O INCONSCIENTE JURÍDICO Julgamentos e Traumas no século XX O livro é a porta que se abre para a realização do homem. Jair Lot Vieira Shoshana Felman O INCONSCIENTE JURÍDICO Julgamentos e Traumas no século XX Tradução: Ariani Bueno Sudatti Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP Pós-doutora em Letras pela Unicamp Prefácio: Márcio Seligmann-Silva O inconsciente jurídico Julgamentos e Traumas no século XX Shoshana Felman Tradução: Ariani Bueno Sudatti Prefácio: Márcio Seligmann-Silva 1ª Edição 2014 Copyright © 2002 by the President and Fellows of Harvard College All rights reserved “Published by arrangement with Harvard University Press” © desta tradução: Edipro Edições Profissionais Ltda. – CNPJ nº 47.640.982/0001-40 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer meios, eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informações, sem permissão por escrito do Editor. Editores: Jair Lot Vieira e Maíra Lot Vieira Micales Coordenação editorial: Fernanda Godoy Tarcinalli Revisão técnica: Bruno Mendes dos Santos Revisão: Fernanda Godoy Tarcinalli Diagramação e Arte: Karine Moreto Massoca e Heloise Gomes Basso Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Felman, Shoshana O inconsciente jurídico : julgamentos e traumas no século XX / Shoshana Felman ; tradução Ariani Bueno Sudatti ; prefácio Márcio Seligmann-Silva. – São Paulo : EDIPRO, 2014. Título original: The juridical unconscious : trials and traumas in the twentieth century. Bibliografia. ISBN 978-85-7283-796-5 1. Direito - Aspectos psicológicos 2. Direito na literatura 3. Julgamento - História - Século 20 Aspectos psicológicos I. Seligmann-Silva, Márcio. II. Título. 13-13748 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito : Ensaios 34(04) CDU-34(04) Sumário Prefácio .......................................................................................................................................... 7 Agradecimentos ................................................................................................................... 15 Lista de abreviaturas ................................................................................................... 17 Introdução .................................................................................................................................. 21 1. O silêncio do narrador O dilema de justiça em Walter Benjamin .................................................................... 39 2. Formas de cegueira judicial, ou a evidência do que não pode ser visto Narrativas traumáticas e repetições jurídicas no caso O. J. Simpson e em A sonata a Kreutzer, de Tolstoi ............................................................................................ 89 3. Teatros da justiça Arendt em Jerusalém, o julgamento de Eichmann e a redefinição do significado jurídico na esteira do holocausto ......................................................................... 149 4. Um fantasma na casa da justiça A morte e a linguagem do direito ........................................................................................ 187 Referências ................................................................................................................................. 229 Índice remissivo ................................................................................................................... 249 Prefácio Márcio Seligmann-Silva* Trauma, lei e literatura: o olhar crítico de Shoshana Felman sobre o Direito Shoshana Felman é, sem dúvida, uma das críticas e teóricas da literatura mais influentes no panorama atual. Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral, nas quais ela faz convergir seu erudito saber literário e filológico com seu competente domínio da psicanálise, dialogando ainda, como vemos aqui, de modo muito competente, com os estudos jurídicos.** Assim, desde o início dos anos 1990, ela foi, ao lado de Cathy Caruth, uma das principais responsáveis pelo estabelecimento dos “estudos de trauma”, que até hoje têm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretação de fenômenos culturais, sobretudo a partir do processo histórico, violento e catastrófico que culminou nas grandes guerras do século XX e se estende até nossos dias. O presente ensaio é uma aposta muito bem sucedida em outros encontros interdisciplinares, não menos profícuos e absolutamente atuais. Estudos literários, psicanalíticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lançar uma luz inusitada sobre os verdadeiros nós, buracos negros, da história da cultura moderna, e notadamente do século XX. Partindo de autores como Freud, Walter Benjamin, Levinas e Hannah Arendt, postos em diálogo com Tolstoi, Zola, Kafka, entre outros, a autora vai apre*. Doutor em Teoria Literária pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor pela Universidade de Yale e professor livre-docente de Teoria Literária na Unicamp. Entre outros, é o autor de O Local da Diferença (Editora 34, 2005), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006, e foi professor visitante em Universidades no Brasil, na Alemanha, na Argentina e no México. **. De Felman já se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introdução no seu universo temático e teórico: FELMAN, Shoshana. Educação em crise, ou as vicissitudes do ensino. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. 8 | O inconsciente jurídico sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades. Seu locus privilegiado neste estudo é o da caixa de ressonância dos tribunais. Felman adentra a cena do tribunal, o “teatro da justiça”, para flagrar não o triunfo da razão e da justiça, mas sim o momento em que os traumas sociais são aí reencenados, postos em ação e, via de regra, reafirmados. Ao invés de encarar o tribunal e a cena do julgamento como local de uma catarse social curativa, ou seja, de resolução dos conflitos, Felman nos ensina a vê-los como oportunidades para maior explicitação dos traumas – individuais e coletivos –, e de seus entrecruzamentos. Todavia essa explicitação, ou mise en action, dos traumas não está voltada para a sua elaboração crítica, mas, antes, presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e, ainda, silenciar as suas demandas de representação. O título deste livro não deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente e à sua reelaboração feita por Walter Benjamin. Em seu ensaio sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin afirmara com relação ao cinema que, com essa técnica, “entra em ação a câmera, com seus meios auxiliares – seu descer e subir, seu interromper e isolar, sua dilatação e compressão do ocorrido, seu ampliar e reduzir. Somente por meio da câmera chegamos a conhecer o inconsciente óptico, assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanálise”. Felman, por sua vez, mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os julgamentos jurídicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais, funcionando também como uma lupa, ou seja, uma lente que aproxima e dilata as fissuras da sociedade. Nessa cena, os testemunhos desempenham um papel fundamental. Na teoria literária, o conceito de testemunho desempenha um papel central para se entender o processo histórico, com sua violência estrutural, sobretudo a partir do século XX: era tanto de genocídios, guerras e grandes perseguições em massa, como também de afirmação dos direitos humanos. Mas esse testemunho no tribunal está bloqueado, marcado pela sua própria impossibilidade. O teatro do direito (e não tanto o teatro da justiça) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas. Na verdade, a violência institucional que alicerça o direito silencia e oprime essas vozes. Mais do que isso, simbolicamente, a própria sala de tribunal, com sua pomposidade e com as hierarquias reforçadas pelas roupas, pelos códigos discursivos e de conduta, pela presença de “autoridades”, reproduz uma estrutura de poder socialmente injusta e desigual, e revela que o direito e a lei são colunas fundamentais que sustentam essa mesma estrutura. Essa instância que se quer imparcial e digna de mediar os conflitos entre as partes é, na verdade, cega para as questões subjetivas, para os traumas e dramas sociais que estão ali, no meio da sala do tribunal, mas são ao mesmo tempo obliterados e emudecidos. Prefácio | 9 Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz, que sucumbe no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann, como o momento paradigmático para percebermos essa incomensurabilidade entre o direito e o trauma. Voltaremos a essa cena. Para Benjamin, como lemos em seu ensaio de 1921 “Zur Kritik der Gewalt” (“Para uma crítica do poder/violência”), assim como para seu contemporâneo Kafka, existe uma força violenta, mítica, que dormita no direito. Esfera jurídica e justiça, além de não terem nada a ver uma com a outra, seriam, antes, forças antagônicas. Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito, que se manifesta de modo claro na possibilidade de instituição da pena de morte. O final do romance O processo, de Kafka, que encena a execução fria e absurda do réu K. – que sequer teve apresentada a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime –, é outra das cenas que Felman retoma neste ensaio para nos falar dessa força sacrificial. Ela aproxima essa passagem literária da trágica trajetória de Walter Benjamin, que na fronteira entre a Espanha e a França deu cabo de sua própria vida, impedido de seguir em sua fuga da Gestapo por falta de um visto em seu passaporte. Dramas pessoais e literários explicitam o elemento traumático do inconsciente jurídico. Literatura (Kafka) e histórias de vida (Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito. Assim como na famosa parábola kafkiana “Diante da lei”, em que um camponês é barrado diante da porta da lei e lá permanece sem poder entrar até a sua morte, do mesmo modo, lembra Felman, Benjamin sucumbiu na fronteira, na porta que poderia levá-lo à liberdade, pela simples ausência de um carimbo (para além dos vários outros vistos que já havia conseguido em seu passaporte). De resto, uma das questões fundamentais que a autora enfrenta é justamente o bloqueio cultural às questões “pessoais” na cena do tribunal, que poderiam servir de ponte aos traumas sociais coletivos. Para ela, existiria um abismo entre o direito e a representação dessas questões. No caso do famoso julgamento de O. J. Simpson,*** divulgado nos EUA como sendo “o julgamento do século”, ela lê o confronto de dois dramas e traumas que se embatem no tribunal, um apagando o outro: trauma de gênero (violência contra a mulher) e trauma de raça (violência contra os afrodescendentes). A imagem do rosto da ex-esposa de O. J. Simpson com marcas de espancamento, as gritantes evidências da violência de gênero (na cena do crime e na história do casal) não foram levadas em conta no julgamento. Antes, ele foi guiado pelo medo social de se repetir a terrível tradição norte-americana de perpetração de uma “jus***. Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson, que foi acusado de assassinar em 1994 a ex-esposa, Nicole Brown Simpson, e seu amigo, Ronald Goldman. A fuga espetacular de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento, em 1995, foi considerado “o julgamento do século”, tendo sido assistido por mais da metade da população norte-americana. Nessa ocasião ele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de júri. 10 | O inconsciente jurídico tiça branca”, que condena réus afrodescendentes como meio de reforçar estereótipos escravocratas, racistas e de violências seculares. Por outro lado, a autora recorre a Tolstoi e à sua magistral novela A sonata a Kreutzer, mostrando como nessa peça literária a violência de gênero, apresentada no final do século XIX, já se mostrava tão ominosa quanto no final do século seguinte. O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa, e apresenta esse crime como algo que escapou inteiramente à justiça institucional – já que o direito o absolveu. A diferença fundamental com relação ao julgamento de O. J. Simpson é que, na literatura, toda a trama de encobrimento da violência de gênero intrínseca às relações matrimoniais é esmiuçada e posta à luz do dia. A literatura tira o manto de hipocrisia que cobre a realidade da violência que dormita nas relações de gênero e, de um modo geral, nas relações sociais, fazendo justiça à elaboração crítica do trauma. No caso específico dessa violência de gênero intra-matrimônio, a casa, o lar, a família são vistos como o local de um mal-estar – como Freud já havia revelado. Felman, ao entrecruzar direito, psicanálise e literatura, mostra-nos como a esfera subjetiva é esmagada pelo direito, na mesma medida em que recebe um local, um espaço, na literatura. E é justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estrutura de poder são desconstruídos criticamente. Mas a autora não desdobra um tipo de pensamento maniqueísta que simplesmente opõe o inferno jurídico a um eventual paraíso literário. Pelo contrário, ela está atenta às ambiguidades dessas instâncias. Assim, o tribunal de Nuremberg, por exemplo, é visto tanto como um tribunal que reiterou a força e a violência dos vencedores, como também deve ser visto como um momento fundamental na instituição dos “crimes contra a humanidade”. Mais do que isso ainda, e essa é a originalidade da leitura da autora, nesse julgamento, pela primeira vez, convocou-se um grande trauma social coletivo (a violência extrema contra os judeus) ao tribunal. A história adentrou a corte. Já K-Zetnik, sobrevivente do nazismo, um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobre Auschwitz, foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman. Essa cena mostra como a literatura colapsou diante do tribunal, e como seu testemunho se dá em outro nível. A reflexão de Felman traz à discussão do tema o famoso J’accuse [Eu acuso], de Zola. A literatura, mostra Felman, presta um testemunho, avant la lettre, quanto às (in)justiças dos tribunais, seja Tostoi com relação a O. J. Simpson, seja Zola e seu Eu acuso, com relação ao julgamento Eichmann, seja Kafka e seu “Diante da lei” com relação a Benjamin. Também na antiga tragédia podemos ver a literatura servindo de testemunho do inconsciente jurídico. Muitos estudiosos já destacaram a continuidade entre a cena dos tribunais e a da tragédia grega, com suas duas partes confrontando-se e tendo Prefácio | 11 a “justiça” no seu horizonte. Refiro-me aqui sobretudo à Oresteia, de Ésquilo, uma trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa, Clitemnestra, que em seguida é assassinada por seu filho, Orestes, que, por sua vez, na terceira tragédia, é absolvido desse seu crime no tribunal inaugural, fundador do direito positivado, no Monte Ares, julgamento este presidido por ninguém menos que Palas Atena. A deusa representa aí o direito instituído, que se une às Fúrias prometendo manter a ordem. A ordem do direito, lembrava Benjamin no anteriormente referido ensaio, necessita de um poder ameaçador (“Die rechterhaltende Gewalt ist eine drohende.”). Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da tragédia Eumênides, a terceira da trilogia, quando Palas Atena define a nova ordem jurídica que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes: Prestai atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue. A partir deste dia e para todo o sempre, o povo que já teve como rei Egeu terá a incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [...] Sobre esta elevação digo que a Reverência e o Temor, seu irmão, seja durante o dia, seja de noite, evitarão que os cidadãos cometam crimes, a não ser que eles prefiram aniquilar as leis feitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com eflúvios turvos as fontes claras não terá onde beber). Nem opressão, nem anarquia: eis o lema que os cidadãos devem seguir e respeitar. Não lhes convém tampouco expulsar da cidade todo o Temor; se nada tiver a temer, que homem cumprirá aqui seus deveres? Esse perfil falocêntrico e patriarcal que é dado à ordem jurídica, como aquela que empunha a espada para existir, é também desdobrado nas falas do tribunal, quando Orestes e seu advogado, Apolo, empilham prova sobre prova para convencer os jurados quanto à inocência do matricida. Orestes apela todo o tempo para a figura de seu pai, Agamenon, e Apolo, por sua vez, evoca também seu pai, Zeus, como guardião da verdade e da justiça. Vale lembrar que Atena é apresentada nessa tragédia como uma deusa sem mãe, nascida diretamente de seu genitor, Zeus. Orestes acaba absolvido, pelo “voto de Minerva”, ou seja, de Palas Atena. Por outro lado, o parricida Édipo, como sabemos, da trilogia de Sófocles sobre esse personagem, uma vez descobertos seu crimes “involuntários”, é cegado e banido de sua cidade: matar a mãe é perdoável, o pai, jamais, parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente. Esse convencer objetivo, marcado pela comprovação espetacular, de preferência visual, típico do tribunal, deve ser oposto a um outro espaço para recepção do testemunho oral, muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade. É esse espaço testemunhal que Felman defende aqui, destacando os quase insuperáveis limites de sua acolhida por parte da instituição jurídica. Sem organização política, a voz do testemunho individual e coletivo, daqueles que sofreram uma grave injustiça social 12 | O inconsciente jurídico ou privada, não consegue dobrar o poder do direito. Poder esse que se concretiza simbolicamente nas casas da Justiça, esses palácios com suas colunas gregas, que parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena, a quem se sacrificam as vítimas. O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento recíproco entre trauma e direito e, ao mesmo tempo, para a força da fala testemunhal – apresentada na literatura e em filmes, como o Shoah, de Lanzmann, e Que bom te ver viva, de Lúcia Murat –, deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar na sociedade os espaços de audição aos traumas pessoais e sociais. Essa mudança na sociedade só pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de lutas sociais, nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam contra a opressão numa tentativa de resistência e de elaboração do trauma. É evidente, e este livro o mostra claramente, com autores como Kafka, Benjamin, Dostoievski, Zola e Tolstoi, que uma mudança na esfera do direito só poderá se dar no contexto de uma sociedade ela mesma transformada, com outra estrutura de poder e uma distribuição econômica menos injusta. Mas estabelecer uma crítica do direito é algo efetivo, que é parte dessa luta por uma transformação mais global da sociedade. Nos templos do direito, como nas tragédias, a justiça estará sempre em um longínquo horizonte. O testemunho no seu sentido forte, político, de engajamento crítico na mudança – e não em seu sentido positivista, que reafirma o poder da esfera jurídica, tal como se dá nas salas de tribunal –, é acolhido nas artes e em algumas esferas públicas, deixando suas marcas na sociedade como um todo e, inclusive, forçando as barreiras erguidas pelo direito. A crítica do direito, em grande parte, só é possível justamente graças à articulação política do testemunho na vida social e concreta. Mas se os sem voz e excluídos, se os traumas não articulados, pessoais, comunitários, étnicos e sociais, eventualmente adentram a corte, isso ocorre não por conta de uma mudança imanente ou de uma abertura democrática da esfera jurídica em si mesma, mas, antes, como fruto de lutas que se desenrolam há décadas – e mesmo séculos –, que também visam a tirar a venda da Justiça. Felman nos lança, com esta obra, uma série de questões que atingem o âmago da instituição jurídica. Assim como Freud abalou nossa identidade e visão do que é o ser humano, ao revelar o inconsciente psicológico, também Felman, ao apontar para o inconsciente jurídico, reconfigura o direito e seus limites. Ambos, psicanálise e a visada de Felman, apostam na força da palavra: de um logos subjetivado que enfrenta as feridas geradas pelo logos totalitário e monológico. Com essa abertura crítica proposta por este livro, percebemos também em que medida sua autora conseguiu, de modo raro e exemplar, se colocar muito além de sua disciplina e galgar um espaço sólido para a crítica cultural. Só podemos desejar que esse gesto se multiplique. Prefácio | 13 Esse gesto também aponta para a originalidade da autora dentro da área dos estudos em “Law and Literature”, ou seja, das interfaces entre direito e literatura. Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que a literatura aborda especificamente temas jurídicos, ao invés de se apoiar nos estudos literários para melhor compreensão da hermenêutica jurídica ou, ainda, de tratar das implicações jurídicas do campo literário e tradutório, Felman vai muito além, e busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura. Como vimos, para ela, tanto o conceito de trauma é um importante vaso comunicador entre essas áreas, como também as análises de Benjamin, Levinas e Arendt sobre os fenômenos do direito e da justiça servem de chave nessa empresa de estabelecer um diálogo entre o mundo do direito e o das letras. Felman constrói uma plataforma conceitual e filosófica bastante robusta, que permite repensar o campo direito e o da literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa. Também nesse sentido, este estudo é fundamental. Por fim, é importante destacar a qualidade do trabalho de tradução levado a cabo por Ariani Sudatti, doutora em direito pela FDUSP e também formada em Letras pela Unicamp. Essa dupla formação garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso a essas preciosas ideias de Felman, que, devido à sua formulação conceitual, exige uma tradução atenta e cuidadosa, capaz de transitar entre as duas áreas. Só posso esperar que este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre nós e gere uma reflexão (auto)crítica por parte daqueles que atuam na esfera jurídica ou então que se interessam pelos grandes debates que enfrentam a questão da Justiça e do Direito. Berlim, 7 de abril de 2013.