INTERDISCIPLINARIDADE, SUBJETIVIDADE E SENSO COMUM: PARA UMA AMPLIAÇÃO DOS HORIZONTES METODOLÓGICOS GONÇALVES, Adalgisa de Oliveira – PUCPR/ UFSC [email protected] REMENCHE, Maria de Lourdes Rossi – USP/ DERC [email protected] Área Temática: Educação: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Apresentamos uma reflexão acerca da interdisciplinaridade, da pesquisa interdisciplinar e da subjetividade na pesquisa. Pretendemos com isso dar uma contribuição para os debates e discussões sobre o assunto. Ao analisarmos interdisciplinaridade e metodologia, buscamos levantar como a subjetividade interfere na abordagem e na aplicabilidade da interdisciplinaridade. O trabalho interdisciplinar favorece a comunicação, a reciprocidade, e amplia o diálogo entre as várias áreas de conhecimento, em movimento contínuo, que significa e ressignifica o processo de aprendizagem. Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Pesquisa interdisciplinar; Subjetividade; Senso Comum. Introdução Neste artigo apresentamos uma reflexão sobre o conceito interdisciplinaridade. A respeito dessa temática há um instigante desafio no que se refere às formas de compreensão de aplicação desse conceito, pois, se o analisarmos na perspectiva semântica, dificilmente, chegaremos à significação do que tem representado a ação interdisciplinar nas atividades acadêmicas. Na definição de um conceito, manifestam-se ideologias, interesses, significações, etc. que se referem a contextos culturais próprios, a sujeitos que se endereçam, a situações específicas e a universos de discurso determinados, enfim uma definição está em constante dialética com seu meio, os diversos contextos de uso, sujeita à manipulação, aos efeitos de sentido, a ambigüidades, a polissemias, etc. Concordamos com Alberto Cupani (2008), quando diz que a interdisciplinaridade tem objetivo prático. É difícil falar sobre interdisciplinaridade, mas não é difícil trabalhar interdisciplinarmente, pois ela é necessária à ancoragem e à significação da aprendizagem. Em virtude de toda essa complexidade que envolve o termo, não temos a pretensão de 4038 adentrar no emaranhado de possibilidades de abordagens e de aprofundamentos, mas levantar algumas possibilidades de investigação e, ao mesmo tempo, revisitar o conceito, jogando luz sobre a prática interdisciplinar. Dentre as posições controversas, há os que afirmam o ganho da ação interdisciplinar, em contrapartida, há os que rejeitam até mesmo o debate. Por tudo isso, a interdisciplinaridade ainda é motivo de muitas discussões nos ambientes acadêmicos, tanto no que diz respeito a sua definição quanto no que diz respeito à sua aplicabilidade. Como prática exigente, requer um projeto arrojado de pesquisa que envolva conhecimento em diferentes áreas, pois não é possível fazer trabalho interdisciplinar restringindo-se apenas a uma área. O recorte que faremos fundamenta-se na perspectiva da ampliação dos horizontes metodológicos. Para Gadamer (1999, p.55) “horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível desde um determinado ponto. Aplicando-o à consciência pensante devemos falar dos limites do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes.” Pois, completa Bairon (2002, p. 146), “O homem que não promove o encontro de horizontes diversos é um homem de visão limitadíssima e tende à valorização das repetições metódicas. Já que aquele que tem horizontes múltiplos, não se encontra limitado a um único método e reconhece que sua interpretação está sempre num estado de suspensão temporal, é dasein.” Praticar a pesquisa interdisciplinar não é tarefa fácil, pois há sempre o risco de fazer uma mistura de aportes metodológicos e não chegar à interdisciplinaridade. Por isso, vamos trazer algumas definições de interdisciplinaridade, que poderão nos ajudar a tecer este trabalho. Interdisciplinaridade: possibilidades semânticas O termo interdisciplinaridade tem origem na composição da palavra latina inter, que significa em relação, reciprocidade ou interação, e disciplina, que remete à forma de organizar e de concentrar as pesquisas e as experiências dentro de uma perspectiva. Cada disciplina nos oferece uma imagem particular da realidade, pois delimita um aspecto da mesma. Desde o início do século XIX, exploramos o conceito de disciplina como a entendemos hoje, isto é, possuidora de objeto de estudo, marcos conceituais, métodos e procedimentos específicos. Tais características acabaram produzindo uma visão rígida na compreensão das diferentes disciplinas. A interdisciplinaridade surge para quebrar esta rigidez, trazendo flexibilidade às pesquisas em todos os campos de conhecimento. Nesse 4039 sentido, a junção de inter e disciplina nos dá a interdisciplina e explicita as formas de relação, de reciprocidade e de aproximação em diferentes áreas na busca de algo novo. Klein (1990) destaca quatro aspectos em que se pode realizar a relação entre disciplinas. A primeira diz respeito à forma que a interdisciplinaridade assume ao ser aplicada. Em um segundo momento, trata da motivação direcionada à solução de problemas que vão além dos limites das especialidades. Uma outra forma de relação está no princípio de interação, isto é, demonstra o processo de integração das disciplinas entre si. Há, na verdade, um aumento de temáticas e métodos, quando as disciplinas justapõem conteúdos variados. Por fim, o autor destaca uma hierarquia terminológica para distinguir os diversos níveis de interação que podem acorrer entre as disciplinas. De acordo com o nível de integração podemos estabelecer diferentes níveis de interdisciplinaridade. Apesar de Klein (1990) reconhecer que muitos estudiosos consideram o tratamento terminológico obsoleto, comenta que há uma concordância em duas distinções terminológicas: entre multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, e entre transdisciplinaridade e interdisciplinaridade. Concordamos que tratar o conceito de interdisciplinaridade apenas pela sua terminologia acabaria reduzindo o debate ao campo semântico, que nesse caso não ajudaria muito. Por isso é preciso avançar, esclarecendo essa hierarquização terminológica de níveis de colaboração e integração entre disciplinas. A multidisciplinaridade é o nível mais restrito de integração. Ela se dá quando buscamos ajuda em diversas disciplinas para solucionar algum tipo de problema, sem que esta ação contribua para a transformação ou enriquecimento das disciplinas envolvidas. Nesse nível não há tanta cooperação, pelo fato de haver apenas justaposição de disciplinas. A multidisciplinaridade é essencialmente aditiva, e não integrativa, afirma Klein (1990). Ele explica que uma característica fundamental do trabalho multidisciplinar é que os pesquisadores preservam os paradigmas que dizem respeito à sua própria disciplina. A transdisciplinaridade compõe o terceiro nível de interação em que a rede está estabelecida de forma que não haja mais fronteiras entre as disciplinas. A interdisciplinaridade é o segundo nível na forma de relações entre disciplinas (aqui vem depois do terceiro nível para que possamos desenvolver melhor o tema). Nesse nível, a interação amplia-se e o intercâmbio é de verdadeira reciprocidade. A interdisciplinaridade reúne estudos de diversas disciplinas num contexto mais coletivo no tratamento dos fenômenos a serem estudados ou, ainda, das situações-problema em destaque. Tal procedimento exige um compromisso maior ao elaborar, de modo mais 4040 geral, os projetos de pesquisa que resultarão em intercomunicação e enriquecimento, e, também, em transformação de metodologias de pesquisa, modificação de conceitos e de terminologias (TORRES SANTOMÉ, p. 80). Ao afirmar que a interdisciplinaridade é “comunicação de idéias para a integração mútua para organizar conceitos, metodologia, procedimentos, epistemologia, terminologia, informações, assim como organização de pesquisa e educação em um vasto campo”, Klein (1990, p. 63) reforça a definição original e salienta que a interdisciplinaridade surge para corrigir o equívoco da compartimentação e da não comunicação entre as disciplinas. Tal crítica encontra correlato na crítica que foi dirigida à fragmentação do trabalho em sistemas de produção da sociedade capitalista, à separação entre trabalho intelectual e manual, entre a teoria e a prática, bem como à hierarquização e ausência de comunicação democrática entre os diferentes cargos de trabalho em uma estrutura de produção capitalista, entre humanismo e técnica (SANTOMÉ, p. 62). A interdisciplinaridade é, fundamentalmente, um processo e uma filosofia de trabalho que entra em ação na hora de enfrentar os problemas e questões que preocupam em cada sociedade (SANTOMÉ). Klein (1990, p.188-189) acrescenta que, embora não haja apenas um processo e nem mesmo um conjunto rígido de ações, existem alguns passos que podem estar presentes na intervenção interdisciplinar, desde que se respeite o princípio da flexibilidade: delimitar os problemas de acordo com os questionamentos iniciais; determinar os conhecimentos necessários; desenvolver um marco integrador e as questões a serem pesquisadas, etc. Nas ciências humanas é freqüente a integração entre disciplinas próximas, como história, sociologia, antropologia, entre outras. A pesquisa interdisciplinar, nesse campo, parte dessa integração com o objetivo de organizar conceitos, metodologias, dispositivos, epistemologias para se chegar a uma nova abordagem como conseqüência da construção de seus próprios objetos de investigação, conceitos fundantes, premissas e paradigmas. A pesquisa interdisciplinar não é simples aproximação conceitual, pois se trata aqui da elaboração de uma nova abordagem conceitual e metodológica na explicitação e interpretação de um novo projeto. Nesse sentido, a pesquisa interdisciplinar favorece o levantamento de hipóteses, as inferências, comparações e analogias na busca de respostas para as situaçõesproblema. Se estivermos, por exemplo, desenvolvendo um trabalho de pesquisa social que não nos permita trabalhar com os mitos, podemos lançar mão da antropologia que irá nos abrir esse espaço, subsidiando e alargando as possibilidades de aprofundamento do objeto. 4041 Durkhein foi um dos pesquisadores que mais contribuíram para a consolidação da sociologia como um campo disciplinar. Sua contribuição, no entanto vai além, pois foi fundamental ao trabalho interdisciplinar em outras áreas como antropologia e história. Se, por um lado, os sociólogos se uniam aos estatísticos para melhorar a pesquisa quantitativa, que favorecia a comparação de comportamentos próprios da coletividade, por outro, os antropólogos desenvolviam a etnografia como forma de investigação das relações sociais que podiam ser observadas. Historiadores também se desvencilhavam das grandes narrativas heróicas, guerras e batalhas, construindo uma abordagem a partir da análise, da observação e da interpretação de longas permanências sociais, geográficas e psicológicas. Portanto, o diálogo construído entre diversas disciplinas enriquece o campo das ciências. Para Alberto Cupani, esse diálogo só é possível se considerarmos alguns aspectos fundamentais: complexidade da questão apresentada; comunidade, isto é, diálogo com entre as disciplinas; novidade da questão; conveniência desse tipo de abordagem; e ainda a insatisfação quanto às abordagens prévias. Segundo Cupani (2008), não há interdisciplinaridade de propósito, mas como necessidade sentida, dessa forma, não basta falar da interdisciplinaridade, mas deve-se trabalhar interdisciplinarmente. No âmbito da história oral, Verena (2005) afirma que o trabalho nessa área é interdisciplinar por excelência, pois se utiliza e se beneficia de ferramentas teóricas de diferentes disciplinas das ciências humanas como a antropologia, a história, a literatura, a sociologia e a psicologia. Além disso, pode ser aplicada em diferentes áreas do conhecimento: educação, economia, engenharias, administração, medicina, serviço social, teatro, música. A história oral deve dispor de muitas técnicas advindas de diferentes áreas para extrair o máximo de riqueza dos textos dos informantes. É quanto afirma Verena (2005, p. 164): Observa-se atualmente, não só a História como em todos os campos do saber, a valorização da interdisciplinaridade. [...] A história oral é hoje um caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade. Sem o trabalho interdisciplinar entre antropologia e história não teríamos estudos como o de Portelli (1998) sobre o massacre de Civitella. Pois quando o historiador ou o antropólogo compreende a “‘memória coletiva’ (no caso de Civitella), não mais podemos descrevê-lo como a expressão direta e espontânea de dor, luto ou escândalo, mas como uma 4042 formalização igualmente legítima e significativa, medida por ideologias, linguagens, senso comum e instituições” (PORTELLI, 1998, p. 127). Mas não é só a necessidade que leva á produção interdisciplinar. É preciso ter também clareza daquilo que se quer, é preciso conhecer as possibilidades de outras disciplinas em relação à pesquisa, depois de se ter definido o objeto e o problema da pesquisa. A aplicabilidade da interdisciplinaridade vai depender das respostas que se busca. Outro aspecto que podemos salientar na perspectiva da pesquisa interdisciplinar é a reabilitação do senso comum como conhecimento significativo. Os estudos de história oral são bons exemplos da reabilitação do senso comum. Roviello (1997) descreve que enquanto as verdades metafísicas são encontradas numa saída do pensamento para fora do mundo, num contato solitário do pensamento com os objetos, o senso comum lida com verdades de experiências sempre particulares, mas também sempre suceptíveis de penetrarem na experiência de outros e, portanto, de se tornarem objeto de um debate entre opiniões diferentes. Hannah Arendt, diz Roviello (1997), privilegia o senso comum na condição de que a passagem da verdade racional para a opinião implica a passagem do homem no singular para os homens no plural. Para ela o senso comum não é o conteúdo de uma verdade positiva identicamente entre as diferentes parcelas de sentido representadas pelas opiniões diferentes. O senso comum é o horizonte indeterminado de uma comunidade de sentido. Comunidade de sentido é aquela que garante que o mundo nunca seja visto sob um único aspecto, tornando o senso comum no sentido da irredutibiliadade dos diferentes pontos de vista, sem o qual, aliás, a comunicação deixaria de ter razão de ser. Santos (1989) diz que o senso comum estará sempre sujeito a interpretações a partir das ciências e por isso carregado de negatividades. É preciso fazer um esforço, diz ele, para superar o etnocentrismo científico e caracterizá-lo de forma mais positiva. Assim, argumenta que “o senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na ação e no princípio da criatividade e das responsabilidades individuais; é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e dá segurança. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência linguística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundadidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisa. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente 4043 orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; nao ensina, persuade.” (p.40) Dessa forma, o senso comum passa a ser grande aliado dos pesquisadores, pois é uma fonte inesgotável de novas compreensões e interpretações. Interdisciplinaridade e subjetividade O empréstimo de instrumentos analíticos e de metodologia, como comenta Klein (1990), está entre as formas de relação preconizadas pela interdisciplinaridade. Com essa visão de interdisciplinaridade o fechamento e a fragmentação analítica dão espaço e lugar a uma cosmovisão holística, sistêmica, no qual as multiferencialidades e as autoreferencialidades tornam-se fundamentalmente importantes. A investigação interdisciplinar surge para fazer emergir todas as possibilidades do sujeito e do objeto. Grossi (1992) repensando o trabalho de campo do antropólogo, diz que a “necessidade de pensar na relação do pesquisador com seu objeto de estudo tem sido uma preocupação recente na Antropologia”. Acrescenta ainda (1992, p.11): a subjetividade que leva a repensar a produção do conhecimento antropológico vai mais além do que simplesmente pensar no “ponto de vista da outra”. Marilyn Strathern (1987), ao analisar o desenvolvimento da Antropologia Americana após 68, aponta o fato de que foram as mulheres que trouxeram para a antropologia as questões relativas à relação sujeito/objeto por suas próprias “implicações” enquanto mulheres investigando outras mulheres. As antropólogas pós 68 partiam em campo se autoquestionando enquanto mulheres porque estavam imersas, enquanto indivíduos modernos, na “crise da identidade feminina no Ocidente”. Auto-questionamento presente e centra na constituição da “identidade feminina”, marcada no Ocidente pelo vínculo das mulheres com o espaço privado. A interdisciplinaridade, definida como formas de relação que se estabelecem entre as áreas de conhecimento, pressupõe a intersubjetividade. O trabalho interdisciplinar dá sentido à relação entre pessoas, ou, como diz Grossi (1992, p.7), “na busca do ‘outro’, encontra-se a ‘si mesmo’.” Tomando o caso das antropólogas, as mulheres como pesquisadoras e informantes ao mesmo tempo deram novo sentido à realidade feminina do Ocidente. Elas puderam se ver na pesquisa e dizer o que ainda não havia sido dito a partir das relações entre subjetividades. 4044 Um outro aspecto salientado nessa mesma linha foi o relato de Schwade (1992) a respeito de sua experiência em campo. A autora narra a sua decepção e frustração quando vai a campo e percebe as limitações do trabalho acadêmico. Ela ressalta que, na sua experiência, a relação com o objeto foi se construindo em situações anteriores ao trabalho de campo, em um contexto de conflito envolvendo aspectos subjetivos. Schwade questionava a sua própria postura pessoal (p. 44) O que parece é que as relações de poder que se estabelecem na situação de pesquisas são mais sutis do que o mero exercício da postura acadêmica, que permite justificar a importância de nossos estudos. Para além dela, ocorre a mistura antropólogo/pesquisador com o pesquisador/pessoa. E a impossibilidade de distingui-los sugere que o exercício de poder se dá nas malhas finas da subjetividade, onde atua de forma imperceptível ao olhar superficial. Para podermos entender melhor uma subjetivação radical dos sentidos interdisciplinares em ciências humanas, temos de nos remeter ao significado da palavra alemã Bildung, que se refere não só a formação intelectual, mas também ao seu contexto cultural. É esse cultural-individual que favorece a subjetivação em ciências humanas. (BAIRON, 2002) Schwade (1992) continua nessa direção, dizendo que “somente a relação sujeito/objeto vista como relação pessoa/pessoa permite perceber que o poder é inerente [...] essas relações só aparecem no momento em que abandonamos a idéia de um objeto passivo, sem vida, que com seus gestos, atitudes e relatos, apenas nos mostra e recita dados.” (1992, p. 50) Nesse caso, estranhamento e familiaridades estão extremamente próximos na cumplicidade e inevitabilidade da ação da relação dialógica. A experiência de estranhamento é muito rica para o trabalho de pesquisa. Aliás, podemos dizer que é fundamental para que possamos lançar novos olhares para diferentes possibilidades de trabalho e de pesquisa. A interdisciplinaridade, como diz Klein (1990), empresta-nos outros olhares. 3. Considerações Finais Quisemos neste texto ampliar o olhar, ainda que brevemente, sobre o conceito de interdisciplinaridade, apresentando suas várias modalidades, seus avanços e os desafios que ainda permanecem. Embora haja inúmeras tentativas em defini-la, sua definição ainda é muito 4045 difusa e pulverizada,. Uma questão, no entanto, aproxima os estudiosos no que concerne à ação dialogal que se dá no intercâmbio e nas várias formas de relação de reciprocidade que se estabelecem. Nas pesquisas científicas, a interdisciplinaridade alarga nossos horizontes, pois favorece o estabelecimento de relações e conexões que um trabalho compartimentado não permitiria. Nesse sentido, todos os aspectos e questões que povoam o universo acadêmico possibilitam o olhar coletivo e diálogo entre as ciências: estudos culturais, questões de gênero, meio ambiente etc. Sem o desenvolvimento das práticas interdisciplinares, talvez, não tivéssemos dado crédito a então desdita história oral, ou ampliado os trabalho de campo da antropologia, nem mesmo teríamos os estudos tão elucidativos de tanto autores como os já citados neste artigo e outros como Foucault e Agamben, pois, no olhar rigoroso e unívoco dos historiadores, a história oral era identificada como anedótica, espécie de não-história. É relevante tanto o fato quanto as representações, visto que é na tensão entre a história e a antropologia que podemos interpretar os fatos, o senso comum em todas as suas nuanças: mítica, política, simbólica, social, religiosa etc. Soma-se a isso o fato de a interdisciplinaridade abrir espaço para que as subjetividades possam acontecer. Os pesquisadores podem não ter medo de reconhecerem suas emoções, seus afetos, suas alegrias e angústias nos seus campos de pesquisa ou no contato direto com o objeto. Quanto a senso comum, percebemos que a sua relação com a interdisciplinaridade é estreita. Ele é prático e pragmático, e está intimamente vinculado às experiências da vida. O senso comum enfrenta, garridamente, o conhecimento científico. Transparente e evidente, desconfia da opacidade dos objetivos tecnológicos, assim como consegue captar a profundidade horizontal das relações, tanto entre as pessoas, como com as coisas. Dessa forma, a interdisciplinaridade gera um movimento que rompe as já tênues fronteiras das ciências, esmaecendo, ainda mais, a fragmentação e a visão estanque da vida, das coisas, dos seres humanos e do próprio conhecimento. A pesquisa interdisciplinar tem a força da circularidade que, na sociedade do conhecimento, se cria e se recria entre as diversa áreas, não-linear, de forma que se possa transitar aqui e ali buscando pontos de fuga, portas de saída, pontos de fissura que deixam ver outras luzes e brilhos na composição de novas descobertas e novos conhecimentos. 4046 REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Fontes orais. Histórias dentro da História. In: Pinsky, Carla Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 155-202. BAIRON, Sérgio. Interdisciplinaridade: educação, história da cultura e hipermídia. São Paulo: Futura, 2002. BECKER, Howard. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1993. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1984. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. CUPANI, Alberto. Algumas reflexões sobre a interdisciplinaridade (Obra não publicada). 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