EVOLUÇÃO DO ESTADO E SUAS INTERFACES COM A RELIGIOSIDADE:
UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA DO PONTO DE VISTA HISTÓRICOCRÍTICO1
EVOLUTION OF THE STATE AND ITS INTERFACE WITH RELIGIOSITY: A
REVIEW OF THE LITERATURE BY THE HISTORY-CRITICAL
PERSPECTIVE
André Luiz de Oliveira Brum2
Rogério Montai de Lima3
1
Trabalho desenvolvido no Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Interamericana de Porto
Velho – UNIRON.
2
Bacharel em Direito pela Faculdade Interamericana de Porto Velho – UNIRON.
E-mail: [email protected]
3
Juiz de Direito. Doutorando do Programa de Direito Público da Universidade Estácio de Sá.
Orientador.
E-mail: [email protected]
RESUMO
Ao longo da história da humanidade houve sempre um instituto que
concedia a um terceiro certo domínio sobre um grupo. É, então, o “Estado”, que será
doravante usado no sentido de liderança sobre uma sociedade humana, algo que
existe desde o momento em que o homem deixa o caos e se organiza para suprir,
uns aos outros, suas necessidades. É evidente que, enquanto fenômeno cultural que
vem do âmago da sociedade, o Estado relaciona-se com outras ocorrências da
mesma espécie, ora filiando-se, ora repelindo. Prova atual disso é o disposto no art.
19, I da Constituição Federal, que, adotando o princípio do Estado Laico, proíbe a
todos os entes federativos de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencionálos, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de
interesse público”. Numa concepção histórico-crítica, é possível compreender a
atualidade com base em eventos históricos. Retira-se da história as razões de ser de
determinada ocorrência. Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo revisitar a
história, analisando a evolução do Estado e suas relações com a religiosidade. Para
tanto, foram revisados diversos estudos históricos e jurídicos. O Estado Antigo era
caracterizado pela união entre família, religião, economia, moral e política. Já no
Estado Grego, assim chamado, apesar de não ter uma unidade territorial e política,
vê-se que as cidades-estados buscavam a autonomia de seus centros e se tratava
de uma sociedade organizada em preceitos legais bem definidos, sobretudo quanto
à democracia ali exercida. No Estado Romano verifica-se o início do Cristianismo,
ora punido, ora tido como oficial do Estado. No Estado Medieval via-se que o Clero
tinha importante participação na sociedade e nas resoluções políticas e legais. Esse
período ficou conhecido como Idade das Trevas, sobretudo por ter influído
negativamente na produção científica e artística. O Estado Moderno traz a
autonomia dos Estados e a busca pela independência em relação à Igreja. Concluise, portanto, que a religiosidade, enquanto importante característica humana, esteve
a todo tempo se relacionando com o Estado. Ora de forma positiva, unindo-se ao
mesmo, ora de forma negativa, sendo afastada por este. Atualmente, vê-se como
saudável a cultura da separação entre Estado e religiões, de modo a garantir as
liberdades individuais e aprimorar a soberania do Estado.
PALAVRAS-CHAVES: Estado, evolução, soberania
ABSTRACT
Throughout human history there has always been an institute that granted
to a third party over a certain domain group. It is, then, the "state", which is now used
in the sense of leadership on human society, something that exists from the moment
the man leaves chaos and organized to meet, each other, their needs. Clearly, while
cultural phenomenon that comes from the core of society, the state is related to other
occurrences of the same species, either by joining, either repelling. Proof of this is
the current provisions of art. 19 I of the Federal Constitution, which, adopting the
principle of the secular State, prohibits all federal entities to "establish religious sects
or churches, subsidize them, embarrass them or maintain functioning with them or
their representatives or dependency relations alliance, unless, under the law, a
collaboration of public interest. " A historical-critical design, it is possible to
understand the present based on historical events. Takes up the story of the reasons
being given instance. Thus, this paper aims to revisit history, analyzing the evolution
of the state and its relations with religiosity. Therefore, several studies were reviewed
historical and legal. The Old State was characterized by the union of family, religion,
economy, moral and political. In the Greek state, so called, despite not having a
territorial and political unity, we see that the city-states sought autonomy from their
centers, and it was a society organized into well-defined legal principles, especially
regarding democracy there exercised. In Roman State there is the beginning of
Christianity, sometimes punished, sometimes taken as official state. In Medieval
State saw that the clergy had important participation in society and the political and
legal resolutions. This period was known as the Dark Ages, mainly because it had a
negative influence on the scientific and artistic. The Modern State brings the
autonomy of the states and the quest for independence from the Church. We
conclude, therefore, that religion as an important human characteristic, was all the
time in relationship to the state. Now in a positive way, joining the same, sometimes
negatively, being dismissed for this. Currently, it is seen as a healthy culture of
separation between state and religion, in order to guarantee individual freedoms and
enhance state sovereignty.
KEY WORDS: State, evolution, sovereignty
3
EVOLUÇÃO DO ESTADO E SUAS INTERFACES COM A RELIGIOSIDADE: UMA
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA DO PONTO DE VISTA HISTÓRICO-CRÍTICO
INTRODUÇÃO
A conceituação de Estado precisa ser feita sempre com uma breve
localização cronológica. Isto é, fixar a sociedade em seu tempo, destacando o
momento vivido pela humanidade, sendo o fator humano o único indiscutivelmente
essencial à existência do Estado.
Hodiernamente, é visto como o conjunto de território, povo e soberania. O
conceito, oriundo do latim status, que significa literalmente “modo de estar, condição
atual”,4 tem, a fundo, uma significação técnica muito mais complexa.
Sua complexidade maior está no fato de que diversas instituições ao
longo da história em muito se aproximaram com o conceito havido atualmente, que
teve seu primeiro uso na obra clássica “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel, publicado
em 1531. Ocorre, no entanto, que em situações anteriores alguns grupamentos
humanos já se uniam, transferindo a alguém poderes de decisões coletivas, de
domínio coletivo. Nesse sentido, portanto, é necessário destacar, de cara, que o
conceito de Estado brevemente mencionado é do modelo Moderno.5
A conceituação do Estado e a verificação do momento de seu surgimento
estão calcados de sobremaneira na soberania. Os tratados alemães assinados na
região de Westfália (Münster e Osnabrück) reconheceram, após guerra que tinha
claro intuito religioso, a soberania dos Estados. Pode-se dizer, portanto, que ali
nascia o moderno conceito de soberania, em que se definem os limites territoriais de
determinados governos, que, àquela época, se organizavam em monarquias.6
No entanto, mais de um século antes da celebração do tratado que teria
dado origem ao Estado-Nação, tem-se em Il Principe que “Todos os Estados, todos
os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou
repúblicas ou principados” 7
4
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
MENEZES, Anderson de. Teoria Geral do Estado. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005
6
KARVAT, Thaysa Prado. Soberania: O Desenvolvimento de um Conceito na Sociedade
Internacional Contemporânea. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais. n. 11
7
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2002.
5
4
Parece, portanto, que ao longo da história da humanidade houve sempre
um instituto que concedia a um terceiro certo domínio sobre um grupo. As
diferenciações são, assim, quantitativas. É, então, o “Estado”, que será doravante
usado no sentido de liderança sobre uma sociedade humana, algo que existe desde
o momento em que o homem deixa o caos e se organiza para suprir, uns aos outros,
suas necessidades. Nesse sentido,
O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à
sociedade de fora para dentro; tampouco é "a realidade da ideia
moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel.
É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um
determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa
sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela
própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não
consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas
classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e
não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um
poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a
amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da "ordem". Este
poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciandose cada vez mais, é o Estado.8
É evidente que, enquanto fenômeno cultural que vem do âmago da
sociedade, o Estado relaciona-se com outras ocorrências da mesma espécie, ora
filiando-se, ora repelindo. Prova atual disso é o disposto no art. 19, I da Constituição
Federal, que, adotando o princípio do Estado Laico, proíbe a todos os entes
federativos de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçarlhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse
público”.
Numa concepção histórico-crítica, é possível compreender a atualidade
com base em eventos históricos. Retira-se da histórias as razões de ser de
determinada ocorrência.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo revisitar a história,
analisando a evolução do Estado e suas relações com a religiosidade. Para tanto,
foram revisados diversos estudos históricos e jurídicos. Foram utilizadas de técnicas
como resumo, resenha e fichamento.
8
ENGELS, Friendrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Disponível em
http://pt.scribd.com/doc/11242631/ENGELS-a-Origem-Da-Familia-e-Da-Propriedade-Privada-e-doestado-resumo
5
I Evolução histórica do Estado
Segundo Anderson Menezes,9 os tipos estatais não tem curso
uniformemente estabelecido, sendo que, muitas vezes, uns exercem influência sobre
os outros. Mesmo assim, para fins didáticos, o Estado tende a ser analisado em 5
momentos-locais, uma vez que reúnem entre si, diferenciações importantes. São
eles: Estado Antigo, Estado Romano, Estado Grego, Estado Medieval e Estado
Moderno. Segundo Dalmo de Abreu Dalari, há correntes minoritárias que agrupam
em Cidades-Estados, Estado Medieval e Estado Moderno; outras veem do viés
jurídico e agrupam em Estado Patrimonial, Estado de Polícia e Estado de Direito. No
entanto, a defendida por Menezes é a que mais se adéqua, uma vez que analisa os
modelos de um ponto de vista integrado como cultura, política e Direito. 10
Saliente-se nova e propositadamente, que o termo técnico “Estado”
somente se aplica a esse último período. Contudo, para este estudo, decidiu-se por
assim nomear todo e qualquer poder exercido sobre uma comunidade humana.
II O Estado Antigo
Também chamado de Estado Oriental ou Estado Teocrático, trata-se de
um período em que família, religião, economia, moral e política não tinham a menor
separação. Todos estavam unidos em uma só forma de domínio, um domínio
unitário, exercido sem qualquer tipo de divisão, seja ela funcional ou territorial.
Havia, assim, concentração absoluta do poder nas mãos de um governante,
designado pela divindade, ou, algumas vezes, adorado como o próprio deus. As
expressões políticas eram, assim, expressões da vontade do poder divino, que era
chamado a fazer do Estado um verdadeiro objeto, uma ferramenta para efetivação
de sua suprema vontade.11
Com efeito, desde as primeiras legislações conhecidas, seres divinos
eram usados como meio coercitivo de fixar as normas criadas pelos homens, que,
no entanto, eram tidas como divinas, ou seja, passadas diretamente da divindade
9
Op. cit.
Op. cit.
11
DALLARI. Op. cit. p. 198
10
6
para o homem. Embora pouco se saiba dos Códigos de Ur-Nammu e Eshunna –
legislações escritas mais antigas encontradas até o momento, nos demais achados
histórico-jurídicos, há sempre referências à interligação entre a divindade e a
efetivação das normas.12
Na Mesopotâmia, por exemplo, era evidente a mistura do profano e do
sagrado, sendo que tanto leigos quanto sacerdotes poderiam ser julgadores.
O Código de Hammurabi, assim, previa que
Se um awilum lançou contra um (outro) awilum uma (acusação de)
feitiçaria, mas não pôde comprovar: aquele contra quem foi lançada
a (acusação de) feitiçaria irá ao rio e mergulhará no rio. Se o rio
purificar aquele awilum e ele sair ileso: aquele que lançou sobre ele
(a acusação de) feitiçaria será morto e o que mergulhou no rio
tomará para si a casa de seu acusador.13
Na sociedade mesopotâmica, também conhecida como a região do
Crescente Fértil, os rios Tigre e Eufrates eram verdadeiras divindades, sendo certo
que, no caso em análise, o julgamento do falso acusador ficava a cargo do deus
rio.14
Com o evoluir da história, as manifestações estatais foram se
aproximando cada vez, até se chegar ao ponto de confundir religião e estado, como
era o caso do Estado Egípcio, em que o Faraó – chefe do Estado, era tido como a
própria encarnação da divindade. Segundo Piazza,
O faraó era considerado uma encarnação do deus Horus, filho de Ra,
e como tal presidia o bom andamento das coisas humanas, como Ra
presidia o bom andamento do céu.15
Aparentemente, portanto, havia uma divisão entre as coisas do céu e as
coisas da terra. No entanto, estas eram guiadas, ditadas, pelas divindades,
representadas ou encarnadas pelo governante, que estava sempre movido pelas
regras divinas, pela vontade do deus que lhe regia.
III O Estado Grego
12
CASTRO. Op. cit. p. 12
Idem
14
Ibidem. p. 17
15
Apud CASTRO. Op. cit. p. 22
13
7
Grécia não significa o nome de um país da Antiguidade. É, meramente,
uma região. Para Rostovtzeff,
A organização política da Grécia era ditada pelas condições
geográficas e econômicas. A natureza a dividira em pequenas
unidades econômicas e era incapaz de criar grandes sistemas
políticos. (...) Cada vale era independente. (...) As melhores regiões
do país (sic), especialmente seus férteis vales, estão abertas para o
mar e vedadas a terra (...). Eles estão mais em contato com os
vizinhos separados pelo mar do que com a terra próxima.16
A civilização helênica era desprovida da unidade que costuma marcar os
Estados, sobretudo os mais antigos, em que é característico o domínio sobre
grandes territórios. Contudo, sua classificação enquanto Estado é devida à
concepção política que havia na cidade-Estado.
Nela, a polis era o centro da razão política, que devia buscar sempre a
autossuficiência do que se desenvolvia ao redor do centro político, a ponto de
Aristóteles afirmar que “a sociedade constituída por diversos pequenos burgos forma
uma cidade completa, com todos os meios de se abastecer por si, tendo atingido,
por assim dizer, o fim a que se propôs”.17
Embora o Estado Grego seja marcado como a origem da democracia – e
de fato o é, o chamado “governo do povo” era bastante diferente dos modelos
conhecidos atualmente. Àquela época o domínio era delegado às mãos de poucos,
o que, de certa forma, colaborou com a manutenção das cidades-Estado, uma vez
que seu governo, se atribuído à decisão da grande massa, se tornaria inviável.
Isso quer dizer que as decisões e escolha de representantes era
competência de poucos. No entanto, era comum a todos os habitantes das CidadesEstado o pensamento de que
governam, não os homens, mas as leis. A legitimidade da “lei
consuetudinária” – nómos (lei) ou patrios politeia (constituição
ancestral) para os gregos (...) – decorria da antiguidade venerável
que lhe era atribuída em forma histórica.18
Nota-se, portanto, que a ideologia grega já àquela época estava
relacionada à ideia de um Estado de Direito. Por mais que não se tratasse do
modelo que hoje se tem conhecimento, é forçoso chegar a tal conotação tendo em
16
Apud Ibidem. Op. cit. p. 65
DALARI. Op. cit. p. 47
18
CASTRO. Op. cit. 76
17
8
vista que não se tratava de um poder irrestrito concedido aos homens. Estes, ao
contrário, eram tão somente instrumento de realização da norma existente, tal qual o
sentido empregado atualmente quando se fala em Estado de Direito, Ordem
Constitucional ou até mesmo República.
IV O Estado Romano
O Estado Romano antigo é marcado pela suntuosidade de um Império
que quis dominar o mundo. Embora não tenha conseguido fazê-lo em termos
territoriais, a cultura romana se espalhou e hoje, mais de 15 séculos depois, somos
todos influenciados por aquele povo, seja pela linguagem, pelo Direito, pela religião,
enfim, por meio de diversas manifestações.
A história de Roma, para melhor compreensão, deve ser dividida em
República e Império. A primeira, abrangendo o período de 510 a. C. a 27 d.C,
enquanto
o
segundo,
dividido
em
baixo
e
alto
Império,
compreende,
respectivamente, o período de 27 a 284 e de 284 à morte de Justiniano
(provavelmente ocorrida em 711 da Era Cristã). O Estado Romano é originado da
união de grupos familiares (as gens), sendo certo que, tal qual a Grécia, baseou-se
por longos períodos em conceitos restritos de Democracia. Sua organização em
muito lembrava, ainda, as Cidades-Estados gregas, estruturas mantidas desde a sua
fundação até a decadência. Nesse sentido, mesmo tendo dominado grandes faixas
territoriais, o Estado procurou sempre manter a ascendência de Roma, conferindo a
ela a condição de forte núcleo de poder político.19
Roma era governada por uma Monastia, cuja principal característica é o
fato de ser limitada pelo Senado e escolhida pela Assembléia Curial, ou seja, não
era hereditária. As famílias, além de terem suma importância política, o que conferia
grande poder aos anciãos, eram também a base religiosa no começo daquele
Estado.
Em Roma, as famílias cultuavam seus antepassados como seus
protetores e a eles ofertavam cultos domésticos. Nesse sentido, coletivamente, a
princípio, se cultuavam muitos deuses gregos. Ocorre, no entanto, que com o
surgimento do cristianismo (inicialmente perseguido por Roma), estabeleceu-se o
19
DALARI. Op. cit. p. 49
9
monoteísmo, a ponto de, em 313, com o Edito de Milão, tal cultura ser aceita pelo
Estado. Em 330, com o Edito de Tessalônica, o Cristianismo se tornou a religião
oficial de Império, o que levou as conquistas a terem, ainda, um caráter claramente
catequético.20
Uma série de fatores ocorridos por volta do século VIII leva Roma ao
declínio. Economia, militarismo e invasões bárbaras contribuíram para esse
resultado.21
V O Estado Medieval
Marcado pela queda do Império Romano, o poder público na Idade Média,
conhecida como Idade das Trevas, é a mais forte demonstração do embricamento
entre Estado e Igreja. Isso porque o poder político da época buscou em textos
bíblicos o dever de obediência ao poder dos homens. Nesse sentido, citando trecho
contido na Epístola de Paulo aos Romanos, Wolkmer faz constar em sua “Síntese
de uma História das Ideias Jurídicas” o seguinte texto:
Que toda pessoa se submeta às autoridades superiores; porque não
existe autoridade que não venha de Deus e as autoridades que
existem foram instituídas por Deus. É por isso que aquele que resiste
à autoridade resiste à ordem que Deus estabeleceu e aqueles que
resistem atrairão uma condenação sobre si próprios. Desejas não
temer a autoridade? Pratica o bem e terás aprovação. O magistrado
22
é servidor de Deus para teu bem.
Nesse sentido, a religião deixou de ser mero acessório do Estado, como
era nas civilizações antecessoras, passando ocupar uma posição de dualidade, em
que havia as coisas de deus e as coisas dos homens. O mesmo raciocínio se
aplicava às leis, sendo que, em disparidade, o povo deveria sempre obedecer às
normas divinas. Conclui o autor que
O cristianismo postulou um problema desconhecido no mundo antigo
– o problema da Igreja e do Estado [...]. A novidade da posição cristã
residia na suposição da dualidade de natureza no homem e do
controle sobre a vida humana [...]. A distinção entre coisas espirituais
e coisas temporais constituía a essência da evidente opinião cristã
20
CASTRO. Op. cit. p. 85
DALARI. Op. cit. 49
22
WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da Antiguidade
clássica à Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006
21
10
[...]. o cristão estava inevitavelmente obrigado a cumprir um duplo
dever, situação essa inteiramente desconhecida da antiga ética
pagã. Devia ele não apenas dar a César o que era de César, mas a
Deus o que era de Deus; contudo, se entrassem em conflito, não
havia dúvida de que devia obedecer a Deus e não ao homem.23
Fatores políticos de organização interna da Igreja foram responsáveis
pela ocorrência de uma importante mudança no pensamento da época: a Reforma.
As barbáries cometidas por sacerdotes, em nome da fé, e as interpretações
distorcidas dos textos bíblicos, fizeram com que surgissem indignações contra a
Igreja e gerou uma nova corrente cristã, liderada por Martinho Lutero, teólogo e
monge que fez
Críticas à Igreja Católica, especialmente à sua estrutura interna de
poder. Lutero, por exemplo, condenou a venda de indulgência (venda
de perdão e misericórdia), a simonia (venda de imagens sagradas e
criticou a atitude imoral de muitos padres e membros da Igreja, que
se valiam de sua condição de detentores do poder para cometer
abusos e obter vantagens pessoais, sem sofrerem punições. Além
disso, os protestantes, como ficaram conhecidos esses críticos,
acusavam a Igreja Católica de ser muito tolerante com as práticas
pagãs, que permaneciam muito fortes na tradição popular, tais como
festas, entre elas o carnaval; a magia; e a reinterpretação de
símbolos da religião católica. A Igreja Católica era criticada, portanto,
por não realizar uma leitura fiel do texto bíblico. (...) Em 1517, Lutero
rompe definitivamente com a Igreja Católica, afixando, na catedral de
Wintterburg, hoje território alemão, suas 95 teses, consideradas o ato
impulsionador de uma nova religião: o protestantismo. Considerado
herege, Lutero foi excomungado pelo papa em 1520.24
Em resposta às grandes adesões que tiveram as ideias protestantes, a
Igreja organiza, entre 1545 e 1563 o Concílio de Trento, cujos objetivos eram
modernizar, moralizar e readaptá-la aos novos tempos. Das medidas tomadas por
ocasião desse fórum católico, destaca-se a criação do Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição, que teve como réus pessoas ilustres como Maquiavel e Galileu Galilei,
que, para evitar a morte na fogueira, teve que renegar suas teses. Em 1984, mais de
4 séculos depois, o Papa João Paulo II reconheceu, em nome da Igreja, que Galileu
estava certo.
Embora seja uma instituição que não ocorreu exclusivamente sob esta
forma de organização política (Estado Medieval), sua origem e, principalmente, suas
23
Idem
MACHADO, Ronilde Rocha; ROTA, Paulo Jorge Storace. História – Ensino Médio. v. 1. Brasília:
Cib-Cisbrasil, 2004.
24
11
características estão na Idade Média. Trata-se de um Tribunal especial feito para
julgar e condenar os hereges. A definição dos condenáveis era critério adotado pela
Igreja, que muitas vezes o fazia influenciada meramente pelos interesses políticos
havidos por governantes ou por aspirantes ao governo. Segundo Flávia Lages
Castro,
A formação de muitos dos Estados Absolutistas deve-se, em grande
parte, à utilização política do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição
(nome completo da Inquisição) que nas mãos de monarcas ansiosos
por concentrar o máximo de poder perseguiram através deste vários
opositores e conseguiram unificar seus países em torno de Estados
centralizados, ora minimizando os efeitos de uma invasão
estrangeira (no caso da Espanha, principalmente), ora conseguindo
mais financiamentos para seus planos (...) ou até mesmo buscando
através do Tribunal eliminar quem lhes fizesse oposição. Pode-se
indicar exemplos tais como o da famosa Joana D’Arc. Heroína
francesa que foi eliminada (através de processo do Tribunal do Santo
Ofício) pelos ingleses e seus aliados franceses como forma de
justificar suas vitórias contra Inglaterra ou ainda dos judeus da
Península Ibérica (Portugal e Espanha) que sempre eram mais
perseguidos pela Inquisição quanto menos o Estado pudesse honrar
seus compromissos com banqueiros de origem semita.25
Outra importante característica desse período são as Guerras Santas,
tendo grande destaque as Cruzadas. Nelas, a luta territorial e a missão catequética
confundiam-se entre si. A Guerra dos Trinta Anos, entre a França e o Sacro Império
(1618 a 1648) foi outra demonstração de guerras de cunho religioso e político. Nela,
a disputa visava à derrota de grupos protestantes, estimulados pela liberdade de
culto, que fora em seguida revogada, evitando, assim, o alastramento dos que
participaram da Reforma. Importa salientar, ainda, que após as diversas batalhas, a
Paz de Westfália, assinada em 1948 na Alemanha, pôs fim à Guerra dos Trinta
Anos, que terminou com proporções internacionais, envolvendo boa parte da Europa
e deu cabo à vida de inúmeros militares e civis.
Assim sendo, fica clara a ligação entre Igreja e Estado, sendo notório que
aquela era chamada para a inflação deste. De fato, a Igreja cumpriu este papel,
tanto que uma das principais características dos Estados surgidos após este período
são a concentração do poder, com soberania aos mandamentos dos governantes,
tendo, a partir dos Tratados da Paz de Westfália surgido, própria e tecnicamente
dita, o Estado, uma vez que só então surge o conceito e respeito à soberania.
25
Op. cit. p. 32
12
VI O Estado Moderno
O Estado Moderno surge em 1648, com a assinatura dos Tratados de Paz
da Westfália. As características do Estado Medieval determinaram as características
do Estado Moderno, uma vez que as aspirações de unidade política jamais se
concretizaram até então, mesmo sendo buscada desde o Império Romano.
Assim sendo, em resolução à Guerra dos Trinta Anos (de caráter
religioso-político, como mencionado anteriormente), foram assinados os referidos
tratados em que os governantes reconheciam a soberania uns dos outros sobre um
território delimitado. A partir de então se concretizaria a afirmação de um poder
soberano, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma precisa faixa
territorial.26
Assim, pode-se dizer que, embora não esteja livre da influência religiosa,
o governante passa a ser, efetivamente, o chefe do Estado, não dependendo, pelo
menos teoricamente, de decisões religiosas.
Ocorre, no entanto, que ao longo dos 5 séculos de Estado Moderno, em
algumas situações a Igreja continuou a decidir, embora, dessa vez, passando por
uma verdadeira legitimação de seus atos por meio do governante.
A partir de então, via-se uma concentração cada vez maior do poder nas
mãos do rei, sendo certo, ainda, que essa centralização dependeu de uma aliança
com o poder da Igreja. Nas palavras de Maquiavel “jamais alguém criou leis
extraordinárias em um povo, sem recorrer a Deus, pois se não fosse assim elas não
seriam obedecidas”.27
Esse processo baseava-se na construção de fronteiras nacionais e na
eliminação interna de diferenças religiosas e culturais, bem como no controle das
atividades econômicas buscando uma unidade nacional para legitimar o poder
político.28
Segundo Bobbio, o Século XVIII é considerado o máximo do Absolutismo
na França, período em que o Rei era o detentor do poder, sem se submeter a
26
DALLARI. Op. cit. p. 50
MAQUIAVEL. Op. cit. p. 23
28
ROTA & MACHADO. Op. cit. p. 173.
27
13
nenhum freio ou norma de poderes superiores ou inferiores que, ao menos, tivesse
poder de fiscalização.
O termo absolutismo, provavelmente, surgiu no século XVIII, foi
difundido na primeira metade do século XIX para indicar, nos círculos
liberais, os aspectos negativos do poder monárquico ilimitado e
pleno. O princípio da justificativa do absolutismo da monarquia
francesa vinha do “direito divino”, isto é, o rei não era considerado
súdito de ninguém, sua soberania provinha de Deus, único a quem
devia obediência. Por outro lado, todos os que viviam sob sua ordem
eram súditos. Ao soberano caberia dar a lei aos súditos (...) sem
necessidade de seus consentimentos. 29
Ocorre, no entanto, que o Absolutismo Monárquico levou o Estado
Francês a série crise financeira, uma vez que concedia à nobreza e ao clero regalias
fiscais. Por outro lado, o Terceiro Estado (Plebeus) passaram, por volta do ano de
1787, 1789, por uma crise advinda da má colheita no período.
As regalias concedidas eram tão favoráveis às duas classes superiores,
que em 1761, um de seus representantes dirigiu-se ao Parlamento de Paris e lhe
advertiu:
Todo sistema que, sob uma aparência de humanidade e
benevolência, tendesse, numa monarquia bem ordenada, a
estabelecer entre os homens uma igualdade de deveres e a destruir
as distinções necessárias, levaria em breve à desordem, seqüela
inevitável da igualdade absoluta, e acarretaria a derrocada da
sociedade... Quais não seriam então os perigos de um projeto
produzido por um sistema inadmissível de igualdade, o primeiro
efeito do qual e confundir todas as Ordens do Estado aos lhes impor
o jugo uniforme do imposto territorial! (...) O serviço individual do
clero é desempenhar as funções relativas à instrução, ao culto
religioso e ajudar a aliviar o sofrimento dos infelizes por meio de
esmolas. O nobre dedica seu sangue à defesa do Estado e assiste
com seus conselhos ao soberano. A última classe da nação, que não
pode prestar ao Estado serviços tão elevados, cumpre seu dever
para com ele através de tributos, da indústria e dos trabalhos
braçais.30
Com a ideia de tentar levantar as finanças públicas, o Rei Luis XVI
convocou, em 1787 um Conselho de Notáveis, que era composto por 144 membros
escolhidos dentre as mais altas classes da sociedade. Não conseguiu apoio para a
criação de um imposto a que todos os cidadãos estivessem obrigados. Clero e
29
30
Op. cit. p. 45
TURLARD, 1990. Apud BOBBIO. Op. cit. p 68
14
nobreza queriam sobrecarregar o Terceiro Estado, que já não suportava mais todo o
ônus financeiro da nação.
Assim, no ano seguinte, o Rei foi compelido a convocar uma Reunião dos
Estados Gerais, da qual participara até mesmo o Terceiro Estado, junto com a
Nobreza e o Clero. Os deputados do Terceiro Estado eram em maioria
representantes da burguesia, juristas, sobretudo.
Não havia, ali, representantes camponeses. No entanto, a gravidade da
crise moveu a grande massa, que começava a passar fome nos campos e a se
rebelar contra os costumes e regras absolutistas, como a grande carga tributária e
os privilégios concedidos aos nobres.
Chegou-se ao ponto de se invadir conventos em busca de alimentos e
roubar armas de departamentos públicos, uma vez que o Rei Luís XVI determinou
que as forças revolucionárias fossem combatidas pela força do Exército. Enquanto
isso, inspirados pelas movimentações populares, os deputados do Terceiro Estado
rebelaram-se contra a forma de votação (cada Ordem equivalia a um voto) e
passaram a votar individualmente, sendo que cada membro tinha um voto e, ao final,
todos seriam computados igualmente.
No dia 14 de julho, um grupo armado invadiu a Bastilha, prisão-símbolo
do Absolutismo, libertando-se os presos políticos. Com isso, muitos governantes
locais deixaram seus cargos e as municipalidades foram convertidas em comunas,
regidas pelas novas regras ditadas pela Assembleia Nacional.
Posteriormente, a Assembleia Nacional foi transformada em Assembleia
Nacional Constituinte, decidindo-se elaborar uma Constituição para a França. Um
mês depois, aprovou-se a Declaração dos Direitos do Homem, que deveria orientar
a elaboração da Carta Magna31
A chamada Revolução Francesa, que pôs fim ao Absolutismo Monarca,
era inspirada pelos ideais iluministas, difundidos largamente pela Europa. Para essa
corrente filosófica, que privilegiava a razão, era necessário livrar-se das amarras do
passado, consistentes em verdades prévias, não submetidas ao crivo racional.
VII CONSIDERAÇÕES FINAIS
31
ROTA & MACHADO. Op. cit. p. 145
15
Analisando-se a evolução do Estado, percebeu-se que a todo momento a
instituição relacionou-se com as mais diversas formas de religiosidade. Pode-se
perceber que houve cinco principais momentos pelo qual passou a história dos
estados: Estado Antigo, Estado Grego, Estado Romano, Estado Medieval e Estado
Moderno.
O Estado Antigo era caracterizado pela união entre família, religião,
economia, moral e política. Já no Estado Grego, assim chamado, apesar de não ter
uma unidade territorial e política, vê-se que as cidades-estados buscavam a
autonomia de seus centros e se tratava de uma sociedade organizada em preceitos
legais bem definidos, sobretudo quanto à democracia ali exercida.
No Estado Romano, que passou por diversas fases, verifica-se o início do
Cristianismo, bem como sua relação com o Estado, que, a princípio tentou puni-lo e
extirpá-lo, mas que ao final rendia-lhe culto oficial. No Estado Medieval, momento
em que a Igreja Católica alcançou o auge de seu poder, via-se que o Clero tinha
importante participação na sociedade e nas resoluções políticas e legais. Esse
período ficou conhecido como Idade das Trevas, sobretudo por ter influído
negativamente na produção científica e artística.
O Estado Moderno, iniciado com a assinatura dos Tratados de
Westphália, traz a autonomia dos Estados e a busca pela indepedência em relação
à Igreja. Seu início conturbado e marcado por guerras contra o poder clerical, cuja
ocorrência foi frequente até o início do século XIX, trouxe um boom de ideias
filosóficas, artísticas e científicas, chamado de Iluminismo, contrapondo-se à
repressão da Idade Média ou Idade das Trevas.
Conclui-se,
portanto,
que
a
religiosidade,
enquanto
importante
característica humana, esteve a todo tempo se relacionando com o Estado. Ora de
forma positiva, unindo-se ao mesmo, ora de forma negativa, sendo afastada por
este. Atualmente, vê-se como saudável a cultura da separação entre Estado e
religiões, de modo a garantir as liberdades individuais e aprimorar a soberania do
Estado.
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Artigo-EVOLUÇÃO DO ESTADO E SUAS INTERFACES COM A