ECONOMIA
Hélder Muteia *
OS DESAFIoS
DoS SISTEMAS
ALIMENTARES
em áfrica
E
ntretanto, transformar uma
economia colonial extractiva
numa economia mais
equilibrada, diversificada,
integrada, participativa e competitiva
afigurou-se um desafio difícil e
complexo. Os elevados índices
de analfabetismo, a ausência de
uma classe média preparada para
liderar os processos, a falta de infra-estruturas económicas e sociais
adequadas e a precaridade de sistemas
educacionais e de saúde emergiram
como entraves aos ideais de um
desenvolvimento acelerado. Afigurava-se essencialmente difícil estabelecer
consensos sobre agendas políticas,
económicas e sociais, equacionar as
prioridades e mobilizar os recursos
financeiros e humanos para avançar.
Se, por um lado, os indicadores
económicos pareciam dar sinais
de esperança, algumas realidades
Após cinco longos, dolorosos e
dramáticos séculos de exploração colonial, o continente
africano iniciou em meados do
século passado um ciclo de descolonização e relançamento da
sua economia, com a esperança
de sarar as feridas da história
e reclamar um lugar ao sol no
concerto das nações.
sociais conheciam progressos
consideravelmente mais tímidos. A
explosão demográfica exponencial,
os conflitos étnicos e políticos, as
epidemias, as guerras e catástrofes
naturais anulavam alguns dos ganhos
alcançados, e semeavam a incerteza.
Surpreendentemente, a questão
alimentar foi uma das que mais
sofreu com esta situação. Embora
os índices de pobreza e insegurança
alimentar tenham conhecido melhorias
significativas e sistemáticas ao longo
dos anos, esperava-se que o continente
alcançasse progressos mais acelerados
e consistentes. Se estabelecermos
um paralelismo com outras regiões
do mundo com problemas similares (o
Sul da Ásia e a América Latina), pode
observar-se claramente que estas
regiões deram passos significativos
rumo à erradicação da pobreza e
da fome, enquanto a África regista
avanços modestos, ao mesmo tempo
que se avolumam os desafios e
factores retardadores.
Nos últimos 15 anos, por exemplo,
a incidência da fome na África
Subsaariana caiu/passou de 33%
para 24%, mas há um aumento no
número absoluto da fome, que passou
de 176 milhões em 1990-92 para
214 milhões de pessoas em 201214. Já no sul da Ásia, a incidência da
fome caiu de 24% para 16%, com a
China, a Índia e o Vietname a fazerem
grandes progressos. Na América
Latina a percentagem de pessoas em
situação de fome diminuiu de 14%
para 5%, sendo por isso uma das
regiões mais bem-sucedidas na luta
contra a fome. O continente africano,
devido às situações de conflito,
desastres naturais e outros elementos
causadores de instabilidade, ficou
claramente para trás, sendo que
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Estância Turística
agricultura, mas o tipo de agricultura
de subsistência que praticam não
lhes permite sair do ciclo vicioso de
pobreza, miséria e baixa produtividade
em que estão mergulhados.
Nos últimos 30 anos, o continente
viu a sua competitividade no ramo
agrário regredir sistematicamente,
devido a uma conjugação de factores
internos e externos. Por um lado,
questões ligadas ao “rolo compressor
da tecnologia” (os agricultores
africanos não têm acesso aos pacotes
tecnológicos mais modernos e mais
produtivos) e, por outro, os desafios
do mercado internacional que tem
conhecido vagas de dumping e
restrições comerciais que distorcem
os mecanismos e a transparência do
comércio internacional. Nesse período,
o continente passou de exportador
a importador líquido de alimentos.
O consumo de arroz e trigo, por
exemplo, generalizou-se em África,
em detrimento de culturas autóctones.
Os mercados locais definharam em
presença de importações de alimentos
baratos, muitas vezes subsidiados, que
inundaram massivamente o comércio
internacional, contribuindo para o
empobrecimento sistemático das suas
comunidades rurais.
Assim, perante o cenário repleto
de desafios demográficos, ambientais
e sociais, a solução destes problemas
deve passar por uma abordagem mais
integrada dos problemas e soluções,
em todos os elementos do sistema
alimentar. Não apenas considerando as
etapas da cadeia de valores (produção,
processamento, distribuição,
comercialização e consumo), mas
também as suas condicionantes
económicas, sociais, culturais,
demográficas, científicas e ambientais.
Os problemas alimentares
africanos só serão completamente
resolvidos se forem identificadas
soluções específicas para a natureza
e a complexidade dos mesmos, dando
continuidade aos passos iniciados
com a NEPAD (Nova Parceria para
o Desenvolvimento Africano), o
CAADP (Programa Integrado para o
Desenvolvimento da Agricultura em
África) e a Declaração de Maputo
sobre o investimento público em
agricultura.
É importante que esta visão
internacional africana se reflicta nas
políticas domésticas de cada um dos
países. Para que isso aconteça, as
elites urbanas devem aproximar-se
mais dos problemas e realidades
rurais dos seus países; compreender
e sistematizar as raízes culturais
autênticas; e equacionar os desafios
ambientais, económicos e sociais. E a
partir desse diagnóstico traçar ideais
e caminhos, particularmente no que
Foto: Refinaldo Chilengue
Foto: Refinaldo Chilengue
mais do que uma em quatro pessoas
continua a passar fome nos dias de
hoje.
As vantagens comparativas de que
o continente dispõe para a produção
agrícola e alimentar (terras férteis,
água em abundância e recursos
humanos a custos competitivos)
não foram suficientes para conferir
vantagens competitivas na produção
e comercialização de alimentos. A
realidade demonstra que a grande
maioria das pessoas que passam fome
são justamente as que se dedicam à
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Prestígio Janeiro/Fevereiro de 2015
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Estância Turística
diz respeito ao acesso aos recursos
naturais, tecnologia, crédito e mercado.
No que diz respeito aos recursos
naturais, a questão da terra é mais
delicada. Perante a precariedade dos
regimes de uso e usufruto da terra, a
corrida de grandes corporações por
áreas virgens e baratas de cultivo, e
grandes empreendimentos mineiros
que reclamam desmedidas porções
de terras, os agricultores são a classe
mais vulnerável, e carecem de atenção
redobrada. O mesmo se pode dizer em
relação ao acesso à água para irrigação
e para o gado, que é cada vez mais
escassa para os pequenos produtores
rurais.
A questão do acesso às tecnologias
também merece uma reflexão profunda.
Com o desinvestimento abrupto que
ocorreu nos sistemas de investigação e
extensão agrícola, como consequência
das políticas de ajustamento estrutural,
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Prestígio Janeiro/Fevreiro de 2014
houve uma redução da capacidade
de gerar pacotes tecnológicos
específicos para a realidade africana.
As culturas e variedades locais
perderam competitividade. Recorre-se
apressadamente a material genético
importado. Os agricultores não se
adaptam, e todo o sistema alimentar se
desequilibra.
Com a crescente dinâmica do
sector agroalimentar, o crédito é
fundamental para que os agricultores
possam fazer os necessários
investimentos em tecnologia. E
como o sistema bancário formal se
demonstrou incapaz de dar resposta
às necessidades dos pequenos
produtores, é fundamental buscar
soluções complementares a nível do
microcrédito.
A problemática do acesso ao
mercado é multifacetada. A sistemática
perda de espaço do mercado local
pelos pequenos agricultores condiciona
a sua participação em mercados mais
competitivos. A recuperação deve ser
iniciada exactamente aí, privilegiando
os circuitos curtos, a valorização
dos produtos locais, e uma aposta
crescente na qualidade.
Urge, ao mesmo tempo, abordar o
problema crónico das infra-estruturas,
de transporte e comunicação, priorizar
a alfabetização e a educação dos
produtores, desenvolver programas
de pesquisa e geração de tecnologia,
incentivar a integração consistente no
comércio internacional, promover a
sustentabilidade ambiental e promover
a erradicação das formas mais
gritantes de injustiça social, como o
desequilíbrio de género. P
* Responsável do Escritório da FAO em
Portugal, escreveu em exclusivo para a
revista Prestígio
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Prestígio (jan/fev 2015)