A gestão no terceiro setor Luciana Costa* Para efeito deste trabalho, vamos nos ater preferencialmente às ONGs vinculadas ao chamado campo democrático. Distintas, portanto, das ONGs prestadoras de bens ou serviços, que crescem ao ocupar o vazio deixado por um Estado deficiente na resposta às demandas da população. Estaremos falando de organizações da sociedade civil que exercem o controle democrático em favor do bem comum; que se orientam por valores, princípios políticos, e pela missão de construir um mundo sustentável, com justiça social, solidariedade e respeito aos direitos humanos, culturais, ambientais, sociais etc. Os problemas de administração das organizações do terceiro setor são tão antigos quanto elas próprias, embora a gestão dessas organizações seja uma discussão recente no universo das ONGs. Até a década de 70, termos como administração eram repudiados por sua associação com a cultura das empresas, do mercado e, portanto, com a lógica econômica, identificada como incompatível com uma organização sem fins lucrativos. “Há 40 anos, ‘gerência’ era um palavrão” nessas organizações, diz Peter Drucker (1990 – p. XIV), o pensador que é apontado como o pai da administração mode rna. Nas últimas décadas, ocorreram mudanças intensas nas organizações do terceiro setor. Nos anos 2000, a abordagem estratégica ocupa parte central na administração das ONGs. Fala- se tranqüilamente em planejamento estratégico, objetivos, metas e resultados. Mais do que falar, exige- se isso. O vocabulário banido no passado tornouse palavra de ordem. Logo que surgiram no Brasil, nos anos 50, as organizações governamentais tinham uma administração bastante informal, marcada pelo amadorismo e conduzida basicamente pelo militante. Hoje, verificamos a atuação cada vez mais profissional e a busca de uma administração eficiente e eficaz. A aura de romantismo que emanava das ONGs é substituída por um comportamento mais pragmático. Sem modelos próprios de gestão, as organizações sem fins lucrativos absorvem práticas e modelos do mercado e do setor público e tentam adaptá- los à lógica do terceiro setor. Certamente é enorme o vazio causado pela inexistência de teorias, modelos e mecanismos específicos para as ONGs – sejam eles administrativos, organizacionais ou gerenciais. Os modelos utilizados “não foram criados para atender organizações com a lógica de atuação do terceiro setor” (Drucker, 1994). As ONGs dependem do desenvolvimento de uma lógica própria, diferente das lógicas dos setores público e empresarial, para não perderem a coerência com a sua identidade e missão. Instituições do Terceiro Setor têm natureza e objetivos singulares: não têm fins lucrativos nem fazem parte do Estado, e se orientam por valores. As agências de cooperação internacional A forma de organização das ONGs e suas práticas rotineiras foram fortemente influenciadas pelas lógicas do mercado e das agências de cooperação internacional, que aportaram nos países em desenvolvimento trazendo “colaboração” financeira e também as “lógicas que vieram do Norte”. As agências influem no modelo e na cultura organizacional das ONGs e fazem uma avaliação das estratégias e dos objetivos dessas 1 organizações no momento de negociar a cooperação. Controlam resultados e conteúdos; apresentam exigências para conceder o financiamento. A parceria das ONGs latino-americanas com os múltiplos parceiros internacionais influencia decisivamente a forma e o conteúdo da ação dessas organizações. Esse quadro ficou ainda mais acentuado a partir do final da década de 80, quando as agências de cooperação começaram a reduzir a liberação de financiamento institucional – que dava à instituição a liberdade de decidir sobre a aplicação dos recursos – e a oferecer o financiamento por projetos, que vincula os gastos a objetivos e metas previamente acertados. Com os projetos e a cobrança das agências por resultados de curto prazo, a cultura pragmática ganha espaço nas ONGs. A demanda de profissionalização das ONGs foi colocada, em boa medida, pelas agências de cooperação, que passaram a privilegiar o perfil profissional especializado em detrimento do militante. A partir da década de 90, as organizações começaram a desenvolver uma gestão estratégica e buscar a institucionalidade, apostando na necessidade de ter competência e capacidade estratégica para sobreviver e garantir espaço político, num contexto de transformações, globalização e novos desafios. O profissionalismo alterou o perfil da “mão- de-obra” das ONGs: aos velhos ativistas juntam- se profissionais oriundos da elite, entre eles ex- funcionários públicos e trabalhadores do setor privado. Com o terceiro setor em expansão, as ONGs passam a ser vistas não só em sua dimensão política e ideológica, mas como um mercado de trabalho promissor. Os que atuam em ONGs não são apenas os antigos voluntários ou os românticos militantes, mas profissionais e técnicos acostumados a imprimir uma cultura pragmática às suas ações. A mudança de perfil do grupo sugere a possibilidade de que o ambiente tende a se tornar mais competitivo, mas os efeitos disso demandarão tempo para serem mais bem avaliados. É cada vez maior a semelhança entre a administração de ONGs e a de outros setores da economia, diz o consultor Mike Hudson. Segundo ele (Hudson, 1994, p. 16), “todos dependem de administradores competentes que precisam ter objetivos, controlar os recursos, trabalhar em equipe, ter desenvolvimento profissional e que estejam abertos a críticas e elogios”. A grande diferença que Hudson vê entre o terceiro setor e os outros é que nele há apenas uma frágil ligação entre os financiadores do serviço e os usuários: “O feedback que as empresas recebem dos usuários (ou a falta dele) e que o setor público recebe das urnas é muito fraco no terceiro setor”. Ele cita mais sete fatores que distinguem as organizações sem fins lucrativos: - é fácil ter objetivos vagos; - o desempenho é difícil de ser monitorado; - as organizações são responsáveis perante muitos patrocinadores; - as estruturas administrativas são complexas; - o voluntariado é ingrediente essencial; - os valores precisam ser cultivados; - não existe um resultado financeiro para determinar prioridades. Uma diferença básica entre organizações do terceiro setor e do mercado está no fato de que organizações sem fins lucrativos se articulam em diversas redes e, segundo Drucker, têm uma diversidade muito maior de relacionamentos fundamentais. “Nas empresas, com exceção das maiores, os relacionamentos vitais são poucos – funcionários, clientes e proprietários e é tudo. Toda organização sem fins lucrativos 2 tem uma multidão de públicos e precisa desenvolver um relacionamento com cada um deles”. (Drucker, 1990 – p.115) Na área do desempenho está uma grande diferença entre empresas e instituições, já que nestas o lucro financeiro não serve como medida de avaliação. As ONGs têm uma dificuldade histórica para monitorar desempenho, construir indicadores e avaliar resultados. “Essas instituições são agentes de mudanças humanas. Portanto seus resultados sempre são mudanças em pessoas – de comportamento, condições, visão, saúde, esperanças e, acima de tudo, de sua competência e sua capacidade”. (Drucker, 1990 – p. 82) São os recursos humanos que determinam a capacidade de desempenho de uma instituição, conseqüentemente a organização cresce quando desenvolve as pessoas, as ajuda a crescer. E para que as mesmas tenham bom desempenho, precisam ser estimuladas na sua força, em vez de terem as fraquezas enfatizadas. Peter Drucker aponta dois fatores para a eficácia da pessoa numa instituição: (i) que ela compreenda claramente o que irá fazer; (ii) que ela assuma a responsabilidade de decidir que precisa fazer. A gestão nas organizações não-governamentais Desenvolver modelos de gestão próprios para ONGs é uma tarefa desafiadora: depende do contexto, da análise de cada caso. “Na verdade, não haverá melhor modelo, mas tantos quantos forem as realidades de cada subconjunto de organizações, ou mesmo de cada organização.” (Mendes, 1999 – p. 61) Uma gestão estratégica tem três componentes essenciais, no entender de Mike Hudson: a missão, finalidade fundamental da instituição; os objetivos, que são as definições daquilo que a instituição pretende conseguir num determinado espaço de tempo; e as estratégias, constituída pela descrição de como os recursos humanos e financeiros serão aplicados de forma a alcançar os objetivos propostos. A missão é a razão de ser da instituição. A iniciativa de trabalhar com a missão virou moda no mundo empresarial ainda na década de 80 e foi absorvida pelo Terceiro Setor. Uma missão é perene, de longo prazo, mas precisa ser freqüentemente discutida, questionada e modificada para que possa estar compatível com o contexto. “A missão é algo que transcende o dia de hoje, mas orienta e informa hoje”, afirma Peter Drucker (1990 – p. 102). Ele sustenta que para atingir a missão é preciso cuidar de três fatores: oportunidade, competência e compromisso. É importante que a missão seja simples e clara para que as pessoas possam compreendê- la e se comprometer com ela. A missão se baseia nas crenças e nos valores comuns sustentados pelos que trabalham na instituição. Como são os valores o amálgama que sustenta a identidade da organização, sem eles a mobilização dos atores não seria tão forte. A cultura interna de uma instituição é fortemente influenciada por esses valores, bem como pelo próprio estilo pessoal dos dirigentes. Não pretendemos, aqui, esgotar a compreensão da cultura organizacional de uma ONG, o que implicaria aprofundar uma análise sobre as influências externas e internas e sobre os vários elementos temporais e espaciais envolvidos. Queremos apenas destacar a importância dos valores comuns, da atuação corajosa das lideranças e da abertura de espaço institucional para que se desenvolva uma cultura interna fundada nos princípios que conformam o discurso político das 3 instituições do campo democrático: justiça social, defesa dos direitos humanos, democracia, participação etc. A cultura interna das ONGs precisa ser discutida, analisada. Um traço marcante nas organizações não-governamentais brasileiras é o personalismo. O fundador tem uma espécie de status de “dono” e muitas vezes desempenha função vitalícia. A gestão democrática depende, em boa parte, do estilo pessoal de quem dirige; um estilo que influencia a cultura organizacional. Trata- se de uma prática contraditória com a natureza pública e coletiva das organizações e que se torna obstáculo à construção da identidade do grupo, configurando- se como fator de ameaça à institucionalidade. Augusto de Franco aponta a reflexão: “O que são as ONGs? ‘Pequenos castelos’ ou organizações democráticas? Entidades centralizadas por indivíduos (ou ‘dinastias’) ou estruturadas de modo descentralizado?” (Franco, 1994 – p. 64) As organizações não- governamentais, reconhecidas pelo importante papel que desempenharam no processo de abertura democrática, sempre foram avaliadas com ênfase na relevância de sua atuação externa. A tendência de ver os acertos com lentes de aumento e as falhas com vistas grossas começa a ceder espaço para a discussão da cultura interna, até então pouco estudada e debatida. "Não podemos nos deixar embalar pelo chamado ‘mito da pura virtude’ de que normalmente se reveste esse setor; apesar da pureza dos fins, a natureza humana é propensa ao erro e não se tem como fugir a essa realidade". (Rodrigues, 1977, p. 40) Um modelo de gestão para ONGs pressupõe a descentralização e a participação de todos no projeto comum. É por meio da participação que o grupo se compromete com o modelo adotado, na medida em que o compreende e que percebe nele as condições democráticas para que cada um, direta ou indiretamente, possa influenciar os destinos da organização. Sem participação e democracia internas, fica difícil implementar as mudanças necessárias para que a organização acompanhe o atual contexto, que se modifica de forma acelerada graças aos processos de globalização e de novas tecnologias de comunicação e informação. A globalização alterou os processos internos das instituições. Com o avanço da c omunicação e da informática, dominar a gestão da informação e do conhecimento tornou- se fator decisivo para acelerar e qualificar o fluxo de informações internas, de forma a permitir um processo decisório pautado na análise cuidadosa das variáveis internas e externas, bem como a otimização dos recursos e do impacto das ações políticas em defesa do bem comum. Esse tipo de ação, com raiz na metodologia empresarial, é considerado fundamental para uma gestão estratégica por um número crescente de ONGs. Mudança e participação Estar atento à necessidade de mudança é um imperativo dos novos tempos. Mas as mudanças dependem, essencialmente, de apoio interno. O caso do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) é paradigmático quando se analisa a gestão de ONGs. O Ibase foi fundado em março de 1981, por exilados do regime militar que voltaram ao país com a anistia política: o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o tecnólogo Carlos Afonso. A visibilidade alcançada pelo Ibase se apoiou, em grande parte, na figura do Betinho, tendo como ação institucional mais conhecida a campanha da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. 4 Com papel relevante na história política brasileira, o Ibase sempre teve uma visão de vanguarda, com propostas de mudanças ousadas, voltadas para parcerias com o público e o privado e para inovações organizacionais. Buscando inovar, foram feitas alterações na estrutura e no funcionamento da organização que implicaram inclusive a demissão de pessoal. A instituição lançou-se no mercado de serviços de alta tecnologia, disputando espaço com grandes corporações nacionais e internacionais. Mas o estilo ousado e as soluções criativas acabaram tendo um custo alto. Tendo em vista que os conteúdos não foram compreendidos, tampouco o ritmo das transformações impostas, surgiram os conflitos e a crise de identidade interna. Os processos de mudança são considerados “mais conflitantes, no caso do Ibase, em razão do modelo centralizador de implementação adotado”. (Mendes, 1999 – p. 19) O risco para a instituição, neste caso, não é o de propor mudanças e não conseguir implementá- las devido às resistências internas. Mas é, sim, o de criar um projeto de mudança sem gerar a cultura da mudança, que coloque todos na condição de coresponsáveis. Participação, democracia, crenças e valores comuns são palavras-chave numa organização não- governamental. A gestão estratégica não apenas mede os resultados, verifica as estratégias, checa se as metas foram atingidas da melhor maneira, com eficiência e eficácia; mas também motiva as pessoas, cuida para que o trabalho de cada uma esteja ajustado à estratégia da instituição e que o mesmo seja motivo de realização e satisfação. O líder tem importante papel nesse processo. Cabe a ele dar o exemplo; avaliar e estimular pessoas; gerenciar relacionamentos; perceber onde estão os conflitos e as tensões e re solvê- los; prever a crise para melhor enfrentá-la; promover a discussão sobre a missão, refocalizá- la; e, principalmente, ter visão de futuro. Os processos de participação e comunicação são tão importantes numa organização não-governamental que Peter Drucker chega a afirmar que 60% de todos os problemas administrativos resultam de ineficiências na comunicação. De fato, as pessoas que acreditam numa causa querem ter informações e participar da tomada de decisão. Para que se sintam informadas e motivadas, a instituição deve garantir um fluxo de comunicação permanente e horizontal, por meio de um sistema interno dinâmico. As palavras de Drucker merecem ser alvo de profunda reflexão: “A instituição sem fins lucrativos deve ser baseada na informação. Ela deve ser estruturada ao redor das informações que fluem dos indivíduos que executam o trabalho para aqueles que estão no topo – os responsáveis finais – e também ao redor das informações que fluem para baixo. Esse fluxo de informações é essencial, porque uma organização sem fins lucrativos precisa ser uma organização de aprendizado”. (Drucker, 1990 – p. 132) Referências bibliográficas DRUCKER, Peter. Administração de organizações sem fins lucrativos - princípios e práticas. Editora Pioneira, São Paulo, 1990 FRANCO, Augusto de. Redefinindo ONG, Belo Horizonte, 1994 HUDSON, Mike. Administrando organizações do Terceiro Setor. Makron Books, 1994 5 MENDES, Luiz Carlos. Visitando o "Terceiro Setor" (ou parte dele). Texto para discussão nº 647. Ipea, 1999 RODRIGUES, Maria Cecília Prates. Terceiro Setor: para que serve? Conjuntura Econômica, FGV, São Paulo, 1997 * Luciana Costa é assessora de Comunicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) 6