LUCÍOLA Perfil de mulher Romantismo JOSÉ DE ALENCAR O ROMANCE URBANO Lucíola é, tradicionalmente, considerado pela crítica como um “romance urbano”, porque a ação se passa na corte do Rio de Janeiro, no século XIX. O FOLHETIM Lucíola, de José de Alencar, foi publicado em 1862 em forma de folhetim. Muito comum no século XIX, o folhetim está ligado ao desenvolvimento da imprensa, do jornal, como forma de difundir o romance. O FOLHETIM Tal gênero (o folhetim) é considerado, na época de seu surgimento, como popular, portanto menor. O FOLHETIM O formato: publicação periódica (semanal) apresentada, normalmente, em meia folha na última página do jornal. Os capítulos ou episódios deveriam suceder-se, deixando sempre um “gancho”, um acontecimento que seria concluído na(s) semana(s) seguinte(s), estabelecendo, assim, um vínculo com o leitor por despertar a curiosidade em relação à sucessão das ações. O FOLHETIM E A TELENOVELA De forma geral, a telenovela brasileira tem uma estrutura folhetinesca em todos os sentidos: no modo de apresentação, no público alvo, no desenrolar da ação, bem como na caracterização das personagens. LUCÍOLA Duas leituras possíveis A leitura mítica: Lúcia como heroína trágica Conforme Aristóteles (em Poética), o herói trágico tem trajetória descendente: vai da fortuna para o infortúnio; sai de uma situação privilegiada para uma situação de total desagrado. Em sua trajetória comete um erro e é punido por ele. Tal punição representa sempre um restabelecimento da ordem, no que diz respeito aos desígnios dos deuses, mas nem sempre a morte é a pior punição. A leitura mítica: Lúcia como heroína trágica Lúcia começa a narrativa numa situação de prestígio: a mulher mais cobiçada da corte, a mais bela cortesã, a mais desejada pelos homens e a mais invejada pelas mulheres. Comete um erro: age como dona de seu destino, escolhendo amantes em função de seus próprios interesses, tentando racionalizar todas as relações, simulando até mesmo a própria morte. A leitura mítica: Lúcia como heroína trágica Este erro já tem sua raiz quando Lúcia, ainda Maria da Glória, pensa que qualquer atitude é perdoável quando se trata de salvar os entes queridos. Ali, pela primeira vez, ela acredita ser dona de seu destino. A leitura mítica: Lúcia como heroína trágica Sua punição é morrer muito jovem, sem poder viver um amor duradouro e acompanhar o crescimento de sua irmã, levando para o “túmulo” o seu próprio filho. A leitura sociológica: a representação de uma sociedade Estrutura social do Brasil (séc. XIX): Tipo de leitor = “leitora” de folhetins, pertencente à classe dominante, nobreza ou burguesia, para quem não interessava em nada mudanças na estrutura social. A leitura sociológica: a representação de uma sociedade Assim, não se poderia aceitar conviver com figuras “marginais” à sociedade, tanto por sua condição econômica como por sua condição social. Embora rica, o dinheiro de Lúcia provém de sua atividade “espúria” (ilegítima) – a prostituição - , de seus relacionamentos carnais com os homens; um “dinheiro sujo” portanto. A leitura sociológica: a representação de uma sociedade Enfim, a representação da estrutura social se dá na medida em que Alencar revela a hipocrisia das relações sociais da época. Lúcia pode frequentar o teatro, as festas e os bailes da corte; pode vestir-se com luxo como se fosse uma dama; pode desfrutar da companhia dos homens em orgias e jantares, mas não pode querer ser igual a uma dama da corte, como são as leitoras de folhetim. A leitura sociológica: a morte como punição ou redenção? Lúcia, também não pode querer amar e viver uma relação baseada em sentimentos verdadeiros. Por isso, ela precisa morrer, porque não há lugar para ela nesta sociedade. Ela ousou ter sentimentos nobres e cultivar uma relação de amor legítimo. Paulo, também rompeu com regras, perdoando-a e estabelecendo com ela uma relação quase matrimonial. A leitura sociológica: a morte como punição ou redenção? Sua morte funciona como o triunfo das relações estabelecidas, das damas da corte e de tudo o que elas representam, bem como dos pressupostos cristãos de felicidade na vida após a morte. Principalmente porque ela morre purificada e ungida (que recebeu a extrema-unção), tendo a certeza da felicidade celestial. A leitura sociológica: a morte como punição ou redenção? “Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e consórcio de nossas almas se fez no seio do criador. Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro.” (Cap. XXI, pag. 154) A leitura sociológica: a morte como punição ou redenção? A morte de Lúcia une as duas leituras, pois representa o restabelecimento da ordem social e a punição de seu membro que ousou não seguir as regras. Isso vale igualmente para Paulo, que sobrevive à sua amada, tendo que continuar a vida apenas com as lembranças e a saudade. A nota introdutória: “Ao autor” “Reuni as suas cartas e fiz um livro. Eis o destino que lhes dou; quanto ao título, não me foi difícil achar. O nome da moça, cujo perfil o senhor desenhou com tanto esmero, lembroume o nome de um inseto. Lucíola é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos. A nota introdutória: “Ao autor” Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d`alma? Deixem que raivem os moralistas. A sua história não tem pretensões a vestal. É musa cristã: vai trilhando o pó com os olhos no céu. Podem as urzes do caminho dilacerar-lhe a roupagem: veste-a a virtude. A nota introdutória: “Ao autor” Demais, se o livro cair nas mãos de alguma das poucas mulheres que lêem neste país, ela verá estátuas e quadros de mitologia, a que não falta nem o véu da graça, nem a folha de figueira, símbolos do pudor no Olimpo e no Paraíso terrestre. Novembro de 1861. G. M. A Sra. G. M. Guardiã, ainda que um tanto “progressista”, da ordem e dos valores morais da sociedade, a Sra. G. M. desempenha o conveniente papel de alter ego do Autor (as cartas de Paulo e a nota da Sra. G. M. são artifícios pelo qual Alencar parece pretender estabelecer distância entre ele, autor, e os eventos que compõem a obra). A Sra. G. M. A Sra. G. M. também desempenha o papel de compreensiva confessora leiga do protagonista-narrador. Tão compreensiva que – restabelecida a ordem com a morte de Lúcia – mostra condescendente com as estripulias juvenis do autor das cartas (Paulo), que conhecera em uma festa de salão. A Sra. G. M. A destinatária das cartas de Paulo é ao mesmo tempo organizadora/editora das cartas, assumindo, na nota inicial, a posição de advogada do rapaz, pois compactua com ele do mesmo juízo em relação a Lúcia. A Sra. G. M. e o autor Alencar Através da Sra. G. M. o autor real – o romancista José de Alencar – se despersonaliza, distanciando-se da matéria narrada, lavando as mãos e diluindo, estrategicamente, sua responsabilidade em relação à mesma. A Sra. G. M. e o autor Alencar Há, portanto, no uso deste artifício técnico (do autor) uma evidente relação com o conteúdo da obra e com a contradição intrínseca que nela é evidente: a pretensão de fazer crítica social e a solução conservadora que destrói tal pretensão. O NARRADOR O narrador da história é o próprio Paulo que relembra os fatos seis anos após a morte de Lúcia, como uma forma de reverenciar a imagem da amada. Tratase de uma narrativa em primeira pessoa, o que transforma Paulo num filtro por onde passa tudo o que ele narra. Ou seja, tudo tem a sua perspectiva, o seu ponto de vista. O NARRADOR Paulo narra toda a sua história com Lúcia à uma senhora distinta, através de “páginas” que ele escreveu, e enviou a tal senhora, para que esta lhe desse o título e o destino merecido. Diz o narrador: “É um perfil de mulher apenas esboçado.” O NARRADOR Tais páginas foram escritas para responder a estranheza desta senhora, na última vez em que estiveram juntos, pela “excessiva indulgência pelas criaturas infelizes que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagância”, manifestada por Paulo. A dualidade de Lúcia A máscara de mulher pública, livre e “impudente” (despudorada, semvergonha) esconde sua verdadeira essência de mulher recatada e sonhadora, como ela mesma diz: “As aparências enganam tantas vezes!” A dualidade de Lúcia: a simbologia do nome – Lúcia ou Lúcifer? Diz Lúcia: “...Quem não sabe que eu sou anjo de luz, que desci do céu ao inferno?” A dualidade de Lúcia: a simbologia do nome – Lúcia ou Lúcifer? A simbologia do nome “Lúcia”, revelada por ela própria, expressa sua face diabólica, por sua capacidade de sedução para os pecados carnais e por sua condição na sociedade, tal qual Lúcifer, chefe dos anjos decaídos que se rebelaram contra Deus, invejosos da felicidade dos homens, contra os quais passaram a conspirar depois de expulsos do paraíso pelos anjos bons, fiéis ao Criador. Lúcia... vítima do sistema? Lúcia também é mostrada como vítima do sistema, pois prostituir-se foi o caminho que encontrou para salvar sua família da miséria. Sua degradação, portanto, decorre das injunções de uma sociedade indiferente e cruel. Lúcia... vítima do sistema? A família de Lúcia/Maria da Glória foi abatida pela febre amarela e todos ficaram na penúria (miséria). Lúcia, com apenas 14 anos, fez tudo para cuidar da família, mas, levada pelo desespero e inocência, deixou-se corromper pelas seduções do Sr. Couto que lhe acenava com moedas de ouro. Para seu desespero o pai, já restabelecido da doença, descobre tudo e a expulsa de casa. Lúcia... vítima do sistema? Acabou desamparada... prostituída e assumiu o nome de uma colega de quarto, com sina semelhante a sua, que acaba morrendo de tuberculose. Assim, seu pai e família a julgaram morta. Foi para Europa e voltou refinada e rica. De sua família restara apenas a sua irmã Ana que Lúcia custeava os estudos num colégio interno. O sentimento de culpa e o caminho da purificação O sacrifício da heroína dá-lhe um terrível amadurecimento interior e uma aguda consciência dos mecanismos sociais. Além disso, a brutalidade com que fora tratada pelos homens parece ter enfraquecido sua camada mais afetiva, de modo que seus amores nunca duram mais do que alguns meses, e ela própria abandona os amantes sem maiores explicações. O sentimento de culpa e o caminho da purificação Assim, a percepção de que se prostituíra para salvar a família não isenta Lúcia/Maria da Glória de um forte sentimento de culpa. Ela sente asco da profissão a que fora arrastada. Essa culpa, paradoxalmente, transforma-se em explosões de sensualidade. O sentimento de culpa e o caminho da purificação Sua depravação é, segundo Antonio Candido, um “autoatordoamento” e uma “autopunição”. Ao perceber, por exemplo, o interesse que desperta em Paulo, ela se despe, obscena e sedutoramente, em uma orgia promovida por Sá. Trata-se de uma cena de “notável realismo erótico”. O sentimento de culpa e o caminho da purificação Enfim, a complexidade psicológica do romance resulta da oscilação de Lúcia/Maria da Glória entre a culpa e o amor romântico que experimenta por Paulo. O fato de procurar a pureza na abstinência sexual, recusando-se ao relacionamento físico com o ser amado, indica o quanto ela sabia que seu corpo se transformara em mercadoria. O sentimento de culpa e o caminho da purificação Portanto, negar-se às exigências do sexo era, para Lúcia, uma forma de enterrar o seu passado vergonhoso e, consequentemente, morrer é o caminho da purificação. Os sentimentos de Paulo Paulo ama Lúcia/Maria da Glória, mas, ao mesmo tempo, não aceita a própria paixão, debatendo-se entre as solicitações do coração e as imposições morais da sociedade. Sua opção por Lúcia representa uma vigorosa vitória dos sentimentos sobre as convenções e preconceitos da época. A solução conservadora Infelizmente a narrativa apresenta uma solução conservadora, pois a saída de Lúcia é a morte, já que não há lugar para ela na ordem social em que vive. A própria Lúcia/Maria da Glória aspira à destruição pessoal para se regenerar do passado. FONTES: ALENCAR, José. Lucíola. Porto Alegre: Leitura XXI, 2009. Introdução, notas e vocabulário de Márcia Ivana de Lima e Silva. GONZAGA, Sergius. Curso de literatura brasileira. 3ª ed.Porto Alegre: Leitura XXI, 2009. DACANAL, José Hildebrando. Romances brasileiros I: contexto, enredo e comentário crítico. Porto Alegre: Novo Século, 2000.