ID: 47775233
20-05-2013
Tiragem: 41267
Pág: 45
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 20,12 x 22,89 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Um avanço
civilizacional?
N
João Carlos Espada
Cartas de Varsóvia
a sexta-feira passada, a
Assembleia da República
aprovou por escassa
margem legislação que
permite a chamada “coadopção de crianças”
por casais homossexuais,
(tendo simultaneamente
rejeitado projectos para a
chamada “adopção plena”).
Este resultado foi classificado como
“avanço civilizacional” por alguns dos
seus defensores. Não creio que seja claro,
todavia, de que avanço se trata.
A defesa da medida funda-se basicamente
no argumento da não discriminação.
Recusar a adopção por homossexuais seria
uma discriminação e a discriminação é um
abuso que não deve ser tolerado.
O argumento é válido, se disser respeito a
discriminações arbitrárias. Mas nem todas
as discriminações são arbitrárias. Se um
anúncio de emprego pedir economistas, ele
está a discriminar contra todos os que não
são economistas. Um campeonato de ténis
para pares mistos está a discriminar contra
os pares não mistos. A idade mínima para
votar, ou para conduzir, ou para consumir
álcool está a discriminar contra todos os
que têm idade inferior a esse mínimo.
Estes são apenas alguns exemplos de
discriminações legais que são em regra
aceites consensualmente. Isso deve-se a que
a discriminação em causa tem relevância
funcional, isto é, assenta num requisito
discriminatório que é julgado relevante
para a função pretendida.
Por este motivo, não basta dizer que uma
dada regra é discriminatória para poder
concluir que ela é injusta. É preciso saber
se a discriminação tem ou não relevância
funcional.
No caso da adopção, a função pretendida
é bastante clara. Trata-se de proporcionar
um ambiente familiar saudável à criança
ou crianças adoptadas. Idealmente, o
juízo sobre essa matéria deveria competir
ao interessado, isto é, à criança. No
entanto, devido a uma discriminação que
aceitamos como funcionalmente relevante,
consideramos que essas escolhas não podem
ser feitas por menores, sobretudo crianças.
É por isso que o legislador fica, então,
com a pesada responsabilidade de decidir
se casais homossexuais podem ou não,
em regra, garantir um ambiente familiar
saudável para as crianças, comparável, em
regra, ao dos casais heterossexuais.
Não creio que esta pergunta possa
ser respondida com segurança. Temos
experiência milenar de famílias
heterossexuais com filhos, mas não temos
experiências representativas comparáveis
de famílias homossexuais com crianças.
Não podemos por isso comparar dados
empíricos com relevância comparável.
Perante esta ignorância fundamental,
temos de escolher uma presunção,
não uma certeza. A presunção que tem
prevalecido até agora é semelhante à
presunção de inocência. Quando alguém é
acusado, presumimos que é inocente, até
ser provado culpado. Em caso de dúvida,
preferimos considerá-lo inocente — não
porque saibamos que é inocente, mas
apenas porque não sabemos se é culpado.
O caso da adopção é muito semelhante.
Nós na verdade não sabemos, nem
devemos fingir que sabemos, que os
casais homossexuais serão prejudiciais
às crianças. O que sabemos é que não
sabemos. Não sabemos se, em regra, o
ambiente familiar proporcionado por
casais homossexuais será ou não favorável
às crianças.
Em rigor, haveria uma forma de tirar a
limpo esta dúvida: fazer experiências com
números alargados de crianças adoptadas
por casais homossexuais e comparar os
resultados com crianças adoptadas por
casais heterossexuais. Mas existe um
escrúpulo moral, ou civilizacional, que
não nos permite: esse escrúpulo proíbenos de fazer experiências com menores.
Teremos, por isso, de continuar a viver
com a ignorância acerca do impacto de
ambientes familiares homossexuais na
educação dos menores.
É daqui — e não de uma alegada
discriminação homofóbica — que resulta a
norma legal tradicional que veda a adopção
por casais homossexuais. Não havendo
certezas sobre o impacto dos casais
homossexuais na educação de menores, é
necessário adoptar
uma presunção.
Dado que a
relevância funcional
da adopção reside
em proporcionar
o melhor possível
para a criança,
optamos pela
presunção prudente
de proteger a
criança de uma
solução cujos
resultados não
conhecemos.
Ao alterar esta
presunção, como
foi parcialmente
decidido na
passada sexta-feira,
nós estamos na
verdade, embora
provavelmente sem
plena consciência
disso, a alterar a
presunção favorável
à criança. Estamos
a dizer que, na
dúvida, preferimos
que a presunção favoreça a escolha dos
adultos que querem adoptar, em vez de
proteger a criança que vai ser adoptada.
Não estou seguro de que esta mudança de
presunção corresponda efectivamente a um
avanço civilizacional.
Estamos a dizer
que, na dúvida,
preferimos que
a presunção
favoreça
a escolha
dos adultos
que querem
adoptar, em vez
de proteger a
criança que vai
ser adoptada
Professor universitário, IEP-UCP
e Colégio da Europa, Varsóvia.
Escreve à segunda-feira
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Um avanço civilizacional?