APOSENTADORIA URBANA E RURAL FRENTE AO SISTEMA
BRASILEIRO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL
Janaina Aparecida dos Santos
Rosana Tavares
SUMÁRIO: Introdução. 1 Seguridade Social; 1.1 Seguridade Social como
Direito Fundamental; 1.2 Princípios Constitucionais da Seguridade Social; 1.3
Universalidade da Cobertura e do Atendimento; 1.4 Identidade e Equivalência
da Relação de Benefícios e dos Serviços entre Populações Urbanas e Rurais;
1.5 Caráter Democrático da Atuação da Administração e Descentralização de
Poder; 1.6 Utilização do Período de Trabalho Rural para a Aposentadoria por
Idade Urbana (Lei nº 11.718/08). 2 Segurado Rural; 2.1 Conceito de Segurado
Especial Rural; 2.2 Proteção do Trabalhador Rural; 2.3 Aposentadoria por
Idade Rural; 2.4 Aposentadoria por Idade Urbana; 2.5 Aposentadoria Híbrida
por Idade Rural; 2.6 Fundamentação Legal da Aposentadoria por Idade do
Trabalhador Rural; 2.7 Natureza Jurídica da Aposentadoria e de seu Ato
Concessivo; 2.8 Documentos Reconhecidos como Início de Prova Material; 2.9
A Prova no
Processo
de
Benefício Previdenciário;
2.10 Justificação
Administrativa e Judicial. 3 Previdência Rural; 3.1 Histórico da Contribuição
Previdenciária Rural; 3.2 Conceito, Estrutura e Fundamentalidade Material da
Seguridade Social; 3.3 Financiamento da Seguridade Social; 3.4 Equidade de
Participação e Custeio; 3.5 Diversidade da Base de Financiamento; 3.6
Funrural; 3.7 A Problemática da Reserva do Possível. Conclusão. Referências.
Introdução
O direito previdenciário brasileiro é ramo relativamente novo frente às demais
áreas
jurídicas. Em um primeiro momento, poder-se-ia conceber
que a
aposentadoria deveria ser direcionada para aquele que, sem sua força de trabalho,
pudesse descansar sobrevivendo apenas dessa renda para a qual durante toda a
vida trabalhou.
1
A Constituição Federal de 1988 regulamentou os direitos relativos à saúde, à
assistencial social e à previdência social. Essas três vertentes da seguridade social
integram o conjunto de prestações positivas que devem ser dissipadas pelo Estado
em prol da proteção dos indivíduos, no qual cada subsistema atuará em seu
momento oportuno. Esse tríplice sistema de proteção teve por intuito atender as
necessidades mínimas dos seres humanos, salvaguardando, principalmente, os
mais carentes e os trabalhadores e seus dependentes. Esse complexo de ações
dispostas no título da ordem social tem por fundamento norteador a dignidade da
pessoa humana.
A previdência social, por sua vez, tem por escopo amparar o labutador e seus
dependentes contra as desventuras da vida que acarretam a perda ou minoração da
capacidade de trabalho, por exemplo. Além do mais, a previdência social é de
caráter contributivo e de filiação obrigatória, somente podendo dela se beneficiar
quem tenha contribuído para a manutenção do sistema.
Com a chegada da Constituição Federal de 1988, o trabalhador rural passou
a ter equivalência de direitos com o trabalhador urbano. Porém, a efetiva
implantação dos benefícios para o trabalhador rural só foi concretizada três anos
depois por meio das Leis ns. 8.212/91 e 8.213/91, referentes ao Plano de Custeio e
ao Plano de Benefícios da Previdência Social.
O ônus desse desenvolvimento ficou a cargo do trabalhador do campo que
enfrenta várias dificuldades ao longo de anos de trabalho e, como sabemos, o
rurícola não goza de registro em carteira de trabalho, nem recolhimentos tributários
relativos à previdência social, seja por questões legislativas, ou mesmo social.
Assim, surge uma nova classe de trabalhadores: trabalhador que atuou em
atividades do campo e urbanas de forma mista ou híbrida, resultando em uma busca
incessante da evolução pessoal do ser humano. Portanto, o objetivo do trabalho em
questão é analisar e esclarecer o tratamento dado ao segurado que, durante seu
período de labor, mesclou atividade rural e urbana e a forma que se dá a
aposentadoria para esses segurados.
2
1 Seguridade Social
1.1 Seguridade Social como Direito Fundamental
A Constituição Federal elenca, nos arts. 6º ao 11, os direitos sociais, quais
sejam previdência social, saúde, trabalho, educação, moradia, entre outros; a partir
do art. 7º disciplina as normas relativas ao trabalho humano.
Para Serau Jr. (2009, p. 55), a "visão que se tem do ordenamento não pode
ser construída sem o entendimento de que o contexto social influencia a criação e a
modificação das normas, de forma que esse conteúdo é extraído pelo Poder
Constituinte".
A seguridade social é o conjunto de ações do Estado, destinadas a garantir
condições de vida digna aos indivíduos, resguardando-os de contingências
impossibilitadoras da própria manutenção.
Para Serau Jr. (2009, p. 58), há "necessidade de se refletir sobre o modelo
atual de seguridade social quando se analisa os direitos fundamentais, de modo que
os elementos ali transcritos são realmente efetivados".
Nessa fase, os direitos humanos, com sua respectiva internacionalização,
foram dimensionados, em um primeiro momento, como resposta ao Holocausto
nazista, impondo respeito e ações concretas em prol da humanidade, dentro de uma
perspectiva caracterizada pela universalidade e indivisibilidade dos direitos
humanos.
Para Serau Jr. (2009, p. 61), a "explicação dos direitos fundamentais reside
na ideia de que as normas vigentes são efetivadas para tornar as relações jurídicas
e humanas harmônicas e assegurar que o texto de lei seja cumprido na prática".
Verifica-se, então, que tal proteção vem regular as ações humanas e controlar
o abuso de direito em face dos direitos estabelecidos em nossa Constituição.
3
1.2 Princípios Constitucionais da Seguridade Social
A vida é dinâmica e, pelo fato de cada pessoa estar inserida no contexto
social, qualquer evento que possa acarretar a perda da qualidade de vida do
indivíduo reflete, direta ou indiretamente, a toda sociedade. Logo, observa-se a
existência do sistema da seguridade social como mecanismo de aplicação efetiva de
regras que visam proteger a saúde, a assistência ou a previdência social.
"A ideia do Estado social de Heller tinha como eixo central a incorporação jurídica,
seguridade social e das relações trabalhistas. O Estado social, segundo esse
mesmo autor, implicava a autonomia da sociedade para regulamentar o sistema de
previdência público e o direito do trabalho, pela negociação entre patrões e
empregados. Essas regulamentações provocariam um avanço social por conta,
entre outros motivos, da redução do Estado de classe e policial existente então."
(SANTOS, 2011, p. 121)
A atitude reformista de Heller foi a que permitiu a afirmação de um Estado
Social de Direito e Democrático frente ao nazifascismo e ao auge econômico do
capitalismo (CASTRO et al., 2011, p. 62).
Analisada, de um modo geral, a seguridade social e sua essencialidade no
âmbito pátrio, interessante observar, a seguir, as características específicas dos
respectivos campos que a permeiam.
1.3 Universalidade da Cobertura e do Atendimento
No inciso I, parágrafo único, do art. 194 da Constituição Federal, há a menção
de dois princípios essenciais para a prestação de serviço da seguridade social, um
de caráter subjetivo e outro de caráter objetivo.
Para Berwanger (2013, p. 120), "deve-se analisar qual o impacto das normas
mais recentes na previdência social".
4
"A universalidade da cobertura prevê, objetivamente, a existência de uma proteção
social apta a abarcar todas as vicissitudes da vida. Todo programa de governo, bem
como os benefícios existentes e criados por lei específica, deve ser instituído com a
finalidade de amparar todos os riscos sociais existentes dentro do convívio humano."
(COELHO et al., 2006, p. 78)
Por sua vez, a universalidade do atendimento refere-se ao sujeito da relação
securitária, ou seja, sua finalidade é focar na importância que a pessoa tem de ser
coberta pela proteção social prevista dentro do país. Aqui, há o caráter subjetivo da
universalidade.
1.4 Identidade e Equivalência da Relação de Benefícios e dos Serviços entre
Populações Urbanas e Rurais
A Constituição Federal de 1988 visou dar um tratamento mais igualitário para
as pessoas que vivem e trabalham no campo em relação àquelas que possuem sua
vida dentro dos centros urbanos. Esse mesmo princípio foi reproduzido, literalmente,
no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.213/91 (MARTINEZ, 2001, p. 176).
Para Berwanger (2013, p. 120), "as contribuições previdenciárias guardam
maior relação com os princípios tributários do que com os benefícios colocados a
disposição dos segurados".
Logo, o legislador infraconstitucional não está autorizado a criar benefícios
diferenciados entre essas duas espécies de trabalhadores, devendo ambos,
ressalvadas as características específicas de cada atividade, usufruírem dos
mesmos benefícios estabelecidos pelas leis que cuidem dos planos de assistência,
previdência e saúde públicas.
5
1.5 Caráter Democrático da Atuação da Administração e Descentralização de
Poder
A gestão dos recursos da seguridade social é realizada de maneira
quadripartite, ou seja, com a participação de trabalhadores ativos, aposentados,
empregadores e do próprio Estado (MARTINEZ, 2001, p. 177).
A importância desse princípio é garantir um caráter mais democrático na
participação de toda a sociedade na administração dos recursos da seguridade
social, colocando governo (responsável direto pela administração da seguridade
social), trabalhadores (maiores beneficiários do sistema e interessados em mantê-lo
sólido),
empregadores
(sustentados
(maiores
pelo sistema
financiadores
securitário)
do
dentro de
sistema)
uma
e
aposentados
mesma gleba
de
responsabilidades, de caráter decisório e participativo.
1.6 Utilização do Período de Trabalho Rural para a Aposentadoria por Idade
Urbana (Lei nº 11.718/08)
A Lei nº 11.718/08 trouxe inovações na aposentadoria rural por idade no que
diz respeito ao prazo de vigência do art. 143 da Lei nº 8.213/91, no qual o direito ao
benefício previdenciário dos trabalhadores rurais tinha prazo de validade prefixado
até julho de 2006, ou seja, 15 anos após a publicação da referida Lei de Benefícios.
"Já quanto aos trabalhadores rurais considerados como empregados (boia-fria), a
atual legislação estipulou uma regra de transição referente ao pagamento das
contribuições previdenciárias, haja vista que por ser considerado empregado, tornase indispensável o recolhimento ao RGPS para que esse trabalhador tenha direito a
qualquer benefício previdenciário. É uma questão que gera muitas discussões, já
que esses trabalhadores são os que mais necessitam do amparo da previdência
social." (LOPES Jr., 2009, p. 86)
A Constituição Federal determinou que somente os trabalhadores rurais que
exerçam suas atividades em regime de economia familiar são beneficiários do RGPS
6
independente de contribuição, porém, para configurar tal regime, o trabalho rural
deve ser exercido pelo grupo familiar, não podendo ter empregados permanentes.
Há que se levar em conta que o direito à aposentadoria rural por idade não
está previsto somente no comentado art. 143 da Lei nº 8.213/91, mas também em
outros dispositivos legais que garantem esse direito aos trabalhadores rurais. Assim,
com o fim do prazo estipulado no art. 143, o segurado especial deverá comprovar o
exercício da atividade rural conforme o disposto no art. 39 da mesma Lei.
Portanto, conclui-se que a aposentadoria rural por idade do segurado especial
continua sendo devida, nos termos do art. 39 da Lei de Benefícios, mesmo após a
expiração do prazo estabelecido no art. 143.
2 Segurado Rural
2.1 Conceito de Segurado Especial Rural
O segurado especial é considerado segurado obrigatório do Regime Geral de
Previdência Social, conforme dispõe o inciso VII do art. 11 da Lei nº 8.213/91. O art.
39 da mesma Lei também trata da aposentadoria por idade do segurado especial,
bem como do direito a outros benefícios previdenciários.
"Dessa forma, entende-se que segurado especial é aquela pessoa que lida com
atividades agrícolas, retirando daí o próprio sustento, ou os considerados
equiparados pela lei, que trabalham no mesmo grupo familiar, sendo que o exercício
da atividade rurícola dos segurados deve ser satisfatoriamente comprovado no
momento do requerimento do benefício." (ALENCAR, 2009, p. 153)
A concessão da aposentadoria por idade do trabalhador rural está
condicionada à idade e também à carência. O tempo de trabalho rural pode ser
realizado através dos documentos elencados no art. 106 da Lei nº 8.213/91. O art.
143 da Lei nº 8.213/91 determinava um prazo de 15 anos, a partir de 25.07.91, para
o trabalhador rural. Porém, esse prazo foi prorrogado pela Lei nº 11.368/06 e,
7
novamente, pela Lei nº 11.718/08 até 31.12.10, em favor do trabalhador rural
empregado. Cabe salientar que a tabela de transição prevista no art. 142 da Lei nº
8.213/91 não persiste mais, sendo que a partir do ano de 2011 a carência para a
concessão da aposentadoria por idade do trabalhador rural passou a ser de 180
meses.
Nesse sentido:
"Não se requer que todo o tempo de carência seja cumprido em atividade rural, mas
que o segurado tenha tempo comprovado em atividade de rurícola em interregno
igual. Por exemplo, se uma pessoa comprova, dentro da regra atual, 180 meses de
atividade rural, poderá aposentar-se com idade reduzida, como trabalhador rural,
ainda que os recolhimentos comprovados para fins de carência sejam em atividade
urbana. Obviamente, ao requerer o benefício, deve comprovar a atividade campeira
também neste momento, pois, do contrário, não será trabalhador rural." (IBRAHIM,
2010, p. 628)
Cabe salientar que conforme o disposto no § 8º do art. 195 da CF, o segurado
especial se dá através do valor obtido com a comercialização da sua produção,
porém, esse segurado continuará protegido pela previdência social mesmo se não
houver venda da sua produção, caso que também não incidirá nenhuma
contribuição.
"As inovações trazidas pela Lei nº 11.718/08, referente ao trabalho rural, foram
embasadas nos precedentes jurisprudenciais dos tribunais, nos quais, nos termos do
Recurso Especial 675.892, já pode ser reconhecido o exercício da atividade exercida
individualmente, quando um dos cônjuges ou outros membros do grupo familiar do
segurado têm outra fonte de renda. Também já é questão ultrapassada pela Turma
Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, no julgamento dos
autos 2006.72.95.002765-8." (IBRAHIM, 2010, p. 630)
O segurado especial, na maioria das vezes, encontra grandes dificuldades de
comprovar a sua atividade rurícola, tendo em vista a escassez de documentos nessa
área.
8
"O fato de o segurado não possuir todos os documentos da atividade agrícola em
seu nome não elide o seu direito ao benefício postulado, pois, como normalmente
acontece no meio rural, os documentos de propriedade e talonários fiscais são
expedidos em nome de quem aparece perante os negócios da família. Nesse caso,
os documentos do pai caracterizam-se como prova material indireta, hábil a
comprovação do tempo de serviço rural prestado em regime de economia familiar.
Igualmente servem de início de prova da atividade laboral rural o registro da
qualificação ‘agricultor’ ou ‘lavrador’ nos documentos militares (alistamento ou
certificado de reservista) ou certidões de casamento." (LAZZARI, 2010, p. 147)
As disposições da Lei nº 11.718/08, por ser mais benéfica ao segurado
especial, aplicam-se a todo o tempo trabalhado, mesmo sendo antes da sua edição,
podendo, inclusive, ser reapresentados os pedidos administrativos anteriormente
indeferidos. Porém, a decisão embasada na nova lei só terá efeitos financeiros a
partir do novo pedido.
2.2 Proteção do Trabalhador Rural
O pensamento constitucionalista que inspirou as primeiras revoluções
francesa e norte-americana, assim como a evolução do sistema britânico, no século
XVIII, estava apoiado em dois princípios.
"Primeiro, que há determinados direitos da pessoa humana que não dependem de
seu reconhecimento em contratos ou normas jurídicas, já que são próprios da
natureza humana e, portanto, prévios ou anteriores a qualquer pacto ou criação de
uma comunidade política. Em segundo lugar e, por consequência, o fato de que tais
direitos são prerrogativas, em geral, de todos os membros da comunidade política."
(BERWANGER et al., 2011, p. 110)
Nesse aspecto, a percepção moderna foi diferente da medieval. Com a
modernidade, passaram a estar reconhecidos determinadas liberdades ou privilégios
a grupos determinados, como burgueses, cavaleiros, clero e nobreza, cada um deles
9
dispondo de seu próprio estatuto. Mesmo assim, frente a esse conjunto de regimes
particularizados de liberdades de classes, o constitucionalismo proclamava um
princípio de liberdade, enquanto que os direitos inalienáveis - direitos do homem ou
direitos humanos, na formulação anterior - seriam atribuídos a todos os cidadãos e
não a uns setores ou grupos.
2.3 Aposentadoria por Idade Rural
O fundamento descrito em lei para aposentadoria rural por idade está
disciplinado no art. 48 da Lei de Benefícios, e a idade para sua concessão é de 55
anos para as mulheres e de 60 anos para os homens, combinado com o art. 11 da
Lei de Benefícios.
A comprovação da atividade rural está disciplinada no § 2º do referido
diploma, mesmo que o período não seja contínuo (BERWANGER, 2008, p. 112).
Além do mais, a comprovação de todo tempo trabalhado só irá produzir os
efeitos legais se o segurado apresentar as provas exigidas em lei, conforme
disciplina o art. 55 da Lei de Benefícios.
2.4 Aposentadoria por Idade Urbana
O direito do trabalhador rural à aposentadoria por idade está previsto na CF,
art. 201, § 7º, inciso II. No mesmo sentido dispõe o art. 48 da Lei nº 8.213/91. A
comprovação do tempo de serviço somente será aceita quando apresentados os
documentos arrolados acima ou quando o segurado apresentar prova material do
período em análise, posto que o art. 55, § 3º, da Lei nº 8.213/91 veda a prova
exclusivamente testemunhal.
"O início de prova material é admitido em razão das dificuldades encontradas pelos
trabalhadores rurais para comprovar o exercício da sua atividade rural. Diante disso,
podemos dizer que se o trabalhador rural tem um dos documentos arrolados no art.
10
106 da LB, ele terá uma prova plena da sua condição rurícola. Porém, se o
documento apresentado não constar no rol, este será considerado como início de
prova material, e as suas alegações deverão ser confirmadas pela prova
testemunhal." (BERWANGER, 2008, p. 112)
Segundo a lei vigente, a comprovação da atividade rural pode ser feita ainda
que de forma descontínua, em outras palavras, não é necessário que o segurado
tenha um ou vários documentos para cada período que se pretende comprovar.
Assim, torna-se prescindível que o início de prova material abranja todo o período de
carência do benefício a ser requerido, porém, a prova testemunhal deve ampliar a
eficácia probatória dos documentos apresentados ao tempo da carência exigida.
2.5 Aposentadoria Híbrida por Idade Rural
A aposentadoria híbrida na prática representa a possibilidade de utilizar para
tempo de concessão para aposentadoria o período laborado nas atividades urbanas
e rurais (art. 48 da Lei nº 11.718/08). Essa Lei, por sua vez, permite que o segurado
possa preencher o período de trabalho para atingir aposentadoria urbana ou rural, e
nossa jurisprudência é a favor dessa mescla de períodos.
A requisição pelo segurado da aposentadoria pode se dar mesmo quando
este estiver trabalhando, pois a lei não exige seu desligamento do serviço
(BERWANGER et al., 2011, p. 111).
O segurado que por qualquer período tenha exercido atividade rural terá esse
tempo aproveitado para concessão de aposentadoria urbana, e o mesmo também
ocorre, caso tal período seja indeferido pelo INSS e o segurado tiver prova do
período trabalho, basta recorrer ao Judiciário para corrigir essa injustiça.
11
2.6 Fundamentação Legal da Aposentadoria por Idade do Trabalhador Rural
O trabalhador rural pode requerer aposentadoria quando tiver 65 anos de
idade (homem) ou 60 anos de idade (mulher). Tal regra está disposta no art. 48 da
Lei de Benefícios. Outro requisito exigido é o período de carência (prazo de 180
contribuições).
A Constituição, por sua vez, traz uma exceção a essa regra em seu art. 201,
ou seja, o contribuinte rural terá reduzido o prazo para requerer aposentadoria em
cinco anos, desde que a atividade laboral seja exercida em economia familiar. A Lei
de Benefícios regula os benefícios disciplinados pela previdência social e os
requisitos exigidos para sua concessão.
2.7 Natureza Jurídica da Aposentadoria e de seu Ato Concessivo
Nesse ponto, é importante ressaltar o que foi assinalado por Dias e Macedo
(2008, p. 396) em sua obra, na qual expuseram que "as contribuições são um
instrumento de intervenção do Estado na economia e na ordem social".
"Nesse ensejo que se justifica que o financiamento da seguridade social seja feito
também por toda a sociedade, pois dela se beneficia em potencial, como estabelece
o art. 195 da Carta Maior. O Estado não pode deixar de oferecer seguridade social e
a Constituição Federal de 1988 ampliou suas obrigações nesse campo e também
suas fontes de receita, a exemplo da saúde, que antes era restrita aos contribuintes
da previdência social." (PAULSEN, 2007, p. 245)
Bem se sabe que a natureza jurídica das contribuições sociais de seguridade
social não é determinada pelo fato gerador da obrigação tributária, não se lhes
aplicando o art. 4º do Código Tributário Nacional. Dessa maneira, somente podem
ser criados para financiar a atuação da União na área da seguridade social,
ressaltando-se que a hipótese de incidência não é fator determinante da natureza
jurídica das contribuições sociais de seguridade social.
12
2.8 Documentos Reconhecidos como Início de Prova Material
Como início razoável de prova material deve ser apresentado documentos
idôneos e contemporâneos ao período a ser reconhecido, desde que haja menção
da atividade exercida pelo segurado, como agricultor, lavrador, trabalhador rural ou
outros sinônimos, ainda que em nome de terceiros, ou seja, em nome do cônjuge ou
dos pais1.
Para Berwanger (2013, p. 120), "a prova apresentada no direito previdenciário
deve obedecer aos critérios fixados pelo ordenamento".
Nesse sentido:
"Ainda pode ser admitido como início razoável de prova material os seguintes
documentos: documento da bolsa-família, ficha de participação em cooperativa,
comprovante de assistência ou acompanhamento de extensão rural, ficha de
crediário em estabelecimento comercial, recibo de pagamento de contribuição
confederativa, processos judiciais ou administrativos, caderneta de vacinação,
recibos e notas fiscais de compra de insumos e implementos agrícolas, comprovante
de empréstimo bancário, ficha de inscrição no sindicato rural, contribuição social do
sindicato rural, auto de infração, registro em entidades religiosas, certidão de
batismo dos filhos, certidão de tutela ou curatela, boletim escolar do trabalhador,
participação em feiras agrícola ou pecuária e em registro em associações de
produtores rurais." (MARTINEZ, 2001, p. 180)
A jurisprudência é a nossa principal fonte orientadora no que se refere aos
documentos admitidos como início de prova material para comprovação desse
período, visto que, além do rol do art. 106 da Lei nº 8.213/91, admitem-se vários
1
Eis o entendimento de nosso Tribunal Superior com relação ao termo: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM
RECURSO ESPECIAL 226.290/SP(1999/0071161-0). PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. TRABALHADOR
RURAL. APOSENDORIA POR IDADE. PROVA DA ATIVIDADE RURÍCOLA. INÍCIO RAZOÁVEL DE PROVA
DOCUMENTAL. SÚMULA Nº 149/STJ. A jurisprudência da egrégia Terceira Seção Consolidou o entendimento
que deu origem à Súmula nº 149 desta Corte, no sentido de que, para fins de obtenção de aposentadoria
previdenciária por idade, deve o trabalhador rural provar sua atividade no campo por meio de, pelo menos,
início razoável de prova documental, sendo suficientes as anotações no certificado de dispensa do serviço
militar Recurso especial não conhecido”.
13
outros documentos, porém, a sua eficácia depende de prova testemunhal satisfatória
para produzir efeito.
2.9 A Prova no Processo de Benefício Previdenciário
Em nosso ordenamento jurídico, existem as provas consideradas diretas, que
não deixam dúvidas acerca do fato alegado pela parte, e as provas consideradas
indiretas, que dependem de complementação por outros meios, tais como a
realização de vistorias, produção de prova testemunhal, entre outros. Nesse caso, o
julgador poderá determinar, tanto na via administrativa quanto na via judicial, a
produção de novas provas visando esclarecer os fatos alegados.
Nesse contexto:
"Do contrário, a lei transforma-se em letra morta, perdendo os segurados qualquer
chance real de comprovar a atividade remunerada. Isso é ainda mais evidente na
área rural, onde a produção documental é, em geral, escassa. Particularmente ficaria
quase impossível à esposa que tenha exercido trabalho rural em regime de
economia familiar a produção de prova documental nesse sentido, havendo de
prevalecer o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça no sentido de
que as atividades desenvolvidas em regime de economia familiar podem ser
comprovadas através de documento em nome do pai de família, que conta com a
colaboração efetiva da esposa e filhos no trabalho rural (REsp 386.538/RS, 5ª
Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJU 07.04.03, p. 310)." (IBRAHIM, 2010, p. 549)
Assim, é certo que o início de prova material é o ponto de partida para a
comprovação da atividade exercida pelo trabalhador rural, fazendo-se necessária a
produção de prova testemunhal que valide ou estenda o valor probatório dos
documentos apresentados.
Cabe, ainda, lembrar-se dos ensinamentos de Serau Jr. (2010, p. 185), cuja
"finalidade do direito processual é proferir uma decisão da Justiça, e na seara
previdenciária as decisões visam resguardar essa Justiça".
14
Nesse contexto, a decisão sobre uma prova apresentada pode representar a
concessão, ou não, de um benefício, e, como lembrou Serau Jr., as decisões devem
ser estabelecidas para fornecer a mais lídima justiça.
Ainda:
"Há de se distinguir a prova apresentada na esfera administrativa da judicial. Na
primeira, representa uma atividade vinculada e, por isso, a atividade realizada traz
para o Estado um ônus e beneficia o interesse particular; já o segundo segue as
regras do direito constitucional em face das decisões proferidas pelo Poder
Judiciário, tais decisões, por sua vez, procuram através de equilíbrio mostrar os
interesses que justificam tal decisão." (SERAU Jr., 2010, p. 182-184)
Tal pensamento é uma referência na área e mostra diferentes pontos de vista,
em face da atuação de cada órgão da Justiça e das figuras investigas para exercer
tal poder.
2.10 Justificação Administrativa e Judicial
A justificação administrativa está prevista no art. 108 da Lei nº 8.213/91 e sua
finalidade é demonstrar ao órgão da Administração Pública, nesse caso o INSS, a
veracidade dos fatos alegados, quando o segurado não tem provas suficientes das
suas alegações.
Assim, se o segurado não possui nenhum dos documentos considerados
como prova plena (art. 106 da Lei de Benefícios), pode-se requerer a justificação
administrativa, que sempre deverá estar baseada em início de prova material
visando comprovar a veracidade dos fatos alegados.
"A homologação da Justificação administrativa dá-se quanto à forma e quanto ao
mérito. Quanto à forma, a competência é de quem a processou, devendo apresentar
relatório sucinto dos fatos e a sua conclusão a respeito dos depoimentos das
15
testemunhas e a prova produzida em relação aos fatos alegados, não sendo da sua
competência a análise do início de prova material apresentado." (ALENCAR, 2009,
p. 155)
A justificação judicial é um meio de prova que se assemelha à justificação
administrativa, porém de caráter judicial, na qual o INSS é parte no processo
juntamente com o interessado. Nesse procedimento também é necessária a
indicação de provas, conforme dispõe a Súmula nº 149 do STJ.
3 Previdência Rural
3.1 Histórico da Contribuição Previdenciária Rural
No final da década de 1930, outros setores da economia também começaram
a constituir suas caixas de aposentadorias. No governo Vargas, e por iniciativa
desse próprio governo, essas caixas de aposentadorias foram reestruturadas, se
caracterizando como fundo de pensões e aposentadorias. Favoni (2001, p. 70)
destaca que, nessa época, essas instituições que se formaram não atendiam aos
trabalhadores rurais, visto que estes não exerciam profissão no rol das atividades
aceitas pelos institutos existentes até então. Foi somente no final da década de 1960
que os benefícios foram expandidos aos grupos de trabalhadores rurais.
Somente com a Lei Complementar nº 11, de 1971, que foi criado o chamado
Prorural, que era administrado pelo Fundo de Assistência e Previdência do
Trabalhador Rural (Funrural).
Um pouco antes da Lei acima citada, foi criada, em 1963, a Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (a Contag) e publicada a Lei nº 4.214,
que foi denominada de Estatuto do Trabalhador Rural, criando, assim, o Fundo de
Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (CALCIOLARI, 2009, p. 44).
No ano de 1967, o Estatuto recebeu reformulações com o Decreto-Lei nº 276,
no qual a arrecadação das contribuições passou a ser gerenciada pelo Instituto
16
Nacional de Previdência Social (INPS), e tinham como benefícios as assistências
médica e social (FAVONI, 2001, p. 71).
Em 1969, foi instituído, por meio de decreto-lei, o Plano Básico da Previdência
Social, que visava amparar os trabalhadores rurais da agroindústria canavieira. As
contribuições eram feitas pelos empregados e empregadores (CALCIOLARI, 2009,
p. 45).
A Constituição de 1988 inseriu os trabalhadores no Regime Geral da
Previdência Social, excluindo, assim, o tratamento diferenciado que até então era
dado aos trabalhadores rurais. Assim, o sistema de previdência rural se redesenhou
trazendo algumas melhorias que foram significativas para os segurados rurais.
3.2 Conceito, Estrutura e Fundamentalidade Material da Seguridade Social
Castro e Lazzari (2006, p. 225) descrevem que o modelo de financiamento da
seguridade social previsto na Carta Magna se baseia no sistema contributivo com
receita própria.
Nesse caso, o orçamento deve ser objeto de deliberação conjunta entre os
órgãos competentes - Conselho Nacional de Previdência Social, Conselho Nacional
de Assistência Social e Conselho Nacional de Saúde - e a gestão dos recursos é
descentralizada por área de atuação. Com a Emenda Constitucional nº 20 foram
incluídos no art. 195 os §§ 9º, 10 e 11 e alterado o 8º.
Cabe lembrar que o Estado não pode deixar de oferecer seguridade social e a
Constituição Federal de 1988 ampliou suas obrigações nesse campo e também suas
fontes de receita, a exemplo da saúde, que antes era restrita aos contribuintes da
previdência social.
17
3.3 Financiamento da Seguridade Social
De acordo com pesquisas de Delgado et al. (2000, p. 98), o financiamento
destinado à previdência rural, desde a criação do Funrural, foi caracterizado como
um subsistema de transferência de renda. Sendo assim, este não era custeado por
meio da contribuição de seus segurados.
Mesmo depois da promulgação das Leis de Custeio (Lei nº 8.212/91) e de
Benefícios (Lei nº 8.213/91) da Previdência Social em que estas passaram a prever
formalmente a contribuição dos seus participantes, pode-se perceber que esse
aporte de recursos era pequeno se comparado às despesas com os benefícios.
Nesse sentido:
"(...) sendo o fluxo orçamentário do subsistema rural estruturalmente deficitário,
como demonstraremos a seguir, o seu financiamento dependerá em primeira
instância da arrecadação urbana e somente quando esta se revelar insuficiente é
que será requerida a complementação dos recursos específicos da seguridade
social." (KERBAUY, 2008, p. 146)
Isso remete, então, que se busquem alternativas para que se garanta uma
forma diferente de arrecadação, para que haja, dessa forma, uma manutenção
efetiva das contribuições que são recolhidas.
Kerbauy (2008, p. 147) salienta que "não é legítima a forma de financiamento
mediante recurso à contribuição de segurados urbanos".
Nesse contexto:
"A partir da observação da trajetória de inserção do trabalhador rural na legislação
previdenciária, é possível perceber a evolução do sistema assistencial precário do
Prorural/Funrural, para o regime especial da previdência rural, implementado com
fundamento nos princípios da seguridade social expressos na Constituição de 1988,
18
que muito contribuíram para que houvesse avanços relevantes de proteção social
aos idosos, inválidos e mulheres no meio rural." (BERWANGER, 2011, p. 118)
Acredita-se que este se deve principalmente:
"a) Que menos de 20% dos trabalhadores ativos estão relacionados com o trabalho
rural (...);
b) A grande desigualdade econômica existente no campo é a desproporção entre a
capacidade econômica dos diversos segmentos e a respectiva participação
tributária;
c) (...) por força do dispositivo constitucional esse setor deixou de pagar
contribuições sociais que incidem sobre o seu faturamento, dentre elas as
contribuições previdenciárias (...);
d) A forma de contribuição (incidência sobre a comercialização) se dá sobre um
conjunto de transações de natureza muito pulverizada, tornando difícil o controle e
facilitando a sonegação (...)." (DELGADO et al., 2000, p. 99)
De acordo com a citação acima descrita, verificou-se que existe, então, um
desequilíbrio estrutural entre os fluxos de despesa e receita, nas contas da
previdência rural.
A desigualdade econômica entre zonas rurais e urbanas também se
destacam nos estudos de Carvalho, nos quais se pode dizer que as dificuldades de
se trabalhar, devido a grande carga tributária, também levam os trabalhadores rurais
a se manterem indiferentes ao que prega a legislação pertinente ao assunto, não se
motivando, pois, a procurar o INSS e recolher a sua contribuição.
3.4 Equidade de Participação e Custeio
Todas as contribuições sociais de custeio da seguridade social devem ser
cobradas respeitando a capacidade tributária dos contribuintes. Ou seja, as maiores
cobranças deverão ser realizadas naqueles contribuintes que possuírem maior
capacidade de pagamento, beneficiando-se, assim, aqueles que não possuírem as
19
mesmas condições de pagamento. A base fundamental desse princípio está, mais
uma vez, no princípio da solidariedade anteriormente visto, no qual a seguridade
social deverá ser beneficiada por toda a sociedade, principalmente por aqueles que
possuírem maiores condições financeiras de fazê-lo.
Delgado et al. (2000, p. 101) relatam que a existência de um desequilíbrio
estrutural entre os fluxos de despesa e receita, nas contas da previdência rural, faz
surgir a preocupação com a necessidade de que seu financiamento seja garantido
de uma forma diferente da atual.
Acredita-se que as fontes de custeio existentes podem se tornar suficientes
desde que haja um controle mais eficaz na forma de arrecadação, somadas a uma
participação do governo com foco assistencial no custeio da previdência rural e uma
melhor destinação das contribuições arrecadadas.
3.5 Diversidade da Base de Financiamento
O art. 194 da Constituição disciplina que todas as receitas e despesas da
previdência devem integrar seu orçamento. Entretanto, o art. 195 do mesmo diploma
dita que a sociedade irá financiar a seguridade social, seja ela direta ou
indiretamente, com recursos financeiros oriundos das esferas do Poder.
A norma insculpida no art. 194 traz um problema com relação à conceituação
de seguridade social, e tal regra se torna mais problemática quando analisada sob a
ótica dos direitos sociais.
Entretanto, cabe lembrar a posição do STF com relação à alteração do
ordenamento para gerar orçamento, essa prática não deve ser utilizada, em face das
leis orçamentárias e de sua eficácia, pois, consoante o art. 174 da Constituição
Federal, o orçamento deve ser planejado pelo setor público para atender suas
necessidades (CASTRO et al., 2011, p. 229).
20
Portanto, verifica-se que a diversidade para base de financiamento da
previdência social não obsta para a efetivação dos direitos previstos em lei
colocados à disposição dos segurados.
3.6 Funrural
O Funrural tem como finalidade custear o Instituto de Seguridade Social. O
valor cobrado dos comerciantes rurais varia entre 2,3 e 2,85% (FERREIRA, 2010, p.
161).
O fundamento legal para a cobrança residia na Lei nº 8.540/92, entretanto, o
Supremo Tribunal Federal declarou que tal cobrança é inconstitucional, em face da
regulação pela Constituição Federal em seu art. 195, inciso I e § 8º, pois a cobrança
fere a isonomia descrita no art. 150 do mesmo diploma.
Cabe lembrar que no caso do produtor rural ser pessoa física este deverá
recolher a contribuição social com base na folha salarial.
Em 1991 foi editada a Lei nº 8.213 e, em face da extinção do Prorural, os
contribuintes rurais passaram a ser disciplinados por novo regramento. Entretanto, a
redação do art. 25 da Lei que trata da seguridade social (Lei nº 8.212/91) passou a
tratar de matéria cuja competência é da União.
3.7 A Problemática da Reserva do Possível
A expressão "reserva do possível" surgiu na Alemanha, em 1972, em um caso
em que se discutia o acesso ao ensino superior, no qual o número de candidatos era
maior que o número de vagas.
A questão mais relevante foi a consignação de que o cidadão pode apenas
exigir do Estado uma prestação razoável, pois compete ao Poder Público eleger
21
quais interesses da sociedade devem ser primeiramente atendidos em observância
à reserva do possível (NOVELINO, 2009, p. 485).
Ainda que não seja uma característica exclusiva dos direitos sociais, o custo
oneroso, conjugado com a limitação de recursos financeiros, impede uma realização
plena ou até mesmo satisfatória desses direitos.
Com efeito, as políticas públicas que visam proporcionar bem-estar social não
podem ser atingidas pela limitação orçamentária, assim, cabe ao legislador fazer as
escolhas alocativas elegendo a abrangência de proteção e prevenção de cada
doença.
Dessa forma, não se pode obrigar o Estado a fornecer uma prestação que
não pudesse ser estendida a todos os indivíduos que se encontrassem na mesma
posição, sob pena de ferir o princípio da isonomia.
Afinal, o Estado pode colocar em risco a realização dos objetivos traçados
pela Constituição Federal, quais sejam a justiça social e a redução das
desigualdades sociais (art. 3º, I e III).
Assim, o princípio da universalidade que regula a seguridade social pode ser
considerado uma exteriorização da igualdade a ser respeitada pelo Estado na
construção de ações que visem proporcionar bem-estar à sociedade, mas o Estado
tem muitas dificuldades com relação ao orçamento financeiro, por isso, a nossa
Constituição procura orientar e regular a escassez de recursos através da
distribuição das ações conforme dispõe o art. 194 da Carta Magna.
Entretanto:
"Numerus clausus é a expressão que denomina uma política alemã, em vigor em
1960, através da qual se limitava o ingresso de estudantes em determinados cursos
universitários. Os estudantes que não foram admitidos contestaram a política de
limitação com fulcro no art. 12 da Lei Fundamental que estabelecia que ‘todos os
alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu
22
centro de formação. O exercício profissional pode ser regulado pela lei ou com
fundamento em uma lei’." (LEIVAS, 2006, p. 98)
Para Marcelo Novelino (2009, p. 471), no julgamento do processo pelo
Tribunal alemão ficou decido que: "a prestação reclamada deve corresponder ao que
o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, cabendo ao legislador, em
primeiro plano, avaliar quais interesses da coletividade devem ser prioritariamente
atendidos pelo orçamento, em razão do mandamento reserva do possível".
Tendo-se em vista a situação caótica de nosso país nas inúmeras áreas
sociais - saúde, educação, segurança, etc. - e estando-se ciente de que toda ação
prestacional do Estado exige o dispêndio de verbas públicas, torna-se lógica a
conclusão de que, conquanto a carga tributária seja elevada, é praticamente
impossível a alocação de recursos suficientes a fim de resolver todos os problemas
existentes.
À Administração, pois, resta a tarefa de reservar dinheiro suficiente para a
realização das políticas públicas necessárias a propiciar um padrão de vida coerente
com a proposta constitucional.
Nesse pensar, num confronto entre as possibilidades financeiras do Estado e
da garantia de um mínimo de dignidade aos cidadãos é que surgem as teorias da
reserva do possível e do mínimo existencial.
O conceito de reserva do possível tem suas origens no direito alemão e visa
"a construção dos direitos previstos em lei com a finalidade de prover mínimas
condições de sobrevivência e evitar o abuso do Estado na utilização dos recursos
financeiros" (SARLET, 2011, p. 219).
Portanto, a disponibilidade desses recursos, dessa forma, se encontra na
seara discricionária das decisões políticas, por meio da composição dos orçamentos
públicos.
23
Veja-se que a própria Carta Constitucional, em seus primeiros artigos, prevê
como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, e traça, entre seus
objetivos, a erradicação da pobreza e de qualquer tipo de desigualdades.
Assim, enquanto o mínimo existencial obriga o Estado a oferecer condições
dignas ao cidadão respeitando a reserva do possível, o Estado deve agir segundo as
prioridades previstas em lei.
"Por lógico, não se pode obrigar a Administração a fazer o que se revela impossível.
Em cada situação em concreto, pode a Administração ser compelida a demonstrar à
impossibilidade de realizar suas ações, assim, as razões de sua omissão em
determinado setor social. Se nada restar demonstrado, não terá como invocar em
seu favor a reserva do possível." (CARVALHO FILHO, 2009, p. 43)
O que se torna inegável, destarte, é que o Judiciário, ao se manifestar nos
atos da Administração Pública, seja anulando atos eivados de ilegalidade ou
exigindo
um
facere
estatal,
estará
promovendo
o
bem-estar
social
e
consequentemente a efetivação de um Estado Democrático.
O Estado depende da existência de orçamento para que sejam concretizadas
as políticas que versam sobre os direitos sociais.
A Lei nº 4.320, de 1964, define orçamento em seu art. 2º "como sendo aquele
que se deriva de determinada receita exteriorizada de um programa governamental,
desde que respeite os limites legais".
É através do orçamento que o Estado fixa a fonte da receita que custeará
determinada despesa. Essa função é dada, precipuamente ao Poder Executivo, com
a aprovação do Poder Legislativo, nos termos do que determinam os arts. 165 e
seguintes da Constituição Federal.
Em atenção ao princípio da universalidade, todas as despesas e receitas
devem estar previstas na peça orçamentária. Desejável não haver despesas além
daquelas já previstas na lei orçamentária. Entretanto, é possível a inclusão, no
24
orçamento, de créditos adicionais com a finalidade de cobrir despesas, ou não,
previstas ou insuficientemente previstas, mas esse procedimento também está
regulado por lei; não está ao livre-arbítrio dos Poderes Executivo ou Legislativo.
Uma vez aprovada a lei orçamentária pelo Congresso Nacional, inicia-se,
então, sua execução, ou seja, o Poder Executivo, durante o ano em curso, põe em
prática o que ficou estabelecido na lei orçamentária.
A lei orçamentária determina a alocação de recursos, ou seja, ela destina
recursos para uma ou outra situação e, até mesmo, para uma ou outra pessoa.
Além da impossibilidade de alterar a alocação de recursos diferentemente do
que foi estabelecido em lei, há em alguns casos a falta de recursos. A reserva do
possível é alegada, exatamente nestes casos: quando há impossibilidade técnica de
realocação de recursos ou escassez.
Para que se façam alterações no orçamento, é preciso que se demonstre a
possibilidade de remanejamento e contingenciamento, ou seja, previsão na própria
lei orçamentária. Para Lopes (2010, p. 160), "essa impossibilidade é jurídica, pois a
mudança nas regras que determinam a competência para criar e financiar recursos
de bens públicos são regras constitucionalmente definidas. Violá-las torna inválidos
os atos, ou seja, juridicamente inaptos para produzir os efeitos que deles se
esperam".
Juridicamente a reserva do possível é matéria de defesa do Estado e, por
essa razão, o ônus de provar que não é possível cumprir aquela prestação é do
Estado.
Da mesma forma, entende-se por impossível a concretização de uma
prestação quando, para fazê-lo, é necessário realocar orçamento de uma rubrica
que garantiria a implementação de outras políticas públicas. Dessa forma, os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade devem ser respeitados quando se
falar em realocação de valores.
25
Conclusão
Direito garantido em praticamente todas as nações, a previdência social é um
avanço significativo da cidadania na estruturação de mecanismos de proteção aos
indivíduos nos momentos de maior fragilidade, como a doença e a velhice.
A previdência social é a medida de proteção social exercida por um conjunto
de instituições que visa complementar a remuneração, quando ela deixa de ser
recebida por doença, velhice ou morte, ou quando se torna insuficiente para
despesas essenciais, tal como tratamento médico. A rigor, a previdência social
beneficia pessoas que exercem atividade remunerada, como trabalhadores em
empresas privadas e servidores públicos, o que a distingue da assistência social,
que se caracteriza pelo atendimento a qualquer pessoa que dela necessite.
A seguridade social subdivide-se em três institutos autônomos (art. 194 da
CF/88): a previdência social, a assistência social e a saúde. Trata-se de método de
economia coletiva em que a comunidade é chamada a perpetrar um pacto técnicoeconômico cuja base é a solidariedade social. A solidariedade social consiste na
contribuição da maioria em benefício da minoria.
A Carta Magna prevê alguns princípios constitucionais previdenciários que
foram tratados oportunamente. Não obstante a previsão constitucional do princípio
da universalidade, importante salientar que deve existir um núcleo mínimo de
proteção, de acordo com a capacidade econômica do Estado de ampliar os eventos
protegidos.
Uma das dificuldades para se provar o período de aposentadoria na área rural
é que na maioria das vezes eles não têm documentos hábeis para comprovar a sua
condição de rurícola, dependendo de documentos que, por si só, não são aptos a
comprovar o exercício da atividade, devendo ser confirmados pela prova
testemunhal. São os documentos considerados como início de prova material.
26
O reconhecimento dos documentos que comprovem o exercício da atividade
rural dependerá da análise do caso concreto. O período, nesse caso, refere-se à
época do exercício da atividade, não tendo necessidade da comprovação ano a ano.
Todo esforço vem sendo desenvolvido desde a promulgação da Constituição
de 1988 para que fosse proporcionada ao povo brasileiro maior condição de
qualidade de vida, e uma previdência social que lhes pudesse dar estabilidade
econômica e um futuro com dignidade, fruto de longo trabalho.
Nesse contexto, a previdência social deve ter seus próprios recursos
financeiros, a fim de manter mínimas condições de prover aos trabalhadores fonte
para sua subsistência.
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aposentadoria urbana e rural frente ao sistema