A CIBERNETIZAÇÃO DA ATIVIDADE PRODUTIVA Celso Candido O processo de transformação do modo de produção industrial para o imaterial passa pelo reconhecimento do computador como a principal máquina-ferramenta produtiva. Tratase da passagem do “sistema de máquinas” para o “sistema de máquinas autocoordenadas”, ou seja, sistemas interativos de inteligência artificial. Nas indústrias, chama-se esse fenômeno de “automação industrial” e, nas administrações, de “automação gerencial”, desmaterializando, dessa forma, duas importantes figuras da moderna sociedade industrial: o operário e o burocrata assalariados. O elemento cibernético Para W. Ross Ashby, a cibernética não pergunta sobre aquilo que é uma coisa, mas sobre aquilo que ela faz. Ela é, assim, “essencialmente funcional e comportamental”. A cibernética trabalha “...com todas as formas de comportamento na medida em que são regulares, ou determinadas ou reprodutíveis”. Nesse sentido, a “materialidade é irrelevante”. A Cibernética, segundo Ashby, ...assume como tema o domínio de ‘todas as máquinas possíveis’ e tem interesse apenas secundário em saber se algumas delas não foram ainda construídas, quer pelo Homem, quer pela Natureza. O que a cibernética oferece é um quadro de referência em que todas as máquinas individuais podem ser ordenadas, relacionadas e entendidas. O que importa, então, não é exatamente o que cada máquina individualmente pode fazer, mas fundamentalmente quais são “...todos os possíveis comportamentos que ela pode produzir”.(12) Em virtude disso, destaca-se que a cibernética pode oferecer “...um método para o tratamento científico do sistema em que a complexidade é saliente e demasiado importante para ser ignorada”.(13) Para R. Ashby, a cibernética é uma ciência própria. Uma ciência complexa que “...foi definida por Wiener como ‘a ciência do controle e da comunicação, no animal e na máquina’ – numa palavra, como a arte do comando”. De acordo com o Departamento de Cibernética da University of Reading nos EUA, a cibernética é “a ciência da informação e sua aplicação” e seria derivada ...da palavra grega 'kybernetes', que significa 'piloto'. Ela foi cunhada em 1948 pelo professor universitário americano, Norbert Wiener, em seu livro com o mesmo nome. Embora não pudesse saber a forma precisa dos futuros desenvolvimentos tecnológicos, ele previu que Controle e Comunicação tornar-se-iam de vital importância para nossa Ciência e Sociedade e sugeriu este novo grupo de matérias, que transcendem os tradicionais limites acadêmicos. Ainda, segundo a mesma Universidade, a ciência cibernética “...está preocupada com sistemas e seu controle, particularmente sistemas interativos”. Os processos de controle de um sistema envolvem quatro aspectos fundamentais: “...aquisição de informação, processamento de informação, comunicação de informação e, finalmente, aplicação útil da informação”. Em suma, esta ciência constituiria “...o grupo de tópicos requerido pela indústria e sociedade modernas”. A automação industrial A cibernética situa-se no centro das transformações na indústria moderna na forma da automação industrial. Essa automação é o componente essencial daquilo que Adam Schaff definiu como a “segunda revolução tecno-industrial”. Para Schaff, a primeira revolução, que poderia ser situada entre o final do século XVIII e início do XIX, seria caracterizada por “...substituir, na produção, a força física do homem pela energia das máquinas (primeiro pela utilização do vapor e, mais adiante, sobretudo, pela utilização da eletricidade)”, ao passo que a segunda revolução se definiria pela tentativa de substituição total do trabalho e da inteligência humana pelo trabalho e pela inteligência artificial das máquinas técnicas. Assim, segue ele: ...a segunda revolução, a que estamos assistindo agora, consiste em que as capacidades intelectuais do homem são ampliadas e inclusive substituídas por autômatos, que eliminam, com êxito crescente, o trabalho humano na produção e nos serviços. A analogia com a primeira revolução industrial está no salto qualitativo operado no desenvolvimento da tecnologia de produção que acabou por romper a continuidade dos avanços quantitativos que se iam acumulando nas tecnologias já existentes; a diferença, porém, está em que, enquanto a primeira revolução conduziu a diversas facilidades e a um incremento no rendimento do trabalho humano, a segunda, por suas conseqüências, aspira à eliminação total deste. A automação industrial visaria à “exclusão” do trabalhador assalariado da fábrica, além do incremento e do aperfeiçoamento técnico-maquínico da produção. As máquinas não fazem greves, não têm causas trabalhistas; não organizam sindicatos ou partidos políticos. E, muitas vezes, fazem certos trabalhos melhor e mais eficientemente que os próprios humanos. Uma máquina cibernética pode representar a força de quantos corpos e a capacidade intelectual de quantos cérebros humanos? Tais questões, sem dúvida, são espantosas para o pensamento (figura 1). A automação seria, assim, o ideal do capitalismo industrial moderno, de um lado, mas também, de outro, dos movimentos de liberdade da modernidade. A 2 automação, que é uma das maiores invenções da sociedade industrial, talvez seja, ao mesmo tempo, a superação da lógica capitalista industrial tradicional de extração da mais-valia, na medida em que ela prescinde do seu principal protagonista, o operário assalariado explorado. Figura 1. A sensibilidade digital A crise do desemprego Assim, um fantasma ronda o planeta: o desemprego. A revolução cibernética aprofunda e ultrapassa, em certo sentido, a revolução industrial, na qual, segundo Marx, a máquina, como ferramenta, era “o centro da produção”; aí, o sistema econômico-social passa a girar em torno da fábrica, suas máquinas e operários. Na fábrica cibernética, saem de cena os operários e ficam as máquinas. Elas são os novos escravos da produção: máquinasescravas, como os “replicantes” em Blade Runner (figura 2). As fábricas modernas eram fumacentas, flamejantes máquinas infernais comendo e cuspindo homens e mulheres como caroços incômodos, mas necessários. As indústrias automatizadas significam uma nova etapa no desenvolvimento das forças produtivas, pois, de certa forma, os seres humanos se liberam do trabalho industrial na fábrica, da vida industrial. Trabalho árduo porque aí as máquinas precisam constantemente ser alimentadas pela mão humana. A automação industrial significa, a longo prazo, o fim da categoria do proletariado industrial assalariado, especialista mecânico de uma única função. 3 Figura 8.2. Priss, “máquina erótica”, uma das Replicantes do filme Blade Runner de Ridley Scott, baseado no romance de Philip Dick. Entretanto, a interface cibernética de produção, no momento em que substitui a interface humana no seio da fábrica, provoca, pelo seu modo próprio de ser, um desemprego generalizado das antigas funções e habilidades necessárias ao modo de produção industrial. Assim foi com os primórdios da revolução industrial e assim está sendo com a revolução cibernética, pois prescindindo do operário industrial, a fábrica torna-se, ela mesma, autosuficiente. Essa fábrica autômata, representa o desemprego em massa de operários industriais. Ao mesmo tempo, a “automação gerencial” tende a fazer imensas camadas de funcionários das burocracias estatais e privados tornaram-se absolutamente inúteis socialmente. Mas, se é verdade que se reduz drasticamente vastos setores do mercado de trabalho pelas “máquinas inteligentes”, é verdade também que, com a emergência do espaço cibernético, outros mercados de trabalho tornam-se possíveis e aparentemente são ilimitados, nos quais tão ou mais importante que o capital financeiro seria o capital intelectual, a criatividade e a disposição empreendedora autônoma, que determinam o desenvolvimento das forças produtivas. Assim, a crise estrutural de desemprego decorrente desse processo generalizado de automação deverá encontrar uma reserva de mercado de trabalho suficientemente vasta no interior do espaço e, em especial, da mídia cibernéticos, porque, na verdade, a reabsorção da mão-de-obra desempregada e a geração de novos mercados de trabalho e renda é mesmo condição da viabilidade do novo sistema econômico. 4 A recomposição da força de trabalho Desse modo, as “máquinas inteligentes” tendem a substituir praticamente toda intervenção humana dentro da fábrica. Agora, o centro de comando cibernético organiza toda a produção, do princípio ao fim. É o sistema de máquinas autônomo. Aí acaba-se, em certa medida, com aquele processo de “alienação do trabalho” – o humano entre máquinas como engrenagem de máquina, como coisa entre coisas (figura 3) – simplesmente porque a esfera mecanizada de intervenção humana deixa de existir. Figura 3. Charles Chaplin em seu filme Tempos Modernos Na civilização digital, em que grande parte do trabalho industrial é executado pelas máquinas inteligentes, a classe trabalhadora desta indústria assume o comando e gerenciamento de máquinas. Muda a máquina-ferramenta da produção. O trabalhador não precisa mais participar como coisa, como máquina entre máquinas na indústria précibernética. Agora, atrás de botões de computadores, ele adquire uma sensibilidade digital. A diferença está no toque. É o operário digital. A classe operária industrial tradicional tende a ser mais minoritária, até, talvez, ser praticamente ultrapassada, o que significaria uma recolocação, sobre novas bases, da questão marxista da exploração da mais-valia humana, da alienação e reificação do trabalho e, por conseguinte, da transformação social. Note-se, entretanto, que o “proletariado intelectual” emergente nesse processo, certamente, será cada vez mais importante socialmente, na medida em que “controlará” grande parte do processo produtivo e econômico. Assim, uma nova economia e uma nova forma de trabalhar estão emergindo: economia do conhecimento e trabalho imaterial. 5