UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
Departamento de Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural
Especialização em Estudos Literários
JOÃO BOSCO DA SILVA
([email protected])
PAULICÉIA DESVAIRADA - DE MÁRIO DE ANDRADE
Uma pequena análise
Feira de Santana
2012
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Publicado em 1922, Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, apresenta logo no
seu famoso Prefácio Interessantíssimo, as bases estéticas do Modernismo, rompendo
com as estruturas do passado no seu primeiro livro de poemas modernistas, inspirado no
ambiente e na vida social de São Paulo. Para ter uma noção, entre 1900 e 1922 a
população passou de 250 mil para mais de 600 mil habitantes.
O Prefácio já nos apresenta uma base teórica das suas ideias sobre a poesia,
declarando-se fundador da escola poética do Desvairismo, retomada e aprofundada em A
escrava que não é Isaura (1924), que foi uma espécie de 'introdução' à poesia
modernista, num texto que expõe e confirma uma das características da sua obra, que é o
benefício da dúvida ou incerteza, que pode gerar possibilidades múltiplas escolhas. Há
nesse contexto a descrição dos processos de estilo modernos, como o uso da palavra
livre retratando uma população heterogênea da grande cidade concreta e egoísta, sob o
poder econômico formado pela burguesia.
Como um recurso técnico, o autor aproxima a poesia da música, como faziam os
simbolistas, em poesias de versos livres, sem um roteiro ou enredo fixo, numa linguagem
simples e irreverente, até mesmo com alguns erros propositais de ortografia e gramática,
como um protesto contra as correntes dominantes.
Em alguns momentos, a cidade é uma tumba de homens massacrados pelas
"monções da ambição", de bandeirantes ou de capitalistas, em outros momentos a cidade
é um palco de multicoloridos festejos.
Ainda lembrando o “Prefácio”, Mário de Andrade faz considerações irônicas ao que
ele chama de “teoria engenhosa”, como uma forma de manter seus leitores atentos, já
deixando claro que não pretendia reproduzir a natureza, pois a “arte não consegue
reproduzir natureza, nem este é o seu fim”. Também não pretendia seguir a tradição de
que “o passado é lição para se meditar, não para reproduzir”. Na parte final, o autor diz
que as suas teorias são disparates e vida curta, libertando o ato da criação sem regras
estilísticas.
No poema "O cortejo" percebe-se a "polifonia poética", composta de frases e
palavras relacionadas no interior dos versos melódicos e, ao mesmo tempo, contrastando
com um agrupamento de frases soltas, vibrando como cordas de uma cítara. Os versos
não fazem sentido se lidos linearmente e podem ser lidos em ordem aleatória, sem alterar
o sentido, pois a ideia é subverter a convenção. Senão vejamos:
O CORTEJO
Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bom giorno, caro."
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
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Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.
A cidade moderna poderia representaria a libertação e a afirmação do indivíduo,
mas também poderia reduzir o indivíduo a uma singularidade e isolamento, em busca do
trabalho e dinheiro, sendo ao mesmo tempo desigual à vista do poeta, por suas
características culturais, sociais e étnicas, mas iguais, sem importância e anônimos, ou
apenas um número na multidão.
INSPIRAÇÃO
São Paulo! comoção da minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e Ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paria... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!
São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!
Os Orientalismos Convencionais são os escritores e demais artífices elogiáveis, vale
dizer, os poetas parnasianos:
Os alicerces não devem cair mais!
Nada de subidas ou de verticais!
Amamos as chatezas horizontais!
Abatemos perobas de ramos desiguais!
Odiamos as matinadas arlequinais!
........................................................................
Para que cravos? Para que cruzes?
Universalizai-vos no senso comum!
Senti sentimentos de vossos pais e avós!
Para as almas sempre torresmos cerebrais!
A elite burguesa que dominava a cidade de São Paulo foi nominada pelo poeta
como Senectudes Tremulinas de 1920:
Só admiramos os célebres
e os recomendamos também! (...)
Preferimos os coros dos Orientalismos Convencionais! (...)
Alargar as ruas...
E as instituições?
Não pode! Não pode!
Maiores menores
Mas não há quem diga
Maiores menores quem são estes homens
que cantam do chão?
O povo pobre e os operários eram para o autor Os Sandapilários Indiferentes, com
valsa de Puccini:
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Vá de rumor! Vá de rumor!
Esta gente não nos deixa mais dormir!
Antes “E lucevam le stelle" de Puccini!
Oh! pé de anjo, pé de anjo!
Fora! Fora o que é de despertar!
Os revolucionários e inquietos modernistas eram os Juvenilidades Auriverdes de
1922.
Somos as Juvenilidades Auriverdes!
A passiflora! O espanto! A loucura! o desejo!
Cravos! mais cravos para nossa cruz! (...)
Nós somos as Juvenilidades Auriverdes!
As forças vivas do torrão natal,
as ignorâncias iluminadas,
os novos sóis luscofuscolares
entre os sublimes das dedicações! (...)
(queremos) Os tumultos da luz!...
As lições dos maiores!...
E a integralização da vida no Universal!
As estradas correndo todas para o mesmo final!...
E a pátria simples, una, intangivelmente
partindo para a celebração do Universal! (...)
(...) Cães! Piores que cães!
Vós, burros! malditos! cães! piores que cães! (...)
Seus borras! Seus bêbados! Infames! Malditos! (...)
Seus ............................................................!!!
(a maior palavra feia que o leitor conhecer)
O poeta mostra seu “eu” no poema Minha Loucura:
Chorai! Chorai! Depois dormi!
Venham os descansos veludosos
vestir os vossos membros!... Descansai!
Ponde os lábios na terra! Ponde os olhos na terra!
Vossos beijos finais, vossas lágrimas primeiras
para a branca fecundação! (...)
Oh! Juvenilidades Auriverdes, meus irmãos: (...)
Diuturnamente cantareis e tombareis.
As rosas... As borboletas... Os orvalhos...
O todo-dia dos imolados sem razão...
Fechai vossos peitos! (...)
Venham os descansos veludosos
Vestir os vossos membros... Descansai!
Eu... os desertos... os Cains... a maldição...
O autor sabia que a conquista da liberdade teria seu preço, por isso uma ruptura
vanguardista dos primeiros modernistas mostrou-se conturbada, por ter de apresentar
novos caminhos, curvas e desvios, nem sempre perceptíveis, travando uma luta com a
procura, em vez de querer achar a estética definitiva.
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Costa Lima, por exemplo, lamenta que depois da “Paulicéia” o autor abandona o
estilo “contundente” da poesia entrecortada, fragmentária e visual, em nome de um
prosaísmo diluído, intimista e “cordial”.
A inconsistência estilística do autor se apresenta em seu personagem Arlequim,
como uma forma estética de nunca se deixar delimitar, mantendo a missão de busca
infinita da completude do ser incompleto, mesmo após qualquer conquista. Diz o autor:
“Porque seria então o descanso em vida, parar mais detestável que a morte. Minhas
obras todas na significação verdadeira delas eu as mostro nem mesmo como soluções
possíveis e transitórias. São procuras”.
Walter Benjamin faz uma imagem significativa da obra de Mário de Andrade,
utilizando a figura de um vaso quebrado em pedaços, fragmentado, que mesmo
recomposto, as partes permanecem divididas. E por outro lado, tem elementos que nos
permitem compreender o modernismo brasileiro em todo o seu trajeto.
Por opção literária, o autor acrescenta a harmonia poética subjetiva com que Mário
de Andrade traz o sujeito novamente ao centro da arte, porém o sujeito não mais apenas
um objeto de representação, como mostravam os expressionistas, tendo em vista que no
modernismo a realização da poesia depende tanto do poeta quanto do leitor, na emissão
e a recepção da emoção dentro de si. Buscava-se novos valores horizontais e
experimentais.
O projeto de modernismo brasileiro queria dar autonomia de criação, num projeto de
literatura que ultrapassasse o regionalismo e se tornasse nacional e autêntica, como foi o
caso do romance Macunaíma e do livro de poesias Pauliceia Desvairada, de Mário de
Andrade. A Paulicéia pode ser considerada uma inovação literária do modernismo,
publicado na Semana de Arte Moderna, na busca pela própria identidade.
PRINCIPAL TEMA:
A vida na cidade grande brasileira, registrada com uma estética polifônica, pela falta
de uma unidade formal, pois havia um descompasso entre a realidade objetiva e a
representação do “eu”, tentando escapar do mundo melancólico interior, mostrando as
nossas contradições, para sustentar a opinião do fracasso estético, por tentar e não
conseguir a essência do lirismo em muitos textos da Pauliceia Desvairada, precisando
criar uma sintonia entre a subjetividade e o mundo, fazendo a cidade brilhar no interior do
‘eu’.
Costa Lima reprova alguns poemas do livro, que começam tentando impor a
polifonia, mas depois cedem lugar a versos prosaicos, lineares, nos quais o “eu” lírico
acaba por dominar a cena da cidade, em pinceladas de ironia, usada apenas como
subterfúgio do poeta para disfarçar a melancolia da sua subjetividade poética, gerando
desarmonia com a estética moderna da polifonia. O livro se divide em aspectos de
representação da cidade grande e sua subjetividade, com focos temáticos na cidade
grande e no sujeito e sua representação, sem a preocupação de apenas descrever a vida
exterior e física de carros, casas etc., expondo uma expressão totalmente contrária à
descritiva, sem a preocupação de fornecer ao leitor uma imagem fidedigna da realidade,
pois era imperativo buscar novas formas de expressão para representar as ruas e
multidões, mesmo dentro do lirismo complexo num ambiente hostil, versando por
hipérboles e metáforas, tentando empreender uma nova forma de ver o mundo, sem a
influência das vanguardas europeias, mas tentando entender aquelas tendências para
cantar a sua própria Pauliceia, com o recurso que o poeta chamou de “polifonia poética”.
Em Pauliceia Desvairada o autor se excede em pontuação, reticências e
exclamações, tornando os poemas de aspectos disformes, confusos, incômodos e
incompletos, mas que se mostrou uma nova postura experimentalista na tentativa de
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abandono da simetria e métrica parnasiana. Buscava-se criar um novo estilo, com uma
aproximação com a musicalidade (polifonia), para que os versos continuassem soando
mesmo depois de novos versos lidos, como o efeito das reticências. Não se pode dizer
que, do ponto de vista estético esse efeito tenha sido exitoso, mas a intenção do poeta foi
explorar novas possibilidades estéticas, focalizando a expressão nas potencialidades
visuais e aditivas (musicalidade) da poesia, explorando a vida e vivências na cidade
grande, nos seus aspectos ásperos e fragmentados, procurando novas formas de sentido
que reflitam o modo de viver numa metrópole moderna.
Vejamos outro exemplo:
PAISAGEM nº 1
Minha Londres das neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
Parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.
Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
um tralalá... A guarda-civica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?
Meu coração sente-se muito triste...
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
Dialoga um lamento com o vento...
Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
dá vontade de sorrir!
E sigo. E vou sentindo,
à inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lágrimas na boca...
Percebe-se o desencontro entre a primeira estrofe polifônica com o prosaísmo das
demais. Os versos são autônomos entre si, mas apesar de parecer desconexos, juntos
conseguem formar múltiplas imagens, numa técnica cinematográfica, provocando nova
sensação estética, forte e incômoda, garantindo o efeito concreto da poesia, somente
abalada na primeira estrofe, pela opção do “eu”, ao comparar a “sua” Londres com a
grande metrópole europeia, bem como no oitavo verso, ao sacar seu “Arlequinal!”
subjetivo.
A técnica da polifonia é abandonada a partir da segunda estrofe e passa a ser
narrativa, prosaica e subjetiva, enfraquecendo as imagens e paisagens da primeira
estrofe. A opinião do “eu”, desta forma, foi a responsável pelo mergulho alienado em si e
pelo abandono da polifonia, como traço ambíguo do autor, que se torna modernista.
MÁSCARAS:
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A imagem do Arlequim é uma máscara que o poeta utiliza para compor a sua
fragmentação, dualismo, contradição e ambiguidade, de uma cidade que passava por
radicais transformações, deixando de ser uma cidade provinciana para se tornar uma
grande metrópole cosmopolita, por não ser mais possível o parnasianismo traduzir nem
expressar a vivência moderna de uma cidade grande. A imagem arlequinal aparece
frequente para circundar as peculiaridades e ambiguidades no texto. No poema
“Inspiração” aparece os elementos de composição do Arlequim, utilizados para simbolizar
os contrastes, desde os losangos, o dourado e o marrom da roupa, mostrando um
possível jogo de oposições entre a nova e a velha dialética, fragmentada, indecisa e
contraditória.
Os Arlequins poeta, palhaço, louco e o malandro, são as máscaras das personagens
que Mário de Andrade faz protagonizar o espetáculo do sujeito moderno na cidade
grande, que assim como um caleidoscópio, gira formando novas imagens, agora em torno
do capital, do relógio, da máquina. O Arlequim também tem o papel de autocrítica, pois a
criação não pode romper definitivamente com o passado, na tentativa de preservar o local
contra o internacional, na busca da própria identidade nacional.
A máscara do Arlequim pode ser vista pelo lado positivo como a visão do louco ou
brincalhão, para que a sua atitude crítica tenha um aspecto leve. O lado negativo dessa
feição mais leve é que ela pode impedir a arte de corrigir erros que estão sob essas
máscaras. Mário de Andrade trabalha mais as contradições em seus poemas do que faz
apologia de suas realizações. Um louco seria mais aceito para explicar essas
contradições, pelo distanciamento que consegue obter da realidade criticada, cabendo até
a possibilidade do riso.
No poema “Paisagem nº 2” o autor também mistura a técnica da polifonia com a
prosaica, trazendo elementos novos, marcando a oposição entre o inverno, frio, sombrio e
o passado alegre, aquecido e colorido. Há registrada a imagem da sua Pauliceia invernal,
da escuridão, com os estiolados muito brancos e as “primaveras eternas”! :
PAISAGEM nº 2
Escuridão dum meio-dia de invernia...
Marasmos... Estremeções... Brancos...
O céu é toda uma batalha convencional de confetti brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe...
Oh! para além vivem as primaveras eternas!
As casas adormecidas
parecem teatrais gestos dum explorador do pólo
que o gelo parou no frio...
Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem...
Todos os estiolados são muito brancos.
Os invernos de Pauliceia são como enterros de virgem...
Italianinha, torna al tuo paese!
Deus recortou a alma de Pauliceia
num cor de cinza sem odor...
Oh! para além vivem as primaveras eternas!...
Mas os homens passam sonambulando...
E rodando num bando nefário,
vestidas de eletricidade e gasolina,
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as doenças jocotoam em redor...
São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
e também as apoteoses de ilusão...
Grande função ao ar livre!
Bailado de Cocteau com os barulhadores de Russolo!
No poema existe um sentimentalismo subjetivo, que vem do romantismo, mas ao
surgir no final, o “eu” não absorve o mundo em seus sentimentos e os transforma de
forma paródica ao falar da realidade. O cenário é tenebroso é dominado pelo “eu”, que
quer conduzir o movimento da modernidade com habilidade, na certeza de possuir
controle sobre a situação numa cidade com traços caóticos, mas ainda com seus
resquícios de provincianismo. São Paulo de 1920 ainda não era uma metrópole de fato,
tinha a vida moldada na garoa calma, na presença de carroças e lampiões a gás.
A multiplicação de olhares e perspectivas de São Paulo pode ser vista nas
contradições dos poemas, produzindo uma variedade de enfoques, sem qualquer
conclusão definitiva, dentro de paradoxos entre a aproximação e a repulsa, entre a ironia
e a seriedade, cheia de metamorfoses, “a rir dos nossos desiguais”:
OPUS 1921
São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
e também as apoteoses da ilusão...
Mas o Nijinsky sou eu!
E vem a Morte, minha Karsavina!
Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da desesperança,
A rir, a rir dos nossos desiguais!
Nesse poema, cada estrofe tem uma atmosfera autônoma e ao final, uma triste
constatação da desigualdade que nos faz rir. Desde as primeiras estrofes, as imagens já
brotam das palavras, como um caleidoscópio, mostrando de forma paratática1 em traços
prosaicos, quebrando a linearidade.
No livro há diversas referências a artistas e à arte vanguardistas, tais como o francês
Jean Cocteau; o russo Russolo; o filme de curta-metragem alemão Opus, de 1921; os
bailados russos e os bailarinos Nijinsky (conhecido como “palhaço de Deus”) e Karsavina
(trazida ao poema como alegoria da Morte); o ritmo fox-trot americano, como linhas
cosmopolitas e modernas do mundo no cenário paulista como alegorias e erudição de
quem tem conhecimento das novidades mundiais, associando-as à catástrofe, utilizando
até onomatopeias de um riso louco e escandaloso: “Quá, quá, quá!”, por mostrar o
despreparo da metrópole, com sua dança e música caipira, de querer se igualar a outros
grandes centros.
Na quarta estrofe o lírico do poeta se torna um louco bailarino moderno, numa
cidade que se esqueceu de suas desigualdades dentro dos seus próprios limites, mas
iludida tem os olhos voltados para o espetáculo da modernização cultural e civilizatória do
mundo.
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A análise sintática é o estudo sobre o que determinada palavra exerce em relação a outros termos da oração. Ao contrário de tentar
explicar essa relação gramatical, escrever de forma paratática é escrever sobre si, sua história e sua vida em relação a outras pessoas.
Em vez de analisar umas palavras em relação às outras, análise paratática faz comparação da sua vida em relação à vida dos outros.
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No poema “Paisagem nº 4”, o poeta mostra as contradições entre elementos do
passado e do presente estampadas no rosto de sua cidade: urbana e rural, moderna e
arcaica, cosmopolita e provinciana.
Os caminhões rodando, as carroças rodando,
rápidas as ruas se desenrolando,
rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!.
Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway...
Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!...
Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!...
Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados...
Oh! as indiferenças maternais!...
Os caminhões rodando, as carroças rodando,
rápidas as ruas se desenrolando,
rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!...
Lutar!
A vitória de todos os sozinhos!...
As bandeiras e os clarins dos armazéns abarrotados...
Hostilizar!... Mas as ventaneiras dos braços cruzados!...
E a coroação com os próprios dedos!
Mutismos presidenciais, para trás!
Ponhamos os (Vitória!) colares de presas inimigas!
Enguirlandemo-nos de café-cereja!
Taratá! e o pean de escárnio para o mundo!
Oh! este orgulho máximo de ser paulistamente!!!
O tema principal mescla elementos da cidade moderna com os sentimentos
interiores do poeta, procurando incorporar o que chegava com a modernidade, sem
esquecer a cultura originária.
O poema caminha sobre os trilhos do ambiente da cidade, com os rumores dos
caminhões e carroças rodando, estrépitos estalidos, na época da crise do café, que se
instalava no panorama regional. As aliterações da primeira estrofe é fio condutor do
barulho e perturbação, dentro da tensão vivida numa realidade reproduzida pela
sonoridade dos versos, o que fortalece a expressão do poema.
O poeta não tenta camuflar o sentimentalismo do “eu” lírico, como ocorre em
“Paisagem nº 1”, ou desmascarar a realidade, como na “Paisagem nº 2”, a ironia agora
parece servir como uma autocrítica, desmascarando a indiferença do Brasil em relação à
crise dos fazendeiros paulistas. Também é uma sutil crítica ao bairrismo e nacionalismo
exacerbado pelos paulistas. O poeta tenta voltar à busca da identidade pelas raízes
primitivas indígenas, importantes, mas ao mesmo tempo rejeitadas no Brasil, e em São
Paulo, numa cidade onde o tupi-guarani foi mais falado do que português até o final do
século XVIII, quando passou a ser proibido.
A “Paisagem n. 4” mostra alguns atritos, como os existentes entre regionalismo e
internacionalismo; o arcaísmo e a modernidade, tentando encontrar uma identidade
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estética, numa época de contradições e ambiguidades da própria modernização de São
Paulo, financiada pela aristocracia cafeeira, e o avanço urbano e industrial bancado pelo
setor rural cafeeiro mais tradicional, conservador e arcaico, da sociedade.
A metáfora “o grito inglês da São Paulo Railway” corresponde ao trem cosmopolita e
leva a entender que o mecanismo da cafeicultura paulistana depende da tecnologia
estrangeira europeia.
Em contraposição a “Ponhamos os (Vitória!) colares de presas inimigas!” diz respeito
a um ritual indígena, utilizado em conflitos (contra animais ou tribos inimigas), em que as
presas inimigas são retiradas e transformadas em colares usados pelos vencedores,
apropriando-se da alma do inimigo (a antropofagia se insere nessa mesma dinâmica), de
modo que o vencedor incorpora traços do vencido e vice-versa. Portanto, corresponde
aos paulistas indígenas, ao primitivo.
A sobreposição de elementos contraditórios entre o internacional e o local é
expressa as culturas locais até então desprestigiadas, equilibrando a realidade e a lírica,
às vezes abrindo mão do lirismo, utilizando-se de outros recursos formais como as
aliterações e as metáforas, para expor esteticamente a vida do sujeito incorporado aos
costumes da cidade moderna, com suas contradições de pensamentos elitistas modernos
num país ainda periférico.
A polifonia poética utilizada como estética nos poemas da série “paisagens” permite
associar a poesia do livro com a expressionista de forma objetiva, adequado para traduzir
a vivência do indivíduo e do artista na cidade grande.
Em “O Trovador”, o poeta se torna mais lírico e saudosista.
O TROVADOR
Sentimentos em mim do asperamente
Homens das primeiras eras...
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde!
Percebe-se nesse poema certo tom lírico e até melancólico, onde o “eu” lírico faz
referências ao passado local ou até mesmo internacional, como uma reminiscência
intermitente de um caleidoscópio, que leva desconforto ao leitor, fazendo-o parar para
refletir. Nos versos 8 e 9 “Cantabona! Cantabona! Dlorom...”, traz uma palavra repetida
com sons de onomatopeia, gerando a sensação de redundância e tensão, para encerrar
com uma associação entre a alma indígena como origem da cultura e um alaúde (tipo de
violão medieval), provavelmente para criar um suspense no desfecho do poema, quando
o autor revela sua identidade, como um índio tocando um violão que não domina. Esse
herói com traços rudimentares foi realizado por Mário de Andrade em Macunaíma, “o
herói sem nenhum caráter”. A identidade do poeta é a própria imagem do primitivo de
uma nova era, do mestiço local e do cosmopolita: Como ele mesmo afirma: “Sou um tupi
tangendo um alaúde!”.
No poema “O rebanho” a estética do grotesco é revelada.
Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
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sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
saírem de mãos dadas do Congresso...
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos salvadores do meu estado amado!.
Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
entre o trepidar dos taxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro...
Oh! Minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos heróis do meu estado amado!...
E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos...
Emigram os futuros noturnos...
E verde, verde, verde!...
Oh! Minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhes os cornos, descem-lhes as barbinhas...
E vi que os chapéus altos do meu estado amado,
com os triângulos de madeira no pescoço,
nos verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde,
se punham a pastar
rente do palácio do senhor presidente...
Oh! Minhas alucinações!
No poema percebe-se o recurso da reiteração, e logo no primeiro verso o poeta faz
uma espécie de advertência ao leitor, e no final repete o verso “Oh! Minhas alucinações!”
para relembrar ao leitor que a sua mente continua inquieta. Os versos 5 e 6, “Como um
possesso num acesso em meus aplausos / aos salvadores do meu estado amado!...” são
repetidos nos versos 11 e 12, com alteração da palavra “salvadores” para “heróis”. Neste
caso, a aliteração2 do “s” talvez queira sugerir entusiasmo, alucinações e uma sensação
de irrealidade, para dar mais liberdade ao “eu” lírico para chegar a lucidez, pois a lucidez
é camuflada por meio da insanidade.
Há uma vinculação com o expressionismo, quando o sujeito é agora apenas um
visionário da vida moderna, estranhando com ironia a realidade grotesca na qual o ser
humano é tratado como um animal fragmentado, uma abordagem muito comum nos
poemas de Mário de Andrade, como uma afirmação típica da poesia moderna.
Na “Ode ao burguês” o sujeito burguês é criticado ironicamente.
“ODE AO BURGUÊS”
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo Francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
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Aliteração: figura de linguagem que consiste em repetir sons consonantais idênticos ou semelhantes em um verso ou em uma frase.
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Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns milréis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam o “Printemps” com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
“- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... – Conto e quinhentos!!!
- Mas nós morremos de fome!”
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purêe de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giôlhos,
Cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fú! Fora o bom burguês!...
A ode é um gênero lírico em tom sublime e nobre e formal, mas o título é apenas um
chamado de Mário de Andrade para que o leitor crie uma expectativa, que logo é frustrada
no primeiro verso agressivo, irônico, sem cerimônia ou respeito. Percebe-se novamente o
recurso da reiteração da expressão. Os insultos ao burguês vão sendo propalados, e aos
poucos o leitor sente na representação sonora que a “ode ao burguês” na realidade quer
dizer mesmo é “ódio ao burguês”. No decorrer dos versos é revelada a construção das
contradições entre a metrópole civilizada e os comportamentos irreverentes do “eu” lírico
rancoroso e imprudente, em total falta de controle emocional.
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No último verso, onde o poeta exacerba seu “Fora! Fú! Fora o bom burguês!..”, é um
fechamento como se mandasse o burguês para fora da sua poética modernista do “eu”
lírico opositor.
Costa Lima comenta que a “Ode ao burguês” é muito diferente da proposta inicial
polifônica de Mário de Andrade, classificando o poema como iconoclasta3, porque não há
uma preocupação com a linguagem, usada apenas com um simples instrumento de
transmissão do preconceito contra certa classe social.
Um dos elementos importantes que surgem e são destacados no poema a destacar
é, por exemplo, é a cor vermelha. Contrariamente, quando Mário de Andrade utiliza a cor
verde como um fator de perturbação da ordem e do sentido, o vermelho é considerado a
cor das emoções exaltadas, reforçando o ódio e o descontrole do “eu” lírico. Os versos
traduzem raiva e rancor, como sentimentos capazes de levar o sentido ideológico do
poema à dimensão estética das vanguardas, a fim de fixar uma identidade tropical
nacional.
A PONTUAÇÃO
É utilizada como um recurso formal estético de tornar o texto mais emocional. A
realidade da cidade grande é percebida como ameaça ao ser humano, e nos poemas de
Pauliceia Desvairada, de modo consciente, Mário de Andrade usa a pontuação em busca
frenética pela identidade da cidade e a do poeta também. Ao descrever a cidade pela
poesia a intenção do poeta deve ser para mostrar a estreita relação entre os dois, já que a
sua concepção de cidade varia de otimista para cética e às vezes até mesmo pessimista,
mesmo considerando São Paulo como uma grande cidade cosmopolita, insiste em revelar
os seus resquícios província. É por isso que se faz importante compreender a cidade em
cada momento da história da humanidade, para entender quando podemos definir o seu
estágio de modernidade, pois é na cidade grande, que foi uma criação humana, que se
estabelecem modernamente a crise, da vivência fragmentária e do surgimento da arte das
vanguardas, e a concretização do pensamento moderno com todas as suas contradições.
No Prefácio Interessantíssimo, o autor diz que “escrever arte moderna não significa
jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema,
asfalto”. Diz ainda: “Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu
inconsciente grita” (ANDRADE, 1922: 8). Portanto, a escrita deixou de ser um processo
demorado, e passou a ser um processo rápido. Por isso a inspiração passou a ser
registrada de forma imediata. Um novo estilo surgiu, descrevendo e criticando a
urbanização e a industrialização desenfreada, que colocaram máscaras em São Paulo
com uma nova estética.
Mário de Andrade confessa: “Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar
duma só vez das teorias-avós que bebeu” (ANDRADE, 1922: 9). A ideia era deixar de
negar o passado e passar a modificá-lo, com a utilização e construção de novas formas
literárias, pois na sociedade o passado e o presente convivem para moldar o futuro.
Foi com o advento da modernidade que o sujeito, enquanto elemento social, passou
a ter a possibilidade de expor seus pensamentos a respeito do homem e do mundo, numa
espécie de polifonia geral.
3 Iconoclasta: aquele que ataca crenças estabelecidas ou instituições veneradas ou que é contra qualquer tradição.
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REFERÊNCIA:
ANDRADE, Mário de. Pauliceia desvairada. Lira paulistana. In:___. Poesias
completas. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1987.
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