O INCONSCIENTE JURÍDICO
Julgamentos e Traumas no século XX
O livro é a porta que se abre para a realização do homem.
Jair Lot Vieira
Shoshana Felman
O INCONSCIENTE JURÍDICO
Julgamentos e Traumas no século XX
Tradução: Ariani Bueno Sudatti
Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP
Pós-doutora em Letras pela Unicamp
Prefácio: Márcio Seligmann-Silva
O inconsciente jurídico
Julgamentos e Traumas no século XX
Shoshana Felman
Tradução: Ariani Bueno Sudatti
Prefácio: Márcio Seligmann-Silva
1ª Edição 2014
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Editores: Jair Lot Vieira e Maíra Lot Vieira Micales
Coordenação editorial: Fernanda Godoy Tarcinalli
Revisão técnica: Bruno Mendes dos Santos
Revisão: Fernanda Godoy Tarcinalli
Diagramação e Arte: Karine Moreto Massoca e Heloise Gomes Basso
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Felman, Shoshana
O inconsciente jurídico : julgamentos e traumas no século XX / Shoshana Felman ; tradução
Ariani Bueno Sudatti ; prefácio Márcio Seligmann-Silva. – São Paulo : EDIPRO, 2014.
Título original: The juridical unconscious : trials and traumas in the twentieth century.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7283-796-5
1. Direito - Aspectos psicológicos 2. Direito na literatura 3. Julgamento - História - Século 20 Aspectos psicológicos I. Seligmann-Silva, Márcio. II. Título.
13-13748
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito : Ensaios 34(04)
CDU-34(04)
Sumário
Prefácio ..........................................................................................................................................
7
Agradecimentos ...................................................................................................................
15
Lista de abreviaturas ...................................................................................................
17
Introdução ..................................................................................................................................
21
1. O silêncio do narrador
O dilema de justiça em Walter Benjamin ....................................................................
39
2. Formas de cegueira judicial, ou a evidência do que não
pode ser visto
Narrativas traumáticas e repetições jurídicas no caso O. J. Simpson e em
A sonata a Kreutzer, de Tolstoi ............................................................................................
89
3. Teatros da justiça
Arendt em Jerusalém, o julgamento de Eichmann e a redefinição do significado jurídico na esteira do holocausto ......................................................................... 149
4. Um fantasma na casa da justiça
A morte e a linguagem do direito ........................................................................................ 187
Referências ................................................................................................................................. 229
Índice remissivo ................................................................................................................... 249
Prefácio
Márcio Seligmann-Silva*
Trauma, lei e literatura:
o olhar crítico de Shoshana Felman sobre o Direito
Shoshana Felman é, sem dúvida, uma das críticas e teóricas da literatura mais
influentes no panorama atual. Sua obra vem inspirando diversos autores e apontando
para novas abordagens da literatura e da cultura de um modo geral, nas quais ela faz
convergir seu erudito saber literário e filológico com seu competente domínio da
psicanálise, dialogando ainda, como vemos aqui, de modo muito competente, com os
estudos jurídicos.** Assim, desde o início dos anos 1990, ela foi, ao lado de Cathy Caruth, uma das principais responsáveis pelo estabelecimento dos “estudos de trauma”,
que até hoje têm multiplicado de modo muito criativo a leitura e a interpretação de
fenômenos culturais, sobretudo a partir do processo histórico, violento e catastrófico
que culminou nas grandes guerras do século XX e se estende até nossos dias.
O presente ensaio é uma aposta muito bem sucedida em outros encontros interdisciplinares, não menos profícuos e absolutamente atuais. Estudos literários, psicanalíticos e teoria do Direito encontram-se aqui para lançar uma luz inusitada sobre
os verdadeiros nós, buracos negros, da história da cultura moderna, e notadamente
do século XX. Partindo de autores como Freud, Walter Benjamin, Levinas e Hannah
Arendt, postos em diálogo com Tolstoi, Zola, Kafka, entre outros, a autora vai apre*.
Doutor em Teoria Literária pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor pela Universidade de Yale e
professor livre-docente de Teoria Literária na Unicamp. Entre outros, é o autor de O Local da Diferença
(Editora 34, 2005), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006,
e foi professor visitante em Universidades no Brasil, na Alemanha, na Argentina e no México.
**.
De Felman já se encontra publicado no Brasil um importante ensaio que permite uma boa introdução
no seu universo temático e teórico: FELMAN, Shoshana. Educação em crise, ou as vicissitudes do ensino. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. São
Paulo: Escuta, 2000.
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sentar e analisar os traumas sociais coletivos que estruturam nossas sociedades. Seu
locus privilegiado neste estudo é o da caixa de ressonância dos tribunais. Felman
adentra a cena do tribunal, o “teatro da justiça”, para flagrar não o triunfo da razão
e da justiça, mas sim o momento em que os traumas sociais são aí reencenados,
postos em ação e, via de regra, reafirmados. Ao invés de encarar o tribunal e a cena
do julgamento como local de uma catarse social curativa, ou seja, de resolução dos
conflitos, Felman nos ensina a vê-los como oportunidades para maior explicitação
dos traumas – individuais e coletivos –, e de seus entrecruzamentos. Todavia essa
explicitação, ou mise en action, dos traumas não está voltada para a sua elaboração
crítica, mas, antes, presta- se a reproduzir e aprofundar os mesmos e, ainda, silenciar
as suas demandas de representação.
O título deste livro não deixa de remeter ao conceito freudiano de inconsciente
e à sua reelaboração feita por Walter Benjamin. Em seu ensaio sobre “A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin afirmara com relação ao cinema
que, com essa técnica, “entra em ação a câmera, com seus meios auxiliares – seu
descer e subir, seu interromper e isolar, sua dilatação e compressão do ocorrido, seu
ampliar e reduzir. Somente por meio da câmera chegamos a conhecer o inconsciente
óptico, assim como conhecemos o inconsciente pulsional por meio da psicanálise”.
Felman, por sua vez, mostra de que maneira podemos perceber os tribunais e os julgamentos jurídicos como uma via privilegiada de acesso aos traumas sociais, funcionando também como uma lupa, ou seja, uma lente que aproxima e dilata as fissuras
da sociedade. Nessa cena, os testemunhos desempenham um papel fundamental.
Na teoria literária, o conceito de testemunho desempenha um papel central para
se entender o processo histórico, com sua violência estrutural, sobretudo a partir do
século XX: era tanto de genocídios, guerras e grandes perseguições em massa, como
também de afirmação dos direitos humanos. Mas esse testemunho no tribunal está
bloqueado, marcado pela sua própria impossibilidade. O teatro do direito (e não
tanto o teatro da justiça) apenas aparentemente abre-se para a voz das testemunhas.
Na verdade, a violência institucional que alicerça o direito silencia e oprime essas
vozes. Mais do que isso, simbolicamente, a própria sala de tribunal, com sua pomposidade e com as hierarquias reforçadas pelas roupas, pelos códigos discursivos e
de conduta, pela presença de “autoridades”, reproduz uma estrutura de poder socialmente injusta e desigual, e revela que o direito e a lei são colunas fundamentais
que sustentam essa mesma estrutura. Essa instância que se quer imparcial e digna
de mediar os conflitos entre as partes é, na verdade, cega para as questões subjetivas,
para os traumas e dramas sociais que estão ali, no meio da sala do tribunal, mas são
ao mesmo tempo obliterados e emudecidos.
Prefácio | 9
Felman vai tomar o testemunho de um sobrevivente de Auschwitz, que sucumbe
no momento de seu depoimento e entra em coma durante o julgamento de Eichmann,
como o momento paradigmático para percebermos essa incomensurabilidade entre o
direito e o trauma. Voltaremos a essa cena.
Para Benjamin, como lemos em seu ensaio de 1921 “Zur Kritik der Gewalt”
(“Para uma crítica do poder/violência”), assim como para seu contemporâneo Kafka,
existe uma força violenta, mítica, que dormita no direito. Esfera jurídica e justiça,
além de não terem nada a ver uma com a outra, seriam, antes, forças antagônicas.
Benjamin destaca o elemento sacrificial do direito, que se manifesta de modo claro
na possibilidade de instituição da pena de morte. O final do romance O processo, de
Kafka, que encena a execução fria e absurda do réu K. – que sequer teve apresentada
a sua culpa ou fora condenado por qualquer crime –, é outra das cenas que Felman
retoma neste ensaio para nos falar dessa força sacrificial. Ela aproxima essa passagem
literária da trágica trajetória de Walter Benjamin, que na fronteira entre a Espanha e
a França deu cabo de sua própria vida, impedido de seguir em sua fuga da Gestapo
por falta de um visto em seu passaporte. Dramas pessoais e literários explicitam o
elemento traumático do inconsciente jurídico. Literatura (Kafka) e histórias de vida
(Benjamin) se unem para compor essa contraleitura do significado do direito. Assim
como na famosa parábola kafkiana “Diante da lei”, em que um camponês é barrado
diante da porta da lei e lá permanece sem poder entrar até a sua morte, do mesmo
modo, lembra Felman, Benjamin sucumbiu na fronteira, na porta que poderia levá-lo
à liberdade, pela simples ausência de um carimbo (para além dos vários outros vistos
que já havia conseguido em seu passaporte).
De resto, uma das questões fundamentais que a autora enfrenta é justamente o
bloqueio cultural às questões “pessoais” na cena do tribunal, que poderiam servir de
ponte aos traumas sociais coletivos. Para ela, existiria um abismo entre o direito e a
representação dessas questões. No caso do famoso julgamento de O. J. Simpson,***
divulgado nos EUA como sendo “o julgamento do século”, ela lê o confronto de dois
dramas e traumas que se embatem no tribunal, um apagando o outro: trauma de
gênero (violência contra a mulher) e trauma de raça (violência contra os afrodescendentes). A imagem do rosto da ex-esposa de O. J. Simpson com marcas de espancamento, as gritantes evidências da violência de gênero (na cena do crime e na história
do casal) não foram levadas em conta no julgamento. Antes, ele foi guiado pelo medo
social de se repetir a terrível tradição norte-americana de perpetração de uma “jus***. Trata-se do julgamento do famoso jogador de futebol americano Orenthal James Simpson, que foi acusado
de assassinar em 1994 a ex-esposa, Nicole Brown Simpson, e seu amigo, Ronald Goldman. A fuga espetacular de Simpson foi televisionada para todo o mundo e seu julgamento, em 1995, foi considerado “o julgamento do século”, tendo sido assistido por mais da metade da população norte-americana. Nessa ocasião
ele foi absolvido pelos dois crimes por um tribunal de júri.
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tiça branca”, que condena réus afrodescendentes como meio de reforçar estereótipos
escravocratas, racistas e de violências seculares.
Por outro lado, a autora recorre a Tolstoi e à sua magistral novela A sonata a
Kreutzer, mostrando como nessa peça literária a violência de gênero, apresentada no
final do século XIX, já se mostrava tão ominosa quanto no final do século seguinte.
O protagonista dessa novela confessa ter assassinado a esposa, e apresenta esse crime
como algo que escapou inteiramente à justiça institucional – já que o direito o absolveu. A diferença fundamental com relação ao julgamento de O. J. Simpson é que, na
literatura, toda a trama de encobrimento da violência de gênero intrínseca às relações
matrimoniais é esmiuçada e posta à luz do dia. A literatura tira o manto de hipocrisia
que cobre a realidade da violência que dormita nas relações de gênero e, de um modo
geral, nas relações sociais, fazendo justiça à elaboração crítica do trauma. No caso específico dessa violência de gênero intra-matrimônio, a casa, o lar, a família são vistos
como o local de um mal-estar – como Freud já havia revelado.
Felman, ao entrecruzar direito, psicanálise e literatura, mostra-nos como a esfera
subjetiva é esmagada pelo direito, na mesma medida em que recebe um local, um
espaço, na literatura. E é justamente a partir da esfera subjetiva que o direito e a estrutura de poder são desconstruídos criticamente. Mas a autora não desdobra um tipo
de pensamento maniqueísta que simplesmente opõe o inferno jurídico a um eventual
paraíso literário. Pelo contrário, ela está atenta às ambiguidades dessas instâncias.
Assim, o tribunal de Nuremberg, por exemplo, é visto tanto como um tribunal que
reiterou a força e a violência dos vencedores, como também deve ser visto como um
momento fundamental na instituição dos “crimes contra a humanidade”. Mais do
que isso ainda, e essa é a originalidade da leitura da autora, nesse julgamento, pela
primeira vez, convocou-se um grande trauma social coletivo (a violência extrema
contra os judeus) ao tribunal. A história adentrou a corte. Já K-Zetnik, sobrevivente
do nazismo, um escritor e literato conhecido por produzir uma densa literatura sobre
Auschwitz, foi a testemunha que sucumbiu no julgamento de Eichman. Essa cena
mostra como a literatura colapsou diante do tribunal, e como seu testemunho se dá
em outro nível. A reflexão de Felman traz à discussão do tema o famoso J’accuse [Eu
acuso], de Zola. A literatura, mostra Felman, presta um testemunho, avant la lettre,
quanto às (in)justiças dos tribunais, seja Tostoi com relação a O. J. Simpson, seja Zola
e seu Eu acuso, com relação ao julgamento Eichmann, seja Kafka e seu “Diante da lei”
com relação a Benjamin.
Também na antiga tragédia podemos ver a literatura servindo de testemunho do
inconsciente jurídico. Muitos estudiosos já destacaram a continuidade entre a cena
dos tribunais e a da tragédia grega, com suas duas partes confrontando-se e tendo
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a “justiça” no seu horizonte. Refiro-me aqui sobretudo à Oresteia, de Ésquilo, uma
trilogia na qual assistimos a Agamenon ser assassinado por sua esposa, Clitemnestra,
que em seguida é assassinada por seu filho, Orestes, que, por sua vez, na terceira
tragédia, é absolvido desse seu crime no tribunal inaugural, fundador do direito
positivado, no Monte Ares, julgamento este presidido por ninguém menos que Palas
Atena. A deusa representa aí o direito instituído, que se une às Fúrias prometendo
manter a ordem. A ordem do direito, lembrava Benjamin no anteriormente referido ensaio, necessita de um poder ameaçador (“Die rechterhaltende Gewalt ist eine
drohende.”). Esta ideia faz-nos lembrar justamente da seguinte passagem da tragédia
Eumênides, a terceira da trilogia, quando Palas Atena define a nova ordem jurídica
que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes:
Prestai atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para
julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue.
A partir deste dia e para todo o sempre, o povo que já teve como rei Egeu terá a incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares [...] Sobre
esta elevação digo que a Reverência e o Temor, seu irmão, seja durante o dia, seja de noite,
evitarão que os cidadãos cometam crimes, a não ser que eles prefiram aniquilar as leis
feitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com eflúvios turvos as fontes claras não
terá onde beber). Nem opressão, nem anarquia: eis o lema que os cidadãos devem seguir
e respeitar. Não lhes convém tampouco expulsar da cidade todo o Temor; se nada tiver a
temer, que homem cumprirá aqui seus deveres?
Esse perfil falocêntrico e patriarcal que é dado à ordem jurídica, como aquela que
empunha a espada para existir, é também desdobrado nas falas do tribunal, quando
Orestes e seu advogado, Apolo, empilham prova sobre prova para convencer os jurados quanto à inocência do matricida. Orestes apela todo o tempo para a figura de seu
pai, Agamenon, e Apolo, por sua vez, evoca também seu pai, Zeus, como guardião da
verdade e da justiça. Vale lembrar que Atena é apresentada nessa tragédia como uma
deusa sem mãe, nascida diretamente de seu genitor, Zeus. Orestes acaba absolvido,
pelo “voto de Minerva”, ou seja, de Palas Atena. Por outro lado, o parricida Édipo,
como sabemos, da trilogia de Sófocles sobre esse personagem, uma vez descobertos
seu crimes “involuntários”, é cegado e banido de sua cidade: matar a mãe é perdoável,
o pai, jamais, parecem-nos dizer esses protomodelos sociais do Ocidente.
Esse convencer objetivo, marcado pela comprovação espetacular, de preferência
visual, típico do tribunal, deve ser oposto a um outro espaço para recepção do testemunho oral, muitas vezes fragmentado e carregado de subjetividade. É esse espaço
testemunhal que Felman defende aqui, destacando os quase insuperáveis limites de
sua acolhida por parte da instituição jurídica. Sem organização política, a voz do
testemunho individual e coletivo, daqueles que sofreram uma grave injustiça social
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ou privada, não consegue dobrar o poder do direito. Poder esse que se concretiza
simbolicamente nas casas da Justiça, esses palácios com suas colunas gregas, que
parecem ainda ornar templos em homenagem a Palas Atena, a quem se sacrificam as
vítimas. O modo como Felman abre nossos olhos para perceber o condicionamento
recíproco entre trauma e direito e, ao mesmo tempo, para a força da fala testemunhal – apresentada na literatura e em filmes, como o Shoah, de Lanzmann, e Que
bom te ver viva, de Lúcia Murat –, deve nos inspirar a lutar no sentido de ampliar
na sociedade os espaços de audição aos traumas pessoais e sociais. Essa mudança na
sociedade só pode ser compreendida como parte de um longo e intenso processo de
lutas sociais, nas quais justamente os testemunhos dos oprimidos se levantam contra a opressão numa tentativa de resistência e de elaboração do trauma. É evidente,
e este livro o mostra claramente, com autores como Kafka, Benjamin, Dostoievski,
Zola e Tolstoi, que uma mudança na esfera do direito só poderá se dar no contexto
de uma sociedade ela mesma transformada, com outra estrutura de poder e uma
distribuição econômica menos injusta. Mas estabelecer uma crítica do direito é algo
efetivo, que é parte dessa luta por uma transformação mais global da sociedade. Nos
templos do direito, como nas tragédias, a justiça estará sempre em um longínquo
horizonte. O testemunho no seu sentido forte, político, de engajamento crítico na
mudança – e não em seu sentido positivista, que reafirma o poder da esfera jurídica, tal como se dá nas salas de tribunal –, é acolhido nas artes e em algumas esferas
públicas, deixando suas marcas na sociedade como um todo e, inclusive, forçando
as barreiras erguidas pelo direito. A crítica do direito, em grande parte, só é possível
justamente graças à articulação política do testemunho na vida social e concreta.
Mas se os sem voz e excluídos, se os traumas não articulados, pessoais, comunitários, étnicos e sociais, eventualmente adentram a corte, isso ocorre não por conta de
uma mudança imanente ou de uma abertura democrática da esfera jurídica em si
mesma, mas, antes, como fruto de lutas que se desenrolam há décadas – e mesmo
séculos –, que também visam a tirar a venda da Justiça.
Felman nos lança, com esta obra, uma série de questões que atingem o âmago da
instituição jurídica. Assim como Freud abalou nossa identidade e visão do que é o
ser humano, ao revelar o inconsciente psicológico, também Felman, ao apontar para
o inconsciente jurídico, reconfigura o direito e seus limites. Ambos, psicanálise e a
visada de Felman, apostam na força da palavra: de um logos subjetivado que enfrenta as feridas geradas pelo logos totalitário e monológico. Com essa abertura crítica
proposta por este livro, percebemos também em que medida sua autora conseguiu,
de modo raro e exemplar, se colocar muito além de sua disciplina e galgar um espaço
sólido para a crítica cultural. Só podemos desejar que esse gesto se multiplique.
Prefácio | 13
Esse gesto também aponta para a originalidade da autora dentro da área dos
estudos em “Law and Literature”, ou seja, das interfaces entre direito e literatura.
Diferentemente de outras abordagens que se limitam a tratar dos momentos em que
a literatura aborda especificamente temas jurídicos, ao invés de se apoiar nos estudos
literários para melhor compreensão da hermenêutica jurídica ou, ainda, de tratar
das implicações jurídicas do campo literário e tradutório, Felman vai muito além, e
busca revelar as camadas mais profundas desse encontro entre direito e literatura.
Como vimos, para ela, tanto o conceito de trauma é um importante vaso comunicador entre essas áreas, como também as análises de Benjamin, Levinas e Arendt sobre
os fenômenos do direito e da justiça servem de chave nessa empresa de estabelecer
um diálogo entre o mundo do direito e o das letras. Felman constrói uma plataforma
conceitual e filosófica bastante robusta, que permite repensar o campo direito e o da
literatura em uma perspectiva inovadora e muito criativa. Também nesse sentido,
este estudo é fundamental.
Por fim, é importante destacar a qualidade do trabalho de tradução levado a cabo
por Ariani Sudatti, doutora em direito pela FDUSP e também formada em Letras pela
Unicamp. Essa dupla formação garantiu o rigor desta empreitada e nos abriu o acesso
a essas preciosas ideias de Felman, que, devido à sua formulação conceitual, exige uma
tradução atenta e cuidadosa, capaz de transitar entre as duas áreas. Só posso esperar
que este belo e potente livro tenha a acolhida que merece entre nós e gere uma reflexão
(auto)crítica por parte daqueles que atuam na esfera jurídica ou então que se interessam pelos grandes debates que enfrentam a questão da Justiça e do Direito.
Berlim, 7 de abril de 2013.
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