JUSTIÇA, UNIDADE, VALOR E RESTAURAÇÃO Pesquisas têm sido recorrentes, aqui e no mundo, em apontar a insatisfação dos usuários com o funcionamento e resultados do sistema de Justiça, notadamente na área criminal. Indicadores internacionais oscilam em torno de apenas 15% de satisfação. E basta perguntar às vítimas, para respostas insuspeitas. Não é para menos. Culpa, perseguição, imposição, castigo, coerção, são os fatores de um equacionamento muito criticado mas sempre reproduzido na Justiça Penal. Valores cristalizados no ordenamento jurídico, um dos meios pelos quais se traduz o "DNA" de uma cultura autoritária, fundada em mecanismos reducionistas de dominação, controle e subjugação que persistem sendo reeditados através dos séculos como sendo o único modo de responder a transgressões, adequar comportamentos desviantes, pacificar conflitos, fazer Justiça enfim. O modelo reabilitador, contraparte dialeticamente professada do modelo meramente punitivo, varia apenas nas estratégias pós-sentença, e tampouco tem oferecido maior esperança. O quadro expansivo de insegurança, medo, violência e degradação é correlato a um sistema jurídico penal obsoleto, do qual o Judiciário não pode mais se esquivar atribuindo à falibilidade dos diplomas legais. Nenhuma dessas hipóteses simplificadoras resolve o complexo problema da jurisdição criminal, em geral, e da composição de conflitos, em particular. Ao juiz não basta parecer culto, ele precisa ser culto. Cultura, no caso, não significa erudição jurídica, mas inteligência associada à capacidade de leitura crítica a respeito da realidade da própria função. De ser capaz de compreensão e refletir sobre a historiografia do ordenamento jurídico, das instituições da Justiça, e dos fenômenos sociais a elas associados. Pois, se por uma questão de eficácia nossos modos de fazer justiça precisarão ser reinventados, se não o fizermos nós os juízes, alguém possivelmente o fará sem nós. A frustração generalizada e persistente acaba por abalar a legitimidade da instituição e, via de consequência, desvaler o seu lugar social. Já basta de um Judiciário meramente resolvedor de montanhas de processos. Nosso compromisso deve se estender à resolução de conflitos, intervindo no campo relacional e capilarizando a função de justiça, mais além do âmbito institucional, no âmbito comunitário. Esse é o modo possível de estancar as espirais conflitivas próximas à sua nascente. Por exemplo, antes que uma vala d'água que inadequadamente transborda pelo terreno do vizinho possa virar assunto de Tribunal de Júri, onde assistiremos quase passivos a um processo solene, formal, demorado e, sobretudo, alheio à realidade da vida (e no caso, lamentavelmente, da morte ou tentativa de) em pauta. Mais que instituição, a Justiça é uma função, e um valor, de extrema relevância social. Prova maior desse valor é o quanto de orçamento nela ainda se investe. Seus prédios, equipamentos e folhas de pagamentos, ainda que pleitos por melhorias sempre haja, ainda despontam à frente nos relatórios de gastos públicos. Apesar da insatisfação recorrente. A prática institucional que deveria expressar esse valor humano tão relevante não pode continuar esmorecendo na esperança da população. Recentemente, uma terceira via vem sendo traçada sob o nome de Justiça Restaurativa. Mas além do perdoar e do punir, essa adjetivação remete a um referencial a um só tempo operacional e reflexivo, capaz de propor e converter em prática uma intencionalidade reparadora, reintegradora e responsabilizante na resolução de crimes e conflitos. Não se resumindo a uma vertente doutrinária no campo da ciência penal, a Justiça Restaurativa vem rapidamente se transformado num vigoroso movimento social, num processo de empoderamento e emancipação política de pessoas e comunidades que são chamadas a se fortalecerem, na medida em que reassumem responsabilidades das quais nunca deveriam ter-se demitido: a de solucionar pacificamente seus próprios conflitos. A Justiça Restaurativa propõe, através de ferramentais práticos, um novo modo de equacionamento para a conflitividade social, onde se substitui culpa por responsabilidade, perseguição por encontro, imposição por diálogo, castigo por reparação do dano e, principalmente, coerção por coesionamento do tecido social. E nasce daí, do âmago da atividade nossa de cada dia, o manancial de um movimento social vigoroso cujo balizamento científico vem merecendo amplo reconhecimento internacional, já referendado por importantes relatórios técnicos e atos normativos no âmbito das Nações Unidas, com a Resolução n. 2002/12 do Conselho Econômico e Social - assim como já alcança a legislação de inúmeros países, incluindo o Brasil. Possivelmente porque o tensionamento gerado pela falta de resolutividade da justiça penal restar diagnosticado como mero subproduto de uma cultura de violência, em tempos que todos os setores da civilização clamam pelo advento de uma cultura de paz, tais contribuições, porém, não se detiveram nesse campo do sistema de Justiça. Estendidas ao cotidiano forense, as metodologias restaurativas sugerem uma nova geração na abordagem autocompositiva de conflitos, agregando-se e enriquecendo o movimento da conciliação e mediação. E assim não apenas pela riqueza do seu ferramental metodológico, e suas raízes principiológicas, que permitem uma compreensão multidimensional da dinâmica do conflito e seus mecanismos de agravamento e perpetuação. O discurso da Justiça Restaurativa remete aos fundamentos da democracia deliberativa, com seus processos emancipatórios e participativos, voltados à reconstituição do tecido social rompido, ao fortalecimento de vínculos, ao empoderamento dos indivíduos, à promoção do seu pertencimento à sua família e à sua comunidade. Filosofia que, mais do que dedicar-se à resolução de conflitos, devolve a Justiça à sua dignidade histórica de instrumento de promoção da paz. E que faz conceber a Justiça acima de tudo como um direito à palavra, na célebre e contemporânea definição proposta - melhor, desafiada - pela filosofia da alteridade de Emmanuel Levinas. As primeiras sementes do movimento restaurativo no Brasil tem sido lançadas por colegas magistrados. E se acumulam alguns importantes avanços, tanto no campo da difusão do conceito e do referencial teórico, quanto também se traduzem pela oferta de formações para facilitadores das práticas, pelo recolhimento institucional como o representado pela Emenda 01 à Resolução 125 do CNJ, ou, mesmo, por avanços na regulamentação legal, com o pioneirismo da legislação na área da Jurisdição Penal Juvenil, com a Lei 12.594/2012, que regulamentou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE. A Justiça Restaurativa, enfim, pode ser compreendida como um movimento de renovação cultural e de refinamento das nossas práticas institucionais de Justiça, e cujas bases éticas vêm ao encontro dos mais elevados ideais republicanos e da Cultura da Paz. Justifica-se, portanto, que tais avanços passem a ser catalizados pelo reconhecimento e impulsionamento institucional, tarefa que se propõe seja assumida pelo protagonismo inovador da AMB na gestão do colega João Ricardo dos Santos Costa. Com isso, o tema será pautado como uma das vanguardas de desenvolvimento jurídico e social na nova gestão, mediante iniciativas tais como: Promover o tema junto à magistratura nacional, introduzindo-o na pauta política da AMB e nas interações com instituições parcerias; Promover a integração em rede dos magistrados com interesse na área, estimulando iniciativas de implantação prática, trocas de experiências e estudos acadêmicos na área; Promover o tema junto à administração dos tribunais, notadamente em articulação com o CNJ, visando à sua progressiva institucionalização e incorporação das práticas restaurativas pelos Centros Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadania; Promover atividades de sensibilização (seminários técnicos) e formações (cursos) através da ENM e, sempre que possível, em parceria com a ENFAM; Articular junto aos setores governamentais competentes (em especial, além de justiça, segurança, assistência, educação, saúde), objetivando a implantação de políticas públicas de pacificação de conflitos na esfera dos executivos federal, estaduais e municipais, de forma integrada com as instituições Judiciárias; Desenvolver estudos e acompanhar o processo legislativo objetivando a adaptação do sistema jurídico à absorção das práticas restaurativas nos mais variados campos da jurisdição penal em geral, e no âmbito da prevenção e ou da autocomposição extrajudicial de conflitos de modo especial. Leoberto Brancher, Juiz de Direito / RS Setembro/2013