COMENTÁRIOS AO POEMA DE JOÃO DA CRUZ
A CHAMA VIVA DO AMOR
A palavra é realmente uma grande invenção humana para a comunicação, entretanto
como é difícil relatar determinadas situações com estes punhados mágicos de letras, acentos
e outros sinais. Muitas vezes se fala melhor com o silêncio! Contraditório? Não, verdadeiro
“A respeito daquilo que não se pode falar, deve-se guardar silêncio”1. Neste trabalho
examinar-se-á as canções de João da Cruz de um de seus mais lindos poemas “Chama viva
de amor”.
As palavras transbordam nos seus sentidos próprios como um vaso cheio, que vai
recebendo mais e mais água para deixá-la, simplesmente, transpor os seus limites de forma
desordenadamente linda. Um linguajar que só um artista poderia ousar: “Oh! Chama de
amor viva !”. É como o próprio João da Cruz escreveu, um poema cheio de exclamações e
interjeições para melhor comunicar a suprema emoção que de outra forma não mais
poderia.
João da Cruz faz uso de uma forma muito original de metáforas. É uma linguagem
simbólica. Como tal é necessário, partir de uma interpretação literal inicial. Depois ir além
desta interpretação e atingir outro patamar que é apreender o seu significado. Isto tem de
ocorrer porque a linguagem mística não pretende dar um significado científico aos símbolos
que usa, não pretende fornecer dados mas possibilidades, daí ser fantasiosa, exagerada e
absurda ou paradoxal. Vê-se que a linguagem denotativa com suas formas lógicas e
racionais não é capaz de descrever as experiências místicas. É preciso lançar mão de
simbolismos, mais adequados exatamente por serem ambíguos aguçarem a imaginação do
intérprete. E isto João da Cruz faz com maestria.2
Mircea Eliade menciona em seus estudos o uso da luz para simbolizar o
êxtase nas culturas judaico-cristãs. Nas narrativas dos místicos destas culturas este sinal de
luz, de fogo sempre aparece. Em Moisés diante da sarça ardente, o fogo de Deus marcou-o
de tal forma que ao descer da montanha seu rosto resplandecia a sua “glória” e brilhava
1
2
. Jean-Yves LELOUP. Deserto desertos p. 14.
.Eduardo GROSS, Revista Numen V.2, N i 1999, p.46 e 47.
com uma luz tão intensa e insuportável que os israelitas não conseguiam sequer olhar para
ele.
O fogo e o amor se igualam, neste jogo de metáforas. Ambos personificados agem.
Fogo e amor são agentes transformadores – assim como o fogo, por onde passa tudo
modifica tudo também o amor por onde passeia transmuta o mal no bem, a tristeza em
alegria, a morte em vida. Esta palavra, chave de mistério, “fogo” é usada por Pascal e por
João da Cruz e muitos outros místicos na experiência mística, transformadora de “sentir” a
presença do Inefável.
A linguagem, apesar de não satisfazer plenamente procura passar os seus
sentimentos, difícil tarefa mesmo sendo realizada por João da Cruz. Como descrever a
visão de uma poderosa e avassaladora luz? Como descrever com “pobres” palavras
humanas a riqueza de uma experiência sobre-humana? Não há como escrever sobre este
“silêncio”!
A dificuldade de se fazer uma interpretação sobre o texto de João da Cruz, se
apresenta tanto nos poemas quanto na sua explicação. É um desafio enfrentar a linguagem
recheada de ricas metáforas e como aponta “lucidamente Cristóbal Cuevas, o uso das
exclamações é ‘ el único vector de escape para eludir el silêncio’ ”3.
João da Cruz leva o leitor deste poema a uma enriquecedora viagem à experiência
de seu encontro com o Amado, à sua intimidade. O caminho desta aventura vai sendo
desvendado através de narrações poéticas tão magistralmente feitas em suas obras: Cântico
Espiritual, Noite Escura e por fim Chama Viva de Amor. Seguindo os indícios que o santo
deixa escapar vai-se descobrindo a personalidade deste grande Doutor da Igreja,
reformador, místico e poeta.
Ainda que não tivesse ele dado o título às canções, ao lê-las adivinhar-se-ia, pois
são de fato “Canções feitas pela alma na íntima união com Deus”. João da Cruz humaniza,
personifica a mão, o fogo, a luz, essa chama. De seus versos ela salta não só viva mas
também com movimentos - atrai, convida, fere mas com ternura abraça . No correr da pena
o poeta vai colocando aqui e ali todos os seus sentidos, com ele o leitor se vê diante de
uma torrente de palavras que se contradizem mas que também dizem muito.
3
. Luce BARALT, Asedios a lo indecible, p. 190.
Na primeira canção um
suave desvirginar, uma
tépida declaração de amor
extasiado, uma alma agora calma, aliviada pela união que tanto esperou. Na segunda
estrofe chamada por João da Cruz de canção, de novo ele corporifica, desta vez é a mão de
“toque delicado” tão diferente daquela que rude e duramente tocou Jó. Mão, que é a figura
personificada do Pai e que, se mata seu “toque” sutil não o faz de fato mas, transforma a
vida-morte numa desejada morte-vida. Nas canções finais- terceira e quarta- a alma retira
a poeira que lhe embaça a visão, que a impede de ver e se ver tal qual foi criada. Purificada
pode contemplar a sublime obra que Deus fez nela e para ela. Pode dar tanto quanto
recebe, se igualam no amor, Amado e amante.
A linguagem mística, tanto nas culturas judaico-cristãs como na islâmica, “não pode
transcrever uma experiência sem interpretá-la e mediatizá-la, por mais que o místico lute
contra os limites da linguagem humana, incapaz de abordar a transcendência”4. Assim a
difícil tarefa de se falar sobre o poema místico de João da Cruz e os limites da própria
linguagem humana e da autora destes comentários impõem a ela, autora, uma dificuldade
de dizer o poema de forma plena e inaugural, mas o desafio foi lançado e aceito!
O POEMA “CHAMA VIVA DE AMOR” DE JOÃO DA CRUZ
CANÇÃO I
Oh!chama de amor viva
Que eternamente feres
De minha alma no mais profundo centro!
Pois não és mais esquiva,
Acaba já, se queres,
Ah! Rompe a tela deste doce encontro.
CANÇÃO II
Oh! Cautério Suave!
Oh! Regalada chaga!
Oh! Mão tão branda! Oh! Toque delicado
4
-Bárbara KURTZ, in Faustino TEIXEIRA (Org.) No Limiar do Mistério: Mística e Religião. P. 13
Que a vida eterna sabe
E paga toda dívida!
Matando, a morte em vida me hás trocado]
CANÇÃO III
Oh! lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas de sentido,
- Que estava escuro e cego, Com estranhos primores
Calor e luz dão junto a seu Querido!
CANÇÃO IV
Quão manso e amoroso
Despeitas em meu seio
Onde tu só secretamente moras:
Nesse aspirar gostoso,
De bens e glória cheio
Quão delicadamente enamoras!
O ENCONTRO DOS AMANTES
A CHAMA VIVA DO AMOR DE JOÃO DA CRUZ
ANÁLISE MÉTRICA E LITERÁRIA POEMA
São 24 versos que compõem o poema. Mantém o poeta místico em cada
estrofe/canção, a mesma forma de compor 1º 2º 4º e 5º versos são de sete sílabas com a 6a
sílaba tônica e os 3º e 6º versos onze sílabas e com a 10a sílaba tônica. Os versos em sua
maioria, na língua original, contêm rimas “pobres” à exceção da 2a estrofe ou Canção I
quando rima suave e sabe e delicado com trocado e da 4ª estrofe ou Canção IV quando
rima seio e cheio, respectivamente 20º e 23º versos. As rimas são do 1º com o 4º, do 2º verso
com o 5º verso e do 3º verso com o 6º verso. Este fluxo de rimas dá ao poema uma
cadência musical de rara beleza que leva o pensamento a uma quase dança e é mantido nas
quatro canções (estrofes) do poema. O místico mantém a mesma seqüência de rimas
impregnando todos os versos de sonoridade e emocionada harmonia dentro de uma métrica
perfeita que lhe dá ritmo e leveza.
CANÇÃO I
Oh!chama de amor viva
Que eternamente feres
De minha alma no mais profundo centro!
Pois não és mais esquiva,
Acaba já, se queres,
Ah! Rompe a tela deste doce encontro.
A chama do Amor vivo é uma narrativa “iluminada” da experiência mística de João
da Cruz. Como toda esta literatura é farta em expressões fortes que, às vezes, conseguem
passar ao leitor um pouco da sensação experimentada pelo místico5. Muitos místicos são
obcecados com similar iluminação comparando-a, mesmo que à distância com a luz que
circula o sol, que queima os olhos e os impede de abrir embora o queira. “O motivo da
iluminação é comum em toda mística islâmica” 6 e João da Cruz, perigosamente, associou
suas teorias com a “espiritualidade iluminada” (seita perseguida do séc. XVI na Espanha).
Esta iluminação, que no Islamismo não é tão estranha recebe, segundo Luce Baralt, vários
nomes dentre eles: el zawã; d-excesso de luz no coração.7
Há diferenças entre essa luz, esta “chama”, que queima no fogo do amor e aquela
que ilumina por sua beleza na luz da contemplação, segundo Huywiri, (tratadista do século
XI), João Cruz, neste canto primeiro celebra a íntima relação de sua alma com Deus.Agora
não mais, com ansiedade e louca procura. Já rompidas as fronteiras que o impedem de estar
5
. Diz-se “às vezes” porque ao leitor não afeito às coisas da mística, dá-se a impressão de palavras desconexas
ditadas por um estranho estado de desordem mental, de um desprezo , aliás inexistente, pelas coisas do mundo, de
uma alienação total.
6
. Luce Lopes BARALT. “Asedios a lo indecible”, p. 192.
7
. Ídem, p. 193.
junto ao amado. A busca acabou. O encontro aconteceu. A estrutura lingüística feminina dá
espaço ao protagonista. É a voz do poeta masculino que se ouve. O feminino cede lugar ao
masculino. A poesia vai se desenrolando com este estranho casal, formado de uma chama
viva e um ser humano, só na linguagem mística tal incongruência é possível. E segundo
Luce Baralt neste poema João da Cruz é mais direto que “simbólico” e assim, para ela,
menos poético.
Observa Luis Miguel Fernandes que João da Cruz demonstra uma “instabilidade
ontológica” fundamental: parecendo homem numas ocasiões e mulher em outras. O poema
não tem um centro definido, um movimento continuo em direção a ele mesmo. Tanto o
autor dos versos como o interlocutor se dirige indiscriminadamente para um não centro, e
isto por que não podem se distinguir ontologicamente um do outro. É a linguagem
metafórica, e por isso mais bela, dos poemas de João da Cruz cuja interpretação é tão difícil
quanto motivadora. (Um poeta que também é mestre). Um grande mestre- poeta. No poema
“A chama de amor viva” já não há caminhos a percorrer, a jornada chegou ao fim. Os
obstáculos foram derrubados. É um poema lindíssimo, onde João da Cruz fala da meta
atingida e não mais dos caminhos a serem percorridos.
Na leitura do poema deve-se ter sempre em mente as explicações que o próprio João
da Cruz tece em seus comentários. Neles há a presença dos vários sentidos: como se junto
com a visão tivesse também a impressão tátil e a gustativa. Uma proximidade tão grande da
cena real que a impressão que se tem é que de fato há uma simples tela “finíssima” que
separa amante e Amado. Como se já não tivesse vivo, presente neste mundo mas passando
da existência terrena, rompendo a “tela dessa vida mortal” que entre eles se interpõe. É um
poema conforme o poeta mesmo relata mesclado de desconsolo, de humildade e de
constrangimento. Não há mais caminhos a serem descritos mas a união transformante. É a
amada transformando-se no Amado. Desde o primeiro verso do poema, que é um grito
dilacerado irrompendo do mais profundo do seu ser, vê-se uma vontade imperativa, “a
grande tentação”, que têm os místicos de transmitir aos demais seres humanos a sensação
de arder ante tal experiência.
Diz Maria Jesús Mancho Duque “o fogo”, ansiado na “Noite”, arde na “Chama”.
Também citado por Baralt, Bernard Sesê comenta que “a sensação de luz não se distingue
de sua privação na noite escura”8. É a mesma sensação de nada ver causada tanto pela
força da luz que cega como pela tenebrosa escuridão que tudo esconde. É uma passagem
magnífica onde as palavras tentam passar as impressões que os fatos vivenciados
provocaram no místico. Fala com um amor e com uma admiração ímpar ante a chama que
acaricia e ao mesmo tempo fere. As palavras são frágeis e não conseguem descrever a
dimensão do encontro que está muito além do domínio de percepção dos sentidos. É o
abençoado João com o talento especial que só os místicos possuem que pode provar o que
nem a Ciência e nem a Metafísica podem fazer. A palavra é só palavra.
Muitos temas essenciais da “Chama do amor vivo” são abordados antes na “Noite
Escura” assim, segundo Giovanni Caravaggi, os dois textos podem “ser considerados como
frutos de experiências complementares”. Na “Noite Escura”, a alma caminha às cegas, na
“Chama” o oposto se dá, não mais caminha mas desce incendiada, diretamente ao coração
iluminado da amada. Na “Chama” a consciência se dilata a tal ponto expandida que se tem
certeza de estar no mais alto grau da personalidade do homem, de estar no limite das
possibilidades humanas. O que os filósofos não conseguem pela razão os místicos obtém de
súbito, de acordo com o filósofo Henri Bérgson.9
Para captar a mensagem de João da Cruz, a celebração do seu transformar último
em Deus é necessário atentar para o fato que se está aceitando o infinito, vicariamente, com
ele. É quando, na poesia, João da Cruz humaniza a língua de fogo, que é em essência amor
e vida e que
sendo vida
fere e por ser amor o faz com doçura; vai aos poucos
personificando este fogo, que assim, adquire vida autônoma e livre. No plano físico o fogo
queima, produz dor inigualável mas também cura, cicatriza. Usando-o como metáfora ele
quer demonstrar que a ferida provocada pela união é, é ao mesmo tempo, irresistivelmente,
dor e prazer, é bem vinda, desejada e transformante. Esta “ferida” doce e libertadora
também, paradoxalmente, oprime com ternura. João da Cruz, às vezes, emissor e outras
emissora, usa de figuras e comparações, tentativas para descrever o indescritível, daí os
dislates, as “ambigüidades” encontradas na “Chama” e também nos seus outros poemas.
O grito mesclado de prazer e também de dor que dá início ao poema “Oh! Chama
de amor viva!” é dirigido a um personagem ativo, o fogo, que tem, não só vida mas
8
9
. Luce Lopes BARALT, Asedios a lo indecible, p. 197.
. Idem, p. 198.
também movimento! como se fosse independente e sem causa no plano secular. É o
próprio Espírito Santo esta chama, o esposo. Volta-se à pessoa o fogo como o amante que
“ternamente fere”. A chama da união que vem e arrebata a alma e onde se unem e se
levantam os atos da vontade. No estado de êxtase, a alma nada pode fazer e é o Espírito
Santo que move esta alma e portanto todos os seus atos não mais são de autoria humana
mas divina. A chama que queimando, refrigera a alma dando-lhe uma existência unida ao
Espírito. “Seus atos são a chama que se levanta do fogo do amor”10. Se nem todos gostam
dessa linguagem é porque, diz João da Cruz, ainda não estão aptos para perceber a beleza e
o mistério nela encerrados. Para ele é uma linguagem cheia de gostosura que enche os
ouvidos e o coração, palavras do filho de Deus, transformada em chama de amor.
Impressão cara em todos os sentidos.
“Que ternamente feres”
Neste verso, João da Cruz, na sua explicação, se interroga: Como ferir a alma se ela
já está totalmente cauterizada pelo fogo do amor? E de imediato, responde justificando a
mensagem, que sendo viva, dinâmica continua a atuar com suaves toques ternos, “labaredas
tocando a alma”.11 Ao se observar o fogo consumindo a madeira, ver-se-á saindo dela,
mesmo em brasa, labaredas dançando e tocando o ar, estalando em faíscas no escuro da
noite fazendo-a clara e ternamente cálida.
“De minha alma no mais profundo centro!”
Neste verso João da Cruz explica onde acontece a festa da luz, da língua de fogo
que traz a iluminação “na substância da alma, onde nem o centro do sentido nem o
demônio podem chegar”12. É onde Deus opera sem que a alma concorra para isto, ela
depende total e completamente do Amado. Dá a entender, ao falar em centro , que na alma
há outros “centros”. Assim João da Cruz, precisa explicar e o faz quando traduz “O centro
da alma é Deus”, de outra forma o leitor teria dificuldades em entendê-lo. Estar no centro
não significa, literalmente “estar no ponto central”, pois a alma como substância espiritual
não tem interior ou exterior, centro ou periferia, o centro da alma é pois “o ponto extremo
de sua substância e virtude, e onde se encerra a força de suas operações e movimentos, e
10
. São João da Cruz- Obras completas, p. 829.
. Idem, p. 831.
12
. JOÃO DE CRUZ, Obras completas , p. 832.
11
que não pode ser ultrapassado”13 . Este centro é o Amado. O amor é o que faz a união com
Deus, assim quanto mais amor mais “se penetra em Deus e nele se concentra”.
No arrebatamento o místico é levado a um estado em que a razão e o entendimento
não estão mais presentes, fica impossível “cantar louvores”. É na poesia que o “buscador”
registra seu êxtase, ainda assim, utilizando palavras que não conseguem expor com
liberdade o sentimento e como Rumi diz, estando desta forma, tudo o que se diz e escreve
se torna “inoportuno” “inadequado”.
Quando João da Cruz se refere à chama que fere o mais profundo centro da alma
não quer com isto dizer que é como a visão beatífica da outra vida, cuja glória será muitas
vezes maior. Não lhe é possível, nem tendo chegado tão perto da perfeição, alcançar o
estado perfeito da glória eterna embora o estado de gozo seja semelhante e seja no grau
máximo que se pode atingir nesta vida.
A chama que fere ternamente fere, se refere à ação de Deus em algumas almas, e
isto não é improvável que ocorra pois o Filho fez a promessa (Jó 14-23) aos homens. E
dizer este verso seria o mesmo que exclamar:
“Oh! Amor em brasa, que com teus
amorosos movimentos, de
uma forma
deliciosa me glorificas, conforme toda a
capacidade e força da minh’alma”.14
João da Cruz humaniza, torna concreto o que Pascal deixou numa abstração pura.
Em cada um de seus poemas João da Cruz associa a sua transformação última “na mirada”.
O intercâmbio das almas se faz com a troca de olhares e é essa busca e, esse encontro com
o olhar desejado do amado que o místico anuncia, e que mesmo lendo, atentamente, seu
ensino-poesia, não se consegue apreender completamente.
Neste poema, o que havia sido antes ansiado, um futuro de angustiante expectativa
agora se torna presente. A noite escura se transforma em luz branquíssima que cega ao
mesmo tempo em que carregada de todas as cores, revela. Sem dúvida a experiência mística
é uma experiência de luz. Em várias passagens místicas da bíblia e da mística oriental vê-se
esta “iluminação”, esta “chama”, este “fogo” transformador.
13
. Idem, p. 833.
14
. Ibidem, P. 837.
João da Cruz em seus poemas-revelação demonstra a incapacidade humana de ver
“o amado”, de perceber a “Visão Total”. A profusão infinita de imagens caleidoscópicas do
“Cântico” equivale no fundo à escuridão da “Noite” e à luz absoluta da “Chama”. Não há
como descrever tal experiência, esta “concentração última” é indizível. Mas João a tem, vê
com enorme clareza e sente na alma esta chama viva de amor15.
“Pois não és mais esquiva”
Neste verso o santo, quer dizer que agora a angústia que o afligia já não o aperta
mais. Nesta união com Deus o mesmo amor que antes investia contra a alma purgando-a
dos males com sofrimento, queimando suas imperfeições é o mesmo amor que agora a
glorifica. Aqui faz uma comparação: primeiramente o fogo fere a madeira, secando-a,
tirando dela o que impede a abrasão, vai consumindo-a até transformá-la em brasa e fogo, o
mesmo ocorre com a alma que padece até que se vê livre das imperfeições e está preparada
para se transformar, sofre até aprender e apreender. Esta chama, a princípio, mostra-se tão
afastada que a alma pode repetir como Jó “Clamo a ti e não me ouves, ponho-me diante de
ti, e não olhas para mim. Trocaste-te em severo para mim e com a dureza de tua mão me
combates”16. Mas a “crueldade” é tão somente para aparar as arestas da alma e levá-la
depois à união com o Amado. A alma, em sofrimento, reconhece sua “pobreza” em
contraste com a “riqueza” da chama. O penar lhe provoca o autoconhecimento, a abranda,
pacifica e a esclarece. É uma pena semelhante ao purgatório, diz João da Cruz.
“Acaba já, se queres”
É o término com a consumação do casamento espiritual. A transformação no Um, só
determinada pela vontade da Deus - “se queres”. Somente assim o seu desejo se aquietará,
saciado e amparado por Deus. Todas as maravilhas do “cantares” agora a alma não mais
anseia porque já as possui. “Venha nós o vosso reino”; “Seja feita vossa vontade”; “Acaba
já, se queres”.
“Ah! Rompe a tela deste doce encontro”
A tela representa os entraves, tudo o que impede a união entre alma e Deus. João da
Cruz anuncia as três telas – a primeira tela é temporal- onde estão contidas as criaturas,
todas; a segunda contem todas as inclinações e operações naturais e a terceira tela é
sensitiva- a união da alma com o corpo. Há de se romper as duas primeiras para se chegar à
15
16
. Luce López BARALT, Asedios a lo indecible. P. 201
. Livro de JÓ ,30-20,21.
posse de Deus na união, quando tudo o que é mundano está negado e renunciado. Já houve
a transformação, provocada a duros golpes pela “chama”, das operações naturais da alma
em operações divinas, não sem dor, ânsia, sofrimento e rigor. Esse encontro se efetiva com
a morte, não a morte natural como se conhece mas um morrer suavíssimo e doce
assemelhando-se “ao conto dos cisnes que canta mais suavemente quando vai morrer”17.
Luce Baralt, em sua obra “Asedios a lo indecible”, cita a dimensão erótica sexual do
verso, impossível de não ser percebida: “São João tem contado ao amor transcendido
servindo-se de similares eróticos humanos”. No verso Baralt, diz adivinhar possíveis
conotações sexuais que vão se acentuando na medida que vai desfiando os versos.18
Neste mesmo verso Luce Baralt diz adivinhar possíveis constatações sexuais e que
vão se acentuando na medida que vai desfiando os versos. Pede num grito, que esta
deliciosa experiência não termine e que se prolongue pela eternidade. Um amor, que
poeticamente cantado, faz o leitor sair do plano poético sobre-humano e cair no plano
humano; o amor divino tornado erótico. Uma “linguagem poética
quintaessenciada”,
anuncia Luce Baralt. João da Cruz ainda ensina: primeiro porque romper a tela e não cortar
ou acabar? – para falar mais explicadamente pois é mais próprio do encontro romper do que
cortar, segundo porque o amor gosta de mostrar sua força; terceiro por desejar que a ação
seja rápida;e por fim que se acabe rápido a tela da vida. É desse modo que João da Cruz
quer que se entenda este verso, daí porque usa o termo forte “rompe”. É assim que Deus se
dá ao ser humano preparado, de forma forte, rápida. E assim também o quer a alma
enamorada. E Deus se apressa e dá “investidas divinas e gloriosas”. É o doce encontro,
João da Cruz pede que a morte não o pegue em idade avançada mas já, para que desde
agora possa ele amar com plenitude e fartura. Mais uma vez as palavras se mostram
incapazes de comunicar por via racional a totalidade da experiência.
17
. Aqui João da Cruz, à maneira dos poetas compara a morte dos santos à morte do cisne, citando o Sl 116,15:
“Preciosa é aos olhos do Senhor a morte de seus santos”.
18
. Luce López BARALT, Asedios a lo indecible, p. 204 e 205.
CANTO II
Oh! Cautério Suave!
Oh! Regalada chaga!
Oh! Mão tão branda! Oh! Toque delicado
Que a vida eterna sabe
E paga toda dívida!
Matando, a morte em vida me hás trocado
Uma estrofe que transmite “uma exclamação emocionada”, um prazer extremo que
é também agonia. Um momento ímpar. Para Luce Baralt, “impossível não associar esta dor
física com a ruptura da tela/hímem”. Um paradóxico “dor suave” “regalada chaga”! “um
sem sentido que fala por si só”. Ao falar em “cautério” associa ao procedimento médico
que queima para curar. E a cura espiritual também “queima”. O fogo agora se transforma
em chaga e como chaga, ferida viva, não uma chaga qualquer, explica o próprio poeta
místico, que “como bom mestre repete sempre a lição”.19
Oh! mão tão branda! Oh! toque delicado!
Novamente o místico corporifica as imagens impressas na sua mente e desta vez de
uma maneira mais material. Sugere, uma similitude com o amor humano.20 João da Cruz
dialoga com própria alma. Ao colocar “gosto” nas imagens ele invoca o que foi visto
apartado do sujeito, dentro do sujeito. A imagem gustativa é mais próxima, incorpora-se
protagonista. É uma união feita através do processo de “alimentação sublime”. Nesta
estrofe o teólogo tem mais presença que o poeta “ao falar na vida eterna”, no mistério da
morte que ao encerrar a vida, outra vida traz, nesta esperança que só o crente tem. Ao falar
“oh! cautério suave” faz referência ao Espírito Santo, terceira pessoa da SS. Trindade; o
fogo que abrasa, fere e ao mesmo tempo cura. Se o que fere é suave, suave também a chaga
que provoca, daí referir-se a ela como feliz, ditosa. Quando diz: Oh! mão tão branda! Oh!
toque delicado! refere-se ao Pai, informa João da Cruz na explicação necessária para o
entendimento do leitor. Aí o teólogo mais uma vez se mistura e se adianta ao poeta, falando
19
. Karen ARMSTRONG. Uma história de Deus. P. 215.
. Essas personificações colocam sentimentos e emoções humanas em coisas. Esse personalismo com ardentes
simpatias e sensações próprias dos seres humanos foi muito importante para o início da adoração dos deuses .
Para muitos estudiosos um indispensável estágio do desenvolvimento religioso e moral. Os profetas de Israel
atribuíram suas próprias emoções e sentimentos a Deus. O cristianismo fez de Jesus, uma pessoa humana o centro
de sua vida religiosa, de uma forma única na história da Religião!
20
da primeira pessoa da Trindade. Um toque que pode ser duro e terrível mas que nele foi
como uma brisa suave acariciante.
Ao homem comum não cabe saber desta experiência de Deus, pois seus conceitos
são necessariamente humanos e inadequados quando se trata do Deus em si. E mesmo que
o místico tente passar, pela poesia e/ou prosa o seu conhecimento, Deus continua inefável e
indescritível devido a sua absoluta simplicidade. Os versos de João da Cruz nos dizem que
diante de Deus só o silêncio disciplinado pois Ele só pode ser “conhecido” mediante a
experiência mística e religiosa. Quando insiste na delicadeza do toque divino ele contrapõe
sua força e o poder deste mesmo toque só perceptível àquele que se alheia ao mundo e se
volta totalmente para dentro de si mesmo. A experiência vivida dá a João da Cruz um
conhecimento da vida eterna, mesmo que não integralmente. Sugerem os versos “a
intimidade e a proximidade estremecedora dos encontros amorosos” conforme descreve
Luce Baralt.
Ao citar a “dívida paga” João da Cruz relembra o estatuído nos Atos dos Apóstolos
(14.22) “temos de entrar no reino de Deus através de muitas tribulações”. Assim paga com
sofrimentos, dor e purificação sua dívida para depois receber o que foi prometido pelo
Esposo. Todos os trabalhos pelos quais passa a alma servem para abrir caminho até o
Amado. É o fogo e o martelo que transformam a alma a fim de possibilitar a união. A
alma assim transformada não se revolta com o sofrimento mas ao contrário recebe-o bem
compreendendo que foi para sua glória e que o padecimento agora é prazer. Toda a
tribulação do corpo e da alma agora desaparece. A sua morte transformada em vida,
acontece a troca – a vida humana é substituída pela sobre-humana, a matéria pelo espírito
Alcança a vida nova com a morte da vida velha. Essa nova vida, a perfeita união com Deus.
CANTO III
Oh! lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido
- Que estava escuro e cego, Com estranhos primores
Calor e luz dão junto a seu Querido!
Estas enigmáticas lâmpadas de fogo que João da Cruz canta são favores de Deus ao
seu servo, os conhecimentos que lhe passa e o amor que recebe. Esclarece-o e o enche de
amor e assim pleno
capaz também de amar e resplandecer perante seu Amado. As
lâmpadas humanizadas dão amor e conhecimentos, calor e luz, iluminam e aquecem. João
da Cruz quer através destes versos mostrar que Deus, quando lhe apetece deixa que a alma
que a Ele se une, perceba suas virtudes e suas grandezas inumeráveis, produzindo cada uma
delas o brilho da lucidez na alma e o calor do amor. Assim dessa forma o homem conhece
todos os atributos de Deus, impossível de contê-los dentro de termos humanos. É a viagem
mística que só o ser humano “digno e abençoado com certas qualidades”21 é capaz de
empreender.
Quando numa imagem contraditória, compara-se a água e o fogo como doadoras
de alegria demonstra-se a tenra capacidade das palavras de descrever com fidelidade toda a
experiência pela qual passou o místico. A linguagem, sempre que se prende a conceitos,
meramente humanos pode ser um dom restritivo, que elimina a verdadeira dimensão da
experiência vivida. Observe-se que na imagem “lâmpadas de fogo” a lâmpada é também
doadora de luz mas nesta luz estes resplendores são os conhecimentos amorosos permitidos
e comunicados por Deus pelas lâmpadas de seus atributos. A alma, unida também
resplandece, se transforma, se ilumina com raios fúlgidos de amor. São lâmpadas diferentes
porque estão dentro das chamas, como a própria alma está dentro destes conhecimentos
amorosos. Onde há o clarão da lâmpada também aí estará a sombra, significando que a
presença da lâmpada é também a presença da ação da sombra que significa proteção,
amparo, companhia. Aqui João da Cruz fala da física onde cada coisa produz uma sombra
equivalentente a ela, proporcional. Assim a sombra de Deus, estas “lâmpadas em cujos
resplendores calor e luz dão”, vai proporcionar ao buscador algo de impressionante e rara
maravilha, diferente de tudo o que já experimentou, mais belo que a beleza jamais vista,
mais forte que qualquer força jamais experimentada na terra. Assim a alma “entende e
saboreia o poder divino, em sombra de onipotência; entende e goza a sabedoria divina, em
sombra de sabedoria divina... e assim por diante” 22. Todo o atributo do Amado reflete na
21
22
. Karen ARMSTRONG, Uma história de Deus. P. 219.
. JOÃO DA CRUZ. Obras Completas. P. 301.
alma escolhida que dessa maneira passa a se amar, pois é do jeito que é que é amada e é
assim que é dele e para ele.
O simbolismo da luz, do fogo a muito aparece para anunciar a “presença” de Deus
desde remotos tempos. João da Cruz não inventou tal imagem do nada, outros místicos a
usaram para descrever esta chama, esta ofuscante luz, esta espantosa luminosidade mas é
neste místico, especialmente neste canto que se vai encontrar a mais linda combinação de
palavras e símbolo. É uma lâmpada que é o centro da própria alma. Outros como o profeta
Isaías que usou o fogo para descrever a extrema claridade provocada pela experiência de
Deus e também Bayazid, Ruzbehen de Siraz, Algazel e Ibn’ Arabi, conforme comentários
de Baralt, em obra já citada. É no entanto João da Cruz o artista que melhor o fez . Uma
lâmpada que arde e ilumina não de fora mas de dentro, “autoluminosa” e sem origem
externa23. Baralt cita as várias coincidências existentes na poesia de João da Cruz e os
outros místicos muçulmanos. Como eles João da Cruz entende suas próprias lâmpadas de
fogo e com os mesmos atributos.
Quando João da Cruz fala “nas profundas cavernas do sentido” quer ele se referir
às potências da alma: entendimento, vontade e memória. Elas precisam se esvaziar para
que, livres de qualquer inclinação natural se orientem apenas o divino. A primeira caverna
– entendimento – o seu vazio é a sede de Deus e o desejo de mergulhar nas águas da
sabedoria divina; a segunda caverna – a vontade – cujo vazio é a fome de Deus, que de tão
forte faz a alma desfalecer e a terceira caverna – a memória – o seu vazio é o desmanchar
da alma e o seu derreter pela posse de Deus. Por serem assim tão abissais estas cavernas, só
obterão satisfação plena algo que também seja assim. João da Cruz ensina a diferença entre
a posse de Deus pela graça e a posse pela união comparando-as ao noivado, onde se unem
as vontades e ao casamento quando a união acontece de fato. É o não da alma a tudo que é
estranho ao divino, é o sim só para as coisas do Amado.Vazias as cavernas, purificadas as
almas, preparadas durante um tempo, a câmara nupcial é aberta à alma.
A alma é levada ao regozijo, supremo gozo espiritual, completo saciar dos desejo .
Morta para as coisas da terra chega à contemplação. Difícil, longo e sorrateiro é o caminho
do amante até chegar àquele estado. Só chega à linguagem de Deus o buscador posto em
silêncio e completamente sem apego às coisas do século, dos conhecimentos não
23
. Luce López BARALT. Asedios A lo indecible. P. 212.
universais, vazio de suas “riquezas” terrenas, espiritualizado. Atingindo a alma o final da
jornada, não mais necessita procurar caminhos e caminhar, ela já chegou, já se encontra
recolhida. Pára, porque ficar em movimento é distrair-se e perder toda quietude, todo o
espiritual já conseguidos. A transformação finalmente acontece e a alma cega e sombria se
torna cheia de visão e iluminada. O “olho da alma” em fim se manifesta, abre e contempla
o objeto de seu amor de forma perfeita.
A obscuridade e cegueira, a que João da Cruz de refere não é no plano físico. O
poema trata neste verso da obscuridade e cegueira espirituais e diferencia estes dois estados
de ausência de conhecimento e de luz. Esclarece que sendo “Deus a luz e objeto da alma se
esta luz não a ilumina fica a alma às escuras”24 não pelo fato de ter má ou nenhuma visão,
mesmo tendo ótima visão nada vê nesta obscuridade, a luz de Deus, necessária para
iluminar o Fiat Lux não chega até esta alma perdida, dispersa, voltada para as coisas do
mundo físico. Desconhece neste estado as coisas de Deus. No plano espiritual estar nas
trevas não é o mesmo que estar cego. Trevas simbolizam o pecado e cegueira é a falta de
luz sobre as coisas, daí não ser possível vê-las, mesmo sem estar em pecado. É o ser
humano voltado para a vida terrena, com seus prazeres, vaidades e desejos materiais
constrói uma barreira de valores naturais que impede aos raios da soberana luz atingi-lo e
derrubar a ignorância que lhe rouba a luminosidade esclarecedora. Se deixar entrar a luz
refletirá a luz, se ficar nas trevas refletirá trevas.
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto ao seu Querido!
Ao qualificar de “estranhos” João da Cruz quer referir-se à alheação destes primores
com as coisas ordinárias, naturais da vida. Aqui a alma “devolve” a Deus o que Ele lhe deu,
se excede na entrega, na comunicação única com o Querido. No amor se igualam Trindade
e a alma numa união indescritível e rara que a enche de alegria e satisfação. Ao falar nestes
primores João da Cruz os explicita25 – da maravilhosa fruição celeste os outros primores do
amor são: Primeiro – amor a Deus por ele só. Amor através do Espírito Santo; segundo
primor – amor a Deus em Deus e o terceiro primor e o principal - amar a alma a Deus por
ser ele Deus e não pelo que deu e pode dar. Os três primores do louvor com que a alma
purificada e em união com Deus o louva são: primeiro - porque é dever da alma louvá-lo,
24
25
. JOÃO DA CRUZ. Obras Completas. P. 913.
. JOÃO DA CRUZ. Obras Completas. P. 920.
segundo - louvar por tudo que recebe e terceiro - louvar a Deus por ser ele quem é. Da
mesma forma os três primores do agradecimento: agradecer os dotes naturais e espirituais e
tudo o que dele recebeu, agradecer e ter nessas graças grande prazer, pois se absorve neste
louvor e afinal agradecer unicamente por ser Deus o que ele é.
CANÇÃO IV
Quão manso e amoroso
Despertas em meu seio
Onde tu só secretamente moras;
Neste aspirar gostoso,
De bens e gloria cheio
Quão delicadamente enamoras!
Nesta etapa do poema já as trevas ficaram para trás. As cavernas “profundas” já não
o são mais, agora estão “elevadas”. A alma agora está pronta para que nela Deus desperte.
E é um despertar tranqüilo, doce, generoso é um movimento da terra para o alto, onde tudo
se move quando se tem a impressão que é o Amado que se move. Não é como despertar de
um sono comum, mas é a percepção que avança em direção ao conhecimento. É este
conhecimento que estava adormecido. E como um raio de sol que ao atingir o rosto de
quem dorme aquece e desperta sem susto, suavemente. Como o sol Deus jamais dorme e é
Ele que se permite dar a conhecer à alma que anseia por ele e o ama. Ao cantar “despertas
em meu seio” João da Cruz trata da comunicação de Deus à substância da alma, que não
suportaria tamanha “multidão de grandeza” não fosse o seu estado de perfeição no qual se
encontra, purificada e a mansidão com a qual Deus se deixa ver. Assim quanto mais
tremendo mais manso se manifesta. É na substância da alma no seu mais íntimo que Deus
se esconde, “secretamente mora”, e é por ser assim que a alma vive.
Nesta canção João da Cruz, como Agostinho, reconhece que a verdade se encontra
dentro do próprio ser humano. Não adianta o esforço desesperado de a buscar fora dele .
Anuncia como deve ser a alma que a ela quer chegar. Fala da difícil caminhada espiritual
que poucos conseguem completar.
No silêncio necessário, produzido pelo êxtase do amante nada há que possa ser dito
ou ouvido. O silêncio é como música de anjos, a comunicação é completa em pensamentos.
A expressão em palavras da experiência mística, mesmo a do mais sábio esbarra no
incompreensível.
Este é para Luce Lopéz Baralt o poema mais difícil de João da Cruz pois fala não
do caminho a ser percorrido para se atingir a morada real mas da morada, que é o objetivo.
A linguagem por si mostra o que João da Cruz tenta ensinar, que não há como dizer o
indizível. A rica exposição do texto de João da Cruz apenas aponta para o que foi este
“aspirar gostoso” ele chega a ser contundente quando diz sobre o verso “não quisera eu
falar, nem mesmo o desejo porque vejo claro que não tenho termos com que o saiba
exprimir, e pareceria que os tenho, se o dissesse”26.
A conotação sexual vista por Baralt matiza todo o canto mas com “sobre-tons
sagrados” que dá uma originalidade nesta forma de lidar dos amantes. João da Cruz vai
colocando caminhos dentro do caminho até a chegada gloriosa, vai preparando para o
momento máximo, para o encontro, o aspirar gostoso.
Vencido o obstáculo, shatan, entre Deus e o homem, afastado o diábolos, aquele
que “divide” o homem dentro de si mesmo, terminado o longo combate o encontro dos
amantes se dá. O fascínio pelo Amado já não se baseia mais na angustiosa incerteza da
realização das núpcias, no desgosto pelo mundo, na necessidade de purificação ou no
combate contra as ilusões terrenas com as quais o ser humano se identifica, mas se funda
na serenidade amorosa que se apossa do amante no leito nupcial.
Este IV Cântico mais uma vez com um forte erotismo, como na “Música Calada”.
Parece que a experiência mística toca sensório-sensivelmente aqueles que a vivem. Palavras
que soam “estranhas” para os não apaixonados, mas que vêm plenas de misteriosa e
desafiante descrição do encontro com o Amado. Numa dialética da presença-ausência,
mostra para depois, num meandro poético, esconder a essência dos versos que só sua
explicação descortina e mesmo assim em parte. Como diz Pólo “A poesia de João da Cruz
nunca é possessão”27. Nunca dá a posse da inteira compreensão, apenas deixa o leitor se
26
27
. JOÃO DA CRUZ, Obras completa,. P. 930.
. Teodoro Polo CABEZAS, S. Juan de la Cruz, La fuerza de un decir. P. 103.
aproximar um pouco do que foi a sua experiência maravilhosa, “não é só o poema que se
converte em oração” mas é sua vida que se converte em poema. 28
CONCLUSÃO
“A escrita existe para revelar. Ela quer mostrar e comunicar. É uma conquista
humana notória”29. Mas a linguagem pode também ao querer revelar, esconder o
significado da mensagem reduzi-la através das metáforas dos simbolismos e paradoxos. A
linguagem pode ser incrivelmente redutora e o místico se vale então de dislates, símbolos
ao escrever seus poemas. João da Cruz, mesmo quando explica seus poemas não deixa a
dificuldade sair por completo do leitor.
Diversas são as interpretações quando se lê uma mensagem. Dificilmente, quando o
texto é denso, as pessoas chegam ás mesmas idéias bem como disse Derrida: “Descemos e
não descemos em um mesmo rio, nós mesmos somos e não somos”30. A linguagem mística
é problemática o místico quer nomear o inominável, então inventa, de acordo com sua
sensibilidade, outros preferem o silêncio. Quando o místico fala do Inefável já está se
contradizendo, pois o inefável é o que não pode ser dito.
O Vimalakirti Sutra confirma isto na frase “todas as construções de palavras são
vazias”. Muitos exemplos da dificuldade de relatara experiência mística se encontra nos
escritos laoístas de CHUANG Tsu. E nos tratados védicos dos Upanishades entre outros. A
literatura mística cristã é rica em referências paradoxais, apofoiticas e crivadas de símbolos
e dislates como pode referendas os lindos textos de Diosísio. Areopagila (séc.VI) João
Eseotus Eriugena (séc. IX), Eckhart, Teresa de Ávila e João da Cruz que foi objeto do
presente texto.
A mística é um desafio epistemológico. A sua linguagem, apesar de fluente não é
auto-evidente e por isso mesmo não é de fácil entendimento. Se o próprio João da Cruz,
grande poeta, se declarou incapaz de descrever tudo o que sentiu e vivenciou,
especialmente, na Canção IV, que mais poder-se-ia acrescentar às suas maravilhosas
comparações? Assim como o ousado místico-poeta disse “as criaturas são como um rastro
28
. Jean Claude RICHARD, “ Quand le poème devient priére”, p. 45.
29
. Eduardo GROSS (Org.) Manifestações Literárias do Sagrado, p. 7.
. Jacques DERRIDA, De la grammatologie, p.73.
30
do passo de Deus”, seus poemas, pode-se dizer, são as marcas da “presença e figura de seu
amado.”
O santo, mesmo ao glosar seus versos, não tira a dificuldade do leitor em perceber
sua experiência mística. Usa da poesia, que é no dizer de Heidegger a única capaz de falar
de Deus e é ela que melhor que qualquer outra forma pode falar e se fazer entender sobre a
busca e o encontro do Amado. A ambigüidade da linguagem metafórica, tão explorada por
João da Cruz, permite isto. É a poesia o veículo que melhor transporta as sensações do
místico para o saber dos seres humanos comuns. É esta magnífica combinação de sons e
significados de João da Cruz mais esclarecedora que o discurso racional. Suas palavras não
são “meramente símbolos literários senão palavras transcendidas”.31
Tem razão Bernard Teuber, ao qualificar a linguagem de João da Cruz como uma
simples “aproximação” e a chama de “marca de uma impossibilidade”.32A leitura dos
poemas de João da Cruz abre uma janela para uma outra percepção de Deus. Num tempo
em que os valores se acham tão estranhos a sua representação do divino fornece pistas para
a necessidade de se fazer uma viagem interior. Entende-se agora com mais clareza as
palavras de entusiasmo do excelente Professor Doutor Faustino Teixeira na última aula do
semestre:
-“O que mantém acesa a luz de Deus é a amizade com os amigos de Deus, os
místicos” .
As palavras se movem, a música se move
Somente no tempo
mas o que está vivo somente pode morrer.
As palavras depois da fala
Tendem ao silêncio. Somente pela forma, pela estrutura
Podem as palavras ou a música alcançar a calma serenidade.33
“Palavras plenas de silêncios”
31
. Teodoro Polo CABEZAS, Una “música callada” que viene de muy lejos, p.83 e 84.
. Bernard Teuber fala com propriedade sobre a linguagem de João da Cruz como sendo “figura que anuncia
o estranho, o outro, do qual se quer falar, e que se inscreve, paradoxalmente, naquela estranheza imprópria,
uma marca daquele que permanece incomensurável”na sua obra”Erotik und Allegorie bei San Juan de la
Cruz”in Romanible Forschungen, citado por T.P. CABEZAS, s. Juan de la Cruz – La fuerza de um decir, p.
81.
32
33
. T. E. ELIOT, Poesias reunidas, p. 195.
BIBLIOGRAFIA
A BÍBLIA Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida.
Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil., 1964.
ARMRSMSTRONG, Karen. Uma história de Deus: Quatro milênios de busca do Judaísmo
Cristianismo e Islamismo. SÃO Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BARALT, Luce López. Asedios a lo indecible. Madrid: Editorial Trotta, 1998.
BERARDINO, Pedro Paulo de. Itinerário espiritual de São João da Cruz.São Paulo:
Paulus, 2005.
CABEZAS, Teodoro Polo. San Juan de la Cruz: La fuerza de un decir. Madrid: Editorial
de Espiritualida, 1997.
GROSS, Eduardo (Org.). Manifestações Literárias do Sagrado. Juiz de Fora: Editora Ufjf,
2002.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.
LELOUP, Jean- Yves. Deserto Desertos. Petrópolis: Vozes, 1998.
NUMEN, Revista de estudos e Pesquisa da Religião. V 2, N 1, Juiz de Fora, 1999.
NUMEN: Revista de estudos e Pesquisa da Religião.V 5, N 2, Juiz de Fora, 2002.
SÃO JOÃO DA CRUZ . Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 2002.
TEIXEIRA , Faustino (Org.). No limiar do mistério: Mística e Religião. São Paulo:
Paulinas, 2004.
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