A ditadura do Judiciário
Prestes a completar dez anos de atividade profissional, resolvi escrever
sobre um tema que tem me gerado desconforto desde a oposição dos meus
primeiros embargos de declaração: o entendimento de que o juiz não está
obrigado a analisar todos os fundamentos de fato e de direito levantados pelas
partes no curso do processo.
Na prática, o que tem acontecido pode ser exemplificado: o autor pede
ao Judiciário que condene o réu, sob o fundamento X e Y. O juiz e o Tribunal
analisam apenas o fundamento Y e rejeitam o pedido do autor.
Outro exemplo: o autor pede a condenação do réu, alegando que o fato
A está provado pelos documentos B e C, e os julgadores rejeitam o pedido do
autor, dizendo que o documento B não faz prova do alegado.
Tanto num como noutro caso, o autor se vê obrigado a opor o recurso
cabível, os embargos de declaração, para sanar a omissão.
Ora afirmando que a decisão está suficientemente fundamentada, ora
sob a invocação do princípio do livre convencimento ou ora sob a premissa de
que o juiz não está obrigado a responder um a um os argumentos das partes,
os embargos de declaração são, em regra, rejeitados, sendo raríssimos os
casos de acolhimento deste recurso, muito embora seja freqüente o seu uso
pelas partes.
Tive a oportunidade de estudar a monografia “Omissão Judicial e
Embargos de Declaração”, tese de livre docência da professora Teresa Arruda
Alvim Wambier, estudo que de certa forma me aliviou por saber que não estou
sozinho neste desconforto, que, aliás, é compartilhado por ela e por outros
renomados professores de direito, tal como Antônio Magalhães Gomes Filho.
Durante o desenvolvimento da sua tese, a professora, além de tecer
duras críticas aos julgados que aplicam o entendimento que também me
proponho a criticar, elenca as finalidades da regra segundo a qual as decisões
judiciais têm de ser motivadas, sim, de acordo com os argumentos das partes:
a) em primeiro lugar, a motivação completa, ou seja, aquela que leva em
consideração, expressamente, os argumentos das partes, oferece elementos
concretos para que se possa aferir a imparcialidade do juiz; b) em segundo
lugar, a motivação completa permite verificar a legitimidade da decisão; c) em
terceiro lugar, garante-se às partes a possibilidade de constatar terem sido
ouvidas.
Ainda, mas não menos importante, a motivação completa permite tornar
possível um controle generalizado e difuso sobre o modo como o Estado
administra a Justiça.
Outro jurista a demonstrar insatisfação com o modo atual de se distribuir
Justiça foi Lênio Streck, para quem a discricionariedade dos juízes, que
estariam adotando teses cada vez mais voluntaristas e decidindo como
querem, é um dos graves problemas que estão influindo decisivamente na
qualidade da prestação jurisdicional.
De fato, são cada vez mais freqüentes as decisões que, dizendo, nada
dizem, como, por exemplo, aquelas decisões-carimbo que negam a concessão
de uma medida liminar, afirmando, e só, que “não estão presentes os requisitos
necessários à concessão da liminar”, e também aquelas que, julgando agravos
regimentais, limitam-se a afirmar que “a parte não trouxe nenhum elemento
novo que pudesse alterar a decisão monocrática”.
Não se pode dizer que a necessidade de motivação completa das
decisões interferiria na independência dos juízes. Estes não perderão, ao
contrário, reafirmarão sua independência, ao motivar suas decisões levando
em consideração, expressamente, as questões levantadas pelas partes.
Faço observar que não basta dizer, para rejeitar os embargos de
declaração, como se tem feito, que “a decisão está suficientemente motivada”
ou que “os argumentos levantados pela parte não são relevantes”, porque isto
equivaleria a dizer, como afirmado por Teresa Arruda Alvim Wambier, que “a
parte teria o direito ao pronunciamento judicial, mas exclusivamente sobre
aquilo que o órgão jurisdicional considerasse relevante”.
Sabemos, no entanto, que não é assim, na medida em que a
Constituição assegura a inafastabilidade do controle jurisdicional, que ficaria,
segundo a jurista que inspirou a elaboração deste texto, “seriamente
comprometida se o autor tivesse o direito de submeter sua pretensão ao
Judiciário, e uma série de razões em função das quais afirma ter esse direito, e
a este direito não correspondesse o dever do Judiciário no sentido de examinar
todas elas”.
Pior ainda é quando o advogado, indispensável à administração da
Justiça, consoante o texto constitucional, vendo-se na contingência de opor
embargos de declaração para honrar a sua procuração e defender os
interesses do seu cliente, acaba sendo visto como alguém que impede o
funcionamento da Justiça, e assiste o seu cliente ser condenado a pagar multa
por interpor recurso “protelatório”, quando a intenção era a de ver o julgado
aclarado e a jurisdição prestada de forma transparente.
Não há dúvida, portanto, de que a atual jurisprudência é perigosa e
causa insegurança e incerteza na sociedade em geral, que hoje não tem um
mecanismo de controle das decisões judiciais tão eficiente e necessário quanto
teria se o princípio do acesso ao Judiciário e da motivação estivessem sendo
observados, com o espírito democrático que a Constituição reclama.
Da forma como o fenômeno da motivação incompleta tem evoluído,
teremos decisões cada vez mais arbitrárias, como muitas que hoje já se vê, em
que os juízes elegem o fundamento pelo qual querem julgar e desprezam o
material argumentativo das partes.
É um cenário que inspira cuidados, pois a busca por celeridade e o livre
convencimento dos juízes, que hoje são os principais argumentos de defesa da
atual jurisprudência que defende a motivação incompleta ou a desmotivação,
não podem se transformar em pretexto para o sacrifício da correta prestação
jurisdicional, que, nas palavras da Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, é a
primeira das garantais constitucionais dos direitos fundamentais.
Concluindo, o entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não
está obrigado a responder os argumentos da parte, só contribui para
concentrar poderes discricionários nas mãos dos juízes e para reduzir a
importância dos argumentos do advogado, e logo do advogado na
administração da Justiça, levando-nos, na vigência de uma Constituição que
nasceu para instituir um Estado Democrático de Direito, a vivenciar a
institucionalização da ditadura do Judiciário.
José Belga Assis Trad, advogado e conselheiro seccional da OAB/MS.
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