Entrevista com as psicólogas Cecília Coimbra (CRP 05/1780), ex-conselheira do CRPRJ, Neide Ruffeil (CRP 05/26238), que participou da Comissão de Direitos Humanos
do CRP-RJ em 2006 e com o psicólogo José Novaes (CRP 05/980), colaborador e exresidente do CRP-RJ
1) Como e quando chegou essa discussão sobre a atuação do psicólogo no sistema
prisional ao CRP-RJ?
Novaes: De uma maneira mais formal e intensa foi em 2005, quando o CFP chamou o
DEPEM para fazer um levantamento, consultar os psicólogos que trabalhavam no
sistema prisional sobre a atuação do psicólogo. Mas, na realidade, é uma discussão que
está sendo feita há muito tempo, que começou principalmente nesse espaço de atuação.
A gente chamou os psicólogos do sistema prisional, que naquele tempo ainda era o
Desip, não era ainda uma secretaria de estado, depois se transformou na Secretaria
Estadual de Administração Prisional, e ficamos muito surpresos: o auditório ficou cheio.
Tinha mais de 60 psicólogos, sendo que são 110 no sistema prisional.
Cecília: Quando a gente fez esse encontro, que foi por solicitação do Conselho Federal,
é importante destacar, a gente teve a presença em massa dos psicólogos no sistema
prisional. E isso foi assim, muito interessante, por que a própria coordenação deles veio.
Um grupo chegou aqui com um abaixo-assinado dizendo que se recusavam a fazer o
exame.
2) O que aconteceu a partir dessa reunião com os psicólogos do sistema prisional?
Novaes: A partir daí, as coisas se desenvolveram. Tivemos dois dias de reuniões, e
escolhemos os representantes para ir para Brasília em uma reunião com psicólogos de
todos os regionais, todos os estados onde existiam psicólogos trabalhando no sistema
prisional. Eu me lembro que, pouco menos de um ano depois, nós recebemos um
documento, na realidade dois documentos, assinado por psicólogos do sistema prisional,
que são os psicólogos que continuam mais perto da gente, trabalhando junto ao
Conselho, questionando o trabalho do psicólogo no sistema prisional, no sentido de se
ele atendia realmente aos imperativos éticos da profissão. Esse documento não
questionava apenas o exame criminológico, mas, de um modo geral, a atuação do
psicólogo no sistema prisional. Não apenas na realização de exames, mas em outras
atividades, como a câmara técnica de classificação (CTC), em que eles eram chamados
para referendar ou subsidiar as decisões de diretores de presídios, ou de juízes da vara
de execução penal, por ocasião da progressão de pena. Como é que pode o psicólogo,
tendo em vista o seu código de ética, tendo em vista os princípios dos direitos humanos,
colaborar para algo que pode se tornar em uma medida punitiva, que é o sujeito não ter
progressão de pena. Aí eles mandaram esses documentos. Um era bem radical, que
chegava à conclusão de que o psicólogo não pode trabalhar no sistema prisional,
simplesmente. E o outro questionava com que normas, com que princípios, tendo em
vista que referências nós iríamos trabalhar no sistema prisional. Dissemos que
realmente o trabalho do psicólogo no sistema prisional envolve este tipo de atuação,
está totalmente contra o código de ética. A partir daí, essa discussão se ampliou falando
em todo o Brasil. Até que, em dezembro do ano passado, tivemos uma reunião.
Neide: Eram reuniões bem tensas, bem pesadas. Os psicólogos vieram num primeiro
momento em grande número, muito mobilizados, mas alguns vieram também em um
papel meio articulado com a coordenação, que na época era contrária ao movimento. De
um lado a gente via um sofrimento muito grande, a gente via isso nos olhares deles. O
ter que julgar a conduta do outro, o que era pedido a eles e que eles se negavam. Então,
começaram a serem solicitados para outros tipos de atividades, das quais eram meio que
coagidos a participar. Eram mutirões para realizar exames criminológicos com prazo de
uma semana, que tinham de 100 a 200 detentos. Eles tinham que falar sobre alguém
com quem não tinham nenhum contato. Alguns diziam: “a gente tenta fazer o que é
melhor, mas não tem como”, enquanto poucos diziam que dava, sem muita visão crítica.
Cecília: Essa divisão que acontecia, da administração jogar com a coordenação, puxar,
ameaçar, isso, durante algum tempo, fez com que as pessoas mais militantes estivessem
à frente. Quando a gente percebeu que tinha um grupo grande apoiando esse
movimento, a gente deu um documento, uma manifestação.
Neide: A gente acabou reafirmando que já tinha um código de ética, e que não
precisava, então, ter nenhum tipo de manifestação, de afirmação da prática psi que a
gente tava desenvolvendo. O exame criminológico fere a ética profissional. Uma das
discussões é que os juízes também faziam esse tipo de pedido, mas não tinham clareza
do que isso significava para os psicólogos. Tinha uma lei maior que tinha suspendido o
exame criminológico em alguns estados.
Novaes: Essa lei continua valendo. A LEP, Lei de Execução Penal, que é de 1984, e
prevê o exame criminológico. Em 2003, houve algumas mudanças nessa lei, que retirou
o exame criminológico. Há apenas o momento em que é feito uma avaliação
psicológica, que eles chamam de exame criminológico, que é feito junto ao psiquiatra,
ao assistente social, que é feito para individualizar a pena e ver qual deve ser o percurso
daquele apenado enquanto estiver preso, o que considero uma bobagem. Qual
tratamento ele deve ter em termos de saúde orgânica, psicológica, dentária, educação,
etc. A gente sabe que a imensa maioria não cumpre com isso. E esta modificação da lei
acabou com o exame criminológico. Não sei por que pressão, o STF, Superior Tribunal
Federal, fez uma súmula vinculante, em que diz que o juiz poderá solicitar o exame
fundamentando esse pedido, quer dizer, dizendo qual a motivação, por que ele quer
aquilo, etc. E é nessa súmula vinculante que eles estão se baseando. Eles estão dizendo:
“nós podemos pedir, sim, o exame criminológico”, como aconteceu em São Paulo com
a juíza já aposentada Maria Lucia Karam. Como é que você pode exigir uma coisa que
está prevista legalmente e que, pelo contrário, foi negada por uma lei? Isso é
completamente contra os princípios da legalidade. É inconstitucional. É ilegal. Nesses
casos o juiz só pode exigir alguma coisa que está prevista em lei.
3) Essas pessoas que procuraram pelo Conselho, elas se negavam a fazer o exame
criminológico?
Cecília: Não é que elas se negavam, elas queriam se negar a fazer, mas não podiam. A
gente via o desespero delas, a gente via na fala e no olhar o sofrimento das pessoas. Eles
se sentiam violentados de fazer aquilo, e aquilo feria a ética. Eles queriam o aval do
Conselho para que eles pudessem dizer que não poderiam fazer.
4) Como está essa discussão atualmente?
Novais: Como eu disse, essa discussão já existia aqui no Rio de Janeiro e em diversos
estados. Em dezembro do ano passado levamos três propostas para serem discutidas na
APAF, que é uma maneira realmente muito democrática, que há mais ou menos 15 anos
o sistema do Conselho vem realizando para tomar suas decisões. Não é apenas da
cabeça dos conselheiros do CFP que surgem essas resoluções, é uma discussão com
representantes de todos os regionais e, portanto, de toda a categoria, de todo do Brasil.
Uma das propostas foi sobre o exame criminológico, ou melhor, sobre a atuação do
psicólogo no sistema prisional, com o exame criminológico como o tema central; a
outra foi sobre o depoimento sem dano; e uma terceira sobre a relação entre o psicólogo
parecerista, indicado pelo juiz, e o psicólogo que é ligado a uma das partes. É uma
relação muita tensa às vezes. O psicólogo e a psicóloga que vai pegar a coisa de uma
das partes ele está ali para defender aquela parte, e muitas vezes ele vai atropelando. As
três propostas não puderam ser discutidas na APAF de dezembro, mas foram discutidas
em maio, e todas as três passaram.
Cecília: É importante dizer que isso não vem só do Rio. Estamos contando a história do
Rio, onde essa demanda vem dos próprios psicólogos. Eles que sentiram na pele no
trabalho deles, vieram e nos procuraram. O Federal está sendo pressionado por outros
regionais, como Rio Grande do Sul e Minas. Por pressão isso não foi discutido em
dezembro, mas a pressão continuou, e ele foi discutido em maio.
Novaes: O Federal apoiou todas essas três resoluções. Eles escutaram os representantes
dos regionais, e foi uma discussão muito tensa. Algumas delegações têm pensamento
diferente. Na APAF de maio foi aprovado, e publicado no Diário Oficial de junho.
Saindo no DOU, começamos a divulgar. Depois que psicólogos ouviram e pararam de
fazer, alguns juízes ameaçaram psicólogos com prisão. Tem um aspecto central muito
importante, que é a relação da psicologia com o direito, com a magistratura, com os
juízes especificamente, que é uma relação profundamente assimétrica, de hierarquia.
Eles mandam, eles demandam, eles acham que podem mandar prender psicólogos. Mas
é claro que eles não vão fazer isso.
5) Qual foi o próximo passo?
O próximo passo foi estimular as discussões regionais até que fosse realizado o fórum,
que daria subsídios para que o Federal, na próxima reunião da APAF, agora em
dezembro, pudesse tomar então uma decisão.
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Cecilia Coimbra, Neide Ruffeil e Jose Novaes - CRP-RJ