BRINCAR
A brincadeira e o desenvolvimento da
alfabetização precoce. Comentários sobre o
artigo de Christie e Roskos
James E Johnson, PhD
Pennsylvania State University, EUA
Julho 2010
Introdução
Enquanto meio ou contexto para o desenvolvimento da alfabetização precoce, o brincar foi objeto de pesquisas
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intensivas nas duas últimas décadas. Christie e Roskos examinaram esses trabalhos e relatam a existência
de uma conexão entre a brincadeira de faz-de-conta e o aprendizado da alfabetização precoce, e afirmam
também que fatores ambientais físicos e sociais podem influenciar favoravelmente tanto a qualidade do brincar
quanto o desenvolvimento da alfabetização precoce durante a primeira infância. Esses coautores observam
que várias lacunas de conhecimentos ainda permanecem e que essa área é muito fértil em hipóteses que
exigem mais pesquisas e a elaboração de outras teorias. Além disso, sua discussão no tocante às implicações
sugere que essa área de pesquisa desfruta de uma comunicação dinâmica com a prática e as políticas
relativas ao desenvolvimento e à educação precoces.
Pesquisa e conclusões
Os autores sugerem que as raízes conceituais do estudo das relações entre a brincadeira e a alfabetização
precoce e do papel do ambiente podem ser encontradas nas teorias de Jean Piaget e de Lev Vygotsky, bem
como em seus textos sobre a simbolização e o processo de scaffolding (construção progressiva). Embora
nenhum desses teóricos tenha tentado explicar a forma exata de a brincadeira exercer uma influência sobre o
desenvolvimento da linguagem e da alfabetização na primeira infância, os constructos encontrados nos seus
trabalhos, incluindo as representações mentais, o pensamento transformacional, a abstração reflexiva e as
interações sociais, fornecem pistas que ajudam a reunir as conexões entre o brincar e a alfabetização precoce.
A ideia de “faz-de-conta” e os processos de narração caracterizam ambos, o que sugere a existência de uma
ligação cognitiva importante entre o brincar e a alfabetização precoce. As pesquisas citadas sobre variáveis de
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contexto, como a presença de uma pegada ambiental, os acessórios que valorizam a alfabetização precoce e
a mediação dos adultos assim como sua influência sobre a qualidade da brincadeira, podem ser encontradas
nas teorias clássicas relativas ao desenvolvimento das crianças (por exemplo, as teorias de Piaget, de
Vygotsky e de Bronfenbrenner).
Christie e Roskos cobrem muitos assuntos e citam a influência dos pares e a utilização pelas crianças das
estratégias de compreensão (por exemplo, a autoverificação) nos comportamentos relativos à brincadeira e à
alfabetização precoce. Eles se concentram de maneira convincente e sucinta sobre o processo e o ambiente
da brincadeira, respondendo a duas perguntas da pesquisa: (1) a relação da brincadeira com o
desenvolvimento da alfabetização precoce e (2) as relações entre o ambiente físico e social e os
comportamentos relativos à brincadeira e à alfabetização precoce. Eles não tentaram fazer uma revisão geral
das pesquisas sobre a brincadeira e o desenvolvimento da alfabetização precoce. Por exemplo, eles trataram
da brincadeira de faz-de-conta e não levaram em conta outras formas de brincadeiras ligadas às habilidades
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de linguagem e de alfabetização precoce, tais como a brincadeira do amiguinho imaginário ou com blocos.
Ampliar o espectro da pesquisa para incluir jogos de tabuleiro, jogos de construção ou jogos construtivos, a
escuta receptiva (por exemplo, com livros para crianças), etc., poderia ter sido impraticável considerando o
número limitado de palavras conhecidas pelas crianças pequenas. Além disso, existe pouca pesquisa básica
sobre essas outras formas de brincadeiras que poderia ajudar a responder essas duas perguntas da pesquisa.
Contudo, o certo é que o contexto e o conteúdo desses outros tipos de brincadeiras criam oportunidades de
comportamentos de linguagem e de alfabetização precoce que enriquecem ou consolidam as habilidades e a
motivação ou o interesse em expressá-las.
Da mesma forma, outros teóricos além de Piaget e Vygotsky influenciaram a pesquisa sobre esse tema. Por
exemplo, a dimensão dialógica da linguagem de Bakhtin e o conceito de heteroglossia – as múltiplas maneiras
de falar em uma situação social – inspiraram outros pesquisadores. A perspectiva de Bakhtin sobre a
autoidentidade e a linguagem e o contexto sociocultural em geral, é encontrada em um grande número de
estudos interpretativos ou qualitativos relativos à base de conhecimentos sobre a brincadeira e a alfabetização
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precoce. Por exemplo, as pesquisas de Keith Sawyer a respeito da brincadeira de faz-de-conta com pares e
da improvisação dão uma ideia do valor da brincadeira para desenvolver habilidades de conversação e
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competências em comunicação. O fato de incluir esses estudos na base de dados implica uma visão mais
ampla da alfabetização precoce.
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Como sugerem Christie e Roskos, esse campo precisa de uma extensão e um aprofundamento das teorias e
das pesquisas relativas à brincadeira e à alfabetização precoce. Além de experiências controladas, estudos
longitudinais e da utilização de procedimentos estatísticos modernos, os pesquisadores precisam de
investigações metódicas do ponto de vista sociocultural, bem como de estudos e etnografias de casos para
entender de forma mais completa todos os aspectos da brincadeira e da alfabetização precoce em casas,
escolas e comunidades. As inovações tecnológicas exigem cada vez mais uma alfabetização precoce
multimídia; a pesquisa sobre esse assunto deve ser feita assim como em relação às identidades multiculturais
e às crianças que aprendem simultaneamente duas línguas. Aquilo que deve ser estudado tornou-se cada vez
mais complexo e importante para a educação e para entender o desenvolvimento.
Implicações para o desenvolvimento e as políticas
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Os coautores concluem que a brincadeira pode melhorar a alfabetização precoce e recomendam sua
integração em programas equilibrados e colocados em redes. A brincadeira não deve ser uma atividade
“independente”. Eles aconselham um ensino direto para as habilidades precoces essenciais na alfabetização
precoce, com o objetivo de completar as estratégias ligadas à brincadeira, ao menos para as crianças que
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correm o risco de insucesso no aprendizado da leitura e na escola. A escolha de Christie e Roskos de integrar
a brincadeira e a alfabetização precoce na educação precoce é compartilhada por outros pesquisadores que
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trabalham sobre uma pedagogia da brincadeira.
Eles elaboram técnicas como a brincadeira temática de
fantasia, a brincadeira sociodramática, os mundos das brincadeiras, a narração e a representação de histórias,
a improvisação, a expressão dramática, a expressão artística e as brincadeiras musicais. Os objetivos da
alfabetização precoce com a pedagogia da brincadeira estão incorporados em um conjunto mais abrangente
de objetivos para a educação na primeira infância. Os estudos sobre a pedagogia da brincadeira procuram
contribuir à educação precoce no intuito de parar com o vaivém entre a brincadeira livre e o ensino direto e
outros métodos formais. Os pesquisadores que trabalham sobre a pedagogia da brincadeira evitam ter uma
perspectiva reducionista do aprendizado da alfabetização precoce (por exemplo, a decodificação) bem como
um foco exclusivo sobre o desenvolvimento da alfabetização precoce, escolhendo uma abordagem da criança
na sua totalidade, focada tanto na criatividade, na imaginação, na autodescoberta e na perseverança da
criança quanto em suas atitudes positivas e seu interesse para a leitura.
O abandono da brincadeira na educação precoce suscita cada vez mais preocupação. O relatório da Alliance
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for Childhood intitulado Crisis in Kindergarten atesta a extensão do problema. Organizações como a
Society for Research in Child Development e a National Association for the Education of Young Children
trabalham juntas para apresentar as evidências de pesquisa que mostram o quanto a brincadeira tem uma
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importância capital durante os anos pré-escolares. A pesquisa sobre a alfabetização precoce e a brincadeira
fornece as grandes linhas da brincadeira educativa. Entretanto, a brincadeira educativa difere da brincadeira
do dia-dia, a primeira sendo chamada por David Elkind de brincadeira funcional ou centrada no adulto,
enquanto que a brincadeira quotidiana ou brincadeira “autêntica” é chamada de brincadeira experiencial ou
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centrada na criança. Com certeza, ambos os tipos de brincadeiras são úteis ao desenvolvimento da
alfabetização precoce.
E eles não são necessariamente opostos. Em geral, considera-se que a brincadeira é motivada de maneira
individual e intrínseca. Mas nem sempre é o caso. A brincadeira educativa é relacionalmente motivada e
envolve o educador e os colegas da turma. Os professores e os pais podem facilmente entrar nos mundos da
brincadeira das crianças pequenas, e com bom aproveitamento se agirem da maneira certa. Eles podem
orientar a brincadeira para que sirva ao aprendizado da alfabetização precoce (e orientar o aprendizado da
alfabetização precoce para promover brincadeiras de melhor qualidade). Ainda assim, o objetivo principal da
brincadeira não é outra coisa senão brincar mais e brincar melhor.
Referências
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