UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA
LARA ROCHA SILVA
BEATRIZ SANTANA CAÇADOR
FRANCIANE SILVA LUIZ
MARIA JOSÉ MENECES BRITO
GIOVANE DE LELIS CUPERTINO
O TRABALHO DO ENFERMEIRO NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: ENTRE O
PRESCRITO E O REAL
VIÇOSA
2014
0
RESUMO
Pesquisa qualitativa cujos sujeitos foram 15 enfermeiros de um município do interior de
Minas Gerais. Objetivo foi compreender a percepção dos enfermeiros da Estratégia de Saúde
da Família (ESF) acerca de seu cotidiano de trabalho. A coleta de dados foi realizada por
meio de entrevista orientada por roteiro semi-estruturado e análise temática dos dados à luz da
Análise de Conteúdo. Evidencia-se que os enfermeiros ainda não se apropriaram das
possibilidades de práticas emancipatórias trazidas pela ESF. A consulta de enfermagem, as
práticas educativas e a perspectiva de promoção da saúde são negligenciadas em detrimento
da realização de atividades que não são de sua competência específica. As dificuldades
retratadas pelos profissionais revelam a desvalorização deste profissional na ESF. Condições
de trabalhos inapropriadas, exigências de funções que poderiam ser executadas por outros
profissionais e a desvalorização das atribuições do enfermeiro evidenciam as fragilidades
existentes na gestão no que tange a viabilização das condições estruturais do processo de
trabalho em saúde. Além disso, destaca-se os desafios paradigmáticos de inserção da proposta
da ESF em um contexto de valorização de práticas curativistas a qual gera distanciamento
principalmente das práticas educativas. As facilidades retratadas revelam que as interações
entre a equipe e o reconhecimento do enfermeiro pela população delineiam uma
reconfiguração das representações sobre o papel e importância deste profissional. Conclui-se
que este trabalho permitiu desvelar a relação entre a prática do enfermeiro e a construção de
seu modo de ser profissional. Dessa forma, aspectos subjetivos e objetivos permeiam o
cotidiano na ESF de tal modo que os arranjos organizacionais e a percepção dos enfermeiros
sobre seu trabalho participam da complexa trama de transformação do modelo assistencial em
saúde. O cotidiano de trabalho do enfermeiro da ESF é marcado pelo distanciamento entre as
possibilidades de emancipação de prática profissional trazidas pela política social de saúde e a
reprodução do modelo biomédico. Entretanto, mesmo que de forma incipiente, a ESF já
evidencia avanços na reconfiguração da identidade profissional do enfermeiro neste contexto
de trabalho tais como valorização e reconhecimento pela comunidade.
Palavras-chaves: Enfermagem; Estratégia Saúde da Família; Condições de Trabalho.
1
SUMÁRIO
CAPA ARTIGO..........................................................................................................................4
FOLHA DE ROSTO ARTIGO...................................................................................................5
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................6
DESENVOLVIMENTO.............................................................................................................8
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................22
REFERÊNCIAS........................................................................................................................23
2
INTRODUÇÃO
A Oitava Conferência de Saúde no Brasil representou um marco nos debates sobre a
saúde, uma vez que as discussões nela desenvolvidas culminaram na criação do artigo 196 da
Constituição Federal. Este artigo determina a saúde como direito de todos e dever do estado¹.
Esta conquista política e social pode ser atribuída a diversos esforços e lutas empreendidas
pelo movimento da Reforma Sanitária, entre 1976 e 1988¹. Por meio da lei 8080/90 a criação
do Sistema Único de Saúde (SUS) que juntamente com a lei 8142/90 permitem sua
implantação no país ¹, ².
No ano de 1991 ocorre a criação do Programa dos Agentes Comunitários de Saúde
(PACS), pelo Ministério da Saúde, a fim de contribuir para a redução das mortalidades
infantil e materna. Por meio dos êxitos deste programa, verificou-se a importância dos
Agentes para os serviços básicos de saúde no município e a necessidade de criação de um
programa que atendesse não somente o individuo, mas também a sua família³. Sendo assim,
no ano 1994, surgem no Brasil as primeiras equipes do Programa Saúde da Família (PSF) as
quais tem como unidade de cuidado a família compreendida em seu contexto simbólico,
cultural e social, como forma de superar o modelo assistencial centrado na doença e na
dimensão biológica dos sujeitos4.
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), lançada no ano de 2006, designa a
ESF como uma estratégia prioritária para a reorganização da atenção básica no Brasil 6. Esta
estratégia tem como centro da atenção a família, facilitando a aproximação e a criação de
vínculos entre os profissionais e usuários5.
No ano de 2012 foi lançada uma nova versão da Política Nacional de Atenção Básica.
Neste documento diversas atribuições para o enfermeiro são apresentadas, dentre as quais
podemos citar: realizar o acompanhamento de todos os membros cadastrados na ESF’s;
realizar consultas de enfermagem, procedimentos, encaminhamentos e prescrever medicações
conforme protocolos; realizar atividades educativas com os usuários da unidade e promover a
capacitação dos demais membros da equipe; planejar, gerenciar e avaliar as ações dos agentes
comunitários e gerenciar os insumos da unidade7.
Com a decorrente evolução do SUS no país, a criação das ESF’s e a incorporação da
PNAB, evidencia-se a necessidade de reconfigurar os modos de ser dos profissionais de saúde
e, por conseguinte, novas prerrogativas de formação profissional a fim de se consolidar novos
3
modos de fazer saúde consonantes com o novo paradigma trazido pela política social de saúde
no país8.
No que tange ao processo de trabalho do enfermeiro na ESF a literatura evidencia que
esta estratégia possibilita maior reconhecimento profissional, autonomia bem como um maior
controle sobre seu processo de trabalho e ao saber a ele associado9,
10
. Entretanto, é possível
perceber que o cotidiano do enfermeiro na ESF é marcado pelo distanciamento entre a
dimensão prescrita e a dimensão real de tal modo que a prática reproduz o modelo
hegemônico centrado na doença e nos procedimentos.
Este contexto influencia a consolidação do SUS e da ESF como campo potencialmente
emancipador para as práticas de enfermagem e para a transformação do processo de trabalho
em saúde11. Percebe-se, dessa forma, que o enfermeiro na ESF “desenvolve inúmeras
funções, que poderiam ser compartilhadas, sobrecarregando-o e dificultando o cumprimento
das atribuições inerentes a sua profissão” 12 (p. 265).
Pesquisa de Marques e Silva13 revela ainda que os enfermeiros se sentem insatisfeitos
na realização de seu trabalho no âmbito da ESF devido à sobrecarga de trabalho e à demanda
excessiva nos serviços associados a falta de respaldo institucional e da gestão impossibilitam,
muitas vezes, intervenções na comunidade para além dos muros do centro de saúde,
reproduzindo a forma tradicional de se fazer saúde. Assim, o que se tem percebido é que “no
cotidiano da profissão os enfermeiros não têm desempenhado seu próprio papel” 10 (p.149).
Ademais, tal contradição da realidade me foi revelada durante a observação empírica
quando bolsista de projeto de extensão desenvolvido durante um ano em uma EFS’s. Na
oportunidade, foi possível perceber que o enfermeiro tem restringido sua prática a ações
burocráticas a despeito de todas as possibilidades de intervenção que lhes são permitidas a
partir da implantação da ESF. Sendo assim, por muitas vezes, deixam de desenvolver as
atribuições preconizadas pelo Ministério da Saúde e perpetuam o modo tradicional de fazer
saúde. Diante desse contexto, surge a inquietação com relação à subjetividade desses
enfermeiros e a forma como percebem seu processo de trabalho na ESF. Assim sendo,
questiona-se: Como os enfermeiros da ESF percebem o seu processo de trabalho?
Diante do exposto a pesquisa teve como objetivo compreender a percepção dos
enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família sobre seu processo de trabalho.
Descrição da metodologia
4
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa tendo em vista os aspectos subjetivos
implicados no objeto de estudo: a percepção dos enfermeiros sobre seu processo de trabalho
no contexto da ESF. Segundo Chizzottiz14 a pesquisa qualitativa permite uma partilha com as
pessoas, fatos e locais, ou seja, os objetos da pesquisa, para extrair significados e expressá-los
em um texto.
Foram sujeitos 15 enfermeiros atuantes nas ESF’s de uma cidade do interior de Minas
Gerais. Foram excluídos da pesquisa 3 profissionais, os quais atendiam os seguintes critérios
de exclusão: estavam de férias, atestado médico ou licença saúde.
Os dados da pesquisa foram coletadas por meio de entrevistas abertas, seguindo o
roteiro semiestruturado. Segundo Boni e Quaresma15 as entrevistas abertas permitem maior
exploração de uma questão. Estes autores salientam que durante as resposta, o entrevistador,
deve assumir uma postura de ouvinte e somente no caso de extrema necessidade, ou para
evitar o término precoce da entrevista deve interferir. As entrevistas foram gravadas
individualmente, com data e hora marcadas com antecedência, entre os meses de setembro e
outubro de 2014. As questões orientadoras foram: qual o cotidiano de trabalho na ESF do
enfermeiro; qual é para o enfermeiro atuante o seu papel na ESF; se ele consegue realizar esse
papel; quais dificuldades e/ou facilidades ele encontra no seu cotidiano.
Ao serem coletadas as entrevistas, elas foram transcritas na íntegra e analisadas sob a
ótica de análise de conteúdos, segundo Bardin16, seguindo as etapas: pré-análise, exploração
do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
O estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal de Viçosa, registrado sob o CAEE 31235314.1.0000.5153. No início da entrevista,
foram abordados de forma breve o tema de estudo e esclarecidas às questões éticas, com a
leitura e posterior assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE),
conforme a Resolução de número 466 de 12 de dezembro de 2012 17. Para a identificação das
falas dos enfermeiros, preservando-se o anonimato, foram utilizadas as denominações “E1,
E2..E15”.
Resultados e discussões
De acordo com os dados obtidos e submetidos à Análise de Conteúdo, emergiram duas
categorias que se relacionam com a percepção dos enfermeiros sobre o seu trabalho na
Estratégia de Saúde da Família.
5
Com relação ao perfil dos sujeitos entrevistados, a faixa etária dos variou entre 28 a 50
anos, sendo que a média de idade foi de 36 anos. Pode-se observar que esta média vai ao
encontro da população economicamente ativa dos serviços de saúde brasileira18. Os
entrevistados foram em sua maioria do sexo feminino. Tal predominância reforça a identidade
historia da enfermagem que tem com base o cuidado realizado pelas mulheres19. O tempo de
serviço na ESF atual variou de cinco meses a cinco anos. O tempo médio de trabalho é de
dois anos e quatro meses e 5 enfermeiros (30%) apresentam menos de um ano no atual
serviço, fato este que demonstra a grande rotatividade existente na ESF20.
O período de formação variou de 1987 a 2011. Destes 9 enfermeiros (60%), se
formaram a menos de 10 anos, período em que a ESF já estava implantada. O tempo de
serviço total na ESF alternou entre três anos e seis meses e vinte e sete anos, sendo que a
média foi de oito anos e cinco meses. Este dado é de grande relevância, pois tem-se como
pressuposto que quando maior o tempo de atuação em um serviço maior a probabilidade de
conhecimento sobre o mesmo, facilitando a análise da percepção dos profissionais acerca do
seu trabalho.
O trabalho do enfermeiro na Estratégia Saúde da Família: entre o prescrito e o real
A prática do enfermeiro na ESF se desenvolve em um contexto de transição do modelo
assistencial sendo, por esta razão, permeada por conflitos e disputas ideológicas e políticas
que afetam a composição dos arranjos organizacionais os quais, por sua vez, determinam as
condições de realização desta prática. Sobre a prática do enfermeiro na ESF, é possível
perceber que a despeito de todas as possibilidades inovadoras de se fazer saúde trazidas pelo
novo modelo de atenção, ainda predominam a intervenção sobre o corpo individual, em uma
perspectiva de cura e tratamento. Há, pois, um distanciamento entre o que esta prescrito como
atribuição do enfermeiro na ESF e aquilo por ele desempenhado de fato11.
Sobre o distanciamento entre o prescrito e a dimensão concreta da realidade, Chanlat
21
afirma que nas organizações há sempre uma lacuna entre a dimensão prescrita e a dimensão
real, podendo gerar conflitos e tensões no cotidiano de trabalho.
O trabalho real é produto de modificações feitas no trabalho prescrito, sendo essas
modificações determinadas pelas crenças, valores e subjetividade dos sujeitos que, com sua
prática, reconfiguram as normas. Com isto percebe-se que o prescrito é algo incompleto, pois
necessita sempre dos sujeitos para que se torne concreto22.
6
Em consonância com essa perspectiva, Peixoto23 determina que sempre haverá uma
distancia entre o prescrito e real, mesmo que o trabalho seja pensado e executado pela mesma
pessoa. Sendo assim o sujeito precisa mobilizar a sabedoria e a racionalidade bem como
conhecimento para transformar os imprevistos em situações viáveis.
Sobre a dimensão prescrita do trabalho Brito (2008) apud Bertoncini, (2011, p 70)22
discorre que:
O trabalho prescrito [...] envolve: os objetivos, metas e resultados a
serem atingidos; os procedimentos pré-definidos; as regras
(oralmente ou por escrito) emanadas da estrutura hierárquica; os
protocolos, normas técnicas; os meios técnicos disponíveis; a divisão
do trabalho; os prazos previstos; condições sócio-econômicas como
qualificação exigida e salário.
No que se refere ao trabalho do enfermeiro na ESF, pode-se considerar como
dimensão prescrita desta prática as atribuições especificas orientadas para os enfermeiros na
Atenção Básica, quais sejam: realizar o atendimento aos sujeitos, família e comunidade em
todos os ciclos de vida, realizar consulta de enfermagem, procedimentos, atividades em
grupos, prescrever medicamentos, solicitar exames e encaminhar quando necessário; planejar,
gerenciar, e avaliar as atividades desenvolvidas pelos ACS; realizar atividades programadas e
de atenção à demanda espontânea; envolver-se nas atividades de educação permanente dos
profissionais da equipe e participar do gerenciamento os insumos da Unidade7.
Considerando a dimensão prescrita do trabalho do enfermeiro na ESF, as entrevistas
abaixo possibilitaram desvelar aspectos relacionados à dimensão real deste trabalho,
evidenciado quão distante essas dimensões se apresentam no contexto estudado:
“[...]a gente é coordenador da equipe, então a gente faz todo o papel de coordenação de
gerencia da unidade.” (E2)
“[...] tenta fazer uma prevenção, uma promoção[...]” (E3)
“O papel do enfermeiro é gerenciar a equipe de saúde da família, ele é o responsável técnico
e trabalha [...]promoção da saúde e prevenção, neh, dos agravos da doença.” (E6)
A respeito das lacunas entre a dimensão prescrita e real do trabalho do enfermeiro na
ESF, é possível perceber que E6 não reconhece a educação em saúde como dimensão de sua
pratica embora a literatura24 evidencie a educação em saúde como estratégia fundamental para
a promoção da saúde. A educação em saúde possibilita aos usuários transformarem-se em
7
atores do seu processo de saúde doença. Esta é uma parte integrante da atuação do trabalho
do enfermeiro devendo ser o eixo norteador de pratica na comunidade bem como da consulta
de enfermagem25.
Estudo aponta que mesmo que os profissionais da equipe estejam cientes de que a
educação em saúde não é atribuição especifica do enfermeiro dentro da ESF, esta prática é
reconhecida no escopo das ações que são atribuídas como papel do enfermeiro 26. Isto porque
de um modo geral os enfermeiros têm assumido certo protagonismo na realização de práticas
educativas no âmbito da ESF27. A prática educativa contribui para o fortalecimento da
autonomia do enfermeiro e potencializa a interação profissional-cliente, com base em uma
pedagogia problematizadora e dialógica oferecida pela educação em saúde presente na
consulta de enfermagem26. Embora a maioria dos enfermeiros deste estudo não reconheça a
educação em saúde como seu papel na ESF, há que se destacar um sujeito que destacou a
educação em saúde como eixo da pratica profissional do enfermeiro na ESF, conforme
evidenciado na fala a seguir:
“O papel que eu acho real, dentro do que eu estudei, que eu conheço as diretrizes do SUS é
trabalhar a prevenção, a promoção, educação em saúde, recuperação da doença, mas eu
entendo que o foco principal é a educação em saúde.” (E12)
Outra contradição importante da realidade investigada que merece destaque se refere á
prática da consulta de enfermagem. A despeito de todas as possibilidades emancipatórias que
a consulta de enfermagem propicia para a prática do enfermeiro, E5 e E10 afirmam que não
realizam a consulta de enfermagem, desconsiderando seu lugar de eixo central da prática do
enfermeiro na Atenção Básica, como pode ser percebido no discurso a seguir:
“[...] Na minha época (formação acadêmica) achei tudo lindo, que eu ia chegar e fazer
consulta de enfermagem [...] isto é irreal.” (E5)
“Aham, porque o papel da realidade eu quase não faço consulta de enfermagem assim, eu
não tenho tempo para fazer consulta de enfermagem [...]” (E10)
A consulta de enfermagem é uma atividade privativa do enfermeiro e tem como base a
utilização da cientificidade para identificar situações de saúde/doença a fim de prescrever
cuidados os quais possibilitem a reabilitação, promoção da saúde e prevenção de agravos do
individuo28. No que tange a perspectiva teórica, na ESF a consulta de enfermagem é
considerada como uma das atribuições especifica mais importantes do enfermeiro uma vez
que permite viabilizar intervenções em saúde que ultrapassam a perspectiva curativista, bem
8
como a construção de práticas de cuidado mais próximas da integralidade. A consulta de
enfermagem pode ser entendida, dessa forma, como um dispositivo potencialmente capaz de
sustentar novos modos de fazer saúde e consequentemente contribuir para consolidação do
modelo de saúde7.
Gomes e Oliveira26 em um estudo sobre a autonomia do profissional de enfermagem
apresentaram que esta é mantida por três elementos: responsabilidade, equilíbrio e
conhecimento cientifico.
A responsabilidade e o equilíbrio para os enfermeiros dizem
respeito a agir dentro dos limites delineados pela profissão. Já o conhecimento científico é
algo necessário para a prestação de assistência de qualidade à população assim como
solidificação da autonomia. Sendo assim, a consulta de enfermagem torna-se um espaço de
desenvolvimento desta autonomia. Pode-se inferir que a não realização da consulta de
enfermagem fragiliza a construção da autonomia dos enfermeiros no cenário estudado e
contribuiu para a descaracterização do foco principal da ESF, que é a produção de cuidado.
Além disso, os enfermeiros na atualidade estão se preocupando demasiadamente com
o fazer técnico em enfermagem não desempenhando atribuições e funções específicas como,
por exemplo, a consulta de enfermagem, a qual é uma ferramenta emancipatória da categoria
profissional. Sendo assim, há uma necessidade dos enfermeiros em modificar este papel no
trabalho dando maior visibilidade as suas ações construindo a essência do cuidar em
Enfermagem não limitando sua prática à dimensão técnica de seu trabalho11.
Há que se destacar ainda a dicotonomia entre as dimensões assistencial e gerencial no
âmbito da ESF. Nos discursos apresentados os sujeitos, em sua maioria, referiram não possuir
tempo para executar as suas atividades assistenciais devido ao grande dispêndio de tempo
com ações gerenciais, conforme evidenciado por E4, E9, E13 e E14.
“[...] muitas vezes a gente se sente dificultado em exercer a assistência porque a gente tem
muito serviço burocrático para estar executando.” (E4)
“Então o papel hoje o enfermeiro está muito com a parte burocrática, infelizmente, e às vezes
a gente não tem tempo suficiente para fazer a assistência, porque é muito papel que a gente
tem que preencher que a gente tem fazer, prazo pra cumprir, e às vezes poderia dividir estas
tarefas.” (E9)
“[...] mas infelizmente acaba tento muita sobrecarga de coisas mais papeis, néh, que
infelizmente ocupam o nosso tempo, fora que deveria fazer mais grupos, mais visitas, aí
acaba que esta parte burocrática ocupa mais o nosso tempo.” (E13)
“[...] a gente mexe muito com serviço burocrático[...]” (E14)
9
A respeito da relação entre assistência e gerência, ressalta-se que quando a função de
gerencia e de assistência da Unidade se juntaram isto gerou uma sobrecarga de trabalho e que
os enfermeiros gostariam de ter mais tempo para a função de assistência22. Em outro estudo
evidencia que a figura do gestor da unidade, possibilita ao enfermeiro maior dispêndio de
tempo para o cuidado direto na assistência29.
Os depoimentos permitiram desvelar que entre a dimensão prescrita e a dimensão real
no cotidiano da ESF, o trabalho do enfermeiro é realizado em um contexto de sobrecarga de
atribuições que o impelem, muitas vezes, a negligenciar práticas fundamentais para a
transformação do fazer em saúde, como a educação em saúde e a consulta de enfermagem.
No que tange a consulta de enfermagem, sua não realização pode fragilizar ainda a
reconfiguração das representações do enfermeiro perante a comunidade dada à autonomia e
visibilidade que esta prática pode lhe conferir.
Ademais, foi possível perceber que ainda é conflituosa a relação entre as dimensões
assistencial e gerencial no trabalho do enfermeiro na ESF de tal modo que a assistência e o
cuidado direto ao individuo, família e comunidade parecem ficar prejudicados perante a
demanda administrativa de gestão da unidade. Como possível estratégia de enfrentamento, a
literatura sugere que contratar um gerente para a unidade possibilita ao enfermeiro dedicar-se
a produção de cuidado, a gestão desse cuidado e a consolidação de práticas inovadores e mais
coerentes com o novo modelo de assistência à saúde.
O cotidiano do enfermeiro na Estratégia Saúde da Família: dificuldades e facilidades
O processo de trabalho se refere a todo movimento implicado na transformação de um
dado objeto em um produto determinado mediado pela intervenção humana. Para tanto, se faz
necessário a utilização de instrumentos. Assim, o processo de trabalho é o caminho por meio
do qual o homem produz aquilo que previamente já fora concebido em sua mente, de tal
modo que o produto desse processo de trabalho ganha valor social e humano30.
O processo de trabalho é composto pela dimensão objetiva e subjetiva da realidade. A
primeira se refere às condições materiais de realização deste trabalho as quais viabilizam ou
não a produção do produto final. A dimensão subjetiva se refere aos elementos implicados na
dimensão humana deste fazer, ou seja, o valor atribuído ao trabalho, à criatividade, os
sentimentos, as representações, crenças e valores que de algum modo constituem a produção
do produto a ser elaborado no e pelo trabalho31.
10
O trabalho do enfermeiro é permeado por situações e singularidade que influenciam o
seu processo de trabalho. Diante deste contexto as dificuldades tornam-se barreiras à
prestação do cuidado para com a comunidade. Dentre as questões dificultadoras que se
apresentam ao enfermeiro no cotidiano da ESF destaca-se a questão das condições de
trabalho:
“[...] dificuldade a gente tem [...] coisas de estrutura física mesmo, alguns aparelhos que
faltam.” (E2)
“[...] falta de material atrapalha[...]até na organização e na prática também, falta material,
material para curativo, para preventivo, e as vezes a mulher tem que fazer o preventivo,
então eu num sei, vai que esta mulher que precisa fazer o preventivo está com alguma coisa
mais séria, num tem material[...]” (E3)
“[...] não ter o material correto para aquela determinada situação, ás vezes tem um
determinado curativo que vai realizar, por exemplo, eu não tenho ás vezes aquele material
[...]” (E6)
“[...] falta de material [...] até o mês passado não tinha material de preventivo, e eles
(Gestão) cobravam porque não batia meta. (E10)”
O E3 destaca que a falta de material atrapalha na prestação de cuidados a comunidade
e que doenças que poderiam ser diagnosticadas precocemente não são devido a recursos
insuficientes. A insatisfação dos profissionais com relação às condições de trabalho aponta
fragilidades de infraestrutura como falta de telefones, de pessoal, de espaço físico entre outras
que em conjunto, dificultam a sua atuação além de influenciarem negativamente sua
desmotivação com o trabalho20.
Em um estudo realizado por Pinto, Menezes e Villas32 sobre a situação de trabalho dos
profissionais da ESF do Ceará, os entrevistados apontaram que a sua maior dificuldade é a
indisponibilidade de equipamentos, indo ao encontro da fala já apresentada.
A partir da descentralização organizacional do SUS, as Secretarias Municipais de
Saúde tem como uma da sua competência inserir a ESF como forma de organização
prioritária dos serviços da atenção básica devendo prestar o apoio logístico, estrutural e
organizativo às equipes e serviços para a ampliação e consolidação da Estratégia7. Sendo
assim, necessário se faz que gestão conheça o papel dos profissionais envolvidos na rede de
serviços de saúde para que seja possível valorizar a prática desses profissionais bem como
dispor os meios e estruturas necessárias à realização de suas práticas. Entretanto, pela
realização das entrevistas, ficou evidente que há um distanciamento entre a compreensão da
11
gestão sobre o papel do enfermeiro e as atribuições que de fato lhe competem, destacada pelas
falas a seguir:
“[...]principalmente porque nesta gestão o enfermeiro é designado a fazer funções que não
são específicas pro enfermeiro, então a gente acaba assumindo funções como agendamento
de consultas, o enfermeiro ele agenda consultas no Hiperdia, no Viva Vida, no Consórcio, na
Policlina, no Hospital.” (E5)
“[...]atribuições que não são do enfermeiro, por falta de alguém que faça estas tarefas,
acabam ficando por conta do enfermeiro, muitas coisas é, muitas vezes a gente se sente
dificultado em exercer a assistência porque a gente tem muito serviço burocrático pra estar
executando na unidade, entendo que, logicamente o enfermeiro tem esta parte de gerência
que é da competência dele, mas não é só a parte do enfermeiro que fica a encargo dele, então
ele assumindo a função de um outro profissional que deveria ter na unidade também, que
assumisse estas questões.” (E4)
Nas fala de E5 e E4 pode-se perceber que os enfermeiros ficam a cargo de funções
impostas pela gestão, que poderiam ser executadas por outros profissionais fazendo com que
o cuidado de enfermagem fique relegado em segundo plano. Medeiros, Junqueira, Schwinge,
Carreno, Jungles e Saldanha20 evidenciaram que uma gestão rígida, autoritária, com decisões
centralizados desmotivam e frustram, limita o desenvolvimento de novas ideias dos
enfermeiros no seu cotidiano de trabalho, sendo um dos motivos apontado para a alta
rotatividade. Afirmam também que os indivíduos quando são estimulados por uma gestão
democrática se sentem mais responsáveis pelo seu papel e consequentemente conseguem
enfrentar com mais positividade as dificuldades com animo e dedicação.
A partir desta afirmação pode-se inferir que os enfermeiros entrevistados encontram-se
desmotivados e frustrados por serem designados a funções que poderiam ser compartilhadas
por outras categorias profissionais. Ademais, há uma ruptura com relação ao reconhecimento
de seu próprio papel uma vez que não conseguem dedicar-se às atribuições que são
específicas do enfermeiro. Essa contradição entre “o que eu faço” e o que “eu penso que
deveria fazer” traz implicações importantes no delineamento da identidade do enfermeiro
como se pode observar na fala a seguir:
“[...]que outro dia eu fiz um curativo [...] então assim quando eu cheguei para fazer o
curativo eu vi que eu era enfermeira e que eu tinha que fazer a parte de enfermagem eu
fiquei emocionada de lembrar que eu sou enfermeira de cuidar das pessoas e não de ficar
só apagando incêndio.” (E9) (Grifo dos autores)
Merece destaque a fala de E9 o qual evidencia a relação entre a prática e a construção
identitária dos sujeitos. Assim, E9 afirma que ao se deparar com a realização de uma prática
específica de enfermagem resgatou suas referências profissionais e lembrou-se que é
12
enfermeira. Isso significa dizer que no cotidiano, por vezes, ele se esquece do seu próprio
papel. Segundo Caçador
11
a identidade é um atributo pertencente à dimensão humana que se
revela, se (re) constrói e se transforma por meio das práticas e das relações estabelecidas na
vida pessoal e na micropolítica do processo de trabalho em saúde. A identidade reflete, em
certa medida, a forma como o sujeito expressa seu modo de ser no mundo e como é percebido
pelos indivíduos com os quais se socializa.
A situação descrita destoa do encontrado por Backes, Backes, Erdmann e Buscher33
uma vez que os profissionais entrevistados no referido estudo destacaram que com a criação
do SUS e mais especificamente da ESF os enfermeiros ampliaram suas possibilidades de
intervenção o que lhes conferiu maior visibilidade no trabalho, construindo possibilidades
para sua emancipação e transformação social a partir de suas práticas.
A desvalorização das atribuições especificas do enfermeiro é representado pela fala de
E5, o qual destaca que uma dissonância entre o que é o seu papel como enfermeiro e aquilo
que de fato é valorizado pela gestão como sua prática:
[...]se você deixar de marcar uma consulta você é punido, mas se você deixar de fazer
uma consulta de pré-natal pra eles [Gestão]: Ah não fez uma consulta de pré-natal, pra eles
não se importam com isto, entendeu? Eles não querem que você deixe pendente estas
coisas[...](E5)
No município estudado, ao enfermeiro é destinada a marcação de consultas e exames
para as especialidades médicas, da Policlínica, do Centro Hiperdia e Consórcio. Durante um
dia de serviço são gerados muitos encaminhamentos pelos os profissionais médicos e cabe ao
enfermeiro a escolha dos pacientes que irão ser atendidos. As vagas para as consultas são
poucas e não atendem as demandas da população, sendo assim há um grande dispêndio de
tempo para direcionar esse fluxo assistencial, atividade esta eminentemente administrativa. Os
usuários também se sentem prejudicados por não conseguir a sua consulta com o especialista
o que gera um ambiente de tensão entre os enfermeiros e os usuários, fato este destacado na
fala de E14.
“[...]aí a gente também é muito mal visto por isto pelos pacientes porque se a gente não
consegue marcar o exame que eles querem o especialista que ele querem eles acham que o
PSF não serve para nada, que a gente está aqui mas que não resolve nada.” (E14)
E14 reforça a articulação entre a trama complexa que envolve o processo de trabalho,
as práticas profissionais e o reconhecimento implicado nessa prática tanto pelo sujeito que a
opera quanto pelos atores que compartilham dessa realidade social. Assim, ser mal visto pelos
usuários pela realização de uma prática que não é da competência específica do enfermeiro,
13
mais que lhe é outorgada como função pela gestão, revela o delineamento de uma relação
conflituosa entre o fazer e o ser enfermeiro no contexto da ESF.
A relação entre o ser e o fazer denotam questões de identidade evidenciando como o
processo de trabalho participa desta produção. Dubar (2005) apud Caçador (2012)11 entende a
identidade como sendo fruto da articulação entre a dimensão interna do sujeito com outra
dimensão que é externa ao indivíduo e com a qual ele interage. Destaca, então, a dualidade
inseparável da essência da identidade a qual é composta pela relação permanente que existe
entre a identidade para si e a identidade para o outro. São, pois, interdependentes dado que a
identidade para si está relacionada ao outro e, sobretudo, o reconhecimento que ele lhe
confere. Ressalta Dubar (2005, p.135) apud Caçador (2012, p.41)11: “Nunca sei quem sou a
não ser no olhar do outro”.
Ademais, toda discussão de fluxos assistenciais e das fragilidades que permeiam essa
organização revela a fragilidade da funcionalidade das Redes de Atenção a Saúde no
cotidiano estudado. As Redes de Atenção a Saúde são definidas por Eugênio Vilaça Mendes
(2010)34 como organizações poliárquicas de múltiplos serviços de saúde os quais precisam
estar articulados e integrados de modo a atingirem objetivos comuns. Atuam de forma
complementar e interdependente para que seja possível ofertar atenção contínua e integral,
coordenada pela atenção primaria.
Assim, a partir das falas apresentadas por E5 e E14 é possível perceber lacunas
existentes na atenção secundária e no oferecimento de especialidades para aquelas demandas
que foram detectadas pela APS. Sendo assim, o cuidado em uma perspectiva de continuidade
e integralidade torna-se uma utopia, pois não há o delineamento de uma RAS capaz de
responder às necessidades de saúde da população.
Outro fator dificultador da prática do enfermeiro na ESF se refere as representações da
comunidade sobre saúde e doença. Com o advento do SUS e mais especificamente da ESF
tem-se uma mudança, pelo ponto de vista teórico, no modelo centrado no curativismo,
tornando os usuários atores do seu processo de educação, promoção e proteção da saúde.
Sendo assim, o profissional de enfermagem ganha destaque ao desenvolver praticas
integrativas e integradoras do cuidado, para o individuo e a comunidade33. Entretanto
podemos observar na fala do E12 que os usuários ainda estão focados no Modelo Biomédico
sendo o processo curativista ainda o predominante na ESF.
“...é muito difícil trabalhar, o fundamento geral mesmo é a doença, é o paciente vim aqui e
consultar, vim aqui e arrancar dente, vim aqui e fazer o curativo, é isto, em uma palestra de
saúde bucal não tem publico, mas um aquele monte de dente para arrancar, um monte de
dente cariado, é dificílimo.” (E12)
14
A ESF surgiu como forma de mudar este atenção a saúde voltada para o curativismo,
entretanto tem se observado que a sua efetivação ainda encontra-se distante do prescrito na
nova Politica Social da Saúde. Como possível razão para a inconsistência do real propósito da
ESF encontra-se na cultura da população que ainda encontra na figura do médico a solução
das suas dificuldades, além do mais a promoção da saúde e a educação em saúde não
encontram bases sólidas e consistentes para serem desenvolvidas35, como a falta de
profissionais que entendem a sua importância, como destacado nas falas de E12.
“[...]infelizmente da mesma forma que a população, os clientes que precisam da gente eles
não tem esta noção do que é PSF, os profissionais também não tem, então é muito difícil
trabalhar, o fundamento geral mesmo é a doença, é o paciente vim aqui e consultar, vim aqui
e arrancar dente, vim aqui e fazer o curativo, é isto, em uma palestra de saúde bucal não tem
público, mas um aquele monte de dente para arrancar, um monte de dente cariado, é
dificílimo[...]” (E12)
Com o advento da ESF tem-se uma maior proximidade entre os usuários e os
profissionais auxiliando na criação do vínculo e o empoderamento destes sujeitos no seu
processo de saúde. Sendo assim, tais profissionais precisam estar conscientes da sua atuação
como educadores em saúde, atuando como mediadores da compreensão dos sujeitos do seu
papel no processo de saúde e doença36, fato este que destoa do apresentado nas falas
anteriores, onde a educação em saúde é desvalorizada pelos profissionais e também usuários.
A partir disto pode-se perceber que este contexto fragiliza a mudança das práticas
assistenciais na busca pela consolidação dos pressupostos do SUS.
As dificuldades retratadas pelos profissionais revelam a desvalorização deste
profissional na ESF. Condições de trabalhos inapropriadas, exigências de funções que
poderiam ser executadas por outros profissionais e a desvalorização das atribuições do
enfermeiro acabam por revelar as fragilidades existentes na gestão. Outra dificuldade também
apontada pelos mesmos foi a inserção da proposta da ESF em um contexto de valorização de
práticas curativistas, gerando distanciamento principalmente das práticas educativas.
.
A respeito das facilidades do enfermeiro no cotidiano da ESF há que se destacar a
dificuldade dos entrevistados em se debruçarem sobre esta reflexão. Com frequência, eles
retomavam a análise de aspectos dificultadores de seu trabalho. Infere-se que a percepção da
realidade de seu trabalho se apresenta com maior proeminência das dificuldades do que as
facilidades presentes no cotidiano. Ainda assim, merece destaque os aspectos facilitadores
que emergiram das falas a saber, o trabalho em equipe e o reconhecimento do trabalho do
enfermeiro pela população, por retratarem avanços na reconstrução das práticas no contexto
15
da ESF.
O trabalho em equipe é algo inerente à profissão de enfermagem que, historicamente,
foi constituída pela divisão técnica e social do trabalho sendo composta por técnicos e
enfermeiros37 .No contexto da saúde da família, o trabalho em equipe ganha maior
complexidade por se tratar de equipes multiprofissionais.
Mediante a proposta de reconstrução das praticas assistenciais em saúde, tem-se como
imperativo que haja uma maior integração entre os profissionais, seus fazeres e seus saberes.
Assim, é preciso que no cotidiano de trabalho haja um permanente compartilhamento de
formas de se pensar e agir em saúde no coletivo de profissionais que compõe as equipes da
saúde da familia38 como apresentado pelas falas a seguir:
“Nesta equipe eu tenho uma facilidade muito boa, de relacionamento ótimo com a equipe, da
equipe ser muito colaborativa [...]” (E4)
“Ah facilidade é a minha equipe que é ótima, é uma equipe muito unida, então um ajuda o
outro[...]” (E11)
A partir das falas dos sujeitos pode ser afirmar que o trabalho em equipe no presente
estudo se apresenta como um dispositivo de organização do processo de trabalho que facilita a
prática do enfermeiro na ESF. Pelas falas dos sujeitos, o que se pode perceber é que a
perspectiva teórica sobre conformação do trabalho em equipes se aproxima da realidade
estudada e ganha concretude, sendo este apontado como elemento facilitador e fundamental
na prática do enfermeiro.
Por trabalho em equipe entendemos a composição de coletivos profissionais de
diferentes áreas que estabelecem trocas de saberes e práticas que se constroem nas relações
cotidianas. A complexidade do conceito de saúde exige a articulação de múltiplos atores para
que seja possível responder as necessidades de saúde da população. Pensar em integralidade é
possível a partir da organização dos processos de trabalho em equipes multiprofissionais39.
No estudo realizado por Baratiri e Marcon40, os entrevistados afirmam que o trabalho
em equipe oportuniza o cuidado uma vez que há a complementariedade das ações dos
profissionais de saúde assim como foi evidenciado neste estudo cujos depoimentos reforçam a
existência de ajuda mútua no trabalho trazendo para a realidade cotidiana as perspectivas
teóricas do trabalho em equipe.
Outra facilidade apontada pelos enfermeiros foi à relação estabelecida com a
população bem como o reconhecimento de seu trabalho por parte dos usuários destacada nas
falas que se seguem:
16
“[...] as facilidades é o reconhecimento da população, que reconhece o trabalho da
gente[...]” (E6)
“A facilidade que eu encontro hoje e a comunidade, a aceitação da comunidade é uma
facilidade.” (E12)
Ter o trabalho reconhecido pela comunidade fortalece a construção da identidade do
enfermeiro da ESF uma vez que possibilita ressignificar o lugar histórico de invisibilidade
que a categoria tradicionalmente esteve nos serviços de saúde. Significa dizer que a partir da
inserção dos enfermeiros na ESF seu trabalho ganhou maior evidencia o que possibilitou
reconstruir as representações da comunidade sobre o papel do enfermeiro7.
Ter o trabalho reconhecido pela comunidade pode favorecer a criação de vínculos
com as famílias e comunidade e, consequentemente, criar novas relações e encontros entre
trabalhadores e usuários, assim como esta previsto na nova politica social de saúde. Em
estudo realizado por Lopes e Marcon41 os entrevistados atribuíram duas facilidades no seu
cotidiano da ESF: o conhecimento da realidade familiar, a qual facilita a resolução e
problemas, e a ampliação do vínculo familiar possibilitando a divisão de responsabilidade
entre o usuário e a sua família. Reconhecimento e vínculo se mostram intrinsicamente
relacionados conforme pode ser evidenciando por E12:
“Porque eles precisam muito do nosso trabalho, então eles sabem o quanto isto é importante,
e assim a acolhida, a recepção, o que eu chamo eles participam em peso, por exemplo, a
atividade física, a festa de natal, a Semana do Fazendeiro, vão, então tem este lado assim,
então o que eu acho de facilidade hoje é isto, é uma comunidade que precisa do trabalho da
gente, então assim, se o trabalho, a informação chega até ela a comunidade eles
aderem”(E12)
Deste modo podemos inferir que ser reconhecido pela comunidade pode propiciar um
ambiente rico de desenvolvimento de vínculo, possibilitando que as intervenções em saúde
aconteçam e que estes possam se tornar empoderados sobre o seu processo de saúde doença.
As facilidades apresentadas nas falas retratam que as interações entre a equipe e o
reconhecimento da população auxiliam no desenvolvimento das ações da ESF, constituindo
de parâmetros essenciais para a atuação dos enfermeiros no seu processo de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de trabalho do enfermeiro é permeado de singularidades e particularidades
que estão presentes no desenvolvimento das suas ações. Durante este estudo foi possível
constatar que o trabalho desenvolvido por tais profissionais sofre com a sobrecarga de
17
funções, muitas vezes impostas pela Gestão, fazendo com que estes distanciem das suas
atribuições especificas na ESF.
Além disso, os enfermeiros não se apropriaram ainda das possibilidades de
intervenção que a ESF trouxe para sua prática. Assim, as práticas emancipatórias da profissão,
como a consulta de enfermagem e educação em saúde não fazem parte do cotidiano estudado,
ficando a assistência fragilizada e distante das prerrogativas do SUS. Os arranjos
organizacionais determinam aos enfermeiros como prioridade em ações e questões gerenciais,
desvalorizando as ações assistenciais. Ademais, são precárias as condições de trabalho do
enfermeiro na ESF, o que fragiliza a realização do cuidado. Diante deste contexto podemos
perceber que o cuidado de enfermagem encontra-se aquém das ações preconizadas pela
Política Nacional de Atenção Básica.
Ademais o estudo revelou como facilidades no cotidiano do enfermeiro na ESF o
trabalho em equipe e o reconhecimento de seu trabalho pela comunidade, as quais contribuem
para a formação de vínculo entre a população, favorecendo a dinamicidade no processo de
trabalho.
A realização do estudo traz como reflexão o potencial que a ESF trouxe para a
reconstrução dos saberes, práticas e do reconhecimento do enfermeiro na sociedade. Isto
porque no cenário estudado, mesmo distante de todas as possibilidades de autonomia e
práticas emancipatórias trazidas pela Politica de Saúde e, mesmo que a gestão ainda não
viabilize a concretização dessas práticas, já é possível perceber um movimento de
reconfiguração da representação do papel do enfermeiro perante a comunidade. Esta realidade
nos permite inferir que quanto mais o enfermeiro se apropriar das atribuições que são lhe são
previstas na Politica de Saúde, maior será a autonomia, reconhecimento social e valorização
de suas práticas.
Diante disto conclui-se que este estudo permitiu compreender a realidade de trabalho
do enfermeiro na ESF para além da superficialidade inicial com que o pesquisador lançava
seu olhar sobre este cotidiano ao possibilitar uma análise das fragilidades que permeiam o
processo de trabalho do enfermeiro, desvelando os aspectos subjetivos e objetivos nele
implicados.
REFERÊNCIAS
1. Paim JS. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.
2. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do
modelo assistencial. Brasília: Ministério da Saúde;1997.
3. Rosa WAG, Labate RC. Programa Saúde da Família: a construção de um novo modelo
de assistência. Revista Latino-Americana de Enfermagem. 2005; 13(6): 1027-34.
18
4. Gomes KO, Cotta RMM, Cherchiglia ML, Mitre SM, Batista RS. A práxis do agente
comunitário de saúde no contexto do programa saúde da família: reflexões
estratégicas. Saúde soc. 2009; 18(4): 744-55.
5. Tesser CD, Garcia AV, Argenta CE, Vendruscolo C. Concepções de Promoção da
Saúde que permeiam o ideário de equipes de Estratégia Saúde da Família da Grande
Florianópolis. R. Saúde Públ. Santa Cat. 2010; 3(1).
6. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
Básica. Política nacional de atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.
7. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
Básica. Política nacional de atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
8. Lucchese R, Vera I, Pereira WR. As políticas públicas de saúde – SUS - como
referência para o processo ensino-aprendizagem do enfermeiro. Rev. Eletr. Enf.
[Internet]. 2010;[ acessado em 25/02/20014];12(3):562-6. Disponível em
http://www.fen.ufg.br/revista/v12/n3/v12n3a21.htm
9. Silva AL, Padilha MICS, Borenstein MS. Imagem e identidade profissional na
construção do conhecimento de enfermagem. Ver. Latino-am Enfermagem. 2002;
10(4): 586-95.
10. Gomes AMT, de Oliveira DC. Estudo da estrutura da representação social da
autonomia profissional em enfermagem. Rev Esc Enferm USP.2005; 39(2):145-53.
11. Caçador BS. Configuração identitária do enfermeiro na estratégia de saúde da família.
Belo Horizonte. Dissertação [Mestrado em Enfermagem]- Universidade Federal de
Minas Gerais; 2012.
12. Pavoni DS, Medeiros CRG. Processos de trabalho na equipe Estratégia de Saúde da
Família. Rev. bras. Enferm. 2009; 62(2): 265-71.
13. Marques D, Silva EM. A enfermagem e o Programa Saúde da Família: uma parceria
de sucesso? Rev Bras Enferm, Brasília (DF) 2004 set/out;57(5):545-50.
14. Chizzotti A. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais: evolução e desafios.
Revista Portuguesa de Educação. Portugal. 2003;16(2): 221-36.
15. Boni V, QUARESMA SJ. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em
Ciências Sociais. Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia da UFSC.
2005; 2(1):68-80.
16. Bardin L. Análise de conteúdo. 19ª Ed. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2008.
17. Consentimento Livre e esclarecido. Resolução 466, de dezembro de 2012. [acessado
em 01/09/2013]. Disponível em Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
18. Tomasi E, Facchini LA, Piccini RX, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FV et al . Perfil
sócio-demográfico e epidemiológico dos trabalhadores da atenção básica à saúde nas
regiões Sul e Nordeste do Brasil. Cad. Saúde Pública. 2008; 24(1):193-201.
19. Brito MJM. A configuração identitária da enfermeira no contexto das práticas de
gestão em hospitais privados de Belo Horizonte. Belo Horizonte. Tese. [ Doutorado
em Ciências Economicas]- Universidade Federal de Minas Gerais. 2004.
20. Medeiros CRG, Junqueira AGW, Schwingel G, Carreno I, Jungles LAP, Saldanha
OMFL. A rotatividade de enfermeiros e médicos:um impasse na implementação da
Estratégia de Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva. 2010; 15( 1):1521-31.
21. Chanlat JF. Modos de gestão, saúde e segurança do trabalho, Im: DAVEL E:
VASCONCELOS, J (org) “Recursos” humanos e subjetividade. Petrópolis: Vozes,
1995.
22. Bertoncini JH. Entre o prescrito e o real: renormalizações possíveis no trabalho da
enfermeira na Saúde da Família . Florianópolis. Tese [ Doutorado em Enfermagem]
Universidade Federal de Santa Catarina ; 2011.
19
23. Peixoto TC. Dinmica da gestão de pessoas em uma unidade de internação pediátrica.
Belo Horizonte. Dissertação [Mestrado em Enfermagem] Universidade Federal de
Minas Gerais; 2011.
24. Silva CP, Dias MAS, Rodrigues AB. Praxis educativa em saúde dos enfermeiros da
Estrategia Saude da Familia. Ciência & Saúde Coletiva. 2009; 14 (1):1453-62.
25. Gomes AMT, de Oliveira DC. A representação social da consulta de enfermagem:
importância, ambiguidades e desafios. REME – Rev. Min. Enf. 2005, abr./jun.:
9(2):109-15.
26. Gomes AMT, de Oliveira DC. Autonomia profissional em um desenho atômico:
representações sociais de enfermeiros. Revista Brasileira de Enfermagem. 2010
jul./ago.; 63(4): 608-15.
27. de Oliveira HM, Gonçalvez MJF. Educação em Saúde: uma experiência
transformadora. Rev. bras. enferm. 2004: 57(6): 761-3.
28. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução 159 de 19 de abril de 1993. Consulta
de Enfermagem. [acessado em 09/09/2013]. Disponível em
http://www.cofen.gov.br/resoluo-cofen-1591993_4241.html
29. de Paula M, Peres AM, Bernardino E, Eduardo EA, Sade PMC, Larocca
ML.Características do processo de trabalho do enfermeiro da estratégia de Saúde da
família. Rev Min Enferm. 2014; 18(2): 454-462.
30. Sanna MC. Os processos de trabalho em Enfermagem. Ver. Bras.enferm. 2007; 60
(2): 221-4.
31. Pires D. A estrutura objetiva do trabalho em saúde. In: LEOPARDI, M. T. (Org.).
Processo de trabalho em saúde: organização e subjetividade. Florianópolis: Programa
de Pós Graduação em Enfermagem UFSC; Ed. Papa-Livros, 1999 (p. 25-48).
32. Pinto ESG, de Menezes RMP, Villas TCS. Situação de trabalho dos profissionais da
Estratégia Saúde da Família em Ceará- Mirim. Rev Esc Enferm USP 2010;
44(3):657-64.
33. Backes DC, Backes MS, Erdmann AL, Büscher A. O papel profissional do
enfermeiro no Sistema Único de Saúde: da saúde comunitária à estratégia de saúde da
família. Ciência & Saúde Coletiva. 2012: 17(1):223-30.
34. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2010; 15(5): 2297305.
35. Horta NC, de Sena RR, Silva MEO, de Oliveira SR, Rezende VA. A prática das
equipes de saúde da família: desafios para a promoção de saúde. Rev Bras Enferm,
Brasília, 2009 jul-ago; 62(4): 524-9.
36. FerreiraVF, GOR da Rocha, Lopes MMB, dos Santos MS, de Miranda SA. Educação
em Saúde e Cidadania: Revisão Integrativa.Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro. 2014
maio/ ago.; 12(2): 363-78.
37. Pires, Denise. Restruturação Produiva e trabalho em saúde no Brasil. 2º ED. São
Paulo: Annablume,254 pags . 2008
38. Campos GWS. Saúde Pública e Saúde Coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas.
Ciênc. Saúde coletiva. 2000; 5(2): 219-30.
39. Scherer MDA, Pires D, Schwrtz Y. Trabalho coletivo: um desafio para gestão em
saúde. Rev Saúde Pública, 2009, 43(4): 721-25
40. Baratieri T, Marcon SS. Identificando facilidades no trabalho do enfermeiro para o
desenvolvimento da longitudinalidade do cuidado.Rev. enferm. UERJ, Rio de
Janeiro, 2011 abr/jun; 19(2):212-7.
41. Lopes MCL, Marcon SS. Assistência à família na atenção básica: facilidades e
dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde. Acta Scientiarum. Health
Sciences Maringá. 2012 jan./jun.; 34(1): 85-93.
20
Download

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA LARA ROCHA SILVA