PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL E PSICANÁLISE Profa Dra Maria Virgínia Filomena Cremasco EMENTA O sofrimento humano na perspectiva psicoterapêutica. A Psicopatologia Fundamental e o sofrimento das singularidades subjetivas. Metapsicologia das psicopatologias contemporâneas. Objetivos: Refletir sobre o conceito de pathos e sofrimento humano na perspectiva psicoterapêutica. Fundamentar a Psicopatologia Fundamental no sofrimento singular e na sua manifestação na constituição do sujeito. Ampliar possibilidades de enfoques das atividades clínicas e suas possibilidades de aplicação. Conteúdo (TEMAS) 1) O que é Psicopatologia Fundamental? 2) A Psicopatologia Fundamental e o sofrimento singular: dimensões do pathos (Fédida e Berlinck). 3) Aspectos metapsicológicos das psicopatologias contemporâneas. 4) O lugar da psicopatologia hoje. Avaliação: 2 provas em grupo (sem consulta) Média da disciplina: 2 Provas + trabalho individual Será cobrada presença em aula número de faltas permitidas:3 CRONOGRAMA DAS AULAS: quartas das 13:30 às 15:10 AGO SET OUT NOV 11 Apresentação 01 TEMA 2 06 TEMA 3 03 TEMA 4 18 TEMA 1 08 CONGRESSO 13 TEMA 3 10 TEMA 4 25 TEMA 1 15 TEMA 2 20 TEMA 3 17 PROVA 22 TEMA 2 27 TEMA 4 24 Trabalho individual 29 PROVA DEZ 01 TEMA 1: O QUE É PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL A palavra "Psico-patologia" é composta de três palavras gregas: "psychê", que produziu "psique", "psiquismo", "psíquico", "alma"; O SOFRIMENTO PSÍQUICO NA PERSPECTIVA DA PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL (in Ceccarelli, P. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 3, p. 471-477, set./dez. 2005) http://www.ceccarelli.psc.br/ "pathos", que resultou em "paixão", "excesso", "passagem", "passividade", "sofrimento", "assujeitamento", "patológico“; "logos", que resultou em "lógica", "discurso", "narrativa", "conhecimento". PSICOPATOLOGIA Psico-pato-logia, seria, então, um discurso, um saber, (logos) sobre a paixão, (pathos) da mente, da alma (psichê). Ou seja, a psicopatologia é um discurso representativo (logos) a respeito do pathos psíquico; um discurso sobre o sofrimento psíquico. Discurso pluridimensional As tentativas de compreensão, estudo e tratamento do sofrimento psíquico, ou seja, de "decompor" este sofrimento em seus elementos básicos, deram lugar a várias metapsicopatologias, cada uma com referenciais próprios e diferentes perspectivas teórico-clínicas. Hoje, o termo "psicopatologia" encontra-se associado a um grande número de disciplinas que se interessam pelo sofrimento psíquico. DISCURSOS EM PSICOPATOLOGIA Isso trouxe um problema tanto do diálogo intercientífico entre as diferentes abordagens teóricas de cada uma destas disciplinas, quanto da confrontação crítica dos modelos por elas utilizados, o que evidencia que o fenômeno psíquico não é redutível a uma única forma discursiva. Por não haver uma rede redes significante única, uma trama discursiva última, onde os elementos básicos da psicopatologia são acolhidos, vemos o fenômeno patológico ser repartido em uma pluralidade de Metapsicopatologias: a freudiana, a lacaniana, o outras tantas, são alguns exemplos. Ao mesmo tempo, estes elementos básicos da Psicopatologia devem ser submetidos a interrogações sobre suas condições de possibilidade. Isto significa que devem ser objeto de uma ciência primeira que o psicanalista francês Pierre Fédida denomina Psicopatologia Fundamental. PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL Uma Psicopatologia Primeira, convocada a dar conta da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade presentes na Psicopatologia hoje. A preocupação central da Psicopatologia Fundamental é de contribuir para a redefinição do campo do psicopatológico, propondo uma reflexão crítica dos modelos existentes e uma discussão dos paradigmas que afetam nossos objetos de pesquisa, nossas teorias e práticas. Isso significa que a Psicopatologia Fundamental reconhece e dialoga com outras leituras psicopatológicas. A Psicopatologia Fundamental é um projeto de natureza intercientífica A comparação epistemológica dos modelos teórico-clínicos e de seus funcionamentos propiciaria a ampliação do limite e da operacionalidade de cada um destes modelos e, consequentemente, uma transformação destes últimos. Tal projeto levaria à construção de um espaço teórico-clínico, com fundamentos próprios, que permitiria a coexistência, o diálogo e o intercâmbio, dos diferentes modelos conceituais tanto no interior da própria psicopatologia quando os de outras ciências - neurociências, imunologia, farmacologia, oncologia e outros tantos - que lidam com o pathos. A Psicopatologia Fundamental é o fórum de toda a metapsicopatologia. TRANSDISCIPLINARIDADE Entretanto, é importante frisar, que não se trata de uma interdisciplinaridade mas, antes, de uma transdiciplinaridade pois, campos diferentes, cada qual com métodos, procedimentos e objetivos que lhe são próprios não se comunicam facilmente. A transdiciplinaridade reúne, em uma ampla rede de significações, os conhecimentos específicos e singulares de cada modelo em torno de uma concepção ética comum aos diferentes saberes. Isso possibilitará a existência de um campo discursivo que produza interações e leve à construções metafóricas. Laboratórios de Psicopatologia Fundamental Os Laboratórios de Psicopatologia Fundamental são, como o nome indica, locais (tórios) de trabalho (labor). Um Laboratório de Psicopatologia Fundamental é, então, um local para se trabalhar a Psicopatologia. Estes Laboratórios estão integrados em uma Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental que englobam universidades brasileiras e estrangeiras. REFERÊNCIA TEÓRICA No epicentro da Psicopatologia Fundamental, cujo campo conceitual organiza-se em torno da referência psicanalítica, encontra-se o patei mathos esquileano: aquilo que o sofrimento ensina. Resgate do Pathos: ensinamento Trata-se de resgatar o pathos, como paixão, e escutar o sujeito que traz uma voz única a respeito de seu pathos transformando aquilo que causa sofrimento em experiência, em ensinamento interno. Transformar o pathos em experiência significa, também, considerá-lo não apenas como um estado transitório mas, e talvez sobretudo, como "algo que alarga ou enriquece o pensamento" SUJEITO TRÁGICO Cria-se um discurso sobre as paixões, sobre a passividade, sobre o sofrimento, enfim, sobre o sujeito trágico. Encontramos aqui a essência de "Psicopatologia": o conhecimento, da paixão, do sofrimento, psíquico. O pathos, em si, nada ensina não conduzindo senão à morte. Quando a experiência é, ao mesmo tempo, terapêutica e metapsicológica, estamos no âmbito da Psicopatologia Fundamental. A proposta da Psicopatologia Fundamental é pensar a questão páthica, a paixão, como dimensão inerente do Ser. Psicopatologia única Trata-se de "criar" uma psicopatologia própria para cada sujeito, que lhe permita transformar em experiência as manifestações de seu pathos. Embora a Psicopatologia Fundamental não dispense os saberes adquiridos por outras psicopatologias que contribuem para a compreensão do sofrimento psíquico - a filosofia, a psicologia, psicanálise, a literatura, as artes, o jornalismo, etc - ela não está tão interessada na descrição e classificação da doença mental, mesmo porque esta noção vem apresentando grandes transformações. DIAGNÓSTICO A noção de doença mental é tão estranha à Psicopatologia Fundamental como à medicina contemporânea. Nessa perspectiva, o diagnóstico é apenas um recurso para orientar o psicoterapeuta na escuta do paciente e não pode ser utilizado nem para a cronificação nem para discriminar socialmente o paciente. No nosso campo específico de atuação, o da psicologia, o psicólogo é aquele que estuda, que tem o conhecimento - o logos - da alma, da mente - da psyché. Porém, a complexidade intrínseca do psicopatológico indica que o nosso objeto de trabalho - o pathos - não é apreensível por um discurso único e muito menos redutível à uma ideologia que o unifique. PSICOPATOLOGIAS Daí ser necessário que o estudante de psicologia tenha contato com a multiplicidade das "psicopatologias" fenomenológica, existencialista, comportamental, humanista, centrada, psicanalítica, as estruturas clínicas lacanianas e outras tantas - para que ele se dê conta que a psicopatologia constitui um vasto território habitado por diferentes perspectivas epistemológicas com metodologias próprias e irredutíveis. Cada discurso propõe, dentro do referencial que lhe é próprio, diferentes leituras do fenômeno observado ou, se preferirmos, diferentes leituras do real. É, justamente, esta possibilidade que caracteriza o discurso científico: por em dúvida a certeza sobre a qual determinada enunciação repousa. Nesta perspectiva, o ensino da psicopatologia no curso de psicologia deveria ser feito a partir dos vários discursos sobre o pathos. Uma aula ideal, deveria contemplar a presença de psicopatólogos de diferentes filiações onde, a partir de uma determinado fenômeno psíquico, cada teoria tivesse direito à palavra. Teríamos, neste caso, um exercício legítimo da transdisciplinaridade: uma confrontação de modelos onde aquilo que pode parecer óbvio para um seria motivo de perguntas para outro. Um exemplo: vários autores da Escola Inglêsa, Masud Khan por exemplo, relatam casos clínicos de perversão trabalhados com êxito. Já para a Escola Francesa de Jacques Lacan a perversão é vista como estrutura, resiste à psicanálise e o perverso não é analisável. Neste ponto o interessante seria o confronto entre estes dois modelos justamente para mostrar como o modelo não só determina a prática como direciona a escuta. A pergunta então que fica é a seguinte: existe um modelo mais verdadeiro que outro, ou é a nossa transferência que determina nossas escolhas teóricoclínicas? Muitas vezes, infelizmente, frente ao sentimento de estranheza (Unheimlich) que se produz quando o pathos daquele que nos procura faz, mais uma vez, reviver em nós "complexos infantis que haviam sido recalcados", apressamo-nos a buscar respostas que confortem nossas angústias. Para evitar isso, devemos estar atentos às formas discursivas que apresentam respostas para tudo e, ao mesmo tempo, não suportam críticas: quando os conceitos teóricos transformam-se em dogmas, nos quais qualquer atividade crítica é severamente punida. Não podemos nos esquecer que a dimensão imaginária da transferência pode transformar uma teoria em Verdade incontestável. É neste sentido, vale a pena repetir, que as diversas abordagens do fenômeno psíquico devem ser reconhecidas como possíveis. Sem este reconhecimento, a nossa prática de psicólogos - a prática daqueles que têm o logos psíquico – corre o risco de apresentar-se de forma perversa. Certa vez, um urso faminto perambulava pela floresta em busca de alimento. A época era de escassez, porém, seu faro aguçado sentiu o cheiro de comida e o conduziu a um acampamento de caçadores. Ao chegar lá, o urso, percebendo que o acampamento estava vazio, foi até a fogueira, ardendo em brasas, e dela tirou um panelão de comida. Quando a tina já estava fora da fogueira, o urso a abraçou com toda sua forca e enfiou a cabeça dentro dela, devorando tudo. Enquanto abraçava a panela, começou a perceber algo lhe atingindo. Na verdade, era o calor da tina.... Ele estava sendo queimado nas patas, no peito e por onde mais a panela encostava. O urso nunca havia experimentado tal sensação, e então, interpretou as queimaduras pelo seu corpo como uma coisa que queria lhe tirar a comida. Começou a urrar muito alto. E, quanto mais alto rugia mais apertava a panela quente contra seu imenso corpo. Quanto mais a tina quente lhe queimava, mais ele apertava contra o seu corpo e mais alto rugia. Quando os caçadores chegaram ao acampamento, encontraram o urso recostado a uma árvore próxima à fogueira, segurando a tina de comida. O urso tinha tantas queimaduras que o fizeram grudar na panela e, seu imenso corpo, mesmo morto, ainda mantinha a expressão de estar rugindo. Em nossa vida, por muitas vezes, abraçamos certas coisas que julgamos importantes. Algumas delas nos fazem gemer de dor, nos queimam por fora e por dentro, e mesmo assim, ainda as julgamos importantes. Temos medo de abandoná-las e esse medo nos coloca numa situação de sofrimento, de desespero. Apertamos essas coisas contra nossos corações e terminamos derrotados por algo que tanto protegemos, acreditamos e defendemos. É necessário reconhecer, em certos momentos, que nem sempre o que parece salvação, vai lhe dar condições de prosseguir. Tire de seu caminho tudo aquilo que faz seu coração arder. Solte a panela!