trabalho possibilita, portanto, que novas
reflexões sobre o tema sejam realizadas oportunamente.
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PARAÍBA. Tribunal de Justiça. 56050793 - processual civil. Agravo interno.
Tempestividade. Fornecimento de medicamento. Paciente portadora de
carcinoma pulmonar locogerionalmente avançado. Medicamento prescrito.
Terceva 150 mg (erlotinib). Alto custo. Agravada sem condições financeiras
de comprar o medicamento prescrito. Direito à vida e à saúde. Dever do
estado. Garantia constitucional. Substituição do medicamento por genérico.
Não recomendável. Aplicação de multa pelo não cumprimento da decisão.
Confirmação. Necessidade de submeter a paciente, ora agravada à perícia
pela câmara técnica de saúde. Procedimento desnecessário. Manutenção do
decisum. Desprovimento do agravo. Rec. 200.2010.021.668-4/002; Câmara
Especializada Criminal; Rel. Juiz Conv. Ricardo Vital de Almeida; DJPB
09/08/2013; Pág. 22.
______. Tribunal de Justiça. 56051039 - agravo interno. Insurgência em face
da monocrática que negou seguimento a súplica apelatória. Ação civil pública.
Fornecimento de medicamento. Saúde. Direito fundamental. Obrigação do
ente estadual. Alegação de ausência do remédio pleiteado no rol de lista do
ministério da saúde. Matéria de ordem interna da administração. Irrelevância.
Ofensa ao princípio da independência e harmonia entre os poderes. Inocorrência. Inexistência de previsão orçamentária. Justificativa irrazoável. Não
incidência da reserva do possível. Dever do estado de prover as substâncias
postuladas. Precedentes do supremo tribunal federal e desta corte de justiça.
Possibilidade de julgamento monocrático. Inovação em sede regimental.
Impossibilidade. Argumentações do recurso insuficientes a transmudar o
posicionamento esposado. Decisum em consonância com a jurisprudência
dominante dos tribunais superiores. Manutenção da decisão atacada.
Desprovimento da inconformação. TJPB; Rec. 013.2012.001128-6/001;
Primeira Câmara Especializada Cível; Rel. Des. José Ricardo Porto; DJPB
15/08/2013; Pág. 11.
______. Tribunal de Justiça. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL Agravo de instrumento - Preliminar Da nulidade da decisão que concedeu a
antecipação da tutela - Ausência de fundamentação - Decisão fundamentada
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interlocutórias, devem ser fundamentadas, sob pena de nulidade. As decisões
judiciais para serem hígidas e válidas têm de ser fundamentadas, sendo
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Laís de Souza Ribeiro