Breves considerações a respeito das ações afirmativas Emílio Peluso Neder Meyer Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara Mestre em Direito Constitucional pela UFMG Doutorando em Direito pela UFMG Advogado Ao utilizar a expressão affirmative actions em um discurso proferido na década de 1960, o Presidente John Kennedy tinha em mira as diversas medidas, estatais e da sociedade civil, que visassem a inclusão de minorias étnicas, raciais, de gênero, entre outras. É dizer: as ações afirmativas são desequiparações lícitas que buscam sedimentar o princípio da igualdade de uma perspectiva material e sensível ao direito à diferença 1 . A grande questão que cerca tais medidas diz respeito aos limites em que o tratamento diferenciado promove, em maior ou menor medida, tal princípio ou se, pelo contrário, não consubstanciam elas um destaque ainda maior da desigualdade – uma discriminação reversa. A adoção de tais ações afirmativas consolidou-se não só entre os norteamericanos. No caso brasileiro, podemos apontar uma série delas: o estabelecimento de uma política nacional de inclusão do portador de deficiência, a partir da Lei Federal 7.853/1989, o estabelecimento de cotas de 30% a 70% fixadas pelos partidos políticos para cada sexo em candidaturas a mandatos eletivos – nos termos do art. 107, § 3°, da Lei Federal n° 9.504/1997, o ajuizamento das argüições de descumprimento de preceito fundamental n° 132 e 178 perante o Supremo Tribunal Federal visando estender a proteção legal da entidade familiar e da união estável para casais homoafetivos, entre inúmeras outras. Nenhum critério, contudo, de criação de uma política de ação afirmativa é tão polêmico e controvertido quanto o critério racial. As chamadas cotas raciais em universidades são uma forma de discriminação reversa ou um direito a ser reconhecido à minoria negra? A tese contra as cotas raciais ganhou um importante reforço no Brasil com a publicação do estudo de Demétrio Magnoli, “Uma gota de sangue” 2 . Para o autor, construiu- 1 Para uma visão crítico-deliberativa das ações afirmativas, ver CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. 3ª ed. Belo Horizonte: Arraes, 2009. 22 MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009. se ao longo dos últimos duzentos anos um “mito racial” que ocasionou uma barreira social intransponível que só vem a ser reforçada com o sistema de cotas. O Supremo Tribunal Federal será desafiado a se posicionar diante desta dificílima questão. O Partido Democratas – DEM ajuizou a argüição de descumprimento de preceito fundamental n° 186 visando declarar inconstitucionais os atos do poder público que levaram à criação do sistema de cotas raciais na UnB – Universidade de Brasília. Será a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal enfrentará efetivamente o problema da legitimidade de tais ações afirmativas no contexto brasileiro. O arguente foi explícito em sua petição inicial em esclarecer que o se questiona não são as medidas de ações afirmativas como um todo, mas um suposto “Racismo Institucionalizado” ou um “Estado Racializado”, nos moldes americanos – segundo sua perspectiva, um modelo inadequado para o Brasil. Discutese a legitimidade do estabelecimento pela universidade de critérios próprios para aferir quem são os candidatos negros não violaria ainda mais o princípio da igualdade. Diante do mapeamento do genoma que aponta para a inexistência de “raças” humanas, seria um verdadeiro contrassenso permitir uma política de cotas deste quilate, para além do fato de se ter uma população brasileira extremamente miscigenada na qual se torna dificílimo definir quem é efetivamente negro e quem não é, quem possui tal ancestralidade e quem não possui. Além disto, segundo o DEM, o argumento da teoria compensatória que embasaria os entusiastas das cotas raciais seria por demais frouxo, já que não aponta possíveis limites para responsabilidade coletiva das gerações futuras em relação às gerações passadas, criando-se um ônus que não pode ser carregado futuro afora. Salientou, por fim, o arguente que a Suprema Corte americana rechaçou, desde sempre, a constitucionalidade das cotas raciais no sistema educacional. Não pretendo dar uma resposta final à questão colocada acima, de se as cotas raciais são efetivamente uma discriminação ou um direito. Este não é o espaço para uma resposta peremptória a tão tormentosa questão. Gostaria apenas de referir-me ao argumento do Partido Político DEM – democratas na ADPF n° 186 de que a Suprema Corte americana nunca aceitara a legitimidade das cotas raciais no sistema educacional e apontar algumas conclusões errôneas. O precedente da Suprema Corte mais citado nesta discussão é a decisão de Regents of the University of California v. Bakke, de 1978. Naquela ocasião, Allan Bake, um estudante branco, questionara a existência de uma discriminação reversa em relação aos brancos pelo estabelecimento de um sistema de cotas para negros fixado em 16% para o ingresso na Faculdade de Medicina daquela universidade. No voto condutor, o Justice Powell declarou inconstitucional o sistema de cotas. Uma leitura desatenta (ou teleológica) encontraria nesta decisão uma proibição total do sistema de cotas. Não foi bem o que ocorrera. É que a inconstitucionalidade foi reconhecida porque não se vislumbrou, naquele sistema de cotas, os requisitos necessários para uma discriminação positiva. A necessária relação entre um interesse impositivo governamental (um “compelling governmental interest”) e as chances da política de ação afirmativa questionada promover mais igualdade não se mostrava presente. A ação afirmativa, pois, não alcançaria o desiderato pretendido, qual seja, o de promover maior inclusão social. Mas tratava-se daquela ação afirmativa. Tanto que Powell entendeu que tais ações afirmativas seriam legítimas caso promovessem maior diversidade cultural entre os alunos. Na sua perspectiva, pois, ações afirmativas fundam-se na maior promoção do pluralismo, não na compensação de fatos passados. Ao cabo, salientou o juiz da Suprema Corte que as cotas não podem ser fixadas de forma fixa, mas o critério racial pode ser um dos critérios, dentre outros adotados, para implementação da política 3 . O mesmo se deu em casos mais recentes julgados pela Suprema Corte. Em Gratz v. Bollinger (2003), Jennifer Gratz, estudante branca, sentiu-se prejudicada ante o sistema de cotas para negros, índios e hispânicos estabelecido pela Universidade de Michigan. Novamente, o que se deu é que a Universidade não foi suficientemente hábil a demonstrar que seu programa de ações afirmativas fosse favorável à promoção da diversidade e do pluralismo, não que o sistema de cotas fosse de per si ilegítimo. Não foi diferente a decisão tomada em Grutter v. Bollinger (2003), em que Barbara Grutter, estudante branca, entendeu que seu direito à igual proteção previsto na 14ª Emenda à Constituição Americana restava 3 “Ethnic diversity, however, is only one element in a range of factors a university properly may consider in attaining the goal of a heterogeneous student body. Although a university must have wide discretion in making the sensitive judgments as to who should be admitted, constitutional limitations protecting individual rights may not be disregarded. Respondent urges -- and the courts below have held -- that petitioner's dual admissions program is a racial classification that impermissibly infringes his rights under the Fourteenth Amendment. As the interest of diversity is compelling in the context of a university's admissions program, the question remains whether the program's racial classification is necessary to promote this interest” (Regents of the University of California v. Bakke, 438, U.S., 265, p. 315-316). Tradução livre: “Diversidade étnica, contudo, é apenas um elemento numa gama de fatores que a universidade pode devidamente considerar ao buscar atingir a finalidade de um corpo [discente] heterogêneo. Embora uma universidade deva ter ampla discricionariedade ao fazer julgamento sensíveis a respeito de quem deve ser admitido, limitações constitucionais protegendo direitos individuais não devem ser desconsideradas. O réu sustenta – e as cortes inferiores decidiram – que o programa de admissão dual do autor é uma classificação racial que infringe desautorizadamente seus direitos fixados na 14ª Emenda. Como o interesse de diversidade é impositivo no contexto de um programa de admissão de uma universidade, a questão que fica é a de se o programa de classificação racial é hábil a promover tal interesse”. lesado pelas ações afirmativas educacionais – novamente, a Corte deslegitimou o processo de diferenciação também porque ele não atendia ao critério da diversidade 4 . Há que se mencionar, por derradeiro, o que se decidiu em Meredith v. Jefferson County Board of Education (2007). Outra vez a Suprema Corte não declarou inconstitucional o uso do critério racial para admissão no sistema educacional. As Escolas Públicas do Município de Jefferson resolveram adotar um sistema que estimulasse a integração racial dando aos estudantes a chance de escolherem em quais escolas estudar, porém, limitando a capacidade de admissão das últimas ao estabelecer que não menos 15% e não mais que 50% do corpo discente deveria ser de alunos negros. A mãe de Joshua McDonald, Crystal Meredith, ajuizou uma ação contra a Secretaria de Educação do Município de Jefferson alegando violação do princípio da igualdade pela não aceitação de uma das escolas de seu filho branco, redirecionando-o para uma escola mais distante. Aqui a Suprema Corte decidiu que o programa era inconstitucional, mas cuidou de observar que os precedentes Gratz e Grutter não eram aplicáveis a este caso. O programa para a educação básica, em verdade, desconsiderava aspectos específicos de cada estudante e promovia uma diversidade muito restrita – baseada na oposição brancos e negros. Em todos esses casos, a Suprema Corte deposita um ônus probatório pesado nas instituições que adotaram ações afirmativas a fim de que elas demonstrassem como haveria promoção da diversidade racial5 . Não se tratou, pois, de dizer que o critério é por si só inconstitucional: cuidava-se de demonstrar que a motivação do tratamento desigualitário promovia em maior medida a igualdade, o que não ocorrera. Ronald Dworkin 6 aponta um interessante estudo realizado pelos ex-reitores das Universidades de Princeton e Harvard, William G. Bowen e Derek Bok, denominado The Shape of the River (“A forma do rio”). Neste estudo, elaborado em um acompanhamento de cerca de 30 anos junto às 28 principais faculdades norte-americanas que adotaram políticas de cotas (mencione-se, por exemplo, Duke, Princeton, Stanford e Yale), verificou-se dados como raça, sexo, notas de ensino médio, carreira, histórico econômico e social de cerca de 80.000 graduados. Os resultados das estatísticas foram extremamente positivos e os autores não 4 CRUZ. O direito à diferença, p. 183-184. “Elas [as universidades] procuram a diversidade racial […] pela importância da própria raça, infeliz porém inevitavelmente, nos Estados Unidos de hoje: é essencial que os alunos de cada raça conheçam não só alunos com outras atitudes ou culturas, mas alunos que sejam, de fato, de outra raça” (DWORKIN. A virtude soberana, p. 602). 6 A virtude soberana: teoria e prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 546 e ss. 5 hesitaram em concluir pelo proveito do sistema 7 . Entre tais resultados positivos, aponte-se que vários negros beneficiados por regimes de ação afirmativa em 1976 encontraram postos de trabalho mais bem remunerados do que aqueles assumidos por brancos; em relação ao fato de que a ação afirmativa colocaria os negros em posição de favoritismo ou privilegiada e que ela lesaria sua imagem, a grande maioria dos negros entrevistados se mostraram a favor das políticas implementadas. Mas o que chama mais a atenção é o fator da diversidade racial e como a política temporária e progressiva de uma ação afirmativa rende bons frutos ao longo do tempo: Como era de prever, mais negros do que brancos acharam que conhecer pessoas de outra raça foi especialmente importante. Na turma de 1976, 45 por cento dos brancos acharam que foi “importantíssimo” conhecer pessoas com “crenças diferentes” e somente 43 por cento acharam importante conhecer pessoas de outras raças, ao passo que 74 por cento dos negros daquela turma acharam que a segunda opção era importantíssima e somente 42 por cento escolheram a primeira. O número de brancos e negros que achavam importantíssimas as relações raciais aumentou na turma de 1989, porém – modestos 2 por cento para os negros, mas impressionantes 13 por cento para os brancos 8 . O que se observa, tanto no estudo River como nos precedentes da Suprema Corte, é que apenas as políticas de ação afirmativa insensíveis às pretensões das minorias favorecidas ou que não contribuam para a promoção da diversidade e do pluralismo são imediatamente rechaçadas. Ou seja: as ações afirmativas são políticas concretas e só um exame acurado a respeito da forma como cada uma é estabelecida pode levar a conclusões positivas ou negativas. Mais que isto: é preciso ouvir os destinatários da política de ação afirmativa. Ainda assim, o estudo traz uma série de diagnósticos de uma experiência de décadas que o Brasil ainda não enfrentou. O problema racial – haja ou não raça humana, há raças em sentido cultural ou sociológico e dizer o contrário parece querer fechar os olhos para uma questão evidente – dificilmente será superado, mas a consideração de um critério com tal qualificativo ainda parece ser importante, mesmo que ele seja um dentre outros. O direito à diferença ou o direito a uma igual consideração e respeito são efetivamente lesados por práticas discriminatórias negativas (o crime de racismo, por exemplo); mas não é possível dizer o mesmo das ações afirmativas. 7 “Se, no fim das contas, a pergunta é se as faculdades e universidades mais exigentes tiveram êxito na formação de um grande número de alunos pertencentes a grupos minoritários, que já alcançaram considerável êxito e parecem ter probabilidade de, com o tempo, vir a ocupar cargos de liderança em toda a sociedade, não temos dificuldade para responder à pergunta. Com certeza...” (BOWEN e BOK in DWORKIN. A virtude soberana, p. 551). 8 DWORKIN. A virtude soberana, p. 560, destaques nossos.