1 Um jurista militante (Homenagem a Arnaldo Süssekind – IAB – 09/07/2013) O fato de Arnaldo Lopes Süssekind ter simbolizado a história da legislação trabalhista no Brasil induziria a que a homenagem que o Instituto dos Advogados Brasileiros presta à sua memória tivesse o caráter de solenidade formal. Porém a formalidade trata da imagem, e isso traz certo distanciamento da realidade. A imagem faz crer que a vida do homenageado tenha sido retilínea, mas a vida é um caminho que se percorre e esse caminho não é retilíneo. Julgamos mais importante ressaltar a realidade viva de Süssekind, despida de formalismo. Essa realidade sobressai das entrevistas que concedeu às organizadoras do livro Arnaldo Süssekind, um construtor do Direito do Trabalho, da Editora Renovar. A elas recorreremos para sentir como se estivéssemos conversando com ele. Convivi com Süssekind no IAB, em reuniões da OAB, em congressos locais e nacionais de advogados trabalhistas, em palestras e painéis de debates. Nessa convivência, descobri um homem ativo, que tratava os advogados como iguais, dotado de espírito crítico, de disposição de lutar por seus pontos de vista, mas também da capacidade de rever conceitos seus. Por exemplo: a comissão da OAB do Rio de Janeiro encarregada de elaborar anteprojeto que assegurasse honorários de sucumbência no processo trabalhista sustentava que passasse a ser obrigatória a representação da parte por advogado, o que implicaria revogar o artigo 791 da CLT, segundo o qual essa representação é facultativa. Integrante da comissão, Süssekind reviu sua posição favorável a esse artigo e apoiou a proposta de revogação. 2 Nos anos 80 do século passado, foi Presidente da Comissão Permanente de Direito do Trabalho do IAB e enriqueceu o exercício da presidência não apenas por sua cultura jurídica, mas acima de tudo por deixar que fluíssem livremente os debates. Quando exerci a presidência desta Casa, Süssekind foi Diretor Adjunto e, embora se tratasse de um cargo honorífico, frequentava as reuniões da diretoria, opinava, fazia propostas, votava; não podendo comparecer, justificava a ausência. No livro antes referido, Süssekind revela aspectos prosaicos da sua juventude. Conta que gostava de futebol e de dançar, foi campeão de atletismo pelo Fluminense, gostava também de cantar e quase seguiu a profissão de cantor de rádio. Fazia parte de um grupo que se reunia na Praça General Osório e um dia o locutor esportivo Oduvaldo Cozzi, participante desse grupo, lhe comunicou que o havia inscrito num concurso para promoção do filme Invisível trovador. Süssekind pensou em recusar, mas acabou aceitando. Ganhou o concurso, na sessão de estreia do filme cantou e recebeu prêmios, entre os quais um contrato de três meses com a Rádio Nacional, que cumpriu. Não o renovou, atendendo a pedido do pai, desembargador Frederico Süssekind. Não foi dançarino somente na juventude. Conforme este orador testemunhou, não perdia os bailes das festas de encerramento dos congressos da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas, a ABRAT. Essa propensão juvenil ao esporte, ao canto e à dança indicava que Süssekind não seria cultor de uma ordem social inerte, estática, mas de uma sociedade em movimento, o que o tornou um jurista militante. Seu pensamento não se guiava pelas abstrações do mundo do direito, trazia a realidade social para seu interior. Defendia, por exemplo, a limitação da autonomia da vontade patronal pela 3 intervenção do Estado na relação capital-trabalho e assim explicitou sua posição: “Toda a discussão acerca da miséria, desencadeada a partir da Revolução Francesa, e os ideais de igualdade perante a lei me conduziram a uma visão crítica da igualdade contratual, da não intromissão do Estado nas relações de trabalho e da enorme exploração que disso resultava.” (.........) “Daí procedem as minhas posições favoráveis à intervenção do Estado nas relações de trabalho.” Sempre se manifestou contrário à injustiça social. Quando aluno da Faculdade Nacional de Direito, participou da política estudantil, integrando um grupo que reunia alunos de esquerda e centro-esquerda, conforme relatou: “Esse grupo, do qual só Souza Brasil não era de esquerda ou centro-esquerda, granjeou tanto prestígio entre os colegas que elegeu os representantes da turma em todas as eleições para o Diretório Acadêmico e o Caco, derrotando os integralistas aliados aos monarquistas.” “Sempre me considerei um social-democrata, de meiaesquerda, usando uma linguagem do futebol. Do nosso lado, a maioria não era comunista, mas de centro-esquerda, partidários de uma visão social-democrata, com a qual eu me identificava.” “Doutrinariamente, desde os tempos da faculdade, considero-me vinculado à filosofia social-trabalhista (.....).” Seu grupo vencera em 1937 a eleição para o Diretório Acadêmico, e Süssekind, na obra citada, assim se referiu a essa passagem: (........)“Também faziam parte da chapa vitoriosa, entre outros, além de mim, que assumi pela segunda vez o cargo de primeiro-secretário, Alfredo Tranjan, que se notabilizou como advogado, Délio Maranhão e Gustavo Simões Barbosa, que chegaram a presidir o Tribunal Regional do Trabalho.” “A principal campanha política do Diretório Acadêmico foi pela reintegração dos professores que haviam sido demitidos, acusados de comunistas. Eram Leônidas Resende, Luís Carpenter, Castro Rebelo e Hermes Lima.” 4 Um episódio da biografia de Süssekind demonstra o quanto a vida nada tem de retilínea. Esse passado e o fato de se considerar um social-democrata não o impediram de aceitar convite para ocupar, no governo Castelo Branco, o cargo de Ministro do Trabalho, tendo promovido intervenções em sindicatos, afastando suas diretorias e nomeando juntas administrativas. Tempos depois, indagado sobre essa questão, reconheceu a contradição de sua atitude: “As intervenções em associações sindicais vieram contrariar tudo o que eu sempre defendera na OIT, mas a verdade é que tive de reagir a uma corrente que pretendia, simplesmente, fechar os sindicatos. Para mim, isso representava uma certa complicação porque, durante toda a minha vida, sustentei a necessidade da liberdade sindical, que naquele momento estava sendo ferida. Mas, enfim, era para evitar um mal maior. À frente do Ministério do Trabalho, meu objetivo e minhas ações visavam, sobretudo, a impedir o desmonte da legislação trabalhista. Foram muitas as pressões para o uso político dos institutos de pensão, e também contra a estabilidade.” E conseguiu evitar esse desmonte. Resistiu à extinção da estabilidade no emprego, relatando que a grande insistência de certas entidades patronais visava ao seu fim, e apesar de intensas pressões para que fizesse um comunicado, declarando que o artigo 7.º do Ato Institucional suspendia o direito à estabilidade, esta foi mantida. Somente após Süssekind ter deixado de ser Ministro do Trabalho, o Congresso aprovou a lei que criou o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ato que na prática estimulou o fim da estabilidade. Na presidência da Comissão Interministerial instituída no governo Geisel, quando já não era mais Ministro do Trabalho, inscreveu, no anteprojeto de reforma da CLT então elaborado, o artigo 606, que admitia que os sindicatos, na qualidade de substitutos processuais de seus associados, ajuizassem na Justiça do Trabalho ação de cumprimento de convenção ou acordo coletivo de trabalho, o que acabou não sendo transformado em lei. Inscreveu também a estabilidade para empregados integrantes das 5 Comissões Internas de Prevenção de Acidentes de Trabalho, que resultou no artigo 165 da CLT. Uma vez retomada a democracia no país, Süssekind formou entre os que se opunham às tentativas de desestruturar o Direito do Trabalho, criticou o apoio da grande imprensa ao neoliberalismo e exaltou a posição contrária das entidades de advogados e magistrados. São palavras suas: “Os neoliberais – assim chamados – são os que tentam desregulamentar o Direito do Trabalho, admitindo uma ampla flexibilização. Para eles, os direitos dos trabalhadores só decorreriam de convenções ou acordos sindicais, como ocorre nos Estados Unidos ou no Canadá, por exemplo. Sempre me opus a isso, baseado no fato de o Brasil ser um país de dimensões continentais, com regiões plenamente desenvolvidas, outras em vias de desenvolvimento, e algumas subdesenvolvidas, nas quais não se pode aplicar o sistema jurídico de países ampla ou totalmente desenvolvidos. Em cidades do interior de algumas unidades da federação, e mesmo em suas capitais, os direitos trabalhistas não podem depender dos empregados, ou de seus sindicatos, para um acordo coletivo. “O Direito do Trabalho visou ao equilíbrio de forças, e suas normas imperativas tornaram o trabalhador mais protegido em uma negociação. Os liberais têm apoio ostensivo da mídia, que acompanha o movimento preservando os interesses dos anunciantes. Em contrapartida, diversas associações de âmbito cultural, como o IAB, a AMB, a OAB, a Anamatra, a Abrat, etc., sempre se manifestaram em defesa do Estado Social.” Contestou o argumento de que a flexibilização ou a desregulamentação da legislação do trabalho reduziria o desemprego: “A verdade é que, nos países onde a legislação do trabalho foi flexibilizada ou desregulamentada, o desemprego não foi reduzido. Para tanto, como está provado, é imprescindível o desenvolvimento econômico.” Foi um dos primeiros juristas a contestar o projeto de lei do governo Fernando Henrique que introduzia três parágrafos ao artigo 618 da CLT com a finalidade de que, se houvesse convenção 6 coletiva ou acordo coletivo de trabalho correspondente a um tema, a lei não fosse aplicada, o que na época se chamou de prevalência do negociado sobre o legislado. Como um dos autores do projeto que instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho, repeliu os ataques à CLT, os quais alegavam que seria fascista, cópia da Carta del Lavoro de Mussolini: “A alegação de que a CLT é uma cópia da Carta del Lavoro, repetida por quase 99% de pessoas que nunca leram esse documento de Mussolini, é absolutamente falsa. Desde logo convém lembrar que a CLT tem 922 artigos; e a referida Carta apenas 30. Desses, somente 11 diziam respeito aos direitos e à magistratura do trabalho. Quase todos repetiam princípios e normas historicamente consagrados, tipo: o trabalho noturno deve ter remuneração superior ao diurno; o empregado tem direito ao repouso semanal, em regra coincidente com o domingo; após um ano de serviço o trabalhador tem direito a férias remuneradas; a despedida a que o empregado não deu causa lhe assegura direito de indenização proporcional; a mudança na propriedade da empresa não resolve os contratos de trabalho; o novo emprego pode ficar sujeito a um período de prova, com direito recíproco de denúncia; o contrato coletivo se aplica ao empregado a domicílio. “Mas pode-se dizer que o monopólio da representação da categoria pelo sindicato e seus corolários, estatuídos pela Constituição de 1937, e mantidos pela de 1988, foram copiados da Carta italiana de 1927. Acontece que a unicidade sindical compulsória e o respectivo registro no órgão público foram instituídos dez anos antes, em 1917, na União Soviética. Como bem recordou Evaristo de Moraes Filho, esse princípio era defendido por Máxime Leroy em 1913.” (Jurista francês, autor de obras sobre sindicalismo.) A imputação de fascista à CLT decorria da deliberada confusão do corporativismo com o fascismo. Süssekind contestou essa confusão, argumentando que o fascismo “conspurcou o corporativismo”, que não fora criação de Mussolini, mas do jurista romeno Manoïlesco, segundo o qual o Legislativo devia ter supremacia, a qual seria assegurada pela formação de representações das corporações. O governo Vargas pautava-se 7 pelo projeto político corporativista e prova disso foi a inclusão, na Justiça do Trabalho, da representação classista. Manifestou-se em defesa da Justiça do Trabalho, que na década de 90 do século passado, de acordo com a pretensão neoliberal de eliminar a intervenção do Estado nas relações de trabalho, se pretendeu extinguir sob o pretexto de acabar com o poder normativo e a representação classista. Süssekind entendia que o poder normativo não deveria ser extinto e sim revisto, tornando-se um poder arbitral, conforme ocorre em outros países. Quanto à representação de empregados e empregadores na Justiça do Trabalho, justificou o seu fim por ter acabado desmoralizada pelos próprios sindicatos, pois muitos passaram a ser criados com a única finalidade de eleger juízes classistas e receber o imposto sindical. Participou de manifestação de juízes e advogados contra a extinção da Justiça Trabalhista, em frente ao prédio do Tribunal Regional do Trabalho, que leva seu nome, e rejeitou com veemência o argumento de que só no Brasil havia Justiça do Trabalho: “Isso é uma mentira deslavada! Existe Justiça do Trabalho em inúmeros países. A Justiça do Trabalho na Alemanha e Israel é igual à do Brasil. Foi feita depois, usando a experiência brasileira. A Alemanha, inclusive, até hoje tem representação classista, embora não haja o chamado poder normativo. Mas no México a Justiça do Trabalho tem um poder normativo mais amplo do que a do Brasil. Na África, quase todos os países têm Justiça do Trabalho. E a Espanha também tem, e assim por diante.” *** Süssekind, deixou-nos num dia 9 de julho, quando estaria comemorando mais um aniversário. O doloroso fato da morte, única certeza dos vivos, sempre me lembra Fernando Pessoa. Morrer – dizia ele – é vir caminhando pela rua e de repente virar uma esquina para nunca mais aparecer. Quando alguém vira a esquina, 8 apenas termina sua convivência com os demais; o desaparecido continua a existir na memória dos que com ele conviveram. Tendo-se encerrado sua vida, encerrou-se apenas a convivência de Süssekind conosco. Ficará a memória, e a memória é a continuidade da existência. Hoje o IAB, recordando a caminhada de Süssekind pela vida, contribui para torná-lo imorredouro. Discurso Proferido pelo Dr. Celso da Silva Soares, na ocasião da homenagem póstuma ao Ministro Arnaldo Lopes Sussekind, no dia 9 de julho de 2013, no Plenário do IAB.