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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e
Cuidados Psicossociais em Saúde Mental
Mental Health Matrix Support in Family Health Strategy:
Psychosocial Care and Mental Health Care
Maria Lidiany Tributino de Sousa1
Luís Fernando Tófoli2
Resumo
O presente artigo surgiu de um estudo maior que objetivou avaliar o Apoio Matricial em Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde de
Sobral, Ceará, na perspectiva da Integralidade. Considerou-se a fala dos gestores, profissionais das equipes locais e das equipes
multiprofissionais, apoiadores matriciais, usuários e agentes comunitários de oito Centros de Saúde da Família. A pesquisa envolveu análise
documental, observação sistemática, entrevistas e grupos focais, resultando em categorias como implantação, percepções, organicidade,
desafios e potencial desse arranjo. Este artigo destaca a relevância da temática que aborda o Apoio Matricial em Saúde Mental na Estratégia
Saúde da Família com seu potencial de atenção na perspectiva do Modelo Psicossocial do Cuidado, aproximando esse arranjo dos aspectos
da integralidade da atenção, participação social e das propostas de ampliação do conceito de saúde-doença, interdisciplinaridade no cuidado e
territorialização das ações.
Palavras-chave: saúde mental; Estratégia Saúde da Família; sofrimento psíquico.
Abstract
This article comes from a larger study aimed at assessing the Matrix Support in Mental Health in the Primary Health Care of the town of
Sobral, Ceará, Brazil, from the perspective of Integrality. The speech of managers, professionals from the local teams and from the
multiprofessional teams, matrix supporters, users, and community agents from eight Family Health Care Centers was taken into account. The
research involved documentary analysis, systematic observation, interviews, and focal groups, resulting in categories such as implantation,
perceptions, organicity, challenges, and potential of this arrangement. This article highlights the relevance of the theme which approaches the
Matrix Support in Mental Health in the Family Health Strategy with its potential for care from the perspective of the Psychosocial Model of
Care, approximating this arrangement of the aspects of the integrality of care, social participation, and the proposals for enlargement of the
concept of health-disease, interdisciplinarity in the care and territorialization of actions.
Keywords: mental health; Family Health Program; mental suffering.
1
Psicóloga, mestre em Saúde da Família pela Universidade Federal do Ceará (UFC-Campus Sobral). Tutora da Escola de Formação em
Saúde da Família Visconde de Sabóia - EFSFVS. Endereço para correspondência: EFSFVS, Av. Jonh Sanford, 1320, Junco, Sobral, CE,
CEP: 62.030-000. Endereço eletrônico: [email protected]
2
Psiquiatra, doutor em Medicina (Psiquiatria) pela Universidade de São Paulo (USP). Professor adjunto do Curso de Medicina e do Programa
de Pós-Graduação em Saúde da Família da Universidade Federal do Ceará, Campus de Sobral, CE. Endereço eletrônico:
[email protected]
Pesquisas e Práticas Psicossociais 7(2), São João del-Rei, julho/dezembro 2012
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
Introdução
A mudança de um modelo centrado no hospital
para a criação de serviços territoriais possibilitou o
encontro entre Saúde Mental e Estratégia Saúde da
Família (ESF), possuindo aspectos de confluência
com o paradigma do Modelo Psicossocial de
Cuidado, contrapondo-se ao “modo asilar”.
O denominado “modo asilar” pressupõe um
foco no orgânico, fazendo a utilização de métodos
medicamentosos e negando a existência do sujeito
no processo como participante, sendo este apenas
um depositário do saber e do poder dos agentes da
instituição. As formas de organização institucional
são piramidais ou verticais e o cuidado visa à
supressão dos sintomas. Dessa forma, este modelo
prioriza o orgânico da situação, deixando de lado as
possibilidades psicossociais do processo (CostaRosa, 2000).
O “modo psicossocial” de atenção e cuidado
em saúde mental engloba fatores políticos e
biopsicosocioculturais no entendimento das
doenças, pressupõe um entendimento integral do
sujeito, considerando sua subjetividade, assim
como implica que ele seja participante na
mobilização da sua terapêutica. A estratégia de
intervenção estende-se a um grupo mais ampliado e
a forma de organização institucional consiste na
horizontalização das relações de poder (Costa-Rosa,
2000).
Vê-se que este modelo busca a superação da
racionalidade subentendida no modelo médico
hegemônico, a inseparabilidade entre produção de
saúde e produção de subjetividade que conduz a
uma possível superação do modo capitalístico do
processo de produção marcado pela divisão do
trabalho, assim como a destituição do imaginário
institucional autoritário e repressor do modo asilar
(Yasui & Costa-Rosa, 2008).
Desse modo, o paradigma do Modelo
Psicossocial de Cuidado baseia-se em princípios
comuns que orientam a ESF, sendo eles,
integralidade da atenção, participação social e, nas
suas propostas de ampliação do conceito de saúdedoença, interdisciplinaridade no cuidado e
territorialização das ações.
De acordo com Murray e Lopez (1996), os
transtornos mentais estão entre as dez condições
mais expressivas na Carga Global de Doença no
planeta (estimada mediante anos de vida perdidos
por incapacidade). No Brasil, os transtornos
mentais são o problema de Saúde Pública de maior
importância, aproximando-se do câncer, das
doenças cardiovasculares e das doenças infecto
contagiosas (Reichenheim, Souza, Moraes, Mello
Jorge, Silva, Souza Minayo, 2011). Segundo
monitoramento realizado pelo Ministério da Saúde
em 2001 e 2002, 51% das equipes saúde da família
realizam algum atendimento em saúde mental,
havendo uma alta prevalência de sofrimento mental
na rede primária (Ministério da Saúde, 2002).
De acordo com levantamento da Organização
Pan-americana de Saúde [OPAS], a relação entre
atenção em saúde mental e cuidado na rede
primária oferece vantagens como triagem e
tratamento precoces, especialmente, detecção de
usuários que apresentam queixas somáticas mal
definidas, potencial de tratamento dos aspectos
mentais associados com problemas “físicos”,
atenção mais qualificada, dentre outras (OPAS,
2001).
A partir dessa realidade, pode-se perceber que a
saúde mental está inserida na saúde geral e que a
rede primária deve ser porta de entrada para essa
demanda e espaço de construção de práticas de
atenção e cuidado em saúde mental. Porém a
complexidade do processo saúde-doença mental
aponta para a necessidade de uma rede interligada
de serviços que possibilite troca de saberes e
práticas.
Dentro desse contexto de possibilidades,
Gastão Wagner Campos pensou a reordenação das
organizações de saúde, objetivando a criação de um
arranjo - o Apoio Matricial - que passa a ser
operacionalizado em Campinas a partir de 1989
(Cunha & Campos, 2011). Este dispositivo é
proposto como forma de produzir uma ruptura no
modelo assistencial dominante, calcado na lógica
da especialização e da fragmentação do trabalho,
através da interlocução entre os equipamentos de
saúde mental de modo a tornar horizontais as
especialidades e estas permearem todo o campo das
equipes de saúde locais, estimulando a
corresponsabilização pelo cuidado em saúde
(Campos, 1999).
Esse trabalho é parte de uma dissertação que
objetivou avaliar o Apoio Matricial em sua
capacidade de integralidade no cuidado em saúde
mental na rede de atenção primária, imprescindível
para a construção de um modelo teórico referente
ao Apoio Matricial em Sobral, lócus da pesquisa. A
temática do Apoio Matricial em Saúde Mental na
ESF ganha relevância pelo seu potencial de
atenção, na perspectiva do “modo psicossocial” do
cuidado e da atenção.
Metodologia
Este trabalho, no intento de atingir os objetivos
expostos, apresenta-se como uma pesquisa de
Pesquisas e Práticas Psicossociais 7(2), São João del-Rei, julho/dezembro 2012
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psicossociais em Saúde Mental
natureza qualitativa (Minayo, 1999), do tipo
avaliativa (Pinheiro & Silva, 2008) e de caráter
formativo (Filho, 2009).
O lócus do estudo foi o município de Sobral
que vem apresentando alguns destaques em nível
nacional pela sua adesão aos princípios da Reforma
Psiquiátrica e sua articulação entre Saúde Mental e
Atenção Primária a partir da sua organização em
rede e da utilização de diversos arranjos
organizacionais, dentre eles o Apoio Matricial.
Sobral é sede da macrorregião e microrregião
do norte do Estado cearense e, desde 1997, vem
organizando seu Sistema Municipal de Saúde com
o desenvolvimento de ações intersetoriais, iniciando
seu processo de Reforma Psiquiátrica mediante o
rompimento com o sistema manicomial e a
implantação da Rede de Atenção Integral à Saúde
Mental em 2000 (Barros, 2008).
O estudo contemplou oito Centros de Saúde da
Família (CSF) da sede do município, escolhidos a
partir de uma amostragem intencional, prezando o
julgamento e a diversidade de critérios como:
apoiador matricial (dois CSF de cada apoiador),
localização (CSF das diferentes zonas urbanas de
Sobral), população cadastrada na ESF (variando de
6.370 a 18.787 habitantes) e composição da equipe.
A pesquisa foi desenvolvida em diversas etapas
inter-relacionadas, envolvendo análise documental,
observação sistemática, entrevistas e grupos focais,
sendo participantes os diferentes grupos de
interesses implicados na operacionalização do
Apoio Matricial de saúde mental em Sobral, tais
como gestores, profissionais de saúde, agentes
comunitários e usuários. Desse modo, a pesquisa
considerou áreas de tensão e interesses sociais
conflitantes encarnados pelos diferentes atores que
fazem parte da gestão, atenção e cuidado da saúde
mental no cotidiano da ESF a partir deste arranjo
organizacional.
Optou-se por trabalhar com:
 Apoiadores matriciais da sede dos CSF,
escolhendo todos;
 Profissionais das equipes saúde da família
com maior tempo de serviço, disponibilidade
para participar da pesquisa e assiduidade nos
momentos das Preceptorias de Psiquiatria;
 Profissionais de diferentes categorias das
equipes multiprofissionais da Residência
Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF)
e do Núcleo de Apoio em Saúde da Família
(NASF), envolvidos nos momentos das
Preceptorias de Psiquiatria.
Em relação aos usuários, utilizou-se como
critério de inclusão os que tivessem uma demanda
por cuidado complexo, ou seja, que envolvesse
profissionais de diferentes níveis de atenção. Em
relação aos ACS, foram incluídos os indicados pela
equipe com mais tempo no serviço, maior
envolvimento com as ações e com os casos de
saúde mental no intuito de trazerem informações de
como funciona a atenção à saúde mental no
território.
Quadro 1- Sistematização dos grupos e sujeitos da pesquisa, número de participantes e procedimentos de coletas.
Grupos de pesquisa
Grupo de Gestores
Sujeitos
Coordenadores
(coordenador da Saúde
Mental e da Atenção
Primária à Saúde)
Gerentes
Apoiadores matriciais
Equipe Local
Grupo de Profissionais de
saúde
Número de participantes
Procedimento de coleta
2
Entrevistas individuais
8
8
18 enfermeiros
5 médicos
3 psicólogas (RMSF)
Grupo focal
Grupo focal
Grupo focal com cada equipe
dos CSF escolhidos
1 terapeuta ocupacional (RMSF)
envolvendo equipe local e
multiprofissional
1 assistente social (RMSF)
1 educadora física (RMSF)
Equipes Multiprofissionais
(RMSF e NASF)
1 terapeuta ocupacional (NASF)
Grupo de ACS e Usuários
ACS
Usuários
3 psicólogas (NASF)
8 ACS
8 Usuários
Entrevistas individuais
Fonte: Sousa, 2012.
Pesquisas e Práticas Psicossociais 7(2), São João del-Rei, julho/dezembro 2012
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
Com os apoiadores matriciais foi realizado um
grupo focal separado, pois se percebeu, em estudo
anterior (Sousa, 2010), que a equipe local não se
sentia confortável para fazer algumas considerações
com a presença dos apoiadores.
As Preceptorias de Psiquiatria foram escolhidas
como momentos de coletas de dados por serem, no
município de Sobral, compreendidas como espaço
de troca de saber entre a equipe interdisciplinar de
saúde da ESF e a equipe de Apoio Matricial da
atenção secundária a fim de discutir os casos mais
complexos de saúde mental do território e propor
intervenções.
Foi utilizada a técnica de anotações de campo
para registro das observações sistemáticas dos
momentos de Preceptorias de Psiquiatria dos CSF
selecionados e análise documental onde foram
anotados os fatos ocorridos, objetivando análise das
formas de acolhimento, tipo de demanda,
encaminhamentos, relações de poder, formas de
interações com incentivo a participação e ao
diálogo.
Para o tratamento dos dados, considerou-se o
objeto de análise como práxis social, buscando-se
como sentido a afirmação ético-política do
pensamento dada pela articulação do discurso com
a observação das condutas e a análise das
instituições de onde se fala. Esta análise consistiu
de duas fases, uma exploratória e uma
interpretativa, operacionalizadas nas etapas de
ordenação dos dados, classificação de dados,
análise e relatório (Minayo, 1999).
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Vale do Acaraú com o
Certificado de Apresentação para Apreciação Ética
– CAAE (0061.0.039040-11).
Resultados
Histórico do Apoio Matricial
No encontro com os discursos acerca do Apoio
Matricial, os gestores e os apoiadores matriciais
(destes, somente os com maior tempo de atuação)
conseguiram traçar o histórico de implantação e
implementação desse arranjo na ESF em Sobral.
A gestão colocou o início do Apoio Matricial
como um ensaio de aproximação do Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) com os profissionais
da ESF, na tentativa de organizar o fluxo da atenção
primária à secundária, possibilitando, através de
momentos mensais ou quinzenais, a discussão dos
casos e os encaminhamentos.
Então em termos de primórdios, de como começou
este processo, foi mediante este processo de
organização do CAPS. Já existia obviamente o início
desse diálogo do CAPS e PSF, mas nós sentimos a
necessidade, em princípio do profissional do CAPS
sair do CAPS, e ir lá pro território, para atenção
primária, pouco a pouco, organizando esta questão
da atenção em saúde mental e fomentando nos
profissionais esta questão voltada para o
atendimento em saúde mental no PSF, para os casos
de transtornos mentais leves, moderados, e os casos
efetivamente graves para que eles pudessem ficar
somente no CAPS. (Gestora)
O trabalho foi se estruturando, em agosto de
2004, a partir das triagens dos casos pela equipe da
ESF junto com os psiquiatras da atenção
secundária. Assim, através de momentos mensais
ou quinzenais, os profissionais da atenção
secundária e primária começaram a se encontrar
para acolher e discutir quais casos seriam de
responsabilidade da esfera secundária e quais
permaneceriam
acompanhados
pela
ESF,
promovendo uma articulação entre os níveis de
atenção (Tófoli, 2007).
Na fala de um dos apoiadores, o Apoio
Matricial foi se estruturando desde 1999 com a
figura do preceptor de especialidades em Sobral, a
partir da proposta da Escola de Formação em Saúde
da Família Visconde de Sabóia (EFSFVS) através
da Residência em Saúde da Família (RSF),
primeiramente com as preceptorias de Pediatria,
Clínica Médica e de Gineco‐Obstetrícia (GO),
tornando o termo “Preceptoria” mais característico
da realidade sobralense.
Sobre estes termos preceptoria e Apoio Matricial, de
onde surgiu em Sobral, surgir de 99 pra 2000 que
foi a primeira turma de residência multiprofissional,
que na época incluía até médico e enfermeiros,
depois desmembrada em medicina de família e
residência multiprofissional. Aí foi criado os que
seriam os preceptores dessa residência, foi criado a
preceptoria de psiquiatria, GO, clínica, daí pegou.
Por isso que este nome está tão arraigado. Tinha
preceptores de território e de especialidade.
(Apoiador Matricial)
A Preceptoria de especialidades e território
surgiu em Sobral no intento de garantir formação
para os profissionais de medicina e enfermagem da
primeira turma da RSF acerca dos processos de
trabalho do profissional, objetivando construir
conhecimentos e práticas de um novo modelo de
atenção à saúde e de formação, dentro do contexto
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
organizador alcunhado de Tenda Invertida, pelo o
qual o território, local de atuação do residente, é
visto como lócus de aprendizagem, espaço onde
efetivamente deve-se organizar o processo
educativo (Andrade, Barreto, Martins Jr, Amaral, &
Parreiras, 2004).
Quando eu comecei a trabalhar, o Apoio Matricial
já estava consolidado, tive essa convivência ainda
na minha época de estudante. O conhecimento que
tenho é de literatura, é de observar que foi uma
ideia inicial do gestor municipal da saúde anterior e
que compreendia a história da educação
permanente. Ele usava muito o termo tenda
invertida, compreendia que ela só se faz sentido se
voltada para o processo de trabalho, pras
necessidades apresentadas no processo de trabalho,
então não fazia sentido que os profissionais se
deslocassem até os especialistas, enfim os
preceptores, e que o mais interessante seria que eles
fossem até a prática para observar não só de que
forma teoricamente ia suprir essas necessidades,
mas também fazer essa associação com a prática,
vendo a realidade, vendo as dificuldades do dia-adia. Então eu me recordo bem, já era bem
fortalecida a de pediatria e a de gineco-obstetrícia.
Confesso que a de saúde mental eu já tive contato
quando profissional. (Gestora)
Desse modo, o Apoio Matricial em Sobral é
reconhecido como tendo seu nascedouro também
atrelado a uma gestão municipal e, principalmente,
à ideia de Educação Permanente, compreendendo
uma nova abordagem dos processos educativos, na
qual a formação estabelece conexão com a
realidade vivida no cotidiano do trabalho. O Apoio
Matricial não é só visto como organizador do fluxo
entre atenção primária e secundária, mas também
como um encontro de ordem pedagógicoassistencial entre os profissionais. Desse modo, não
só o CAPS é reconhecido como impulsionador
desse arranjo, mas também a EFSFVS, percebida
na perspectiva da Educação Permanente.
Percepções acerca do Apoio Matricial
Aparece, na fala dos profissionais e ACS, uma
falta de conhecimento ou clareza da proposta do
Apoio Matricial. Os ACS, principalmente,
revelaram que não sabiam do que se tratava, os
profissionais e ACS mostraram-se confusos entre
Apoio Matricial e Preceptoria, e alguns solicitaram
esclarecimentos, ressaltando a pouca apropriação da
temática.
Eu acho que é uma avaliação do psiquiatra, pelo
menos o primeiro momento, não sei se o que eu tô
dizendo é o certo, mas acho que é uma avaliação do
paciente pelo psiquiatra. (ACS)
Eu acho muito parecido com a preceptoria, eu acho
que matriciamento confunde um pouco com
preceptoria, aí eu não sei diferenciar, é meio que
parecido. Eu sempre achei que matriciamento é o
acompanhamento do paciente de saúde mental no
território. Não sei se só pelo psiquiatra ou pela
equipe toda. (Enfermeira)
Esta confusão conceitual pode estar relacionada
a uma apropriação recente em relação a esta
tecnologia de cuidado em saúde mental, fazendo
com que alguns discursos tragam a nomenclatura
sem a devida clareza e muito menos sem
embasamento teórico.
Em alguns discursos, o Apoio Matricial
compreende somente os momentos de Preceptoria,
o que se torna um reflexo do que acontece no dia-adia dos CSF em Sobral, onde o cuidado de saúde
mental é balizado por estas experiências
denominadas Preceptorias de Psiquiatria. Logo, as
ações de saúde mental neste município estão
marcadas pela história do modelo de formação da
RSF, gestada em 1999 com a presença dos
preceptores.
Nesse contexto, as definições expostas
identificam o Apoio Matricial como um trabalho
solitário de avaliação e atendimento de uma
categoria profissional. Dessa forma, acontece uma
simplificação das Preceptorias de Psiquiatria de
modo a frequentemente se tornarem atendimentos
ambulatoriais, compostos pela formulação de
diagnósticos e a realização de encaminhamentos,
descaracterizando
o
arranjo
organizacional
matricial. Quando isso acontece, os momentos de
Preceptorias não são vistos como potenciais
formadores de vínculos, mas como visitas pontuais
dos psiquiatras para condução medicamentosa dos
casos. Esta visão e a dificuldade de
acompanhamento dos casos pela equipe local,
devido às agendas atreladas aos programas,
repercutem em atendimentos esporádicos aos
usuários e no retorno desses.
A ideia de Apoio Matricial vai sendo usada
vinculada a de Preceptoria e quando há uma
necessidade de se “desvencilhar” da palavra
Preceptoria - que indica supervisão, orientação e
que para alguns passou, devido ao fazer diário
permeado de desafios, a se constituir em momentos
de atendimentos especializados - opta-se por fazer
uso da palavra matriciamento.
Pesquisas e Práticas Psicossociais 7(2), São João del-Rei, julho/dezembro 2012
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
Quando a gente pensa em matriciamento, a gente
pensa em preceptoria, mas a preceptoria faz parte
do matriciamento. Ter um especialista que a gente
pode recorrer para o cuidado de alguns casos.
Matriciamento é o processo, é o todo. É a questão
do aprendizado e da responsabilização em relação
aos casos é um apoio à equipe em todos os sentidos,
na resolutividade, no aprendizado, até na montagem
dos planos de cuidado. Eu penso que matriciamento
seja todo este sistema. (Gestora)
O Apoio Matricial carrega o sentido de ser um
lugar matriz de geração de saber, imbuído da ideia
de diálogo, de aprendizado para construção de
planos terapêuticos e responsabilização dos casos,
que se aproxima da concepção trazida por Campos
e Domitti (2007). O Apoio Matricial é
compreendido pelos profissionais de saúde como a
relação entre o especialista com as equipes da ESF
no intuito de conceder suporte técnico, pedagógico
para os casos que apresentam maiores
complexidades, que trazem dúvidas, angústias e
receios.
... o apoio que vem das especialidades, do que a
gente conhece muito superficialmente, mas que a
gente precisa ter um entendimento maior. E esse
apoio vem para somar as nossas dúvidas, as nossas
angústias, os nossos receios, a nossa falta de
entendimento de um determinado assunto que não
sabemos abordar. Então vem mais para somar
conhecimentos com a gente e discutir os casos.
(Enfermeira)
Organicidade do Apoio Matricial
Os sujeitos expuseram o funcionamento do
Apoio Matricial apontando para uma diversidade
nas formas de organização desse arranjo nos
territórios, mostrando que elas se reproduzem numa
composição não rígida, possibilitando diferentes
combinações, específicas dos territórios.
O matriciamento que acontece em cada PSF tem um
diferencial, vai depender das características daquele
PSF, da equipe, da disponibilidade dos
profissionais, da forma como o matriciador concebe
este matriciamento. (Gestora)
Apesar de consentirem com a existência de
formas heterogêneas de funcionamento do Apoio
Matricial, apresentam na definição elos que
conferem certas sínteses, ou seja, um traçado que
pode ser perceptível na organicidade desse arranjo.
Na maioria dos casos, nota-se que os usuários
chegam ao CSF por demanda espontânea ou
encaminhados de outros serviços e são recebidos
pela equipe de referência, residentes ou
profissionais do NASF. Os casos mais complexos e
que muitas vezes exigem atenção em outro nível
são atendidos e discutidos nas denominadas
Preceptorias de Psiquiatria.
Os profissionais e gestores compreendem que
fazem parte das ações de saúde mental: visitas
mensais ou quinzenais dos preceptores, a depender
do número de equipes do CSF para atendimentos e
intervenções conjuntas, assim como para a atenção
individualizada; visitas domiciliares da equipe
referenciada; elaboração de projetos terapêuticos;
reuniões de troca de conhecimento; avaliação de
casos e/ou reorientação de condutas.
Desafios
Considera-se a importância das especialidades
em saúde mental no cuidado de muitos casos,
porém um dos grandes desafios que o Apoio
Matricial vem procurando enfrentar é o
compromisso com uma abordagem integral do
sujeito a partir do conhecimento, pelos profissionais
da ESF, de algumas propostas para além da
medicação e que busquem a utilização de outros
dispositivos de atenção presentes no território.
A dificuldade mais destacada é a falta de
médico e medicamentos, evidenciando um
centramento nas questões priorizadas por uma
racionalidade biomédica, na qual o escopo são as
ações especialísticas e medicamentalizadoras. A
essa necessidade, coloca-se outra, como um
contraponto, que é o reconhecimento de outras
categorias profissionais como artífices e
colaboradores do processo de aprendizagem do
Apoio Matricial.
O perfil dos profissionais matriciadores é
problematizado e colocado como algo que merece
atenção pela gestão, não para retirada deste sujeito já que sua visão é importante para oferecer
alternativas, outros pontos de vista nos processos de
cuidado, assim como para facilitar a condução dos
casos por estarem trabalhando na rede - mas no
sentido de também cuidar do processo educativo de
quem está estimulando os momentos de Apoio
Matricial nos territórios.
Outro desafio muito presente nos discursos foi
a ausência dos profissionais da equipe local nos
momentos de Preceptoria, justificada pelo número
insuficiente de trabalhadores, pela demanda
excessiva nos serviços de saúde e pelo foco da ESF
nas ações programáticas.
As falas dos gerentes e profissionais trazem
como dificuldades no fluxo a indefinição e a falta
Pesquisas e Práticas Psicossociais 7(2), São João del-Rei, julho/dezembro 2012
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
de estrutura comunicativa dos sistemas de
referência e contrarreferência no âmbito do
município, o desconhecimento e a burocratização
das formas de encaminhamentos para o nível de
atenção secundária. Constata-se, entretanto, que tal
dificuldade para realização de encaminhamentos
parece atrelada a um relativo desconhecimento dos
casos, frequentemente expresso nas dificuldades de
identificação e acompanhamento das pessoas com
transtorno mental. Os profissionais colocam que
essa dificuldade não se apresenta em todas as
Preceptorias, mas, principalmente, na de saúde
mental.
Na prática, percebe-se que os profissionais de
saúde e ACS sentem-se inseguros em acompanhar
os casos, assim como em fazer encaminhamentos
orientados por critérios de riscos, dificuldade que,
na maioria dos discursos, é atribuída à fragilidade
nos processos formativos desses profissionais.
Os apoiadores matriciais e residentes colocam
também que a equipe de referência se esquiva das
atividades de saúde mental, atitude muitas vezes
associada à sensação de impotência. Asseveram
também que o despreparo desses profissionais, que
é frequente, leva-os a fazer uso de discursos
moralizantes e repressivos, o que cria uma
dificuldade destes para discutir e trabalhar os casos
de saúde mental. Tal dificuldade pode ocorrer pelo
fato de a loucura ser um objeto obscuro e evasivo,
atravessado por uma gama de significados e
valores, como afirma Sampaio (1998), mas também
pelo estigma que esta palavra carrega, trazendo
ainda receios nas tentativas de aproximação.
É importante saber que múltiplos são os
desafios, como diz um enfermeiro: “os problemas
do matriciamento são multifatoriais, é o
matriciador, os profissionais, a demanda, falta de
tempo, é a estrutura em geral”, mas diversas
também são as potencialidades.
Potencialidades do Apoio Matricial:
aproximações com a ESF e o Modelo
Psicossocial de Cuidado
Territorialização das ações
Para Santos (2004), o território é muito mais
que uma extensão geográfica, é também o espaço
onde a vida social, política, econômica, cultural e
ambiental acontece submetida a certas interrelações e normas. Desse modo, território é um
lugar construído socialmente, um lugar filosófico
onde se encarnam os devires que apontam para a
ideia de movimento, de territorialização, um
pressuposto básico da ESF.
Com a institucionalização da ESF, a rede
básica de saúde foi incitada a produzir arranjos para
desenvolver a integralidade da atenção com grupos
de saúde mental, considerando que os cuidados
primários integrados possibilitam a redução da
carga que as perturbações mentais impõem se não
forem detectadas e tratadas (Organização Mundial
de Saúde [OMS] & World Organization of National
Clinical Associations [WONCA], 2009).
Os momentos de Apoio Matricial na ESF
constituem-se estratégicos para a melhoria do
acesso, devido à proximidade com as pessoas nos
domicílios e comunidade, incluindo uma vivência
contínua com a cultura local que favorece o
sentimento de pertencimento do profissional ao
território, sobretudo com a presença dos agentes
comunitários que moram e vivenciam o mesmo
território dos usuários (Vieira Filho, 2006).
Nas falas, há um reconhecimento da
importância do ACS na questão de possibilitar um
acesso mais rápido, destacando-se como elo de
contato nos casos de pessoas com transtornos
mentais, demonstrando conhecimento dessa
problemática na sua realidade pela habilidade de
identificar os mesmos, assim como tornando
pedagógico o encontro, desmistificando a questão
da loucura.
Desse modo, os saberes do ACS acerca do
território e seu poder de ser ponte entre usuário e o
serviço de saúde são imprescindíveis, podendo
influenciar na implicação dele, família, equipe de
referência e usuário no cuidado em saúde mental.
Aqui eu esperei menos que nos CAPS, a ACS é gente
fina demais, ela acompanha a gente, não deixa a
gente de lado. Ela sempre está do lado da gente
para o que der e vier. (Usuário)
O Apoio Matricial e os princípios da
integralidade, vinculação e corresponsabilização
são apresentados como estratégias e conceitos
inovadores, potentes nas mudanças das práticas de
saúde que demandam, para sua concretização, um
trabalho em equipe interdisciplinar, assim como são
alternativas para mudança na tradição gerencial
fortemente marcada pela especialidade e baseada na
visão fragmentada dos processos de trabalho.
Interdisciplinaridade no cuidado e ampliação do
conceito de saúde-doença
O Apoio Matricial é visto como possibilitador
do
olhar
compartilhado
entre
diferentes
profissionais e do aumento da capacidade de
identificação dos recursos comunitários para apoiar
os casos em questão, prevenindo atitudes
Pesquisas e Práticas Psicossociais 7(2), São João del-Rei, julho/dezembro 2012
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
patológicas
e
favorecendo
uma
corresponsabilização pelo cuidado.
Os profissionais e a gestão percebem que o
trabalho interdisciplinar facilita o respeito às
especificidades e se contrapõem à lógica da
fragmentação, diminuindo os encaminhamentos, de
tal modo que a corresponsabilização é apresentada
como uma possibilidade de se sobrepor à lógica dos
encaminhamentos desenfreados, fazendo com que a
demanda de sofrimento psíquico deixe de ser
responsabilidade exclusiva da saúde mental ou das
categorias
“psis”
(psicólogos,
psiquiatras,
psicanalistas) e passe a ser percebida como algo que
deve ser cuidada pela equipe saúde da família.
Tem as especificidades, mas eu acho que, quando a
gente teve a participação de diferentes profissionais,
é impressionante como os encaminhamentos caíram
entre a gente. Eu acho que, com o matriciamento,
melhorou o diálogo, a gente começa a se apropriar
da abordagem e fazer um acompanhamento mais
qualificado, consegue triar o que realmente é um
encaminhamento para psicologia, psiquiatria,
terapia ocupacional. A saúde mental pra mim é
muito transversal. (Enfermeira)
É importante o entendimento de que fazer
saúde de uma forma ampliada só se torna possível
se considerarmos que o sujeito possui diferentes
facetas e pela colaboração de múltiplos olhares que,
mesmo apresentando fronteiras ainda bem
marcadas, não negam a evidência de que o saber de
um pode complementar o saber do outro numa
interdisciplinaridade possível.
A gente está procurando trabalhar a participação de
profissionais não médicos no matriciamento de
saúde mental. Eu acho que isso é uma coisa boa, vai
trazer um olhar diferenciado. Não só aquele olhar
clínico, aquele olhar médico, que muitas vezes é o
que a equipe demanda, mas a presença de um
profissional não médico vai tensionar a equipe a
trazer outras questões que não sejam exclusivamente
clínicas, farmacológicas, de resolução de crises,
outras questões. (Apoiador Matricial)
O retorno da presença de matriciadores de
outras categorias profissionais e o trabalho do
NASF na lógica do Apoio Matricial são vistos
como uma tentativa de ampliar as ações de cuidado
da saúde mental na atenção primária a partir do
Apoio Matricial, assim como de qualificação e
complementaridade do trabalho das equipes locais,
de revisão das práticas de encaminhamentos.
Pelas observações das preceptorias e conversas
que se anteciparam a esses momentos, percebeu-se
que as práticas em saúde mental, mesmo
envolvendo diferentes autores, constituem-se em
processos de cuidado fragmentados e integralizados
por um simples somatório de fazeres e saberes que
não permite, ao profissional, desenvolver
competências para construção de um projeto de
cuidado integral. A proposta da inclusão de outras
categorias profissionais da rede, além da
Psiquiatria, ainda não efetuada de forma extensa,
poderá ser um novo elemento interessante a ser
incentivado neste cenário.
O trabalho interdisciplinar não é simplesmente
um conjunto de encontros eventuais entre diferentes
profissionais, mas a construção de um espaço de
abertura para o diálogo com o diferente, de
articulação de diferentes saberes e de
compartilhamento de responsabilidades.
O Apoio Matricial é um dispositivo que se
propõe a modificar o foco da orientação da
assistência, repensando o processo de produção da
saúde e os processos de trabalho não somente
centrado no médico, mas em todos os profissionais
atuando de forma interdisciplinar, implicados com a
realidade dos sujeitos, das famílias e da
comunidade no território. Como conceito ampliado
de saúde, traz uma compreensão do processo saúde
e doença mental como sendo multideterminado,
surgindo, a partir dessa ideia, o entendimento de
que promover saúde envolve outros setores para
além da saúde, o que traz a noção de
intersetorialidade, mas também a de articulação,
pois não só se reconhece a importância da
existência desses âmbitos, mas sua articulação para
resolutividade dos problemas de saúde.
Então esta integralidade, ela demanda uma
necessidade permanente de uma busca por
integração dos diversos serviços que compõem a
rede, eu não digo só a rede de saúde mental, mas a
rede assistencial. É importante que o trabalhador de
saúde tenha o entendimento de que o usuário não é
do CAPS, CAPS AD, somente do hospital, ele está
no sistema de saúde e precisa ser assistido de
maneira ampla. Antes dele ter um transtorno mental,
ele é uma pessoa, um ser humano, e precisa ser
assistido de maneira integrada. (Gestora)
Participação
Para os profissionais e ACS, a participação e a
satisfação dos usuários que procuram o atendimento
de saúde mental se dão pela solicitação de
remédios, mesmo que seu sofrimento psíquico
tenha diversos nexos causais. Salientam ainda que o
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
serviço oferecido pelo CSF indica certa priorização
dos cuidados medicamentosos.
técnico (Delgado, 2011; Illchi citado por Gaudenzi
& Ortega, 2012).
Existem muitas demandas pra saúde mental que
acabam concentrando um pouco na figura do
médico, que é questão prescritiva, medicamentosa,
que a gente tem uma dificuldade. A questão das
terapias alternativas, as pessoas não conseguem
visualizar isso como uma prática integrativa que é
terapêutica e que tem uma boa repercussão.
(Enfermeira)
Eu, se eu não tiver o remédio, eu nem sei do que sou
capaz. Eu já comprei três vezes remédio para sair
desta vida, mas Deus é tão bom pra mim que me
tirou isso. Mas eu faço análise com o doutor lá no
outro CAPS, e o doutor do posto me ajuda muito
também. O doutor do posto disse que um dos meus
maiores problemas é financeiro. Quando o aluguel
chega, eu fico preocupada, se é pra eu tomar um
remédio, eu tomo dois. (Usuária)
Porém, há também uma consideração de que a
terapêutica não se resume aos medicamentos e que
é necessária uma ampliação do olhar do
profissional para outras formas de cuidado.
A gente sabe que o paciente não sai dali com o
remédio e acabou-se a história. Há muitos outros
aspectos que estão envolvidos no tratamento,
principalmente, psiquiátrico. Então eu acho que
seria interessante a discussão entre enfermeiro,
médico, agente comunitário de saúde, porque a
gente sabe que cada profissional desses é importante
na evolução do paciente (Gestora).
O termo medicalização é compreendido como o
excesso de intervencionismo médico sobre os
corpos e a vida das pessoas, assim como a expansão
do consumo de bens e serviços de saúde, fruto de
um processo social através do qual a medicina foi
sendo legitimada como ciência responsável por um
crescente número de aspectos da vida social (Costa,
2004; Delgado, 2011; Mattos, 2006).
Para Foucault (2002), com a biopolítica, a
preocupação não é com o corpo individual que deve
ser adestrado, mas como a gestão da vida que incide
sobre a multiplicidade de homens, na medida em
que forma uma população, uma espécie através da
qual a técnica é o gerenciamento de saúde a partir
das políticas de higiene pública, controle de
natalidade, organização urbana de distribuição das
famílias, ou seja, do treinamento ortopédico dos
corpos pelo controle da espécie humana. Dessa
forma, gerindo a vida normal, incidindo seu poder
sobre inúmeras experiências diárias, a Psiquiatria
controla o corpo molar trazendo o risco do
encarceramento dos sintomas, colocando-os
potencialmente em uma perspectiva química, o que
reduz a autonomia dos sujeitos, transferindo o
cuidado de sua saúde ao saber de especialistas,
transformando o significado da dor em problema
Existe um modelo amplamente defendido que é
caracterizado pela busca de ausência da dor e do
sofrimento e pelo uso do medicamento como
recurso eficaz para essa intenção, mas também
existem movimentos que apontam para importância
do vínculo, da atenção e do olhar para outros
aspectos da vida dos sujeitos que não seja só a
doença.
O medicamento, para gente entender, é só uma
auxílio, a pessoa tem que fazer a parte dela, tem que
mudar o sentido, tem que passear. Os profissionais
sempre dão muitos conselhos. Ajuda muito o
acompanhamento. O acompanhamento está sendo
ótimo. (Usuário)
Segundo Tesser e Luz (2008), o que interessa
para o usuário é uma resolução favorável de seus
sofrimentos que será tanto melhor se acompanhada
por empatia emocional e por uma reorganização
simbólica a partir de crenças ou práticas que se
aproximem do universo cultural dos usuários.
Para romper com uma lógica dominante de
trabalho em saúde com famílias, os documentos
revelam a importância da produção de Projetos
Terapêuticos Singulares (PTS) que favoreçam uma
posição comprometida e sensível do usuário, assim
como a necessária aproximação entre sujeito,
família e profissionais de saúde (Campos, 1999;
Figueiredo & Onocko Campos, 2009). No entanto,
a construção dos PTS, mesmo sendo a partir da
integração dos diferentes olhares dos profissionais
de saúde, tem pouco avançado no sentido de ver o
indivíduo e sua família como sujeitos participativos
através do direito à voz, no intuito de favorecer sua
capacidade de discernimento e de intervenção no
seu processo de cuidado.
Outro potencial é que o Apoio Matricial
também é reconhecido como espaço de
aprendizagem e, por isso, político, pois tem a
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Sousa, M. L. T. de; & Tófoli, L. F. Apoio Matricial na Estratégia Saúde da Família: Atenção e cuidados
psicossociais em Saúde Mental
possibilidade de fomentar a análise da realidade e
de recriá-la por parte dos profissionais, ou seja, de
analisar o ordenamento das realidades e de ativar
vetores de potência contrários àqueles que existem
e se quer modificar.
Integralidade da atenção
A integralidade constitui um tensionamento à
racionalidade biomédica cujo saber fragmenta o
sujeito doente e centra sua ação na busca excessiva
pela cura e na utilização de cuidados especializados
e medicamentosos. Este tensionamento, segundo
Tesser e Luz (2008), passa pela periferia dos
círculos especializados, ou seja, pela atenção
primária
e
pelo
trabalho
em
equipes
multidisciplinares. O Apoio Matricial aparece nas
falas como possibilidade de integralidade pelo
intercâmbio de saberes, pelo desenvolvimento de
competências técnicas e maior segurança quanto à
avaliação de risco e distinção dos recursos
terapêuticos específicos, pelo ganho de maior
autonomia dos profissionais em relação ao
acompanhamento e dos usuários com relação ao seu
cuidado.
[O matriciamento] possibilita com que haja uma
interação entre o profissional da área especializada
e da atenção primária. Esse encontro por si só, ao
meu ver, é importante para que se comece a
desmistificar que saúde mental tem que se deixar a
cargo do especialista. O matriciamento pode se
configurar como organizador da demanda de saúde
mental de um determinado território e é um eixo que
pode contribuir bastante para integralidade do
cuidado. Eu vejo o matriciamento como uma
ferramenta, como um dispositivo fundamental para
promover esta integração do serviço especializado
com a atenção primária. (Gestora)
Agora a gente não pode esquecer o potencial
enorme que a tecnologia tem, um coisa que propõe
um link entre atenção primária e secundária, que
propõe a disseminação do conhecimento acerca da
saúde
mental
pros
profissionais
e
um
empoderamento do paciente. (Enfermeiro)
O Apoio Matricial aponta para um trabalho de
atenção à Saúde Mental que deve extrapolar as
barreiras das especialidades e os muros dos
consultórios, sendo um campo transversal, tecido
no diálogo.
Conclusão
O Apoio Matricial surge em Sobral atrelado a
uma organização do fluxo entre a atenção primária
e secundária compreendendo uma nova abordagem
dos processos pedagógico-assistenciais, sendo
reconhecido como um espaço privilegiado de
integração dos serviços e ações de saúde que
aproxima o cuidado da vida dos sujeitos.
Percebe-se que este arranjo nasce no município
de Sobral sem diretrizes e estratégias bem
definidas, permeado por contradições e lacunas, não
havendo uma compreensão única sobre a sua
implantação, sendo seu início vinculado ao
surgimento das preceptorias (1999) e também à
triagem para a atenção secundária realizada pelos
CSF (2004), assim como se nota que o
conhecimento sobre este arranjo não é tão claro e
apresenta-se atrelado ao termo Preceptoria. Muitos
dos profissionais da ESF desconhecem até o
funcionamento do Apoio Matricial, não se sentem
capacitados para cuidar da demanda de saúde
mental, e o cotidiano dos CSF mostra que há ações
em saúde mental na APS que acontecem de forma
fragmentada e compartimentada. Porém sabe-se que
as equipes que trabalham na ESF são percebidas
como recursos estratégicos por sua proximidade
com as famílias e as comunidades, bem como se
compreende que a saúde mental está inserida na
saúde geral. Logo, este trabalho aponta para a
importância do Apoio Matricial como espaço de
Educação Permanente, como integração das
diferentes intervenções, com vistas a superar a atual
concepção fragmentada de sujeito e cuidado.
O Apoio Matricial é um dispositivo que
apresenta aproximações com a ESF e o Modelo
Psicossocial de cuidado já que possibilita a
integralidade da atenção, participação social,
ampliação do conceito de saúde-doença,
interdisciplinaridade no cuidado e territorialização
das ações. A experiência do Apoio Matricial em
Sobral apresenta-se como cenário de possibilidades
ao cuidado integral em saúde mental, considerando
sua composição por diferentes atores e diferentes
modos de se promover saúde, mas sua incipiência o
torna aberto a possibilidades de descobertas e
inovações e de futuras linhas favorecendo sua
potencialidade de agenciar mudanças nas práticas
hegemônicas da saúde.
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